Categoria: Críticas

  • Crítica | Miss Julie

    Crítica | Miss Julie

    Miss Julie 1

    Adaptado da peça de August Strindberg, Miss Julie é uma das muitas versões do conto, dessa vez capitaneada por Liv Ullman, que se mune de sua vasta experiência nos palcos para dar forma a famosa obra dramatúrgica. A história de Miss Julie envolve uma Irlanda em 1890, narrando uma trama de sedução e amores proibidos, ocorrido a partir das ações da personagem título, vivida pela cada vez mais linda Jessica Chastain. Logo no início é mostrado o outro ponto desta equação, o serviçal dedicado e hábil Jean (Colin Farrell), que chega a grande casa e se dirige ao cômodo de serviços, não se envolvendo com a realidade burguesa dos donos da casa.

    O paradigma visto e revisto em milhares de novelas globais é mostrado sob um viés invertido, como o homem em uma posição degraus abaixo do ser feminino, curiosamente despertando a comicidade de uma peça antiga ter mais paralelos com a realidade do que os dramas chauvinistas vistos no horário nobre da televisão brasileira.

    A transição entre completos desconhecidos e possíveis amantes ocorre muito rapidamente, fruto da vaidade desvairada de Miss Julie, que não pensa em nada além de seus próprios instintos e desejo. A vestimenta azul que usa faz grafar ainda mais sua pele alva e sedutora, produzindo em sua persona algo irresistível ao olhar e ao toque, mas ainda assim, Jean resiste bravamente nos primeiros momentos.

    O espectro de sexualidade piora com a adição de álcool a interação de ambos, gerando não só momentos tórridos sexuais como aumentando o caráter de discussão, tanto do abismo entre a classe de ambos personagens, quando a hipocrisia e idiossincrasia do abuso de poder, que começa na questão econômica e termina em um embate sexista. A discussão a respeito da fidelidade conjugal também se intensifica, agravada pelo ranço da rejeição e da inveja clara, motivado pela disparidade de beleza entre Miss Julie e Kathlen (Samantha Morton), a esposa de Jean.

    A frieza e crueza no tratamento com a vida inverte o seu interlocutor, o que permite a Chastain dar mostras de um over action soberbo, que não recai sobre vícios dramatúrgicos pueris. O desespero visto em suas feições gera empatia no público, que imediatamente apoia  seu desespero e se apieda de sua alma. A boa condução de Liv Ullman faz até a ausência de talento de Farrell tornar-se suportável, já que sua interpretação serve de escada ao papel de sua patroa.

    A encenação que a realizadora propõe, depende fundamentalmente de seu elenco, e o eco da experiência de Liv Ullman nos palcos é visto em cada gesto de sua personagem principal, abrilhantado claro pela forma exuberante de Jessica Chastain, em mais um papel que desafia suas capacidades dramatúrgicas.

    Se não bastasse o absurdo que é o nível das atuações, as cenas finais contém um grafismo visual absurdo, com cores sobressaindo sobre a paisagem, lembrando o quando o cenário deveria ser subalterno e efêmero ante a existência, ante a vida. O sangue predominando sobre a água faz lembrar o quão pode ser curta a subsistência do ser humano, além é claro da continuidade do universo e da natureza independente da aparição do indivíduo, grafando a grandiloquência de Gaia em relação ao bicho homem. Miss Julie fala em diversos níveis, e serve a múltiplas interpretações de conteúdo.

  • Crítica | E:60 Reports – Sepp Blatter and FIFA

    Crítica | E:60 Reports – Sepp Blatter and FIFA

    Sepp blatter

    O começo intimista do filme mostra o discurso do atual mandatário da FIFAJoseph Blatter, em meio a paisagens curiosas que remontam a simplicidade destoante da falta de transparência do modus operandi da empresa, apesar de todos os esforços da entidade e do suíço em realizarem uma imagem diferenciada. E:60 Reports – Sepp Blatter and FIFA do documentarista e repórter Jeremy Schaap se preocupa em revelar a real face do dirigente, bem como a quantidade de escândalos envolvendo a organizadora mundial do esporte mais popular do globo, antes mesmo da recente caça às bruxas da justiça a políticos envolvidos em corrupção.

    O primeiro caso analisado foi a decisão em 2010 de fazer do Qatar a sede da Copa do Mundo de 2022, cuja maior polêmica é a informação desvelada de que houve suborno junto aos votantes que elegeram o país devastado como sede do evento. O filme-denúncia foi exibido ainda em 2015, regatando documentos e depoimentos que ajudam a compor o quão grotesco é o caso mais recente de favorecimento ilícito da entidade.

    O relato sobre a origem de Blatter, que tentou a todo custo trabalhar com futebol, é de um tom agridoce único, ambicioso mesmo diante das primeiras recusas que tomou, especialmente dentro de casa, quando seu pai rasgou um contrato que foi oferecido quando tencionava ser atleta. A fala de que “você jamais ganhará dinheiro com o futebol” não poderia estar mais errada, por não prever a aproximação gradativa do jovem Joseph do brasileiro João Havelange, que via no suíço o melhor candidato a sucessor.

    A subida de nível do político faz quase afeiçoar a sua figura, que é deteriorada pelas cenas “fofas” do economista se envolvendo em hábitos dos países que visita, os mesmo com que faz conchavos. As homenagens que lhe rendem servem para tornar sua controversa figura em algo ainda mais pitoresca.

    Outras tantas indiscrições são mostrada, como a polêmica eleição da Rússia como sede do mundial de 2018, ainda a acontecer, especialmente pelo lobby realizado através das figuras carismáticas do Príncipe William e do ex-jogador David Beckham, que, juntos, só conseguiram angariar míseros dois votos. O surpreendente não foi a derrota, mas sim a disparidade entre os votos dos candidatos, visto que desde a Copa de 2010, só foram escolhidos países subdesenvolvidos, com históricos largos de corrupção governamental, o que aumenta a esfera de suspeitas ao modo de operar da organização.

    As gravações da Sunday Times, de compras de favores junto à federação nigeriana de futebol, faz perceber que a prática é bastante comum no meio. O estudo é amparado por materiais literários, como nos estudos de Andrew Jennings e pela coleção Ugly Game. A conclusão tirada pelo documentarista e por seu feitor é a de que um esporte que é lazer, tanto em prática quanto em acesso pelo mundo inteiro, não deveria ser de posse de uma empresa, ainda mais uma que constantemente se dobra aos desígnios e desejos de quem pagar mais. Ainda que seja utópico, o reclame vale muito, especialmente em território brasileiro, uma vez que o futebol sempre foi um evento consumido naturalmente pelas massas, recentemente elitizado de modo hediondo e mal feito. Ao menos, é reconfortante que os casos recentes estejam sendo investigados, ao menos neste primeiro momento.

  • Crítica | Permanência

    Crítica | Permanência

    Na esteira do possante e cheio de verve cinema pernambucano, Permanência faz ressonância com o tema de retorno a vida comum e a adaptação a um novo estilo de vida através da personagem de Irandhir Santos, Ivo, que é recém-chegado do Recife para a megalópole paulista, lotado na casa de Rita (Rita Carelli). A diferença climática é o primeiro dos muitos aspectos diferenciais entre as duas capitais brasileiras, unidas por destinos de seres que buscam um estilo de vida melhor e mais situado na realidade.

    Leonardo Lacca usa seus poucos minutos em tela para apresentar uma história de reconciliação, munida de verossimilhança, sensibilidade, além de uma intensa relação com as vicissitudes da realidade. O foco na profissão de fotógrafo de Ivo faz relembrar a valorização do ato de contar histórias através de imagens, não só na fotografia de Pedro Sotero, mas também no roteiro de Lacca.

    O texto é arredio e não tem qualquer receio em exibir questões espinhosas, como a necessidade de comércio da arte e a crescente discussão em relação à legalização das drogas, especialmente a maconha. A simplicidade da história é o principal fator que faz o espectador se afeiçoar pelas personagens, inclusive por tratar de dramas humanos universais, comuns em quase todas as classes, gêneros e pessoas.

    Apesar da rusticidade do script, o texto não se reflete de modo banal ou simplório, pelo contrário. Os fatos narrados pela câmera fazem eco com o clamor da alma do espectador, apresentando um sem número de sensações intimistas. O diálogo sentimental que a película faz com a realidade é abissal, mostrando um aspecto comuníssimo de maneira original, e ainda assim passível de simpatia, especialmente para o espectador que está ou esteve em qualquer tipo de relação amorosa ou sexual. As indiscrições e infidelidades não são tratadas de modo maniqueísta, ao contrário, revelam uma humanidade poucas vezes vista no cinema mainstream, sem exacerbar qualquer aspecto grosseiro ou grotesco.

    Nada fala mal alto no filme do que a nudez recorrente de Rita Carelli. Em cada fragmento de sua pele alva contém uma parcela de volúpia e desejo por amor livre, manietada é claro pelo julgo do casamento. Mesmo nas cenas em que habita o mesmo cenário que seu marido, há uma diferença visual enorme de postura e semblante, exibindo visualmente a distância abissal que existe entre ambos, tanto em diálogo quanto em pelo, suor, corpo e pelo.

    As belas atuações de Irandhir Santos e Carelli fazem reverberar o conto repleto de solidão e arrependimento, compondo um quadro bem urdido, graficamente belo, como a maioria dos trabalhos expostos por Ivo em sua mostra. A quantidade acentuada de emoções conflitantes agrega um conteúdo curioso, ainda que não seja de profundidade enorme, até por se tratar de aspectos comuns e inexoráveis do cotidiano.

    O tempo inteiro a narrativa monta uma ponte entre Recife e São Paulo, aludindo possivelmente a ascensão que o cinema de Pernambuco tem tido nos últimos anos, a exemplo de Som Ao Redor, de Kleber Mendonça, e da pérola de Camilo Cavalcante, A História da Eternidade. O crescimento de Ivo enquanto artista que expõe seu trabalho dialoga diretamente com esse novo crescente regional, mas carrega assuntos ainda mais ligados a intimidade humana, evocando expectativas, sonhos, anseios e remorsos, para uma parte mais palpável da alma do homem.

  • Crítica | Promessas de Guerra

    Crítica | Promessas de Guerra

    Promessas de Guerra - poster int

    A ficção é capaz de produzir excelentes narrativas. Mas a realidade fornece bases para muitas histórias e, comumente, a frase “baseado em fatos reais” transforma filmes em objetos maiores, como se afirmar a veracidade de um fato causasse maior força na trama.

    Russell Crowe demonstra apreço nas histórias reais ao estrear na cadeira de diretor nesta produção que retorna à Galípoli, em 1919, para apresentar a história de um pai, interpretado por Crowe, à procura de seus filhos perdidos durante a batalha.

    Parte das batalhas da Primeira Guerra Mundial, a Campanha de Galípoli foi uma das mais caras e trágicas da guerra. Em uma tentativa de invasão da Turquia por parte dos aliados, houve um alto número de baixas de ambos os lados, além de falharem na missão de invasão do estreito de Dardanelos. Boa parte do grupo dos aliados era formado por australianos e neozelandeses, que ficaram desconfortáveis com a liderança das tropas britânicas após o feito.

