Manoel de Oliveira está morto. Nada se leva, portanto resolveu deixar seus filmes para trás – para nossa sorte, claro. Sendo Aniki Bóbó meu primeiro filme do mestre (o cúmulo da doçura, uma ode irresistível à infância, e não somente a inocência, mas como um período encantador e transitório de seres ainda em evolução geral que o filme faz questão de enfatizar sem destilar), o secular Oliveira viu o mundo mudar, viu a inocência de Bóbó perder lugar para outras tangentes ao longo do tempo, tempo registrado pela câmera, seus inúmeros personagens e cenários que os abrigam e abrigaram o próprio artista por tantos, tantos anos. Anos que pesam agora, e sempre, em qualquer análise de qualquer testamento com seu selo de qualidade.
O cinema de Oliveira reconheceu vários expoentes, afinal só faltou registrar o mundo virando ao contrário. Dos anos 30 a 2014 (!), vários modelos de percepção, muitos exemplos da visão do artista para cada fase transitada sob estímulo e coragem naturais; a astúcia e a audácia de um principiante; e a experiência de um perito cavalgando cada filme tal qual o próximo desafio de sua vida. Vida de cineasta é assim, devoção, alma e dinheiro, então o que os motiva a dar o sangue? Na pintura, o surrealismo escrachava a importância do inconsciente na criatividade do artista. Na música, ritmos feito o funk sofrem várias adaptações culturais pra refletir cada grupo, fielmente. Mas percorrer o Eldorado é pavimentar uma carreira centenária. Uma missão olímpica de 62 filmes em míseros 106 anos.
Oliveira, de sobrenome tão comum e talento inaudito, é um caçador de fantasmas, entre tantos outros atributos, e Sempre Bela parece resumir o que isso significa num convite do futuro ao passado convidativo de uma relação. O que permite passar os sinais verde e vermelho que guiam os carros é o destino, um espectro de casaco negro, alheio à cidade que o rodeia em um ambiente frio por natureza – ou pela falta dela, curvo em direção de lugar algum na Paris noturna dos filmes romancistas. Mas a aparente distância sentimental do homem logo é quebrada por sua admiração ao feminino, manequins ou bonecas de carne, a chegar em sua amada nem tão são e nem tão salvo, mas agoniado por querer retomar agruras e falácias de idos remotos.
Um embate existencial onde o que prevalece é a luta de uma inteligência emocional frágil contra as tentações do destino que comanda os faróis da cidade – esqueça o monitoramento de trânsito, isso é poesia ou era pra ser. Sempre Bela não é o sensível guiado pelo intelecto, o retrato da não-coerção entre a paixão (talvez culpada por quem a tem) e a razão (talvez culpada por quem não a detém).
Do surrealismo espanhol de Luis Buñuel ao realismo transcendente do mestre português, Oliveira traduz o propósito de revitalizar o pós “felizes para sempre” do marido traído e sua esposa meretriz de A Bela da Tarde, em forma e nostalgia, nos convencendo de que uma segunda conclusão ao clássico filme de 1967 merece uma adaptação alternativa aos moldes de uma época diferente e moderna, o que nada afeta nenhum dos dois filmes e suas escavações pelo jardim do Éden afora. O que levou Eva e Adão às suas práticas é o gênese da exploração filmada em esmero, paciência e mãos de seda.
Sobretudo, ao filme não interessa os moldes do tempo – afinal aqui consta a busca atemporal a uma eterna beleza ex-conjugal –, e sim os porquês do velho Husson precisar ou simplesmente querer resgatar a atenção de Serizy, num jogo de gato e rato onde o detetive de seus passos na cidade luz é cultuado por uma câmera elegante e áudio espanhol para remeter à linguagem do cineasta. Mas nada aqui remete a continuidade: pura apropriação respeitosa, respeitável e criativa de uma ideia-prisma, cheia de observações possíveis (e diálogos de literatura europeia). Surrealismo? O quão surreal é a busca pelo amor não correspondido? Não mais que os feitos de Salvador Dalí, Ingmar Bergman, Alan Resnais, Luis Buñuel, ou do maior portuga do Cinema. Estamos pisando no salão das lendas, é bom saber. Elas estão mais vivas do que nunca.
O início do filme de Henrike Ruben Genz (Dias Melhores e Desculpe Incomodar) é silencioso, remetendo ao repertório típico dos thrillers europeus recentes que fogem da estética americana de pontuar cada sentimento com uma música. A perturbadora calmaria proveniente da ausência de som esconde as intenções sombrias dos personagens retratados, diferentes demais do termo do título original, Good People.
Em um mundo onde predomina a extrema violência urbana, o casal Tom (James Franco) e Anna Reed (Kate Hudson) veem sua rotina oprimi-los. Cheios de dívidas, o par ainda tem de denunciar a estranha morte de um vizinho, que apodrecia na casa ao lado e acumulava moscas à sua volta. Após a retirada do cadáver, a dupla limpa o apartamento onde ocorreu o óbito e encontra uma mala com duzentas e vinte mil libras, acima do assoalho. A quantia seria o ideal para acertar os débitos da família, mas usufruir do dinheiro parecia além de um movimento antiético, mas bastante perigoso.
Enquanto Tom e Anna balanceiam as decisões sobre o que fazer com a quantia que encontraram, um grupo de malfeitores segue no encalço do dinheiro, exibindo uma violência gráfica típica dos filmes de Guy Ritchie e dos irmãos McDonagh, mas sem o exagero gráfico dionisíaco destas referências. Logo, os dois mundos distintos colidem, com a visita de contraventores violentos e torturadores, salvos por pouco pela ação do agente da lei John Halden (Tom Wilkinson), que tenta ajudá-los a fugir após o ato estúpido de Tom em gastar o dinheiro ilícito que achou.
