Carrie – A Estranha (1974) conta a história de uma adolescente socialmente desajustada, que usa seus poderes psíquicos quando é humilhada além do que poderia suportar; A Hora do Vampiro (1975) pode ser visto como uma releitura de Bram Stoker para os Estados Unidos de 1970; A Coisa (1986) conta a história de uma entidade vestida de palhaço e de sete amigos que se unem para enfrentá-la; O Iluminado (1977) coloca o leitor em isolamento, forçando-o a encarar os terrores que despertam o pior em Jack Torrance. Vamos pular para os anos 2000, quando Stephen King resolveu que seria interessante lançar um tijolo por ano. Os livros finais da saga A Torre Negra (1982-2012); Celular (2006); Sob a Redoma (2009); (o péssimo título nacional de) Love: A História de Lisey (2006); Novembro de 63 (2011); e, agora, Mr. Mercedes, dentre outros livros do prolífico Stephen King. Você, leitor assíduo do escritor norte-americano, pode notar a diferença na atmosfera entre os livros?
Para o fiel leitor, é clara a distinção entre os dois pontos, e até mesmo aqueles que tiveram pouco contato com a obra do mestre do horror poderiam facilmente notar a diferença dos livros mais recentes diante dos textos iniciais. Mr. Mercedes, último lançamento de King, é o romance que melhor representa o momento em que o autor atualmente se enquadra. E já adianto, ele está sentado numa confortável cadeira bem estofada, com uma lata de Pepsi numa mão e um smartphone na outra, provavelmente navegando no Twitter.
O mais novo romance de King tem início quando uma Mercedes branca vai de encontro a uma fila de pessoas que aguardavam o início de uma feira de empregos. São pessoas desesperadas, enfrentando uma noite gelada para serem as primeiras a entrar no local e lutar por um lugar no soterrado mercado americano de 2009. A neblina – claro que precisávamos de neblina: você conseguiria imaginar uma cena noturna sem neblina? – esconde o carro que descia contra eles até o inevitável: oito mortos e diversos incapacitados. Mr. Mercedes se inicia com um rio de sangue.
Um ano mais tarde e estamos na sala do ex-policial Kermit William Hodges, fora de forma, viciado em chulos programas de televisão e contemplando por tempo demais o revólver que era de seu pai, uma arma que vai parar em sua boca enquanto o suicídio é contemplado com seriedade crescente. Quando uma carta do assassino da Mercedes aparece sob o vão de sua porta, o ex-policial volta a farejar o rastro deixado pelo funesto ato. Hodges de repente tem um novo motivo para viver: apreender o misterioso assassino apelidado de Senhor Mercedes. Assim, passa por uma mudança radical enquanto soma pistas que passaram despercebidas quando o sangue ainda estava fresco na lataria do carro de luxo.
Mr. Mercedes é previsível. Todos os elementos noir saltam pelas mais de quatrocentas páginas da edição original, enquanto a investigação se desenrola e a personagem central recupera o que sobrou de policial no sangue que corre em suas envelhecidas veias. Em certo ponto, Hodges usa um chapéu fedora, arrumado em sua cabeça por uma linda mulher. O próprio nome William Hodges é noir. Hodges, em letras garrafais estampadas sobre o vidro de seu escritório, na parte perigosa da cidade.
A trama mais parece um colcha de retalhos de clichês do gênero e faria do livro um desastre esquecido nas prateleiras, acumulando pó e perdendo seu valor, não fosse a mágica de Stephen King. É impossível largar a narrativa até seu derradeiro fim – normalmente o ponto fraco das obras do autor, mas que nesse caso surpreende com um desenvolvimento que promete agradar a maioria dos leitores. Convenhamos, se King lançasse um compendium com suas listas de mercado, muitos o comprariam na pré-venda – eu compraria, céus! -, e milhares de sites postariam reviews, ranqueando os trabalhos do escritor e procurando referências de seu universo literário. E é a habilidade de agarrar o seu leitor pelas narinas e o prender nas páginas que faz do mestre do horror um best-seller até hoje.
O que também chama atenção em Mr. Mercedes não são as (poucas) reviravoltas na trama (momentos que fariam seu queixo cair até o chão), mas as escolhas narrativas e a atmosfera realista, sóbria, tecida neste novo romance, que o tornam único. Pense comigo. Carrie, O Iluminado, Christine (1983), A Coisa e outros títulos do início de carreira são recheados de absurdos sobrenaturais, repletos de personagens como a adolescente que pode matar apenas com a mente, o palhaço que some com as crianças de Derry, e um carro amaldiçoado. Um carro amaldiçoado! O Stephen King das décadas de 70-90 amava as cenas com aranhas percorrendo a pele sedosa das damas em perigo e mocinhos bondosos que trabalhavam até a exaustão para corrigir toda a maldade que caminhava sobre a Terra. São os clássicos absolutos de seu legado que para sempre estarão no coração de seus fãs. Seu foco parece mudar das cenas que chocam para as que constroem um suspense palpável, numa atmosfera que provoca mais a necessidade de saber o que acontecerá a seguir do que propriamente utilizar o bizarro por sua simples existência. Há tempos ele não mais precisa demonstrar que é o mestre do horror e, de certa forma, sua escrita agora goza de uma liberdade criativa que poucos têm.