    Anos após esta batalha, Joshua e sua esposa ainda vivem a amargura de não saber ao certo o destino dos filhos. Após o suicídio da esposa, o homem mantém a promessa feita à mulher e parte para a Turquia para encontrar os filhos e enterrá-los no mesmo local da mãe.

    A premissa parte desta promessa como um último ato de amor. Uma dor que reacende o luto no coração da personagem, que busca honrar o amor de uma mãe que nunca superou a perda de seus três filhos queridos.

    Na Turquia, tratado como um estranho em meio a um país que luta pela saída dos britânicos de seu território, o pai é impedido de adentrar oficialmente o local da batalha mas, devido a sua insistência, um dos tenentes acolhe-o para uma expedição que busca encontrar as baixas britânicas anônimas no local. A trama se torna uma representação dos diversos núcleos familiares que foram desintegrados por conta da guerra, e ainda permanecem abalados pela falta de informação sobre seus entes queridos.

    O roteiro de Andrew Knight e Andrew Anastasios focaliza a procura incessante do pai que nada mais tem a perder em sua vida devido à devastação causada pelo belicismo. Concentrar-se em sua história retira parte do drama comovente da guerra, ainda que poucas cenas demonstrem o absurdo e o horror existentes nestas batalhas.

    A estreia de Crowe na direção foi suficiente para lhe garantir o prêmio de Melhor Filme na AACTA, a Associação de Filmes Australianos. Porém, não há nenhuma característica ímpar em sua direção que demonstre um talento nato escondido até então. Sua primeira obra é consistente como um drama, mas não ultrapassa nenhuma barreira além de um filme correto que explora uma história real, narrada pela força dramática diante de um período sempre relembrado e retomado por diversas películas mundiais.

  • Crítica | Terremoto: A Falha de San Andreas

    Crítica | Terremoto: A Falha de San Andreas

    Terremoto Falha de San Andreas3

    O nome brasileiro, demasiadamente extenso, busca uma incessante vontade de esticar a falta de conteúdo do filme a partir de seu título. Na primeira cena, o grafismo da catástrofe é mostrado, com um deslizamento leve em uma montanha, que remonta a perícia de Brad Peyton em assinalar imagens visualmente deslumbrantes. Ray é o chefe da equipe de resgate, sendo a rocha que fundamenta a equipe, comprovada pelos músculos de Dwayne Johnson. A tônica do filme é intimamente ligada à verossimilhança moderada do serviço de auxílio, incluindo a ação intempestiva do chefe, que não resiste a uma cena de ação e já se lança rumo a momentos de adrenalina extrema.

    A vida pessoal de Ray é bagunçada: enfrentando um difícil divórcio, o rompimento com Carla Gugino (Emma), e um forçado afastamento de sua filha Blake, vivida por Alexandra Daddario, o que já demonstra a maravilha genética em que o personagem esteve envolvido. Qualquer remorso é pouco. O ressentimento piora ao perceber que Emma se mudará para a casa de seu novo namorado. A tramoia rivaliza tempo e importância com a premonição de terremotos feita por Lawrence Hayes (Paul Giamatti) e Kim Park (Will Yun Lee), um advento interessante que revela uma tragédia ainda pior que a prevista anteriormente.

    O heroísmo repleto de clichês não é exclusividade de Ray, pois a maioria dos que envolvem Blake age impulsivamente querendo salvá-la de qualquer modo, especialmente os que têm pretensão de pleiteá-la como par romântico. No entanto, ainda cabe a Ray os resgates gerais, mesmo com ajudas eventuais de personagens genéricos, que demonstram talentos incomensuráveis do mero acaso. O letreiro de Hollywood novamente destruído é o clichê que representa o intenso fim da indústria cinematográfica repetitiva, vista em espécimes como Terremoto.

    O brutamontes super avantajado segue sua trajetória de tosca evolução apolínea, repleta de julgamentos morais e justiçamento a quem merece punição, fazendo uma valorização absurdamente moralista por tabela. As preces a deus, feitas por cientistas, fazem lembrar o quão pueril e contraditório é o roteiro, que atrela a tragédia natural  ao trauma comum da perda de um ente querido, pondo as  duas celeumas em níveis de igualdade, piorado pelo recente retorno do casal estabelecido. A espiral de pieguice ganha mais força ao demonizar a ação dos covardes, tratando o desespero como algo totalmente maniqueísta.

    Os relatos do futuro Adão Negro não poderiam ser mais cafonas. É assustador como um filme que reúne Gugino e Daddario em poses moderadamente provocantes consegue não entusiasmar seu público, nem com o decréscimo das roupas das duas. Terremoto: A Falha de San Andreas não serve nem como conteúdo de inspiração para “amor próprio”, tampouco faz afeiçoar pelos personagens e seus dramalhões, e sequer faz rir.

    O antigo The Rock é tão gigantemente poderoso que revela ao final poderes extra sensoriais, chegando a ponto de ressuscitar sua filha na marra, mostrando que a esperança é a base da vida, e, claro, que deus é pai, e não padrasto. O disparate só não é pior que a imbecil propaganda estadunidense, com a bandeira tremulando, fator que eleva a pieguice a níveis estratosféricos, destruindo qualquer hype em relação ao filme catástrofe de Peyton.

  • Crítica | O Amuleto

    Crítica | O Amuleto

    O Amuleto 2

    Direção de Jeferson Dê, do outrora premiado BroderO Amuleto é a nova empreitada do realizador que optou corajosamente por executar cinema de gênero no Brasil, ainda que suas boas intenções não tenham alcançado um nível de excelência minimamente aceitável. A temática fantástica do roteiro de e Cristiane Arenas, se assemelhando demais aos aspectos de fandom vistos na literatura de André Vianco e seus pares, ainda que a temática de bruxos e o nível das cenas em flashback sejam muito mais parecidos com os filmes de época mal feitos.

    Os primeiros momentos de tela remetem à Inquisição, misturando elementos do pretérito com uma edição videoclíptica de músicas indie, estabelecendo a moda como cerne para sua historieta. As pernas à mostra da bela Bruna Linzmeyer demonstra a sutileza nula do filme ao retratar a sensualidade, aspecto típico da figura das feiticeiras, mas extremamente mal explorada neste. Apesar de alguns sinais esquisitos, Diana é mostrada como uma  jovem normativa, que se perdeu em meio à mata após – supostamente – ter sofrido uma noite regada a álcool e muitas drogas, no primeiro momento de seu retorno à pacata cidadela onde nasceu.

    As atuações são tão irreais quanto a direção de arte, que produz jornais completamente artificiais e não críveis com manchetes que idiotizam a trama. Os diálogos semelhantes a vozes de dublagens antigas só fazem piorar a situação, tornando praticamente impossível levar o filme a sério. Até o sotaque carregado de Maria Fernanda Cândido e Michel Melamed é forçado, se assemelhando a peças de comédia, distante da intenção que os produtores procuram passar.

    A abordagem que o roteiro dá aos conflitos e tramas macabras é ridícula, grotescamente emulando teatros colegiais. A obviedade só foge na maquiagem que esporadicamente funciona. A maldição hereditária passa longe de ser digna de ser levada a sério, piorada com os recorrentes merchandisings e engessamento do argumento original, que tolamente acha que disfarçará os predicados negativos com um formato que relembra a modernidade da era dos telefones que executam vídeos.

    O Amuleto vai de encontro ao típico público do recente exploitation de literatura fantástica que acometeu o Brasil, especialmente na falta de qualidade na urdição da história. O gore, limitadíssimo, não contém impacto visual, e o terror carece de atmosfera de sustos. Mesmo os palavrões parecem completamente difusos na oralidade, como um grão perdido em uma boca banguela. Só não mais desnecessário e fake do que todo o envolvimento dos personagens.

    Engraçado como forças ocultas, supostamente incorpóreas, têm autonomia e discernimento para executar gravações em celulares. Interessante também é notar como a iniciação em magia é velada a ponto de ter zero construção de paradigma, o que faz não ter qualquer empatia pelas belas figuras mostradas em tela, até por serem pessoas monotônicas, somente capazes de gerar sensações fúteis e reações óbvias. Sequer as obsessões de Diana garantem qualquer reação que não seja o absoluto tédio ou risadas involuntárias graças ao medo da morte que se aproxima. Ao menos ao espectador, sobra o medo de o filme não ter fim, um terror absoluto.

    O diretor tenta em vão gerar ângulos estranhos para a filmagem, mas o renovo jamais chega, graças à pobreza do script. Ao final, tudo parece esdrúxulo e bestificado. A quantidade de absurdos é um acinte. Praticamente nenhum aspecto funciona em O Amuleto, nem mesmo a boa intenção de retratar um mistério ligado à bruxaria, já que até o assunto é subalterno diante da estupidez que é filmada. O sobrenatural é subaproveitado, só tendo momentos em vultos e aparições vagas, que não acrescentam em praticamente nada.

    O final tenta apelar para uma sobriedade ancestral e tradicional, que é completamente banal diante das palhaçadas exibidas. A boa intenção de retratar as bruxas como criaturas altruístas também não garante acréscimo de qualidade, já que até ali o estrago já havia sido instaurado. O caso arquivado é uma síntese do que deveria ter sido feito com a premissa desde o início, jamais executando a feitoria fajuta de vingança anunciada.

  • Crítica | Trocando os Pés

    Crítica | Trocando os Pés

    trocando os pés - poster

    Um dos atores menos rentáveis de acordo com a lista da Forbes, Adam Sandler é reconhecido pelas comédias divididas entre uma categoria mais escrachada, sem pudor para piadas, e um caminho suave que envolve histórias de amor em comédias românticas.

    Um dos cartazes de Trocando os Pés (imagem escolhida para o pôster brasileiro) comete um equívoco interpretativo que fará o público imaginar que esta produção é mais uma estrelada e produzida pelo ator com o humor peculiar. Porém, o filme dirigido e roteirizado por Tom McCarthy (UP: Altas Aventuras) apresenta outra dinâmica que recoloca Sandler em uma história levemente dramática – único gênero em que o ator se destacou interpretativamente – e com elementos fantasiosos. Talvez o título original, O Sapateiro, fosse simples demais para o mercado brasileiro. Mas evitaria o tom cômico que, aliado ao cartaz, nos faz imaginar mais um dos produtos típicos do comediante.

    Na trama, o ator é Max Simkin, um sapateiro judeu que se sente desanimado em relação a vida. Não sabe se seguir a profissão do pai é sua verdadeira escolha e, dia a dia, vive a rotina sem muita animação. Em um dia consertando costumeiramente um sapato, seu maquinário quebra e o profissional recorre a uma velha máquina herdada do pai. Ao experimentar o calçado recém arrumado, descobre que qualquer peça consertada pelo aparelho lhe permite ter a aparência de seu dono original.