O suspense predomina sobre o texto de Kelly Masterson por apresentar uma intercessão de realidades onde a violência extrema e proximidade da morte dão a tônica. Após infrutíferas tentativas de redenção, o casal se vê com baixas possibilidades de sobrevivência, mostrando seus arquétipos de previsíveis e ordinários homens comuns que, diante da possibilidade de usufruir da fortuna alheia, acabam caindo em tentação. Essa atitude contraria o clichê da máxima popular que afirma que o povo é honesto e oprimido pelos poderosos, e apresenta uma faceta corrupta que levanta questões morais mas que não demoniza os que praticam atos (ditos) maus por necessidade: a motivação dos protagonistas está longe de passar pela ganância e volúpia por dinheiro. No entanto, a nobreza prévia é atrapalhada pelas direções opostas de Franco e Hudson, que não conseguem imprimir qualquer química enquanto par romântico.
O filme, apesar de conter bons momentos, passa a não se levar a sério, especialmente após o começo da segunda metade. A curta duração de noventa minutos não permite que haja muito mais viradas do que já era esperado. Cenas em que sentenças são dadas a partir de armadilhas caseiras, ao melhor estilo de Charles Bronson em Desejo de Matar 3, sepultam toda a aura misteriosa dos primeiros minutos, passando a mostrar uma caça frenética com direito a dilacerações e corpos ensanguentados típicos de filmes B, nos quais qualquer verossimilhança é imediatamente afastada pela sobrevivência do mais fraco e mais inapto.
A diferenciação internacional criada no começo da película é abandonada com o final repleto de bordões e clichês visuais, com “ressurreições” acontecendo a todo momento e exemplos de superação de cunho bastante vulgar e barato. Risco Imediato tenciona ser algo diferenciado por sua fórmula inicial, mas não demora a exibir uma trama genérica, com personagens cuja profundidade não ultrapassa a dos arquétipos comuns de filmes de ação, tendo nas cenas de violência gratuita o seu ponto mais forte, mostradas com um grafismo invejável.
Grandes Olhos, novo filme de Tim Burton, é uma autobiografia velada do diretor e ao mesmo tempo o filme com a assinatura menos marcante de Burton. O cineasta, outrora tão profícuo, é frequentemente visto como alguém que se tornou refém de si mesmo e da marca que ele mesmo criou. Desde as participações de Johnny Deep e Helena Bonham Carter em seus filmes, até o uso que faz da estética padrão, tudo é apontado como mais do mesmo, como uma caricatura de si. Sendo assim, a obra nasce com duas grandes oportunidades: discutir o lugar da arte e do artista, e agarrar com unhas e dentes sua assinatura de diretor. Infelizmente, desperdiça ambas cena por cena.
O filme baseia-se na vida da pintora Margaret Keane (Amy Adams – aqui, subaproveitada) e seu marido, o falso pintor Walter Keane (Chistopher Waltz – magnético como sempre), e na vida daqueles que redefiniram o mercado da arte durante a década de 1950 ao licenciarem seus produtos para estampar todo tipo de coisa. Negados em galerias de arte, e como artistas pela crítica, argumentam em certo momento que a arte não precisa ser elaborada ou sequer ser chamada de arte. Só precisa impactar.
Um dos pontos mais marcantes de uma obra de sucesso não são suas qualidades, mas sim seu apelo popular. A reação da academia e da crítica profissional então é rapidamente rejeitar aquela obra como arte, aplicando então o rótulo de obra comercial. Não é incomum que esta seja a crítica máxima a uma obra quando esta suscita alguma emoção mais passional. A grande dificuldade de entender o lugar da arte atualmente é que “contemporânea” é um termo esgarçado, pois é capaz de aceitar tudo. Neste ponto, mesmo o pior artista irá tornar-se um grande artista caso explique suas motivações artísticas com argumentos convincentes. Esta situação não é ruim ou degradadora da “verdadeira arte”, mas deixa as coisas mais confusas para aquele que buscar encaixar tudo em gavetas.
É inevitável neste ponto pensarmos em artistas como Romero Britto e outros que são abominados por chamarem-se artistas, mas estampam mais produtos licenciados do que galerias. Claro que há como defender Britto como artista, mas ele não parece se importar muito com isso, e se mostra feliz nas caixas de lenço de papel. Burton, aqui, assume a mesma postura, já que a forma que encontrou para defender a arte de Margaret não é através de argumentos, mas sim pela exploração de sua meiguice e a contraposição desse seu predicado com a maledicência de seu marido, tão atraente e maldoso quanto o mercado artístico. Sem conseguir comunicar algo de relevante, a película vende a artista sob o mesmo pretexto de suas obras, que é sua fofura, o que acaba por tornar a narrativa um exercício de futilidade. Não à toa, embora a simpatia com a personagem formulada por Adams seja imediata, o que atrai realmente no filme é seu marido. Como grande vendedor que é, vende sua persona falsificada para todos, com eficiência e elegância. E talvez este seja mais um dos pontos fracos do filme, pois escanteia sua Margaret fazendo dela uma mera espectadora de sua própria vida.
Nos poucos momentos em que foi possível tratar o assunto de forma producente, Burton se desloca do projeto e insere cenas constrangedoramente inverossímeis que acabam por destoar de todo o resto do projeto, como quando um crítico de arte interpretado por Terrence Stamp se digladia com Keane em um jantar, chegando a assumir habilidades sobre-humanas. Outro desperdício foi a tentativa de relacionar suas figuras de grandes olhos com o estado mental de Margaret − que só vale por ser um dos poucos momentos em que vemos características de Burton no filme −, que por não conduzir a narrativa, ou exigir demasiada boa vontade do espectador em buscar o conteúdo semiótico das cenas onde isso ocorre, novamente soa gratuito e fútil, exatamente como tenta negar ser.
A humilde produção dirigida por Augusto Sevá se passa numa cidade interiorana da Bahia, e antes de iniciar a narrativa há um aviso de que o filme é feito com um elenco formado por atores não profissionais, patrocinado com dinheiro público. Apesar do adjetivo presente no título, não há como levar a sério a trama adolescente do mesmo estilo de Malhação.