Assim como o próprio autor, os livros mais recentes se apresentam sóbrios e mais sérios. Até mesmo o horror veste novos tons e chega como um elemento hiper-realista. O problema não são mais os demônios despertos numa velha mina do centro-oeste americano; os novos vilões são juntas doloridas, ataques cardíacos, limitações físicas e o sólido anacronismo digital dos protagonistas. Da mesma forma que King deixou a cerveja e a cocaína de lado para agarrar-se às latas de Pepsi, seus livros também amadureceram e ganharam um ritmo mais lento, e não poderia ser diferente, uma vez que eles refletem o estado de seu autor.
Mr. Mercedes é uma história policial, longe de ser classificada como horror, gênero que caracteriza o autor. Claro, o novo livro não desbrava novos territórios de sua narrativa, e podemos falar de outros romances e contos, como Conta Comigo (1982), Um Sonho de Liberdade (1982), Joyland (2013) e Misery (1987), mas nenhuma destas histórias abraçou o estilo como este lançamento o fez, para o bem e para o mal. Encontramos um novo Stephen King, afastado das frenéticas lutas contra monstros terríveis para se concentrar em monstros que se escondem atrás do anonimato on-line. Saem as aranhas gigantes, entram os protocolos de identificação e cavalos de troia que podem ler todos seus arquivos. É uma história mais realista e aponta a tendência de deixar de lado o absurdo surreal para abraçar o absurdo real.
O livro absorve questões atuais e tendências da vida digital, afastando-se dos velhos meios de investigação para entregar ao leitor uma pesquisa em blogs, redes sociais e artigos em sites de jornal, sempre na busca do culpado no caso Senhor Mercedes. Invasão de documentos privados, o risco de vírus ao se usarem computadores pessoais contra a investigação e, claro, chats em salas totalmente anônimas. Toda a vida virtual é englobada e ganha vida na trama pelas mãos de Jerome, um garoto de 17 anos totalmente imerso nas novidades tecnológicas e modas culturais do verão. Jerome é o guia de Hodges para o novo labirinto com paredes formadas por fileiras intermináveis de 1 e que também serve como condutor entre os dois pilares do romance: o velho policial que sequer sabe como ligar o computador e o Senhor Mercedes, cujo conhecimento técnico supera o esperado. Numa cena significativa, Jerome, em tradução livre feita por mim, aconselha o agente aposentado: “Seu computador não é apenas mais um aparelho de TV. Tire isso de sua cabeça. Toda vez que você o liga, estará abrindo uma janela para sua vida. Se alguém quiser olhar, verá.” No caso em questão, Hodges abusa do mundo virtual para auxiliar na busca de sua versão de baleia branca. Hodges é um Ahab que poderia compartilhar no Facebook a vontade incontrolável de finalmente caçar a baleia branca.
Deixando para trás a revolta juvenil, o escritor sabe que é preciso entender os novos modelos de comunicação para não se tornar obsoleto e anacrônico. Ele sempre soube, aliás. A Planta (2000) foi uma aventura que demonstrou, anos antes, os desafios que os novos modelos de livros virtuais carregam, como a pirataria e os problemas de laços digitais; seus acordos com a Amazon colocaram Kindles nas mãos de personagens; e seu principal meio de comunicação com os fãs é o Twitter. Hodges é o resultado da reflexão de Stephen sobre o que é envelhecer num mundo dominado pelos jovens; sobre a dificuldade de se atualizar por meio de redes sociais e modelos de celular; sobre os desafios de manter a privacidade quando todos estão tagarelando a respeito de suas vidas, enquanto digitam em tablets e smartphones sentados na privada e com as calças arriadas. Mr. Mercedes se passa num mundo onde a Blockbuster está fechada e todos migraram para a Netflix.
Por fim, o romance arrisca pouco e dá sinais de cansaço, mas é um livro que prende o leitor. E no fim do dia é isso que importa: entregar uma boa história. O perfil oficial de Stephen King no Twitter, gerenciado pelo próprio e resumindo nos limitados caracteres o papel das novas tecnologias, fecha com chave de ouro minha análise ao anunciar que Mr. Mercedes é a primeira parte de uma trilogia. Sem divulgações oficiais e uma custosa rede de publicidade. 140 caracteres são o suficiente hoje em dia.
MR. MERCEDES is the first novel in a projected trilogy. Hodges, Jerome, and Holly will return in FINDERS KEEPERS next year.
— Stephen King (@StephenKing) 10 junho 2014
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Maurício Ieiri é um historiador que não faz História. Atualmente tentando descobrir o que fazer com sua vida, partindo deste exato momento até o dia em que morrer. No meio tempo, escreve todos os dias de maneira alucinada.
Gostei muito de Mr. Mercedes. Acho que soube brincar bem com os clichês do gênero para promover essa narrativa única que citou. King é excelente em descrições e em comentários sobre as personagens e isso se torna o grande destaque da obra pra mim. Aguardando Achados e Perdidos sair no país para ler.