    Se há alguma semelhança desta história com suas comédias anteriores está o uso de um argumento fantástico como gatilho para a trama. Como em Click e Um Faz de Conta Que Acontece, a realidade é modificada diante de um objeto ou situação mágica. O fantástico produz uma dimensão mais infantil para a trama pela maneira lúdica – e improvável – com que se apresenta, transformando esta trama em um filme familiar. A própria personagem central sente um encantamento puro ao descobrir a magia trazida pelos sapatos, inferindo ao público uma sensação de história fabular com um personagem bondoso, portador de um artefato mágico que, à procura de se encontrar, realiza peripécias contra inimigos qualificados como ruins e a favor de uma possível mocinha.

    O diretor, McCarthy, que ainda está em início de carreira como diretor, é conhecido por suas obras alternativas com destaque para O Agente da Estação, com o pequeno notável Peter Dinklage. Trocando os Pés é seu filme de maior apelo até então, e a figura de Sandler – mesmo não rentável – um atrativo ao público. O roteiro escrito pelo diretor em parceria com Paul Sado destoa na composição entre fantástico e realidade. Um recurso que acrescente uma nova camada à realidade pode ser eficaz para produzir estranheza se o roteiro como um todo for coerente. Filmes como Mais Estranho Que A Ficção e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças demonstraram eficácia nesta afirmação com uma história voltada para adultos.

    A maneira como inicialmente a transmutação pelos sapatos é apresentada não retira a impressão de um filme mais familiar, ainda que seu roteiro pareça voltar-se para um público mais velho do que para jovens e crianças. Pela falsa impressão de ser mais um produto bobo de Sandler, o filme pode afastar público específicos. Porém, mesmo com partes dissonantes, a sensibilidade da história vem à tona e sustenta o filme com leveza e ainda apresenta um Dustin Hoffman, como sempre, com excelência e credibilidade em seu papel.

  • Crítica | Morro dos Prazeres

    Crítica | Morro dos Prazeres

    Morro dos Prazeres - Poster - dvd

    A abertura de Morro dos Prazeres apresenta crianças brincando de mocinho e bandido. Utilizam armas de madeira e papel, representando as armas que conhecem nas mãos de personagens do morro.  Ao contrário do que é naturalmente imaginado, não é a polícia que adquire o status heroico. São eles, representados pelas crianças, como opressores, humilhando a população do morro para, em seguida, serem subjugados pelo grupo de infantes desempenhando os traficantes armados. Um retrato daquilo que veem dia a dia em sua infância.

    Localizado no bairro de Santa Teresa no Rio de Janeiro, o Morro dos Prazeres foi uma das comunidades selecionadas para o projeto UPP da Secretaria Estadual de Segurança do Estado, estabelecendo polícias comunitárias em favelas outrora tomadas pelo tráfico de drogas. O documentário de Maria Augusta Ramos apresenta personagens anônimos que em conjunto formam retrato do local.

    Com metragem breve de apenas uma hora, a câmera se transforma em um observador atento cuja intenção é apenas o registro dos acontecimentos. Não há nenhuma fala direcionada para a câmera ou a participação de especialistas que analisem as imagens apresentadas, traçando um panorama sociológico do local e da atividade policial com a chegada das Unidades Pacificadoras.

    As cenas promovem uma crônica sobre o Morro identificando e acompanhando alguns personagens específicos para mapear as diferenças do local: um menor infrator tentando modificar sua vida com aversão explícita pela polícia; moradores que trabalham ativamente no local discutindo pontos positivos e negativos sobre a chegada da polícia; e membros do batalhão lidando com o dia a dia do local.

    Nenhum julgamento pré-estabelecido é apresentado em cena, um fator positivo para explicitar que, diante desta construção social e política, nem tudo é uma estampa de poucas cores. A humanização em todos os âmbitos entregam ao público o material para desenvolver sua análise a respeito, sem nenhuma denúncia panfletária ou desmitificando estruturas complexas.

    Como uma crônica visual, porém, é necessário que o espectador contextualize as cenas para interpretar adequadamente os fatos sem uma margem de erro. Talvez o público estrangeiro não tenha a base para compreender ou analisar a situação diante de cada depoimento apresentado.

  • Crítica | Memórias do Chumbo: O Futebol nos Tempos do Condor

    Crítica | Memórias do Chumbo: O Futebol nos Tempos do Condor

    Memorias do Chumbo 1

    Unindo dois assuntos primos, o jornalista Lúcio de Castro organizou quatro episódios exibidos no canal ESPN Brasil, onde seria explorado a proximidade entre as ditaduras direitistas que tomaram a America do Sul, e o futebol. Memórias do Chumbo – O Futebol Nos Tempos de Condor. As sedes dos estudos seriam Argentina, Uruguai, Brasil e Chile, e escrutinaria a influência semelhante ao ópio que o esporte – e mania – faria no povo, assim como o uso indiscriminado deste como arma governamental.

    A análise sobre o regime que tomou a Argentina começa por depoentes de idades variadas, alguns que presenciaram o início da tomada do poder, e outros que relatam as experiências de pais e outros parentes. O enfoque dado as gravações é muito mais emocional que didático, graças a sensibilidade do feitor em entrevistar as pessoas próximas das vítimas dos desmandos dos militares, sempre ligados ao futebol. No episódio Argentina a Operação Condor é esplanada, com o detalhamento da completa falta de educação, crueldade e violência, mesmo a pessoas que nada tinham a ver com os desígnios socialistas.

    A Copa de 1978 pareceu ao grupo de poderosos uma boa alternativa para retirar da opinião pública mundial a imagem de uma país opressor, mesmo que o custo fosse absurdo, beirando os setecentos milhões de dólares, incluindo nesta equação, o então presidente da FIFA, o brasileiro João Havelange, recentemente investigado por gigantescos escândalos de corrupção. É curioso como a uma distância mínima dos estádios, onde a torcida pulava e gritava, comemorando com Villa, Houseman e Kempes, havia salas de tortura, onde os cidadãos eram humilhados, fazendo daquela conquista a mais contestada da história das Copas. As falas das vítimas revelam um temor ainda existente, mesmo após décadas do acontecido, fortificando a sensação de que eram os militares os “donos da morte” dos prisioneiros, que nada fizeram, a não ser discordar do modo de governo.

    No episódio do Uruguai os depoimentos começam com as falas de Eduardo Galeano, com a revelação de que o país era campeão em torturados e mortes durante os anos negros da América Latina, inclusive com participação, conivência e patrocínio do governo brasileiro. Segundo o autor de Veias Abertas da América Latina, a tortura não era útil para colher informações, mas sim para incutir medo na população e em qualquer oposicionista, semeando e disseminando o pânico.

    O primeiro momento em que Castro se permite exibir-se para a câmera de Rosemberg Faria, é a conversar com Galeano, com quem tinha uma amizade bastante próxima. A intimidade faz com que os relatos do escritor sejam ainda mais intensos, agravados pelos detalhes do tratar dos poderosos, associando a esquemas de supostos favorecimentos, como num campeonato nacional para o Defensor Sporting, e um mundialito para a seleção uruguaio, associado a um campeonato inventado para desvirtuar a atenção do povo. Curioso é que nos relatos de Eduardo, revela-se uma das primeiras e mais notórias ações populares de torcida/sociedade, que gritava quase em uníssono “se va acabar, se va acabar, la ditadura militar”, fazendo da plebe finalmente um braço contrário aos desejos dos poderosos.

    Chega de Saudade, executada por Tom Jobim remete ao fim dos anos cinquenta, que apresentavam uma nova era de glorias para os brasileiros, especialmente pela Bossa Nova. Na esteira do receio de os discursos de Ernesto Guevara tornar-se verdade, e apoiado pelo presidente dos Estados Unidos Lyndon Johnson, os militares assumem o poder após a renúncia de Jânio Quadros. Subitamente, toda a informação passaria a ser controlada pelos militares recém “empossados”.

    No futebol não foi diferente, visto que ocupava uma boa parte do imaginário popular. Grande parte dos mandantes de federações estaduais, era aliada ou amiga dos poderosos, homens de confiança, que ajudava a alastrar a mentalidade dos governantes. Segundo o historiador Carlos Fico, o número menor de mortes em comparação com os outros pais do cone sul não fazia dos ditadores brasileiros menos implacáveis, piorando muito pela mentalidade reacionária se propagar no imaginário civil também.

    A perseguição ao técnico João Saldanha é revelada, focando em práticas covardes dos censores, que o encaravam como informante comunista, com a suspeição de que ele fornecia documentos a estrangeiros nas viagens com a seleção canarinho, pós Copa de 1966. O extenso monitoramento abarcava toda a população, o que vinha de encontro também ao futuro time tricampeão mundial com a introdução de um major dentro da comissão técnica.

    A tramoia do episodio varia entre os ditos sobre a guerra psicológica via slogans, como o “Brasil, ame ou deixe-o”, e claro, os relatos de torturados, como o de Cid  Benjamin, professor e jornalista, motivador do grupo MR-8, que sequestrou o embaixador estadunidense Charles Elbrick. Os detalhes sobre as condições insalubres do cárcere assustam, especialmente pela sujeira, frequentemente deixando os presos chafurdados em seus próprios excrementos.

    O estudo piora com a exposição da Operação Condor, onde se exportava tecnologias de tortura, pontuadas emocionalmente pela narração do funcionário da ESPN Luis Alberto Volpe, que imprime um caráter de denúncia mesmo em questões não tão espinhosas, agravado em momentos como nestas narrações. O episódio se encerra com a participação de Galeano expondo alguns detalhes das atividades de João Havelange e seu então genro, Ricardo Teixeira, que lucravam muito ainda nos tempos de chumbo, o que agravava ainda mais o martírio dos brasileiros comuns.

    O espécime que analisa o quadro do Chile começa mostrando o motim que vitimou Salvador Allende, um complô que – mais uma vez – envolvia os governantes brasileiros, sendo a embaixada palco até de reuniões dos golpistas. O roteiro é prodigioso ao comparar a hipocrisia dos atos com o bom mocismo das atitudes pragmáticas dos homens fortes do Mercosul, exibindo a contradição entre teoria e prática.

    O episódio é tomado por muitos depoimentos dos ex-jogadores da seleção chilena, que assumiram se sentirem como palhaços, graças a prática comum da ditadura em tornar o esporte como um circo. Ao mesmo tempo em que os atletas eram “protegidos”, seus familiares não o eram, então qualquer ato de rebeldia sofria represálias por torturas indiretas, a entes queridos, incluindo até suas mães.

    Mas foi em um jogo, que uma das maiores manifestações ocorreu, ainda que por “acaso”. Um dos jogadores, que exercia mal seu papel tinha seu nome gritado, por coincidência, homônimo do ditador, e o “Fora Pinochet” tomou os pulmões das arquibancadas, que refutavam claro, um dos soberanos mais nefastos daqueles tempos.