A sinopse divulgada resume a trama de um grupo de adolescentes formado quase que exclusivamente por meninas, ao menos no protagonismo dos causos, mostrando a descoberta da sexualidade típica da puberdade de uma maneira que equilibra o escracho com a timidez comum de meninas em idade escolar. Com uma sapiência de roteiro semelhante ao conteúdo visto em teatros escolares, os dramas são vividos de modo superficial, sem ritmo ou apreço por uma dramaturgia minimamente interessante.
Há um bom motivo para o filme, finalizado somente em 2011, ter sido lançado em circuito quatro anos após sua pós-produção. Cada aspecto do filme remete a uma história mal contada em que mesmo os movimentos mais óbvios são tratados de modo estúpido e esdrúxulo. Le (Luciana Louvadini), Daia (Naiara Carvalho) e Mônica (Mônica de Oliveira) vivem sua vidas à beira da praia, ao som de música de mau gosto, dando passos largos rumo a uma trajetória cafona, repleta de gírias mal concebidas e olhares desencontrados, sem qualquer profundidade maior. Em resumo, efêmero como as férias de verão, onde moços da cidade grande vêm e usufruem das chamadas “minhocas da terra”, sem grandes consequências ainda que diante de tabus, como a gravidez indesejada.
A vontade de viver um grande amor faz com que cada um dos membros do trio tente, ao seu modo, lidar com a precoce vida adulta, sendo que uma delas, grávida, ingere cápsulas e remédios na tentativa de parar o processo de gestação. Utilizando uma produção deficiente em qualidade, a direção de arte falha ao usar em cena embalagens de remédios comuns para dor de cabeça, sem sequer produzir uma drágea decente que deveria ser ilícita.
Apesar de introduzir pateticamente os causos de uma maternidade antecipada, o roteiro ainda insiste em tocar em questões delicadas, como o desprezo por parte dos pais das crianças, ainda que os comportamentos não se diferenciem em nada dos arquétipos que mais se aproximam de vilões. As músicas escolhidas para a trilha não combinam com a juventude das mães, que levam seus bebês para brincarem com o trio. Enquanto elas improvisam um número de karaokê usando uma embalagem de desodorante como microfone, revela-se um anacronismo digno de um script que teve zero pesquisa de produção.
A última meia hora é dedicada à exploração barata dos dramas pós-divórcio, repletos de traição e troca de acusações que em nada acrescentam, apenas banalizam questões sérias e atuais, como a precocidade dos dramas adultos e temas espinhosos como o aborto. Tudo de um modo bem ordinário.
O fato das personagens terem seus caminhos atravessados pela obrigação de crescer não garante a elas qualquer demonstração de amadurecimento, e elas são atraídas sempre por qualquer fala boba ou cantada barata, demonstrando que as experiências anteriores em nada acrescentaram ao ideário fútil, brincando num eterno vai e vem emocional. A irreal realidade exibida no município baiano de Trancoso é semelhante demais a de muitas cidades pequenas e zonas carentes das metrópoles. Mas o pior dos muitos pecados da fita é não produzir a mínima reflexão diante dos corriqueiros fatos mostrados em tela, apresentando um pastiche debochado que representa o drama de muitas famílias brasileiras.
Fundamentado em um discurso bastante constrangedor que visa trazer a “America” – somente o país do norte, com a bandeira azul, branca e vermelha – para as mãos de Cristo, o documentário de Heidi Ewing e Rachel Grady mostra em seu começo a multiplicidade do pensamento cristão protestante, distinguindo, em um programa de rádio, duas linhas de pensar a função do evangelho dentro da sociedade secular. Em meio a essa afronta, investiga-se um local específico, onde crianças de idades variadas aparecem em um peça teatral, trajando farda e camuflagem diante dos pais e responsáveis.
O Jesus Camp é um espaço pensado a partir da mentalidade batista, inspirada no testemunho do conhecido pregador Billy Graham. O objetivo do acampamento é isolar as crianças dentro de um ambiente onde sua atenção, seus corações e mentes poderiam proliferar e cultivar a mensagem cristã. Aos mancebos é dada a mensagem de que seria a função deles mudar o mundo externo, recebendo uma educação específica, repetindo frases feitas cujo efeito reflete em suas almas, voltando-as para um estado de transe em que os pequeninos começam a falar uma língua indistinguível. A questão de ser esta uma viagem é logo refutada pela líder do culto, Becky Fisher, que é filha de um pastor e responsável por ministrar as palestras às crianças.
Logo, o discurso pacífico e conciliador é posto de lado, com Fisher declarando abertamente que seu objetivo em passar a “Palavra” aos infantes é estratégico, o que em si contém uma declaração de guerra. Seu discurso é repleto da retórica do medo. Segundo sua fala, a religião e modo de viver correriam risco de se extinguir caso não se esforçassem em evangelizar o maior número de meninos possíveis, uma vez que os palestinos fazem o mesmo esforço, assim como todo o Islã. Para vencer seu opositor, os “justos” precisariam se valer das mesmas armas, que ao ver dos cristãos são fajutas, mas quando são usadas por si tornam-se somente uma arma de salvação de almas.
Mesmo as mães, ao travar conversas com seus herdeiros, transparecem um preconceito desmedido, diminuindo o pensar científico, indicando aos pequeninos que respondam à altura caso o criacionismo sofra qualquer impropério. O pensamento falacioso e sofista é plantado desde cedo no ideário dos pré-adolescentes, para que, ao crescer, eles respondam do mesmo modo, rejeitando qualquer argumento educacional, fortalecendo o ideário bélico que complementa a aversão islamofóbica. Sem perceber, tornam seus filhos e filhas em selvagens.
A mensagem que Jesus deixou no evangelho de Mateus é sumariamente ignorada. Em troca do sujeito humanista, preocupado com o ambiente social e perseguido por esses ideais, entra uma figura fascista que tem interesse na mentalidade alienada de seus devotos e massifica uma mensagem excludente de que somente os que seguem “seus” preceitos arcaicos têm direito à felicidade e a uma boa vida. Os pequenos são teleguiados a não viver mais suas vontades, tendo em suas palavras e atos o resumo dos dizeres religiosos incontestáveis, fáceis de desbaratar mesmo com a eterna negação de sua fraqueza de consistência.
