É impossível pesar a importância de um Stephen King fora do conjunto de toda sua obra. E não seria diferente com Doctor Sleep, a mais recente novela do então Rei do horror. Doctor Sleep se torna especial na ansiedade dos fãs por ser a continuação tão esperada (e inesperada: foram quase quatro décadas de espera por epílogo) de O Iluminado. Os fatídicos acontecimentos da família Torrance no Hotel Overlook, onde passaram parte do inverno isolados nas Montanhas Rochosas, faz parte do principal cânone cultural do último século, participação acrescida pela versão de Stanley Kubrick e um insano Jack Nicholson. O Iluminado, inicialmente lançado em 1977, é um dos principais trabalhos de King e envelheceu muito bem, mantendo a aura de mistério, suspense e horror que ainda faz leitores deixarem o livro de lado até o sol brilhar novamente. Só por precaução.
Desta forma, fica clara a complicada posição de Doctor Sleep, uma ótima leitura, mas que sofre por estar inserida no conjunto de seu autor. Primeiramente, um pouco sobre seu enredo. Daniel Torrance, um dos três sobreviventes do Overlook, cresceu. Encontramos, depois de rapidamente percorrer uma brilhante introdução sobre as feridas psicológicas que marcaram o pequeno Doc em O Iluminado, um Dan Torrance afogado no álcool, vagando por pequenas cidades do Estados Unidos, afundando todos os seus demônios em garrafas intercaladas apenas por fileiras de cocaína. Daniel foge do passado enquanto vaga pelos estados, dependendo de pequenos trabalhos temporários como enfermeiro. King pega em nossas mãos e nos mostra, pulando na linha temporal, como ele chegou onde deveria estar e a espiral auto-destrutiva que nosso querido protagonista percorreu, as pessoas que feriu e o conflito interno que se abriu. O leitor recorrente já está acostumado com essa construção e sabe que um dos pontos mais fortes nos livros de King é justamente esse: a lenta formação de personagens que sobressaem no mar de palavras impressas. Personagens que parecem reais, reagindo a eventos surreais.
Em paralelo, somos apresentados aos outros dois pilares da narrativa: Abra, uma garota iluminada e o grupo de vampiros espirituais, sádicos e bem organizados, conhecidos como True Knot (Laço Verdadeiro, em tradução livre). O True Knot se revela num grupo de pessoas com poderes especiais que vivem, virtualmente, para sempre, sugando a essência de outros paranormais para garantir a imortalidade, essencialmente como os vampiros chineses, que sugam as energias de suas vítimas. Abra Raffaela Stone manifesta poderes parecidos com os do pequeno Dan Torrance, mas muito maiores. Em certo momento, Dan diz que se ele fosse como uma lanterna, Abra provavelmente seria um farol. Abra consegue tocar instrumentos musicais com sua mente, brincar com objetos à lá Poltergeist, capturar breves relances de pensamentos alheios e sentir resquícios de outras pessoas através de fotos ou objetos pessoais, visualizando assim o seu passado e localização. Quando encontra uma publicidade sobre crianças desaparecidas, Abra pisa no calo do True Knot e se transforma no principal alvo. A garota é muito mais do que uma ameaça para os membros do Knot. A garota representa esperança para os vampiros que estão fracos e doentes e apenas uma quantidade monumental de poder pode salvá-los. Abra é como um banco de sangue para vampiros famintos.
Doctor Sleep pode ser dividido em três partes. No primeiro terço nos acostumamos com os personagens envolvidos. Daniel Torrance atinge o fundo do poço e inicia a árdua jornada individual para chegar ao décimo segundo degrau do AA; Abra aprende a lidar com seus poderes e o True Knot (brilhantemente apresentados no ground zero dos atentados de onze de setembro), tenta administrar o que ainda têm de essência e procura por novas fontes de imortalidade. Depois, Stephen King faz o que sabe fazer de melhor, ajustando as peças no tabuleiro que criou, levando-as para o inevitável embate, que dura todo o último ato. O terço final representa o melhor e o pior dos livros de King. Se até então era impossível largar o livro e cada página era virada com uma avareza literária que escapa de minha compreensão, o final se torna óbvio e arrastado, infelizmente preguiçoso. É um problema recorrente, aliás. Os desfechos são, a grosso modo, decepcionantes, levando a momentos em que livros são defenestrados ou incendiados por leitores raivosos. Normalmente acompanhados por lágrimas amargas de traição – Ok, posso estar exagerando. Ou não.