    Apesar de não haver uma ordem cronológica prévia para assistir a Memórias do Chumbo, é interessante tomar o capítulo chileno por último, por ser este encerrado de modo emocional, com depoentes prestes a chorar, em virtude do genocídio que ocorreu em seu país, quando os atletas corriam em atividades desportivas, com a certeza de que eventos como o túnel que ligava o campo de futebol a um local de fuzilamento, não se repetiria. O costume no Chile, Uruguai, Argentina e outros países é o de total desprezo por quem defende tais regimes, até por valorizar os homens que lutaram em favor da vida. Apesar do otimismo em seu final, não há qualquer aplacamento da realidade, ao contrário, a apresentação é visceral, informativa e emotiva, da parte de um estudioso que leva a sério o ofício de informar o espectador a qualquer preço.

    Episódio Argentina

    Episódio Uruguai

    Episódio Brasil

    Episódio Chile

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  • Crítica | Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros

    Crítica | Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros

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    Imagine a seguinte situação: com o avanço da medicina, e consequentemente do estudo da genética, tornou-se possível coletar DNA preservado de animais extintos e cloná-los. E se, em vez de recriarmos mamutes e tigres dentes-de-sabre, recriássemos os maiores e mais temidos animais que este planeta já hospedou? O diretor Steven Spielberg tornou isso possível e foi um sucesso.

    Após o bizarro Hook – A Volta do Capitão Gancho (um de seus piores filmes), Spielberg juntou forças com os roteiristas Michael Crichton e David Koepp para criar um dos filmes mais extraordinários já feitos: Jurassic Park – O Parque dos Dinossauros. O filme revolucionou com efeitos especiais nunca antes vistos e com um realismo absurdo, fenômeno esse que acontece de tempos em tempos na história do cinema. O resultado? Um sucesso de bilheteria que faturou mais de um bilhão de dólares. Vale lembrar que até o pôster e o logotipo do filme são sensacionais.

    De início, somos apresentados aos arqueólogos e doutores Alan Grant (Sam Neill) e Ellie Sattler (Laura Dern), que estão muito preocupados com seu trabalho, uma vez que não conseguem mais financiamento para escavações. Porém, as coisas parecem mudar com a chegada de John Hammond (Richard Attenborough), um simpático senhor que os convida para uma viagem. No caminho, conhecem Tim (Joseph Mazello) e Lex (Ariana Richards), netos de Hammond e o Dr. Ian Malcolm, vivido por Jeff Goldblum e, após passarem por paisagens fantásticas, o helicóptero em que se encontram aterrissa numa misteriosa ilha. Não demora muito para que o primeiro Braquiossauro salte na tela em busca de uma folha num galho de uma árvore gigantesca. A história do cinema estava sendo feita. A cara do Dr. Grant nesse momento, aliada à trilha sonora certeira do maestro (e mestre) John Williams, imprime bem as feições de cada espectador naquele momento: como eles fizeram isso? Para ele, os dinossauros. Para nós, os dinossauros.

    Passada a excitação inicial, os protagonistas fazem um pequeno tour que explica exatamente o parágrafo inicial desta crítica, além de mostrar o primeira momento de tensão entre os doutores Grant, Sattler e Malcolm ao descobrirem que a equipe de geneticistas do Sr. Hammond clonou Velociraptors e um Tiranossauro Rex, tidos no filme como as espécies mais perigosas. Assim, são demonstradas, também, as reais intenções do Sr. Hammond, que acabou por construir um parque, nos mesmos moldes da Disney World, para, futuramente, abri-lo ao público, após a consultoria dos especialistas que ali estão. O problema é que uma grande tempestade se aproxima, anunciada por um tímido Samuel L. Jackson e que põe a perder todo o plano.

    Jurassic Park tem o que Spielberg sabe fazer de melhor: cenas de ação misturadas com suspense e até mesmo terror, algo que ele explorou muito bem em Os Caçadores da Arca Perdida, Contatos Imediatos de Terceiro Grau e Tubarão. E, sim, é possível se divertir, ficar tenso e sentir medo com as mais variadas situações e pequenas subtramas que compõem a trama.

    E os dinossauros? Ah, os dinossauros…

    O filme foi lançado em 1993, mas se você assistir a ele hoje, verá que ainda é atual. Os efeitos em CGI, junto com os dinossauros animatrônicos (efeitos práticos) criados pela Industrial Light & Magic são bastante realistas, o que justifica a surpresa do Dr. Grant e do espectador em relação aos dinossauros. Chega a ser emocionante a cena em que ele, juntos de Tim e Lex correm junto à “manada” de Galimimos. Aliás, é possível se deparar com diversas raças, mas, realmente, quem rouba a cena é o Tiranossauro Rex. Dotado de um rugido ameaçador e com um instinto assassino no mínimo cruel, aquele que foi o topo da cadeia alimentar há milhões de anos protagoniza uma das melhores e mais aterrorizantes cenas do longa, roubando para si o título de clímax do filme antes mesmo do final.

    Felizmente, não há do que reclamar de Jurassic Park, um filme para ficar na memória e na estante de qualquer apaixonado por cinema.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Mademoiselle Chambon

    Crítica | Mademoiselle Chambon

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    Baseado no livro homônimo de Éric Holder, publicado em 1997, com roteiro e direção de Stéphane Brizé, o filme conta a história de Jean (Vincent Lindon) – bom pai, bom marido, bom filho, bom pedreiro. Sua família – a esposa Anne-Marie (Aure Atika) e o filho Jérôme (Arthur Le Houérou) – tem uma vida comum, fazendo coisas comuns. Um dia, ao buscar o filho na escola, conhece Véronique Chambon (Sandrine Kiberlain), professora de Jérôme. Ela, sem raízes, violinista amadora, professora substituta de cidade em cidade. Ele, pé no chão, quase literalmente enraizado pelas fundações das casas que constrói. Dois mundos diferentes que se cruzam e se entrelaçam.

    Diz-se que todas as histórias já foram contadas e que o que varia é forma de contá-las. Neste caso, a história é o mais que manjado encontro entre pessoas de realidades diferentes que se sentem conectadas por algum motivo e que, devido a esse encontro, passam a se questionar e a questionar suas vidas. Roteiro e direção não tiveram sucesso em conseguir contá-la de modo a não parecer apenas mais um filme com essa premissa.

    Para desgosto dos detratores do cinema europeu – o francês especificamente – e para deleite de seus admiradores, a estética é típica de um filme francês. Planos extensos que, em conjunto com longos silêncios, na maioria das vezes não contribuem em nada com a história – a menos que a intenção do diretor seja entediar o espectador. Há enquadramentos precisos e planos detalhe focando em olhares e gestos quase imperceptíveis – como o momento em que Anne-Marie percebe o que está havendo. Mas isso não basta para tornar o filme memorável.

    O elenco está muito bem. Lindon dá a Jean um certo ar de “bronco sensível” bastante convincente. Kiberlain está perfeita como a professorinha tímida e contida, que não sabe ao certo como lidar com seus sentimentos. E Atika consegue dar a Anne-Marie, uma mãe de família trivial, uma altivez que a diferencia. Mas mesmo assim, com um bom elenco, com fotografia impecável, com uma trilha sonora encantadora, é quase impossível afastar a sensação de déjà-vu e a certeza de saber exatamente como a história irá terminar. Assistível, mas facilmente esquecível.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Crimes Ocultos

    Crítica | Crimes Ocultos

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    Película sob a direção de Daniel Espinosa – o mesmo de Protegendo o Inimigo – e produzido por Ridley Scott, Crimes Ocultos foi proibido na Rússia por ser considerado uma distorção da história, segundo o governo atual. O roteiro começa tratando do conhecido Holodomor, usado como arma (fascista) do governo stalinista impetrando fome aos ucranianos, fato que vai de encontro à questão atual da Rússia X Ucrânia, e “valida” – entre muitas aspas – o reclame censor do governo de Putin, conhecido por ser uma das viúvas da antiga URSS.

    Fato é que, desde o princípio, a bandeira soviética é achincalhada durante a exibição do filme, enquanto a maioria dos oficiais do exército, ao menos os de compleição semelhante a paladinos, é mostrada com expressões resignadas, movidas possivelmente pela culpa. Todas as expressões de amor ou outros sentimentos tipicamente humanos são apresentados de modo raso e clichê, sem qualquer meio-tom ou ancenúbio.

    Leo Demidov (Tom Hardy) é um dos poucos personagens complexos. Sua atuação enquanto militar é semelhante a de um Hans Landa socialista e sem carisma, sem piadas que evocam verborragia. A dura expressão esconde um caráter que não o impede de se importar com os seus companheiros, e que o faz não desistir de montar uma tropa de homens honrados, seja lá o que significar isto em sua distorcida noção de realidade. Logo de início, nota-se o seu fraco por infantes, considerados por ele como seres indefesos, independente dos pecados de seus pais.

    O ethos de Leo é desafiado com a designação de dar cabo a um irmão de farda. Contrariando a fala de que “assassinato é uma prece capitalista”, o personagem central beira a condenação daquilo que Stalin desaprovava. De modo tórrido, mostra-se que o importante era manter a versão oficial, não discutindo o regime. Uma ação típica das ditaduras, claro, mas duramente criticada neste roteiro. A atuação de Hardy salva o filme de ser um desprazer completo, já que consegue mostrar emoções conflitantes mesmo diante da rigidez tipicamente militar que lhe é imposta.

    Os relatos de um traidor formam o real chamado à aventura da trama, que põe frente a frente marido e mulher. Raisa (Noomi Rapace), antes mostrada como uma mulher indócil e frígida com seu cônjuge, tem sua fidelidade à pátria – e ao próprio esposo – discutida, passando a exibir a partir daí uma crueldade demasiada com os próprios soldados do Regime, e sua tortura é agravada devido a uma gravidez.

    É curiosíssimo como a escalada das patentes é mal construída, casando convenientemente com as necessidades da trama, ignorando sempre os plots anteriores em detrimento da proteção de uma figura controversa como a de Vasili, feito por um Joel Kinnaman mais uma vez equivocado em seu papel, algo que tem sido comum nos últimos tempos.

    O castigo pela fidelidade dupla, ao país e ao matrimônio, é o exílio. A comando do General Mikhail Nesterov (Gary Oldman), Leo tem de conviver com casos estranhos de tortura de crianças, um tormento agravado por sua possível e futura condição de pai. O atrapalhado script joga a verdade ao espectador de forma óbvia, produzindo mais um sem número de situações limite. De aspecto positivo há somente a realidade de ter uma relação calcada no medo, mostrada em detalhes sórdidos, pincelados de maneira ideológica para crucificar e demonizar o ideal dos personagens.

    O Jogo da Imitação mostra os pecados da Grã Bretanha no pós Segunda Guerra ao tornar a homossexualidade um crime grave. Crimes Ocultos faz o mesmo com a ditadura do leste, ainda que trate de maneira ainda mais sensacionalista, como se fosse exclusividade dos comunistas tal defeito. Nenhuma morte e preconceito deve ser banalizada ou relativizada, mas há de não se ignorar a história. Usá-la para condenar somente um segmento ou partido é um artifício covarde, sendo esta a base de toda a história de Child 44 versão cinema.