Fisher, em um novo ambiente chamado “Kids on Fire” – fogo é um termo cristão que denota o poder de Deus –, pede “autorização” para, em uma pregação, falar sobre Harry Potter, declarando que os magos são inimigos do Divino, portanto indignos, e caso fosse na saudosa época do Velho Testamento ele seria morto, como castigo carnal, e teria a eternidade no fogo do inferno para repensar seus atos. A crença da punição é passada sem qualquer receio às mentes ainda em formação.
O objetivo dos documentaristas não é produzir uma versão caricata do modus operandi dos evangélicos, e sim exibir uma faceta mentirosa da conversão cristã, em que o mais importante é manter as mentes dos adeptos presas a um ideal inalcançável, para basicamente fazer deles soldados que trabalhem em prol dos interesses mesquinhos e preconceituosos de seus patriarcas e dos pregadores, aprendendo desde cedo a diferenciar pejorativamente os membros de sua família em deus dos ditos anormais, a saber: sodomitas, homossexuais e demais pessoas ignoradas pela Graça.
Uma das meninas entrevistadas declara achar “legal” (very cool) morrer por sua fé sob os gritos de “mártir”. A câmera de Grady e Ewing somente observa a vida selvagem e o discurso se alastrando. Não julga seus analisados, somente os expõe em posições constrangedoras para que o veredito final seja dado pelo público. O lado escolhido é claramente discutir a validade do discurso fundamentalista, pouco diferente do de crianças islâmicas que portam metralhadoras e fuzis. Uma arma ideológica que ignora completamente o estado democrático e a distinção do arquétipo religioso.
O máximo de conflito presente na fita é a fala do advogado e radialista Mike Papantonio, que não suporta os desmandos de tais cristãos. Antes de subirem os créditos finais, Becky Fischer dá seu último suspiro, mais uma vez esbravejando contra seus inimigos, para então entrar em um lava a jato e aumentar o som de sua pregação, abafando qualquer palavra externa. A água avermelhada caindo sobre seu para-brisa associa seu estilo de vida irresistivelmente ao sangue e a transferência pura e simples do radicalismo às crianças. A conduta extremamente condenatória parecia mesmo estar enraizada na mentalidade dos infantes, que precisariam de muita ajuda externa para sair desta situação.
Apelando para a dubiedade do espírito humano, Paul Schrader adapta o texto original de Nikos Kazantzakis, que por sua vez desvirtua e se desvincula de qualquer história contada nos evangelhos. Mesmo com o aviso, enquanto a trilha incidental ainda apresentava a abertura do filme, A Última Tentação de Cristo não conseguiu fugir das polêmicas, sendo constantemente censurado, editado e proibido em diversos períodos e países ao redor do globo.
A proposta intimista exibe por quase três horas a história do carpinteiro Jesus, interpretado pelo jovem Willem Dafoe, que em seus dias sofre uma perseguição pontual de um homem ruivo e agressivo, o ativista anti-romano chamado Judas Iscariotes (Harvey Keitel). Em todas as oportunidades, humilha o protagonista da jornada, criticando-o pela letargia de trabalhar fabricando cruzes, que, em essência, é a maior arma que os romanos usam para humilhar os judeus, já que tradicionalmente a cruz simboliza maldição, sendo proibido sentenciar um cidadão romano à crucificação.
Já nos primeiros momentos de exibição, há uma dupla inversão de valores, com a representativa caminhada de Jesus carregando a parte superior das cruzes, debochando de antemão da via crucis, tornando física a revolta anunciada por Iscariotes e a violência física contra a conhecida meretriz Maria Madalena (Barbara Hershey), agindo de modo tão sensacionalista quanto o militante arruivado, levando as joias que carrega sobre o rosto para cuspir em sua face.
A face patética de Jesus esconde algo fundamental, tendo neste paradigma o ponto em comum com o texto bíblico, demonstrando que o Chamado Divino é o seu fardo, como espíritos amaldiçoados que vagam ao seu redor produzindo um tormento sem precedentes. A peregrinação pelo deserto emula a mesma viagem que o escritor original da Torah, Moisés, fez para ter também com Jeová. Ainda que a intenção de Jesus fosse outra, a de se livrar do pesado jugo proposto a ele, pôde-se enfim dar vazão às suas necessidades, indo de encontro a Madalena.
Paciente, ele aguarda vendo todos os homens ao seu redor deitarem-se com sua amada, demonstrando a mesma letargia de outrora, uma dificuldade em assumir o que queria, tomado por um temor de não ser bom o bastante para nenhuma das tarefas a que foi designado, desde as que jamais escolheu até as que naturalmente assumiu. O medo é fruto do sagrado, receio de quebrar promessas a um ser invisível e supremo que determina o destino de todos os que estão sob a jurisdição terrestre, sentimento comum a muitos fiéis e devotos do cristianismo pós anos 2000.
Aos poucos, o eremita aceita seu chamado, ainda que sua postura seja cautelosa, fruto de uma rejeição tipicamente teatral que exibe grande parte das incertezas humanas, aproximando o anunciado arquétipo, demonstrado por Nietzsche, do homem perfeito perante o homem comum, medroso, repleto de falhas e com coragem moderada, quase nula. Mesmo o “aceitar” de seu fardo não é pleno; o reconhecimento é gradativo. Enquanto outros servos trabalham durante toda uma vida para se aproximar do criador, o personagem biografado tem livre acesso às palavras do alto, chegando ao ponto de subvalorizar sua própria interferência e seus talentos.