Todos os elementos estão lá. Os personagens que irão acompanhar seu pensamento por muito tempo, as cidades que se tornam velhas conhecidas e os vilões recheados de deliciosos clichês. Abri o texto afirmando que Doctor Sleep precisa ser visto como parte de um universo muito maior e agora justifico minha opinião. Além de estar atado ao O Iluminado, o novo livro de Stephen King faz menção direta ao livro de Joe Hill, NOS4A2 – leia-se Nosferatu. Os membros do True Knot são familiares com Charles Manx, antagonista de Hill, entrelaçando os dois universos em um só cenário, rico e cheio de referências internas. A Torre Negra, a principal saga de King, também está presente, assim como referências diversas e de menor escala (uma das vítimas de Lecter no excelente O Silêncio dos Inocentes faz uma breve participação).
Apesar das mais de quinhentas páginas, o livro sofre com a brevidade de alguns temas. O principal tema mal desenvolvido é o que empresta o título da obra. Daniel Torrance utiliza os poderes psíquicos para ajudar pacientes terminais no processo de morrer, acalmando-os e facilitando a transição. King disse em uma entrevista que a ideia surgiu depois de ler sobre um gato (Azreel, do hebreu Auxiliado por Deus; Deus da Morte, na mitologia) que permanece com os moribundos sem errar uma única vez. Ainda que o poder de Dan tenha um papel importante na trama, ele é abordado brevemente por todo o livro e o gato que identifica os que têm pouco tempo de vida, não exerce papel de maior importância, tornando sua presença indispensável. Oportunidades perdidas.
Abra Stone nasceu com uma placenta peculiar, por assim dizer. Talvez Stephen King, um leitor assíduo, tenha lido Os Caminhantes do Bem, do historiador italiano Carlo Ginsburg. Talvez seja apenas uma coincidência, mas a Torre Negra não acredita em coincidências, já sabemos. O livro de Ginzburg analisa documentos da Inquisição sobre os benandantis, pessoas que nasceram com placenta dupla e têm poderes sobrenaturais, combatendo o mal para garantir colheitas e evitar pestes sobre a humanidade. O próprio Ginzburg foi abordado algumas vezes por pessoas que se diziam Caminhantes do Bem e, curiosamente, eram todas italianas. Abra Rafaella Stone tem sangue italiano e todos os sinais de ser uma benandanti, mas o assunto é abordado em uma ou duas linhas.
Por fim, Doctor Sleep é um bom livro, mas que poderia ser muito mais expressivo. Aqueles que procuram por uma continuação significativa do livro de 1977 encontrarão decepção. O Iluminado não tem grandes consequências, servindo apenas para completar lacunas em diálogos. Doctor Sleep é cativante, ágil e abre possibilidades interessantes para vertentes do True Knot. Um livro que ganharia maior destaque em outro momento ou com outros personagens, que perde seu brilho na sala bem iluminada que constitui o universo de King. A ironia, enfim, reside nos fracos nós entre seus elementos.
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Maurício Ieiri é um historiador que não faz História. Atualmente tentando descobrir o que fazer com sua vida, partindo deste exato momento até o dia em que morrer. No meio tempo, escreve para Os Caras do Clube uma vez por semana.
Normal para que leu mais de 5 obras do King percebe que ser óbvio tem sido uma falha dele como escritor nos últimos livros .
Essa ideia dos vampiros psíquicos é legal, mas não consigo imaginar uma sequência de O Iluminado. Seria melhor se o protagonista fosse um personagem inédito.
Bacana a resenha. Mas discordo do elogio à agilidade do livro. King se prende a detalhes tediosos, que conduzem ao óbvio e não acrescentam nada à trama. Dá para saltar três ou quatro páginas por vez sem sentir falta de nada. A ideia de vampiros psíquicos foi além do que imagino razoável em uma história de terror. Muito irreal. Antes que me xinguem, sou fã do King. Mas estou decepcionado.