    O que deveria – ou poderia – ser um conto a la Dennis Lehane nos anos 50 torna-se uma estúpida propaganda anticomunista, sendo a ideologia vazia o principal mote da discussão do roteiro, evocando até a autotortura em nome de Stalin, absolutamente desnecessária. O argumento é raso e condizente com os fãs da direita ferina. Todos os assuntos se dobram diante da distorção do discurso político, o amor não correspondido, pedofilia, raptos, ataques de um assassino serial, praticamente tudo é subalterno em virtude da desconstrução da fala socialista. Até a possibilidade pragmática de fazer a justiça com as próprias mãos é validada somente para denunciar o quão falho é o sistema, como se toda forma de governo contrária fosse maravilhosa. A alternativa de culpar o nazismo e Hitler – mais um refutável lugar comum – é tardio, já que todas as conclusões a respeito da história podem já ser tiradas com menos de metade da duração.

    O mini golpe dentro da revolução, mostrado em tela, assemelha-se ao comportamento de  ratos  que tentam contra-atacar as ações de homens armados. O cúmulo se dá ao notar que os mesmos rebeldes que condenavam os opositores por táticas de assassinato, são também exímios em armas brancas e assassinatos. O pecado maior é mostrar até os últimos momentos o exacerbo caricatural dos poderosos, como se fossem czares, e não socialistas, trabalhando sempre em favor do retrocesso, forçando a maré contra a verdade.

    A  luta final travada em meio à natureza é emblemática por revelar grande parte dos defeitos do filme e de seu texto, igualando o lodo e a sujeira da briga com o asqueroso pressuposto. A escolha de partido é equivocada e passa longe de retratar a realidade mundial da época, usando o russos como vilões, apelando para o sensacionalismo mesmo quanto deveriam mostrar lados positivos daquelas figuras. Se os papéis do roteiro estivessem encharcados da lama da batalha final, este ainda assim seria menos tendencioso e sujo do que o resultado final de Crimes Ocultos, que mais se preocupa em ser uma contrapropaganda anacrônica situada em uma Guerra Fria já inexistente, do que em um retrato da época, banalizando até a boa direção, fotografia e direção de arte de Espinosa e sua equipe.

  • Crítica | O Grande Kilapy

    Crítica | O Grande Kilapy

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    Com um início narrado como um conto de um senhor lusitano de meia-idade, O Grande Kilapy necessita de legendas para ser completamente contemplado e entendido. Curiosamente, é com este mesmo espírito que se faz necessário analisar a trajetória do personagem de Lázaro Ramos. Kilapy é sinônimo de trapaça, golpe, e João Fraga é um autêntico malandro que, em um ambiente que deveria ser para ele o da exploração de mais valia, acaba sendo um picadeiro para suas peripécias.

    A atmosfera política do filme compreende o período de ditadura de Salazar, e expõe sem pudor o modus operandi dos repressores aos possíveis comunistas, ainda que aborde tal questão com uma espírito cômico. A Angola, prestes a se livrar do julgo português, serve como símbolo da ainda muito presente escravização dos colonizados, e João servia como uma resposta sexualizada àquela opressão que sofria todo o país, barbarizando as moças de alta classe, como um Don Juan que ainda assim teimava em não se envolver com política.

    A direção do angolano Zezé Gamboa é pontual para revelar os meandros do cenário político de seu país. As cenas em plano americano são bem urdidas, pressionando o filme a uma profundidade que não se compreende no roteiro de Luís Alvarães e Luis Carlos Patraquim. O elenco feminino é muito bem amarrado, munido de belas moças que fazem jus à fama de galanteador do personagem-título.

    Apesar de estar bastante à vontade no papel, Lázaro Ramos não consegue fazer abrilhantar o filme, sem sequer superar os agravos da produção ser orçamentada por baixo. O conteúdo sequer chega a beirar o ativismo político, mas se preocupa em fazer graça com o tratamento que o exército tem com o cidadão que nada faz. João é vítima da típica e irônica paranoia dos mandatários do regime ditatorial, mas não há uma preocupação demasiada em traçar perfil nenhum de política e nação no argumento original.

    Apesar de o final sinalizar uma maior maturidade na discussão, O Grande Kilapy carece de uma abordagem mais assertiva, uma vez que tem buracos imensos no roteiro e uma clara dificuldade em contar uma história que tenta se equilibrar entre uma comédia e um filme de mote político, não acertando nem no humor, visto que faz pouco rir, e nem no espectro social, já que arranha a superfície do que foi o panorama da ditadura angolana. Gamboa até mostra uma boa predileção em suas cenas filmadas, mas nada que salve o filme da mediocridade do circuito.

  • Crítica | A Gangue

    Crítica | A Gangue

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    Na herança primitiva do homem, animal cuja natureza o permite ser também cultural, nela encontra-se a base para a explicação, e não a solução dos problemas de hoje em dia. Problemas que sempre existiram, afinal ainda estamos evoluindo (talvez a Terra nos sirva para isso, uma grande escola deteriorada por seu alunos), sendo que não há nada de novo debaixo do sol, já disse o poeta (não me pergunte qual, algum gênio que morreu de fome, provavelmente). Nem mesmo a reciclagem do costume mais básico de uma sociedade, que seja de um indivíduo como você, leitor, é natural: Tudo nos foi ensinado. Casar, se comunicar, estudar ou enriquecer, tradições enraizadas no nosso ontem coletivo, um passado cultural; fonte do presente, pista do enigma.

    O próprio Cinema para os irmãos Lumière foi a América para Colombo – o trem que ia sair da tela assustando quem nunca viu uma projeção de movimentos. Pro animal natural que ficou cultural, o preconceito é a defesa dessa cultura defronte ao alienígena, ao extrafamiliar, o diferente, com o silêncio ou a revolta no papel de defesas naturais diante do desconhecido; nós não somos igualitários (You can’t sit with us!), nunca fomos generosos, mas nossa cultura nos obriga a ser para viver melhor em bando. É o jeito. Dos Lumiére até hoje, o silêncio no Cinema se tornou expressão sem uso de trilha-sonora muito cedo, mas só foi refinado numa soma de valores por Ingmar Bergman, deus sueco, em testamentos estilo Persona, tipo A Hora do Lobo, aonde palavras são mera verborragia e um close da boca fechada de Liv Ullman, ou a mudez profunda entre os poucos diálogos de Luz de Inverno falam e expressam mais que Ulysses inteiro.

    O silêncio como salvação, meditação, a favor dos verbos que não passam na goela de quem tem tudo a dizer, e por isso diz quase nada. O silêncio como redenção, como liberdade de expressão, pois quem cala consente na vida como ela é, com ou sem defesa para encará-la de frente, sem medo. Tal silêncio como encarnação da linguagem distante dos jovens dos anos 2000, e o que de primitivo habita essa quietude moderna, essa falta de comunicação tão estudada por Michelangelo Antonioni, noutra geração e cultura que obviamente reflete na atualidade, são a base para A Gangue, que rouba do silêncio sinais e emoções maiores que a dialética e o poder da palavra, a fim de compor uma linguagem secreta e um intercâmbio de valores compartilhados por uma juventude inteira.

    O filme ucraniano é uma espiral de causas e decorrências numa velocidade “piscou-perdeu”, tão ágil em narrativa quanto os gestos de um grupo de estudantes mudos, o que quase não são, tanto é que as cenas na sala de aula são pouquíssimas, e o filme nunca se prejudica pela exclusão do que fez o Cinema de Quentin Tarantino e cia. ser tão celebrado: o blábláblá falado em quantidade nuclear. Alternativas para a linguagem de A Gangue ser tão flexível, versátil e plástica ao nosso entendimento são tão naturais quanto o cantar da aves, tamanha a fluidez exemplar da história nas mãos de Miroslav Slaboshpitsky, um cineasta consciente do que faz as pessoas serem o que são: A forma como nós expressamos nossos valores, e não os valores em si.

    O quanto isso lembra o poder audiovisual do Cinema tampouco pode ser medido em verbetes. A comunicação e o que brota dela, sejam valores ou a desconstrução deles, é o que interessa a Miroslav na investigação do comunicar, no limite de uma forma de linguagem que jamais pode ser subestimada pela voz de quem emite o que se pensa, ou sente, pela boca. Talvez usamos mensagens de texto ou emoticons para sentir como é estar do outro lado, sentir nos dedos essa ironia; a experiência do diferente. Os personagens de A Gangue jamais são tratados assim, com diferença e exclusão (a direção de atores é soberba), num universo de cores frias e semelhante ao nosso, cheio de equívocos e segundas intenções, numa cultura de dependência social que esmaga a preferência pessoal, expressando o que nos torna humanos num contexto brutal e primitivo, para o bem ou para o mal. A ética do filme é apenas se expressar da melhor maneira possível, e a tradução de seus sinais não poderia ser melhor traduzida ao público, em ações na história que, realmente, falam mais que mil palavras. A todo momento, os membros da gangue de jovens criminosos (e revoltados) assumem seus papéis de fantasmas, grupo de incompreendidos que só se comunicam entre si, mas que também querem amar, explorar o mundo, ser entendidos e ter um futuro como qualquer juventude, criando em bando recursos para se manterem ativos num mundo que os exclui, e os instiga a excluir o próximo. O bicho preso sempre canta mais que o liberto.

    O clima num filme mudo é fundamental, aqui algo cru e direto para ilustrar as intenções do artista. Por isso, o filme explora o mistério do instinto nas suas bestas de gaiolas, gaiolas de função coletiva. Se esses personagens falassem, falariam o quê? O que um mudo falaria depois de uma vida em silêncio? Teria preconceito com a própria voz, ou se acostumaria com a palavra? Chaplin e Keaton nunca precisaram delas, mas entraram na onda quando o diálogo já era uma necessidade. Os cineastas Dreyer e Fritz Lang, mestres do preto-e-branco, só optaram pela cor pra continuar relevantes nesse mundo novo, pois nunca precisaram nem de som, nem de matizes. Manipuladores desse silêncio que tornou seus filmes diamantes no garimpo histórico dos filmes.

    Mas talvez o que falta aos jovens de A Gangue não são palavras, ou outro sentido, e sim o diálogo, na língua deles, na realidade deles, na maneira deles. Sem isso, os conflitos do filme se tornam inevitáveis, como a emergência que só cresce nesses jovens perdidos, à margem da sociedade por suas condições. A ausência de cordas vocais implica no caos que existe no mundo desses adolescentes, que com certeza reflete no adulto do amanhã. A narrativa de hábitos e costumes os consome e nutre o meio-ambiente onde se violentam e transam, em desespero, rumo a um clímax que homenageia e condiz com o clássico Elefante, de Gus Van Sant. Retratos da geração das mil linguagens, e que por isso mesmo volta à estaca zero: O silêncio, na forma mais primitiva de se contar uma história. Se Godard disse Adeus à Linguagem, Miroslav faz saudação.

