Stephen King é o tipo de escritor que cria histórias completas, de cabo a rabo. O gosto ao terminar um dos seus romances, pelo menos a maioria deles, é exatamente esse: algo deveras poderoso, amplo, e de que terminamos de acompanhar um longo conto onde tudo é extremamente bem amarrado, e todas as possibilidades foram jogadas na mesa de forma divertida, e desenvolvidas com a inteligência de quem escreve dramaticamente sobre o suspense, e o medo, com regularidades típicas. Algo bem perceptível nas diversas obras de King, hoje cultuado feito o mestre americano que merece, por fim, ser chamado.
Já eu costumo afirmar sem titubeio algum que O Caso de Charles Dexter, do deus H.P. Lovecraft, é o livro mais perturbador que pode habitar uma biblioteca, traduzindo em poucas páginas iniciais uma perturbação psicológica muito maior que obras-primas do Cinema como O Lamento, de 2016, tentam com afinco transmitir, e nem elas atingem o nível doentio que Lovecraft alcançou com seu texto soberbo, magistral como poucos. Ao que parece, a rápida leitura de Saco de Ossos, publicado pela Suma de Letras, chega perto desse desconforto e dessa tensão literária, e isso meu leitor, por si só, já lhe bastaria de sobra como um enorme elogio em prol de qualquer modernidade do mundo das letras.
A grosso modo, ou nem tanto assim, temos aqui um plot recorrente na obra de vários autores do gênero: um homem perde a mulher e não saber o que fazer da vida que lhe resta, com um cadáver ocupando sua mente numa rotina invariavelmente nostálgica. A dor que o escritor Mike Noonan ganha não tem parâmetros tangíveis, e esse é o elemento que rege boa parte do início das 380 páginas de um romance acerca do lugar que o passado aluga nas nossas vidas, por vezes até de forma definitiva. Destaque supremo aqui para como a história se divide bem entre o ontem, e as possibilidades do amanhã, num drama realista que respira no terreno do surreal, e exemplarmente equilibrado dentre suas potências, e ousadias.
Transtornado, fato é que Noonam começa ao longo dos anos a adentrar num grave bloqueio criativo para o desespero severo do seu agente literário, chegando ao ponto de recusar uma oferta milionária pois não conseguia achar motivação para a criação de mundos que tanto estruturou em seu Word 6.0 – como o livro gosta de destacar. Nisso, King parece oferecer com detalhes como é a sensação disso para alguém que carece de imaginação como um professor precisa de alunos, tendo no sobrenatural que brota pouco a pouco dos pesadelos de Mike a chave para um imaginar bastante perturbador, e que cruelmente se torna real. Estava na hora de procurar novos ares, uma nova casa.
Mas para Mike, o novo estava guardado e esperando por ele num porão de memórias semimortas. King nunca teve piedade dos seus personagens, pelo contrário, vide a pobre Carrie e a família Creed, de O Cemitério Maldito, contudo aqui há indícios de uma certa redenção por parte do masoquismo expresso pelo autor. O tormento aqui é oriundo de um pretérito tão desgraçado quanto o horror que habitava as covas de outrora – no caso, as águas que fazem margem à casa onde Mike retorna para morar, tentando reviver um ontem que, junto de novos problemas e paixões, o assombra, mas da forma mais diabólica e inglória possível até para o pensar de um homem que, como Oscar Wilde deve ter dito sobre os escritores, ensinou sua mente a se comportar muito mal.
O cenário do livro então se transporta para o de uma propriedade cujo lago é tão imundo quanto nosso saudoso rio Tietê, ainda que mais chocante por sua história, reputação e o que se esconde debaixo de sua tona. Cada um dos personagens é legítimo alimento para um suspense que cresce em terror até explodir num clímax elegante, e nada exagerado; imperial em seus sentidos mais eloquentes, enfim. A qualidade de Saco de Ossos, que começa fazendo referência a condição catatônica de Mike após o óbito de sua amada esposa, e que termina sendo literalmente uma metáfora sobre o sinistro lago Dark Score, é justamente o ritmo de sua narrativa, costurada em torno de seus eventos como poucas e com grande graça, e paciência. Isso porque Stephen King, que sempre reveste seus demônios com lágrimas e outros recursos, nunca tem pressa para nos surpreender, e aqui não poderia ser diferente de forma alguma.
Sem perder o ritmo constante pelo qual ganhou merecida notoriedade entre os tantos autores do gênero na modernidade dos títulos que são publicados todos os anos, suas palavras vão serpenteando episódio por episódio, dado por dado, tensão atrás de tensão rumo as verdades que Mike nem nós podemos suportar sem sentir o impacto que o destino traz a uma mente e um coração já desconstruído pelo temor noturno e soturno que um imprevisível amanhã pode trazer a quem só tem a perder sua vida, e ainda vê algum valor nesse difícil viver das dificuldades humanas, mas isso é pleonasmo… Saco de Ossos é definitivamente uma leitura acima da média, sob a alcunha de ser um exemplar honroso da nobre herança dos escritores de terror e suspense do passado.
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