Logo, os caminhos de Judas e Jesus mais uma vez se cruzam, sob a pena de o militante político assassinar o nazareno. Antes de se cumprir o sacrifício voluntário do “cristo”, Judas percebe a mudança postural do seu conhecido, ainda que de forma mínima. A volta à terra de Jerusalém pontua-se pela Palavra de Conhecimento – termo que designa um dom, no livro de Atos – onde Jesus provoca o primeiro milagre político, tendo total ciência da intimidade do respeitado Zebedeu (Irvin Kershner, diretor de O Império Contra-Ataca), e o freia em sua fúria assassina e machista. Após o fato, o carpinteiro lança mão de sua origem agrícola e humilde para falar diretamente ao povo, conseguindo um alcance popular que nenhum político catedrático conseguira antes, repetindo palavras otimistas que incrivelmente fugiam do lugar comum em tempos de escravidão, e que faziam confundir a incauta plebe, a qual achava que o discurso do homem era para enfrentar os opressores.
Nadando na contramão do óbvio, o resignado Messias faz lavar os pés da mulher que se deitou com milhares de homens, citando passagens canônicas do judaísmo e do cristianismo, mas em uma ordem conveniente à versão mais humanizada do conto. O homem do campo passa a ser chamado de Rabi, mesmo pelo sujeito que quis matá-lo, e começa a formar seguidores, homens que dependem de seus discípulos para viver, e que não tem qualquer alento ou esperança fora os seus mandamentos inseguros. A certeza de caráter cresce em uma subida íngreme, que se fortifica à medida que o caminho é traçado. No entanto, a ordem dos zelotes ainda perturba Judas, apesar de sua crença no messianismo de Jesus se manifestar cada vez mais frequentemente.
A mais brilhante faceta da realização de MartinScorsese é mostrada antes mesmo da obra completar uma hora de duração, quando os Pentecostes pós-Evangelhos se amalgamam com ao batismo do profeta e anunciador da vinda do Salvador, João, o Batista (Andre Gregory), um homem de aparência e vestes grotescas, que comanda um culto onde mulheres nuas batem cabeça como se estivessem possuídas por algo maior, pela mesma manifestação comum aos terreiros de religiões de matiz africana que cristãos fundamentalistas demonizam, mas que visualmente nada diferem das manifestações alegadas à ação do Espírito Santo, que na Bíblia seria o substituto físico do Deus Filho. O batismo aquático seria o carimbo, o primeiro passo da comprovação da missão de resgate aos homens confiado ao corpo do Cristo, a testificação, chamada Rhema (palavra falada e direta), que se insere no interior emocional do iluminado em ascensão.
As visões a que o personagem título é submetido se confundem com devaneios, fazendo alegoria ao autoengano, algo muito comum em alguns dos que professam uma fé recalcante e excludente, que está mais disposta a acusar do que acolher. A diferença básica é que, como nos escritos sagrados, Jesus repele tais indicações e tentações, não cedendo a qualquer julgamento prévio, pautando seu agir e julgar na verdade, e não em ditos sofistas.
O imprescindível realismo do script revela um Lázaro (Tomas Arana) ressuscitado não da forma conveniente como os filmes bíblico convencionais, mas sim como um moribundo, um morto andante que guarda semelhanças enormes com as criaturas ressuscitadas nos apocalípticos filmes de George A. Romero, exibindo a contrapartida dos milagres jesuínos, nem sempre maravilhosos, algumas vezes macabros e inconvenientes. A carne putrefata de Lázaro exala um odor forte, e serve basicamente para demonstrar o poder do Cristo encarnado, já que, daquela sub-vida, nada novo surgiria, nada proveitoso seria estabelecido, além da óbvia referência miraculosa que chegaria aos ouvidos dos poderosos romanos.
O auge do orgulho inflamado de Jesus se dá após um justificado ataque de raiva. Sua ira e violência imperam despejando-se sobre os comerciantes, que fazem do templo sua feira, uma rajada de impropérios, xingamentos que atingem a moral daqueles homens, denunciando todos os maus atos e a banalização do santificado que fazem. Em defesa do povo, há os doutores da lei, que usam o pretexto do câmbio da moeda para exercer a prática lucrativa na casa que deveria ser de deus, usando do poder sacerdotal para enriquecer levianamente. Sempre aos olhos da multidão, que nada faz além de consumir e financiar a vergonha lucrativa.
É para destituir o sistema corrupto dos romanos, e escancarar a hipocrisia dos fariseus e saduceus, que Jesus permite a Judas se “corromper”, entregando-o ao destino cruel que sofreria, para então fechar a esfera da cruz. O viés pensado para justificara traição é mais plausível, política e verossímil do que os livros de Mateus, Marcos, Lucas e João, além de retratar melhor a contemporaneidade de Jesus e a atualidade.
A partir da segunda hora de exibição da obra é que mora a principal polêmica do filme, com a saída do crucificado antes do estabelecimento da condição de cadáver. Ele é visitado por um infante querubim de formas humanas, o símbolo da inocência que o livra do fardo desnecessário, como em Abraão e Isaque, no Gênesis. A partir deste ponto, o Messias pode seguir sua vida normativa, sofrendo perdas e ganhos como qualquer reles mortal. A tratativa de sua rotina é muito mais calcada no “se fazer carne” do que no conteúdo das escrituras sagradas.
Já na velhice, Jesus recebe a visita de seus seguidores do passado, revelando o infortúnio causado a Israel desde a aposentadoria do Messias, que decidiu não morrer, mostrando que a celeuma e a rendição à mediocridade foram os fatores que primordialmente perverteram os rumos históricos da região, devendo ser consumada sua morte para que o seu povo – e não a humanidade – tivesse qualquer chance de salvação, fazendo dele uma criatura muito mais política do que um baluarte de religiosidade.
Apesar das muitas acusações de sacrilégio, usando-se de passagens isoladas e fora de contexto para justificar as negativas falas, A Última Tentação de Cristo cumpre um importante papel de reflexão, a despeito da moral encontrada na Bíblia Sagrada, exemplificando de maneira bem didática o viés revolucionário da figura messiânica, afastando de si a possibilidade de ser o incentivo e inspiração para o mote do fundamentalismo religioso em voga no discurso de tantos sacerdotes e líderes ditos religiosos. O Cristo de Scorsese, Kazantzakis e Schrader habitou a humanidade, viveu seus pecados e seus medos, e a humanidade habitou em si, se fazendo carne na figura que devia ser deus, aproximando divindade do humano. Como uma singela e sincera ponte para o Divino.