  • Crítica | Timbuktu

    Crítica | Timbuktu

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    Um filme-ponte. Uma travessia cultural entre nós e eles. Uma cultura de extremos e fanatismos traduzida em filme por um viajante meditativo, na leveza à beira do cinismo com que a história é tratada e conduzida num cangaço sem dono, onde quem late mais alto dita as regras forjadas à bala de rifle traficado. A realidade de Mali, oeste da África, e das situações no eloquente Timbuktu traz à tona sua comparação válida com a brasileira, em lugares onde o toque de recolher e a especulação imobiliária forçam as famílias ao equívoco de ocupar lugares perigosos, e ainda sob a insegura proteção de facções criminosas, dependentes do véu de uma comunidade dócil, que diante do perigo já se adianta: “Aqui só tem trabalhador!”, garantindo assim, em troca, a proteção das milícias. Da falta de educação a incentivos à valorização igualitária na qualidade de vida de um bairro, ou cidade, surge, em qualquer país, estado ou vilarejo, o relevo perfeito para a alienação tomar conta de um social inteiro.

    Predatória por excelência, a manipulação de um senso comum traz consigo um poder de ilusão muito semelhante àquele que o cinema usa para outros fins, por outros meios: o da desconstrução da realidade a favor de tornar real uma ilusão, mediada por doutrinas pré-estabelecidas antes, com essa inversão de visões geralmente posta acima do bem e do mal. Em doses simpáticas, isso é arte. Em outras, é religião. Esvaziando a garrafa, a alienação sobe e vira miragem, passando a visar a salvação e a segurança que o poder de fato usa para se manter, feito obelisco, em tempos de protestos que não acabam mais.

    O poder de reinvenção e o poder da alegria podem ser naturais ao brasileiro, roubado e masturbado ao mesmo tempo pelo seu Governo. Mas são avanços culturais de qualquer raça que, graças ao registro justo e realista (ainda que a favor da ficção) de uma câmera de Cinema, nota-se em Timbuktu que aprendeu a ser feliz apesar de tudo. Um todo resumido a condições e desafios limites, tanto ambientais quanto os impostos por quem transforma esse ambiente numa peleja de convivência selvagem, numa crise ao homem atenuada senão por sua família – só por ela, e no máximo por seus conterrâneos quando o assunto é regional, afinal. Herdeiros de seus abraços e companheiros de seus passos. Estamos falando de um Cinema de calor humano, que parte da essência para chegar na estética, e não o contrário, sendo essa uma estética naturalista ao contexto africano onde seu apelo universal começa, termina e se desenvolve no seio da Terra.

    Mas protesto só existe em democracia. Só não ocorre quando não há um cano gelado mirando a bandeira, quando cães e seus rifles absolutos só respeitam a casa de Deus, os templos enquanto símbolo, e não os cidadãos, temerosos até o espírito. A ponte entre esse temor e nós, o público, na nossa contemplação passiva de quem não conhece as rotinas da extrema opressão espalhada pelo mundo, é senão um trecho, percalço de uma jornada longa, mas livre o bastante para poder nos impressionar e informar. De fato, não há mesmice ou drama o suficiente para ilustrar as histórias que o deserto abriga, na narrativa de destinos conjuntos, e na sobrevivência de nômades que só não abandonam suas tradições, pois foi só o que lhes sobrou para se apegar, sem contar a fé em si mesmo.

    No que é elo e comparativo, o filme de Abderrahmane Sissako prova que a consciência pessoal é mais poderosa que as crenças coletivas, submetendo o indivíduo e uma comunidade inteira a proibições éticas baseadas em uma moral imbecil e abusiva (líderes religiosos cagando regras e fazendo valer suas leis num cangaço islâmico), alegando que a integridade de um pode representar a liberdade e a reputação de todos que se opõe a essa alienação autoritária. Quando dois homens brigam por uma vaca, um morre e a vida do outro gira de ponta-cabeça junto do destino de sua família, nada está perdido, pois tudo ainda está para ser ganho, incluindo a liberdade de expressão. E aí entra o Cinema, veja só: catalisador da imagem em movimento, dando dinamismo a um mundo onde os direitos humanos só existem na doce ficção. Mágico.

    A arte não consegue desorientar ainda mais o que o real já torna desorientado. Assim sendo, é como se o terceiro mundo, tão festejado por Glauber Rocha e estudado por Kiarostami, fosse o único cosmo que existe abaixo do manto terrestre, e o filme certamente não poderia acertar mais em sua perspectiva, nos tornando assim, e só assim, reféns da ótica de limitações culturais que um povo pode-se ver obrigado a exaltar, sem jamais conseguir abandonar essas restrições, por gerações a fio. “Se não o agrada, não olhe”, diz a mulher ao homem que a manda cobrir seu rosto, e é isso que o mundo faz a essa gente sem paz: Não olha, ignora, exceto e pelo menos quando expostos numa tela de Cinema, numa recriação de sensações.

    Em certo momento de Timbuktu, nome da cidade sitiada por meia-dúzia de extremistas em nome do deus Alá, a meditação sobre as injustiças sociais dá lugar a perícia sobre o que move uma gente esquecida, nascida numa terra maldita que parece ser, eternamente, palco de conflitos em ciclos de catástrofe, secando as lágrimas daquela gente que a ONU gosta de falar que ajuda, buscando sozinhos um futuro melhor – quem sabe, com o direito de cantar. Não há denúncia, nem apologia, mas tem a investigação da ética do poder (no caso, o poder municipal), e da aceitação dessa ética por aqueles a quem foi dito, desde sempre, a aceitar os abusos desse poder (no caso, o povo da cidade).

    E tal como em Onde Sonham as Formigas Verdes, de Werner Herzog, filme cujos ecos soam graves em Timbuktu, tudo muda e passa sobre a face da Terra neste conto moderno e universal, com leve indícios de evolução e fortes traços de retrocesso social – por mais que saibamos que a balança é injusta. Mas nem mesmo a arte, nem a tecnologia, a violência, as leis ou a religião salvam quem não vê a salvação em si mesmo, como bem atestam algumas atitudes do filme, como no ímpeto de uma garota correndo nas dunas do deserto para matar a sede de calor humano nos braços da mãe, numa tenda, no meio do dia, naquela desolação e pobreza; essa dívida da humanidade consigo mesma, que se traduzida em mar, amanhã, será mar doce dessas lágrimas tristes e alegres que hão de transbordar, e brilhar, feito o sol a meia-noite: O impossível há de chegar.

  • Crítica | A Lei da Água: Novo Código Florestal

    Crítica | A Lei da Água: Novo Código Florestal

    A Lei da Água 1

    A começar pela fala do deputado do PSOL – SP Ivan Valente, o documentário de André D’Élia busca explicitar como funciona o novo Código Florestal implantado no Brasil através de um viés positivo, tocando em questões fundamentais a respeito da preservação das matas e, especialmente, do tratamento da água em território tupiniquim.

    Didático, o filme se assemelha bastante aos reclames informativos, ainda que contenha depoimentos emotivos e emocionados, desde os mais antigos, que narram as primeiras medidas para preservação florestal assinadas por Assis Chateubriand e depois por Juscelino Kubistchek, e claro, nos tempos de hoje, mostrando como o proceder ecológico é tratado pelos atuais governantes, traçando um histórico interessantíssimo do ponto de vista de estudo de causa.

    A reunião de falas incorre sobre parlamentares de ambos os lados, tantos os políticos de esquerda quanto os de direita, inclusive sobre ativistas das causa ambiental e os opositores desta. A fala da atual ministra Kátia Abreu, enquanto Senadora pelo seu partido anterior, o Democratas, é pontual ao exibir sua inadequação ao posto que atualmente ocupa, sem muita propriedade para discutir sobre os assuntos da cadeira ministerial. Todos os dados mostrados após sua fala exibem a quantidade de latifúndios mal utilizados para a prática agrícola e pecuária.

    A edição utiliza um bom tempo da película sobre o Veta Dilma!, um abaixo assinado que colheu milhões de assinaturas contra o Código Florestal, que legitimava grande parte das ações do agro-negócio, o que comprometeria, e muito, a questão da preservação, para favorecer o Ministério do Desenvolvimento. Uma denúncia de que a base governista até então não tinha um discurso uníssono, graças à quantidade de aliados que puxavam a discussão sempre para o lado que lhe é mais conveniente.

    O caráter elucidativo do filme compete com o espirito de denúncia, contendo informações aceitáveis, mesmo ao espectador menos informado sobre a área. A transposição de ideias é bem simples, pondo o conteúdo em uma posição privilegiada, claro, sem perder a força do discurso com termos tecnobables. A fala é certeira, não faz concessões a quaisquer lados de interesse político e autoritários, evocando principalmente a popularidade da causa e a vontade do povo, que vai completamente contra os interesses dos barões da indústria.

    Um pequeno alarde é feito ao demonstrar que a Constituição é modificada pouco a pouco, graças aos remendos da lei pela bancada ruralista, que fomenta o desequilíbrio ambiental, influindo não só na ecologia, mas também na óbvia questão da convivência humana e no consumo natural da matéria-prima e dispêndio da água. As soluções propostas no filme são as mais óbvias e incrivelmente as menos adotadas, como a restauração dos processos ecológicos fundamentais, já que estes são deveres do Estado brasileiro. Depende-se fundamentalmente da implantação do Novo Código Florestal para que este funcione como prevê a lei, e comece-se a reparar os danos já implantados no país.

  • Crítica | The Culture High

    Crítica | The Culture High

    Culture High 1

    A despeito de toda a tranquilidade proveniente do uso da cannabis sativa, o filme de Brett Harvey começa violento ao mostrar uma incursão policial na casa de um possível traficante, truculento como se espera do braço duro da lei, abraçado o comportamento hostil pela parcela mais conservadora, que não teme em se desinformar e veicular mensagens sem qualquer cunho verídico ou embasamento científico. O tema central de Culture High é discutir a demonização da maconha, analisando a propaganda anti-drogas dos EUA que, em essência, não é muito diferente da vista no Brasil.

    O caráter do filme não é escondido em momento algum. Logo se abre uma discussão aberta, exacerbadamente didática, com números, demonstrações de inverdades ditas tradicionalmente e, claro, através exposição do sofisma inserido na discussão entre saúde e drogas legalizadas e não legalizadas, mostrando que o discurso lúcido passa longe de ser o principal fator na discussão. Principalmente da parte de quem condena o uso pela simples fama do que representa um “baseado”.

    Não há qualquer cerimônia para execrar o sistema autoritário de fiscalização dos EUA, além da completa ignorância por parte dos políticos responsáveis, tanto sobre os efeitos das drogas – especialmente a maconha – como  com a quantidade de dinheiro que o tráfico ilegal levanta. A força das autoridades, que punem severamente qualquer participação dentro do processo de chegada das substâncias no país. O aumento da violência não dá qualquer garantia de diminuição, tanto em lucro quanto em quantidade de material interceptado. O único fator realmente alcançado é o temor total de quem é policiado por quem o policia.

    A análise prossegue revelando a mercantilização da vida, mostrando não em números, mas em exemplos práticos, como funciona o mercado de encarceramento de pessoas, e como uma parte substancial do orçamento governamental, e que é o dinheiro do contribuinte, que mantém isto vivo. Por precisar de pessoas na cadeia que mesmo pequenas posses são tratadas como pecadores demoníacos, para justificar um sistema falido, que destrói exclusivamente os mais carentes, os que não podem pagar altas fortunas para se defender.

    Mas é o aspecto médico o mais lamentado ao longo da fita, uma vez que o uso da sativa seria muito mais barato que a enorme fama de produtos farmacêuticos que substituiria. Uma opção de Harvey em mostrar a história de um menino epiléptico, que viveu seus primeiros cinco anos tomando toda sorte de remédios, 25 mil ao todo, sem perder os tremores, contrações e alucinação. Jayden só melhorou ao usar maconha medicinal ainda em testes iniciais, com o sonho de seu pai de que se desenvolvam maiores avanços para solucionar não só o agravo de seu filho, mas também o de muitas outras crianças.

    Como em Sicko: S.O.S. Saúde de Michael Moore, há uma forte denúncia tanto da propaganda da indústria farmacêutica quanto do apoio incondicional das autoridades, demonstrando um círculo vicioso, de tráfico de influência mais escuso que qualquer uma das contraindicações. A cortina de fumaça montada em torno da bifurcação política no país piora tudo isso, fazendo com que pautas de legalizações sejam sempre postas de lado em nome de um jogo antigo, que em nada acrescenta tanto em discussões sobre rumos políticos, interna e externamente, quanto na desmoralização da face farmacêutica, por exemplo. A administração de Barack Obama, que supostamente jogaria uma luz sobre a questão por ser esta uma das plataformas de sua campanha, reverteu-se por completo e provou-se uma enorme decepção. Um governo ainda mais perseguidor que nas épocas de George W. Bush e Bill Clinton, que, mesmo em suas hipocrisias de ex-usuários, não faziam tanta força para perseguir os estudiosos da maconha medicinal.

    A realização opta por focar seus últimos momentos para glorificar a alternativa de informação e base de dados presente na internet, onde ainda não há uma presença tão forte de selecionador de audiência ou conteúdo, adotando-se o inverso da coação através da popularidade e a larga exploração na atualidade e pela tradição.

    Segundo os entrevistados, é uma questão de tempo para ocorrer a legalização. Para alguns, o otimismo não é grande, pois há o conhecimento das forças que controlam este tipo de comércio. Mas a palavra unânime é a de apelo ao término da vergonha da proibição e da completa ignorância das vidas alheias, que sofrem todos os dias com o drama da “vida bandida” causada pelo consumo da droga.

  • Crítica | Metanoia

    Crítica | Metanoia

    Metanoia 1

    Evocando um sensacionalismo abissal, usando a questão do vício em crack, o filme de Miguel Nagle se inicia com narrações em off em áudios de pessoas depondo sobre a condição dos adictos no tóxico. De nome grego, a origem da palavra Metanoia se faz no sentido de “mudança de pensamento” de seu cerne, e o termo é utilizado por muitos segmentos da igreja evangélica brasileira.

    O roteiro é narrado em primeira pessoa pelo personagem Dudu, vivido na fase adulta por Caique Oliveira e na infância/adolescência por um menino bastante diferente, sem qualquer preocupação da produção com a clara mudança de etnia entre um ator e outro. O pouco compromisso com a congruência visual é assistida nas outras personificações de pessoas em passagens de tempo. A continuidade é nula, assim como a esdrúxula troca de atores em períodos longos de tempo. Desde cedo, o rapaz sofre com sonhos e alucinações bizarras, que associam a simples desobediência infantil ao contato com demônios e figuras monstruosas.

    Produzido pela Companhia Jeová Nissi, o argumento até tenta ganhar alguma sobriedade com a presença de atores famosos, como Caio Blat, Silvio Guindane e Solange Couto. No entanto, nem a presença de profissionais gabaritados consegue salvar o texto da mediocridade. A adição aos entorpecentes é completamente demonizada, filmada em condições toscas, com situações forçadas e convenientes, a fim de fazer um discurso vazio anti-drogas.

    A cena em que Jeffe – personagem de Caio Blat  é introduzido caracteriza a síntese da má construção da fita. Jeff oferece um baseado enorme, sem qualquer cerimônia, para o pobre Dudu, volúvel e suscetível à pressão exercida por seus malvados amigos. O torpor da erva faz enxergar as pessoas sem rosto, como o sonho de outrora, como se sub-consciente o alertasse do que ocorreria com ele no futuro. Sua condição de não usuário para internado em uma clínica de reabilitação é automática. Não há qualquer construção mínima até então, somente uma estrada curta, retilínea e ordinária.

    Mesmo os dramas terríveis, de agressão dos viciados aos seus familiares, são conduzidos de modo torto, estúpido e gratuitamente chocante. As reações de ataques tanto de abstinência às substâncias quanto aos excessos do uso são constrangedoras, mesmo para os astros conhecidos.

    Mesmo o bom desempenho de Silvio Guindane, especialmente quando através do contato com Solange Couto, que interpreta sua mãe, é interessante como o viciado vivido pelo ator consegue manter uma barba retilínea e muitíssimo bem aparada, mesmo morando na rua por quatro anos, vestido em trapos e com os pés sujos e maltratados pelo contato direto com o asfalto. Os elementos visuais pesam contra as sequências, banalizando os takes que deveriam ser as melhores de toda a duração da fita, excessiva aliás, beirando os cento e vinte minutos.

    As intenções do produtor, roteirista e protagonista Caique Oliveira são ótimas, mas a tentativa de valer a palavra cristã acima dos problemas de um toxicômano se perde em meio a uma história mal contada e confusa, tropeçando normalmente nas próprias pernas, corrida por uma narração tola que só faz idiotizar o argumento que já não era forte. A direção de Nagle até tenta em vão salvar algumas sequências, com ângulos panorâmicos, mostrando a desgraça em que Eduardo se metia ao afundar no consumo do crack.

    A segunda hora é dedicada ao assistencialismo e a tentativas de reabilitação. As passagens de tempo são confusas, emulando a perda de noção de hora que Eduardo tem ao fumar. Nota-se uma gama enorme de vícios de linguagem teatral na produção do filme, especialmente nos repentes que ocorrem, mudando posturas de personagens sem qualquer construção e deixando de fazer qualquer sentido na proposta fílmica.

    Talvez, as sequências sem amarras cronológicas mostradas em Metanoia, “poderiam” (muitas aspas) funcionar em uma humilde peça de igreja evangélica, onde o crivo não é grande e a exigência é nula. Mas, em meio a um circuito de cinema tão seletivo e difícil, é um verdadeiro abuso que o longa consiga ser distribuído para as salas comerciais.

    O último ato da peça/filme revela de maneira sepulcral a condição do homem, no caso, através do causo de Eduardo, um ser diminuto e ínfimo diante do Divino, sem direito sequer ao livre arbítrio, mesmo que esta condição seja um evento garantido até mesmo nas sagradas escrituras. Os sonhos que tinha quando criança denotam que toda a derrocada que sofreria quando adulto já era prevista, e mesmo próximo de muitas pessoas ligadas à religião, nem ele, nem os fiéis tiveram a clarividência do que ocorreria.

    As intenções de Caique Oliveira ao produzir tal texto são claramente positivas, mas o viés que escolheu para apresentar o drama é equivocado ao extremo, tornando uma situação grave e clamorosa em motivo de piada e propaganda religiosa barata. Um desperdício tanto em relação ao potencial da Companhia Jeová Nissi quanto em relação ao cenário cinematográfico brasileiro mainstream. A falha de Metanoia talvez faça seus produtores amadurecerem, mas possivelmente fechará outras tantas portas para o mercado de vídeo cristão.

  • Crítica | Precisamos Falar Sobre o Kevin

    Crítica | Precisamos Falar Sobre o Kevin

    Precisamos falar sobre tantos Kevin, para tentar entender como se forma sua complexa personalidade. Mas que precisamos, acima de qualquer coisa, “falar com o Kevin”, talvez a principal mensagem deste filme (We Need to Talk About Kevin, 2011), cuja trama é um constante provocar de questionamentos, sem respostas conclusivas, sem vereditos sobre culpados ou inocentes.

    Os créditos finais já haviam terminado, mas a película parecia permanecer intensa e dinâmica na minha mente, até que o latido do meu cachorro me trouxe de volta à realidade. Não que a história não estivesse, indissociavelmente comprometida com tantas realidades, em seu foco estrutural, e nas ramificações sugeridas subjetivamente. Mas até então eu continuava sentindo o peso e o cansaço de limpar “paredes” sujas de tinta vermelha, e percorrer o silêncio dos “corredores”.

    Percebi que a análise a ser feita precisa abranger dois vieses distintos. E acabei percebendo também que os mesmos acabam se tornando complementares, uníssonos na composição da narrativa cinematográfica.

    A diretora Lynne Ramsay fez um brilhante trabalho ao filmar uma adaptação do livro de Lionel Shriver, cujo roteiro foi escrito a quatro mãos (Ramsay e Rory Kinear). O filme recebeu várias indicações pelas organizações que premiam o cinema, ganhou o Festival de Londres e a Menção Especial ao Mérito Técnico no Festival de Cannes.

    O romance em si, publicado em 2003, é uma narração, em primeira pessoa, de Eva Khatchadourian, a qual desabafa nas cartas para o marido a luta travada entre a liberdade desejada e a maternidade imposta, assim como a angústia sobre a origem dos comportamentos que tiveram como desfecho a tragédia que caiu sobre sua família.

    A cineasta, embora mantendo o olhar de Eva como lente narrativa, preferiu poupar na oralidade e “desenhar” este suspense psicológico através da inteligente montagem de Joe Bini, da belíssima fotografia de Seamus McGarvey, e da adequadíssima trilha de Jonny Greenwood. Bini usa cortes secos para intercalar as transições cronológicas e, artisticamente, cria um painel de semelhanças subjetivas entre mãe e filho, proposto pela cineasta, como por exemplo na cena em que Eva mergulha o rosto na água, e ele se transforma, enquanto emerge, no rosto de Kevin.

    McGarvey sabe dar a a fluidez certa (ou a falta desta) e a intensidade vibrante (ou opaca) ao vermelho que permeia os 110 minutos de imagens, assim como sugere as recordações que vão sendo apagadas por outra realidade, quando altera o foco daquelas. Greenwood intensifica tudo isto com uma trilha que caminha paralela à angustia que cobre todo o enredo, com acordes que chegam a nos causar desconforto. Por último, e acima de tudo, há a impecável atuação de Tilda Swinton (Eva), indicada ao Globo de Ouro de Melhor Atriz (2012) e premiada pelo Cinema Europeu, na mesma categoria. Temos ainda a qualidade do desempenho de John C. Reilly (Franklin, o marido) e Ezra Miller (Kevin na segunda fase).

    Ramsay recorre, sabiamente, à identificação da angústia (ou sentimento de culpa) de Eva através do vermelho que, além de ser constante, inicia o filme, mostrando a protagonista mergulhada nele, e aparece em repetidas cenas (que servem de ponto de transição entre o pós tragédia e as lembranças) onde a mãe de Kevin limpa as paredes (pintadas por outras pessoas, numa manifestação de vandalismo), desesperadamente, como se isso pudesse limpar também tudo o que tivesse levado ao trágico desfecho.