O veterano diretor Barry Levinson dá prosseguimento a sua parceria com Al Pacino, muito bem-sucedida em Você Não Conhece o Jack, para dar vazão ao metalinguístico O Último Ato, filme que conta a história de Simon Axler, um ator de teatro reconhecido por seu méritos dramáticos que de repente percebe-se do lado de fora do teatro, um pesadelo comum de qualquer ator. Na verdade, este é somente o primeiro aspecto de sua tragédia pessoal.
O arroubo emocional em que Axler está metido faz com que ele tenha atitudes drásticas, impingindo a si uma dor tremenda na tentativa de sentir algo sob a própria pele, no desespero de não conseguir mais exercer seu talento. Os takes em lugares bastante distintos remetem à dificuldade que Simon possui em atuar por diversos cenários, tendo como constante o terrível temor de não conseguir mais pôr em prática os ensinamentos que propaga em palestras a seus alunos. A perda de sua essência enquanto artista invade inclusive sua perspectiva de identidade.
Em meio a sua crise existencial, buscando fugir de sua depressão habitual, Simon prossegue seus dias, até receber a visita da filha de amigos de longa data: Peggen Mike Stapleford, mais um papel forte de Greta Gerwig. Peggen é uma jovem lésbica, de bela aparência, que fantasiava casar-se com o astro desde que era apenas uma garotinha. Após tomar bastante vinho, a moça inicia uma interação sexual com o homem, em um flerte que só ocorre em virtude das atitudes da moça, muito por causa da completa inadimplência emocional e sexual que o ator geriátrico vive em sua rotina.
A apresentação dessa nova relação abre mais possibilidades de conflito, combalindo ainda mais a mente do artista, já em degradação, com novos paradigmas de brigas e disputas, a começar pelos antigos affairs de Peggen. Deparar-se com a amante de sua parceira faz Simon ter ainda mais dúvidas, principalmente sobre os motivos que a fizeram trocar a antiga rotina para estar com ele, sendo assim incapaz de enxergar o óbvio, que envolve a proximidade causada pela admiração do passado entre ambos.
Da maneira mais patética possível, os pais de Peggen chegam ao lar de Simon para indagá-lo a respeito dos desejos e atos lascivos do padrinho com sua afilhada. Mesmo tendo vivido sua rotina de modo dionisíaco até então, o artista começa a se perguntar sobre a moralidade, ou a falta dela, de seus atos, assim como a posição de conviver entre seres completamente insanos, que lhe pedem favores nefastos baseados na ilógica, tão tresloucados que fazem duvidar qual é o nível de realidade em que vivem.
Toda a dimensão do trabalho de imersão de Simon Axler é duramente analisada sob os olhos atentos da câmera de Levinson, dionisíaca como todo o esforço de exercer atuação sobre material e texto alheio. A preparação e energia que deviam ser empregadas para fazer Rei Lear são gastas em discussões e na resolução das vicissitudes inerentes à vida do adulto, fruto da mesma rotina que lutou tanto para apagar ou fugir; o cotidiano que refutou graças à dedicação ao seu próprio, que, vez ou outra, contemplava também seu talento.
A repentina crise que passa faz pensar que aquilo é a retribuição do que Simon plantou, resumida na perda da única coisa que lhe foi importante e constante em vida. A arte é tão ingrata quanto a soberba: só se permitiria ser capturada novamente quando a entrega do intérprete fosse completa. Os aspectos teatrais fazem lembrar o texto de A Pele de Vênus, de Roman Polanski, no desesperador ato que une rei e figura artística, os quais têm nas luzes da ribalta e aplausos a sua igual gratificação. Os momentos finais justificam tanto a versão brasileira de “último ato” quanto a descida ao cerne da humildade na tradução de “humbling”, tratando desta humilhação não como afronta, mas sim como a arma necessária para a entrega completa e a solução para o quadro depressivo.
A peregrinação mundial dos cientistas Richard Dawkins e Lawrence Krauss é flagrada pela câmera e edição moderna de Gus Holwerda, que se utiliza de depoimentos de celebridades conhecidamente incrédulas – a maioria ateia – para fortalecer o discurso que torna o argumento científico a solução para a maioria dos males humanos, especialmente o da falta de discussão do papel dogmático que a religião exerce sobre as sociedades ocidental e oriental.
Dawkins é um zoólogo, etólogo e evolucionista, enquanto Krauss é especialista em física teórica. Seus currículos os credenciam para falar a respeito das descobertas pregressas da ciência, e especialmente para pregar às multidões a graça da verdade, a ciência como libertadora de qualquer pensamento recalcante, por ser ela a que explica a face originária da vida. No entanto, para que o alicerce da ciência seja sólido, é preciso usar o sepultamento por completo do pensamento religioso, tirando-o da base da pirâmide de pensamento, não só por ser a “instituição” um órgão que proíbe a discussão em volta de si, mas também pela natural escravização de seus membros, a maioria vítima de sofismas alienantes, cuja consciência passa longe da mentalidade dos fiéis.
Os debates são quase sempre muitíssimo enérgicos, onde a razão e a lógica quase nunca vence o senso comum do pensamento formado através da fé, seja pelos devotos fundamentalistas, seja por meio dos crentes que aceitam concessões. O discurso dos cientistas, no entanto, é indobrável por estes terem a certeza de que qualquer faceta da crença acima da premissa congruente do raciocínio fuja de seus próprios ideais.
Olhando por esse ângulo, é fácil associar o modus operandi dos pesquisadores aos de um fanático religioso, que possivelmente inspirou parte da massa ateia praticante que tenta converter tudo e todos. Mas há que separar a abordagem do discurso e as estratégias de fala, executadas para mais fácil entendimento dos incautos no simples pensar e no estudo da origem da vida, das espécies e dos lugares em que o homo sapiens habita. Os números apresentados para uma plateia exclusivamente sua são realizados em ambientes teatrais, dando a eles um ar de celebridade e que, com humor, levam a sua plateia uma mensagem que entretém e pretensamente informa. Assim, o discurso torna-se bastante discutível em razão da edição escolhida que os glamouriza na tentativa de popularizar a fala, o que pode naturalmente banalizar suas palavras – especialmente para os analistas mais “xiitas”.