    Nos momentos de negligência, de irritação, e até mesmo de tentativas em ser amável com Kevin, o desconforto de Eva é quase palpável, e a cineasta nos sugere que isso talvez seja a curva crescente de uma revolta que se originou numa gravidez não desejada. O bebê parece ter sentido toda a rejeição, e se manifesta em incessantes choros, os quais provocam uma das cenas mais marcantes do filme: quando Eva para o carrinho em frente a um canteiro de obras, quase em estado de êxtase pelo som da britadeira, pelo fato de este se sobrepor ao choro.

    A relação mãe/filho mergulha na dualidade do frágil e do intenso, na ação e reação, sem que fique claro de quem vem uma ou outra.

    Mas a única coisa que a diretora nos deixa clara é que o filme não pretende definir vítimas ou culpados, não tem a intenção de promover um juízo de valores, não permite a simples observação da superfície das personagens. O filme envolve-nos numa busca por um olhar mais profundo, num emaranhado de perguntas, e mesmo que pensemos ter encontrado algumas respostas, em algum momento, o que teremos ao final da película será um ótimo tema para reflexão. E a reflexão consiste em quê? Em mais questionamentos.

    Contar mais alguma coisa sobre a obra, (já que se trata de um suspense, meticulosamente elaborado para que nada seja explicitamente revelado ou explicado), me tornaria spoiler. No entanto, preciso falar da questão central da trama e, assim como a autora ou a diretora, não expor diagnósticos, mas criar pontos de reflexão.

    A família é o primeiro grupo com que a criança interage, e do qual ela extrai os mais básicos modelos de comportamento, partindo para a construção de seus valores. No entanto, outros fatores, como o meio externo, também terão uma grande influência nas suas escolhas e na sua conduta, além de que devemos também contar com o subjetivo de cada um. A diversidade de características pessoais é imensurável, é isso que torna o ser humano apaixonante, em sua complexidade.

    Mas é irrefutável que certas atitudes se constroem através da prática, dos conceitos internalizados, da compreensão do outro e de si mesmo e dos diálogos estabelecidos. Pois bem, o que menos se percebe nesta família, são exatamente os diálogos, quer seja entre Kevin e qualquer outro dos membros, quer seja entre os pais, sobre as variáveis do misterioso comportamento que o mesmo vem apresentando desde criança.

    Não se trata de buscar um culpado para a violenta conduta de Kevin. Trata-se de estar atento para as suas linguagens, e aprender a decifrá-las, inclusive nas entrelinhas (nem que para isso seja necessária a ajuda de um terapeuta). Trata-se de não ver apenas aquilo que se quer ver porque é mais confortável ou, quando se enxerga, não tentar “consertar”, com comportamentos autopunitivos, num esforço de enfatizar a presença através de uma pressuposta atenção, quase mecânica. Trata-se de procurar desde sempre, um equilíbrio no cuidar, sem tender à autoridade ou à permissividade, exercendo um controle e estabelecendo regras, mas oferecendo um apoio suficiente para a construção da autonomia.

    Não existe uma fórmula! Pais não estão isentos de falhas, e filhos nem sempre aprendem o que ensinamos, da forma como ensinamos! Mas temos o compromisso de zelar pelo clima emocional em que a criança cresce, promovendo um desenvolvimento saudável.

    Um comportamento antissocial é inato ao ser humano ou decorre do ambiente?

    Mais uma pergunta que permanecerá sem resposta, como tantas outras!

    Precisamos Falar Sobre o Kevin é um filme imperdível, por sua qualidade cinematográfica, por toda a reflexão a que a trama nos conduz, e pela mensagem que ele nos deixa: precisamos falar com Kevin, com Eva, com Franklin!

    Texto de autoria de Cristina Ribeiro.

  • Crítica | Mad Max: Estrada da Fúria

    Crítica | Mad Max: Estrada da Fúria

    Tomando como base uma ordem mundial diferenciada, pautada no exacerbo do capitalismo e exibindo uma face ainda mais selvagem dos escritos de Marx e Engels, Mad Max: Estrada da Fúria resgata o cinema de George Miller, refundando a franquia que o fez famoso, renovando-a para uma nova geração de aficionados, mas sem ignorar os fanáticos pela antiga trilogia.

    A primeira cena inicia-se com um discurso inflamado de Max Rockatansky (Tom Hardy), lembrando-se de sua condição de cavaleiro solitário, como na outra encarnação de Mel Gibson, intensificada ainda por um trauma que proporciona a si um fantasma, seu tormento, recaindo sobre sua cabeça como uma cachoeira que lava seus pensamentos, inundando sua mente de culpas. A adrenalina destas sensações ataca-o de modo irônico, deixando-o mais uma vez desatento, a ponto de ser capturado, ficando uma boa parte dos primeiros momentos sem sequer ser citado.

    Miller mostra um novo fôlego em sua direção, se distanciando do que fizera na franquia Happy Feet: O Pinguim, apresentando o universo que estreou em 1979 no primeiro capítulo, e fundamentado em 1982 com A Caçada Continua, acrescendo, claro, a estética videoclíptica, não deixando dever nada à direção de realizadores “massavéio”, mas abordando de modo adulto a fita. As cenas de ação têm uma continuidade em estrada impressionante, não devendo em nada tanto aos recentes À Prova de Morte de Quentin Tarantino, quanto a Bullit. As cenas e câmera retrasada têm muito mais significado que os takes adorados por Zack Snyder, remontando a influência de Sam Peckinpah, tanto no ritmo quanto na visceralidade dos momentos violentos do filme.

    A abordagem lembra a de um road movie, por apresentar cenas titânicas– e em sequência – sobre quatro ou duas rodas, em terrenos arenosos, relembrando o eco da predação humana em relação ao seu próprio habitat. As conclusões e reflexões estão espalhadas pelos cenários, e servem a uma análise mais profunda por parte do público, que ainda tem uma miscelânea de sequências interessantíssimas, incrivelmente agressivas, mas sem tanta profusão de sangue ou gore.

    Outro aspecto interessante é a ausência de verborragia, fazendo do roteiro algo sucinto em matéria de falas. Estrada da Fúria é um filme essencialmente visual, seja pelas planícies belas, pelas falésias ou pelo visual grotesco dos antagonistas. O fetiche, tanto das personagens belas, como das parideiras que sofrem a ação de um déspota tirânico trazendo o sex appeal para uma figura grávida, contrasta com a beleza quase infinita de Charlize Theron, que mesmo masculinizada em sua Imperator Furiosa, consegue arrancar um misto de força e sensualidade, concentrando em si quase todo o conteúdo homoafetivo de todos os episódios da cinessérie, sem ter nada de caricatural. A riqueza dos personagens periféricos consegue compensar – mais uma vez – o fato de Max ser um coadjuvante de luxo, na fita.

    A trajetória de Rockatansky é mais uma vez de subida, passando da eterna solidão para a solidariedade capaz de gerar nele um complexo suicida. Max prossegue um pária, possivelmente por ainda não ter superado a perda dos seus no filme setentista, algo agravado, é claro, pelos espectros que o perseguem. O deslocamento dele é notado a todo momento, mesmo quando encontra sobreviventes, pessoas que estariam próximas de sua condição singular, inclusive quando os aventureiros retornam ao lugar onde foram oprimidos.

    A solução final abarca uma mensagem de compartilhamento, que, em análises mais conservadoras, pode ser associada à mensagem de Jesus, que exigia a divisão de riquezas dos que pediam para segui-lo, assim como também abraça uma prática mais socialista, acenando até para alegorias ao texto de Gene Rondenberry na franquia Star Trek. Miller apresenta um blockbuster maduro, inteligente, cuja trilha sonora e edição de som são absurdas e acrescentam demais à trama, ajudando a construir a atmosfera de pavor e enigma. Estrada da Fúria possivelmente abrirá uma sangria com novos rumos para a franquia, apresentando um mundo rico, cujas aventuras e desventuras têm tudo para captar a atenção de espectadores pelo mundo inteiro, e com um protagonista que não deixa nada a desejar à abordagem que Gibson havia inaugurado.

    Ouça nosso podcast sobre a série Mad Max.

  • Crítica | O Sal da Terra (2014)

    Crítica | O Sal da Terra (2014)

    O Sal da Terra 1

    Focado na experiência artística do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, Win Wenders apresenta um filme que se inicia poético, com a pretensão de reverenciar a obra do artista através de relatos narrados a partir de seus mais belos materiais. As imagens remetem à reflexão do homem que retira seu sustento do registro visual da vida, optando por ângulos diversos, sempre em busca de uma visão não óbvia do que a natureza proporciona ao homem e a todas as criaturas.

    A direção compartilhada com Juliano Ribeiro Salgado, herdeiro do biografado, ajuda Wenders a mergulhar ainda mais fundo na intimidade de Sebastião. A intenção do artista é, por meio das imagens congeladas, retratar os sentimentos e um fragmento da vida das pessoas que clica, tornando físico e eterno o momento em que a máquina fotográfica dispara.

    Mesmo diante de aspectos desfavoráveis à narrativa fotográfica, Salgado mostra uma habilidade ímpar em montar suas histórias, além de um esmero essencial para que suas reflexões façam sentido. O documentarista permanece ao lado do personagem principal, acompanhando cada agrura e manobra do retratista. No entanto, as sequências carecem de dinamismo, ficando em grande parte focando momentos demorados e/ou parados, gerando um certo enfado no espectador que se incomoda com tramas vagarosas.

    As belas imagens tomam de assalto a tela, algumas vezes compensando a forma gradativa de contar a história. Mas não conseguem esconder o principal defeito do filme, com o estilo e formato superando o conteúdo. As belas fotos são méritos de Sebastião, não de Wenders e Ribeiro, que tiveram, é claro, o trabalho de pinçar as melhores gravuras, cujo acervo era riquíssimo.

    O grafismo da morte chega a chocar mais que qualquer outra estética, exibindo o genocídio, assassinato e extrema miséria dos desabrigados e desalojados que sobreviveram à crueldade da guerra. Impressionante e sensacional é notar como as crianças se adaptam ao ambiente hostil, por vezes ainda resistindo à ingenuidade e inocência em seus olhares, pedaços de suas almas que não conseguem negar o que sentem, sem qualquer restrição das ações adultas.

    O tributo ao brasileiro torna-se mais intenso ao analisar a obra Gênesis, que envolveu  uma viagem ao redor do mundo, onde os registros abarcavam paisagens imensas. A contemplação da natureza inclui o registro da nudez de tribos indígenas, cujas cores eram cortadas pelo preto e branco da revelação, em um contraste interessante de como as sociedades humanas vivem diversamente, mesmo que jamais se toquem. O viés ecológico é valorizado, mas ganha ares de panfletarismo bobo que tenta comover de forma barata seu público, abordagem em nada parecida nem com a obra de Sebastião Salgado, nem com a de Win Wenders. Por mais improvável que seja, faltou inspiração aos dois realizadores do filme, que até conseguem superar documentários anteriores a respeito da personagem, mas que não têm qualquer mérito nisso.