As imagens falam por si só. Enquanto os dois protagonistas estão em um ambiente fechado, onde a paz reina, do lado de fora há vozes dissonantes que vociferam ofensas distantes demais da paz que predomina sobre o evangelho e tantas outras religiões, derivadas ou não do cristianismo, crenças essas que basicamente tentam reduzir o argumento da não religião a algo que a maioria dos dogmáticos conhece: o puro recalque, descrito por Sigmund Freud como fruto do chiste, de quem baseia qualquer decisão lógica em passionalidade, calcada basicamente na mágoa, que é o inteiro inverso da religião.
A crença defendida em Os Incrédulos é abordar en passant os conceitos científicos que Dawkins e Krauss pregam, não apresentando todos os argumentos que estes costumam usar em palestras, até para que o documentário sirva de aperitivo. O alvo é destacar o quão ignorantes podem ser os opositores deste pensamento, em alguns pontos até validando algumas ideias, mas, claro, utilizando o conceito científico como crítica à intolerância e tendo ao seu lado os melhores argumentos.
A implacável ira do cenário desértico do Oeste Americano pré-século XIX é exibida antes mesmo do início das cenas, com uma abertura levada por uma música doce, exibindo fotos de cemitérios e de outros massacres que ocorrem naquela terra. O intenso tiroteio envolvendo os personagens Charles Burn (Guy Pearce) e seu irmão, Mike (Richard Wilson), ambienta o espectador na espiral de morte em que entrará por mais de cem minutos, no mundo particular que John Hillcoat costuma exibir em sua filmografia.
Capturados pelo Capitão Stanley (Ray Winstone), os dois foras da lei olham ao redor, vendo cada um dos que os acompanhavam, mortos. Charles, o mais maduro e talhado para a vida, recebe então uma proposta que traria a redenção a ele e ao caçula, mas que o atingiria em cheio no coração. A alternativa pesada assemelha-se mais a uma sentença de se colocar em desgraça perante os seus, com a incumbência de assassinar o mais velho dos irmãos Burns, principal responsável por um massacre no passado.
A sujeira presente nos dentes e no suor da têmpora dos personagens faz A Proposta se diferenciar dos westerns clássicos de John Ford & Wayne, passando um pouco pelo cinismo da trilogia dos dólares de Sergio Leone com a mesma alma encruada e mal cheirosa de Os Imperdoáveis, sobretudo nos personagens periféricos, como o beberrão Jellon Lamb (John Hurt), decadente em essência e caráter, amoral como todo o background dos anti-heróis do faroeste.
Após alucinações, provenientes do torpor do veneno que faz Charles quase ir para o outro mundo, o personagem finalmente encontra o primogênito dos Burns, interpretado por um diferenciado Jack Huston, de cabelos longos e aparência tão surrada e mal cuidada quanto a dos outros membros do clã. A miséria é comum tanto a suas posses materiais quanto no comportamento de sua alma, mas não há qualquer capacidade mútua de fazer mal aos membros da família.
O desprezo pelas leis se reflete também no comportamento errático de Arthur com os seus. Mesmo que suas intenções sejam boas para com seus semelhantes, falta ação e atitudes mais sinceras, o que faz Charlie balançar, não o bastante para ceder à proposta de fácil execução. Ele precisa ainda experimentar o pior de seu irmão ao vê-lo cometendo um ato imperdoável, tanto de negligência dos seus quanto de crueldade de espírito.
Seu inimigos se postam em uma mesa figurativa à sua frente, como no conto bíblico que pede que se prepare um jantar diante de seus adversários, e o principal fator aviltante a ele é a intimidade com os que lhe impingem mal. Curiosa é a base do roteiro de Nick Cave, que usa as tragédias gregas de Sófocles como inspiração para os conflitos, algo semelhante ao que faziam os realizadores de western spaghetti com os filmes de samurai de Akira Kurosawa. A profundidade do texto está nas sutilezas que apresentam uma resistência interessante, mesmo diante de toda a violência que a fita apresenta. A forma não substitui o conteúdo, pelo contrário, fortalece o argumento repleto de viradas, dualidades e podridões de espírito.
O músico Chico Buarque, que dispensa apresentação, pergunta-se, em sua canção Almanaque, para onde vai o amor quando ele acaba. Uma reflexão metafísica e coerente com o estabelecimento de qualquer relação amorosa que, mesmo longeva, é transitiva.
Dirigida por Roger Michell (Um Lugar Chamado Notting Hill, Amor Obsessivo, Vênus), a história de Um Fim De Semana em Paris dedica-se ao tempo contínuo do amor, apresentando um casal que vive junto há trinta anos e viaja a Paris para comemorar as bodas de Pérola.
Meg e Nick são um casal desencantado pela vida. Vivem juntos um tempo considerável que não produz margem de surpresas. Conhecem a personalidade um do outro, as pequenas manias e reclamações, cientes de que a solidez do amor não poupa mais palavras e, assim, dialogam abertamente sobre os desígnios da vida, a velhice, o tempo e o amor compartilhado em conjunto.
Recentemente, voltaram a viver sozinhos sem a presença dos filhos. Um passo muito comum entre diversos casais que criam filhos por um longo período e, após os filhotes saírem de casa, deparam-se com um vazio e o estranhamento em relação ao que fazer com o tempo e a liberdade. Normalmente, é neste período que marido e mulher voltam a pensar em si e na unidade de um casal, ainda que o tempo consumido para gerar um filho tenha modificado visivelmente as percepções de vida.
Na cidade luz, os ânimos ficam acirrados pela comum expectativa que qualquer viagem simbólica e comemorativa é capaz de gerar. A Paris conhecida anteriormente foi modificada pelo tempo. Tentando não destruir a celebração, o marido faz concessões aceitando ficar em um local caro, sem esconder a insatisfação.
A proposta do longa-metragem é a busca sobre a temporalidade do amor e como histórias de longa durabilidade são vividas diariamente. Mesmo com o amor presente, há uma leve amargura em cena, evidenciando que o amadurecimento não gera a sabedoria imaginada popularmente em uma jornada de crescimento. Cada ser humano ainda carrega dentro de si medos e dúvidas que, se por acaso dissipadas, darão espaço a outros lugares escuros.
Jim Broadbent e Lindsay Duncan fazem um casal ponderado, sem extremidades dramáticas evidentes, afinal a proximidade e a intimidade podem gerar menos espaço para cenas e grandes discussões. De maneira honesta, discutem a sexualidade, a ausência do desejo em relação ao tempo e as maiores fragilidades sentidas neste momento da vida: Nick ainda incrédulo por manter uma relação madura, amorosa e duradoura, e Meg irritada pela falta de confiança do marido após a dedicação de uma vida juntos.
De fato, estar ao lado de outra pessoa não significa uma total completude interna dentro dos seres. Cada qual vive à margem um do outro, e neste espaço permanecem também medo, dúvidas e afins. Não à toa o poeta Rilke, como outros escritores, viram o amor como uma espécie de solidão vivida a dois. Uma maneira mais suportável de viver a vida e a solitude da existência na companhia e no amor ao lado de outra pessoa.
A tensão amarga e amorosa do casal resulta em uma única cena epifânica, mas suficientemente eficaz para exemplificar como o amor denota dedicação constante, mostrando como as dificuldades de viver a dois nunca terminam diante das lacunas, tentações e outras fissuras inerentes a todos nós.
Uma classe de catecismo liderada pelo padre Webber (Florian Stetter), um devotado e atencioso homem que passa seus ensinamentos católicos para os infantes. Este é o primeiro cenário educacional e formador de caráter de Maria (Lea Van Acken), a protagonista da jornada vista no filme do alemão da Bavaria Dietrich Bruggemann, que insiste em posicionar sua câmera de maneira contemplativa, com um plano americano focado em uma mesa, em estilo semi-documental, oprimindo seu espectador como o jovem padre faz ao impor suas verdades e crenças para as incautas crianças.
A realidade da Fraternidade São Pio XII tem na rigidez dos preceitos e no discurso militar de seus fiéis sua base, mesmo que o caráter destes ainda não esteja formado. Seu ideário fundamentalista religioso entra em conflito com praticamente todos os aspectos normativos da modernidade, e todos os movimentos visam integrar os atos dos personagens com caricaturas de pinturas bíblicas famosas. O roteiro é dividido em estações, como os atos teatrais, cada uma mostrando uma faceta do cotidiano de Maria, em busca de um destino dos mais comuns, ao menos em tentativa.
O texto de Dietrich e Ann Bruggerman é verborrágico, não por conter diálogos estupendos, mas por ser uma história narrada através das muitas conversas de conteúdo constrangedor que oprimem e humilham Maria na maioria dos eventos. A partir de um momento, ela mesmo reproduz tais diálogos inquisidores, acusando conceitos cotidianos de sofrerem influência satânica e demoníaca, mesmo em ambientes distantes de sua paróquia, como em sua escola, no convívio com outros pré-adolescentes.
Logo, os adultos à sua volta começam a discutir os métodos e escolhas que Maria fez para sua vida. Sua mãe é a figura de pai/patrão, como no clássico dos irmão Taviani. Sua postura autoritária recalca a menina, aumentando o escopo de proibição a níveis cada vez mais absurdos, massificando a sensação de isolamento. Já na escola, seus professores a indagam sobre os diálogos que trava com seus colegas, sempre remetendo a pactos e eventos ligados ao diabo. Em um ambiente “normal”, ela se sente coibida, tornando-se tão passiva e agressiva quanto os que passam sua fé a ela, reclamando da constante exacerbação do pecado e da banalização da santidade.
A renúncia ao carnal, e consequentemente a qualquer impulso de vontade própria, é o norte da jovem, mesmo antes dela ter ciência real dos votos que faz. A massificação do fundamentalismo é mostrada detalhadamente, esmiuçada pelo inquisitivo pelo realizador, que não guarda pudores ao mostrar o processo de canonização de humanos ainda em formação.
À medida que os estágios avançam, a credulidade cega faz condenar a curta existência de Maria, pautando-se na paranoia cristã, pontuada no cúmulo da interferência do padre dando uma hóstia para a menina enquanto ela convalescia, atrapalhando todo o processo. A misteriosa enfermidade parece ter mais causas em desgosto e sem sentimentos vãos do que uma raiz científica.
A entrega de Maria é semelhante a de sua figura heroica, que se rendeu aos desígnios divinos para espiar os pecados da humanidade. No entanto, o sentimento presente na despedida da personagem-título vem para culpar e não perdoar, tudo através do silêncio e da métrica lenta do filme, características que são fruto da agonia desesperadora da protagonista, que nem em seus últimos momentos tem alívio e liberdade para viver como quer. 14 Estações de Maria é um interessante exercício narrativo que usa os aspectos estilísticos para maximizar o drama de sua heroína, remetendo ao inexorável destino do qual foge, comum a muitos dos escravizados pelo julgamento religioso.
A origem latina da palavra “resistência” vem de resistire, que faz lembrar o conceito de “ficar firme, aguentar”, relacionando a manter posição. Em tempos de ditadura militar, em plena efervescência cultural e política mundial, o Brasil vivia aquém, sem liberdade para o povo, sem vazão ao poder popular. Apesar de mentes envelhecidas nadarem normalmente a favor desta correnteza de mazelas, havia alguém que fazia a contramão desses ideais, destacando a militância no ambiente jurídico.
Sobral Pinto era um senhor de alta idade que teimava em legislar em favor dos direitos humanos, em um período no qual o conceito era completamente ignorado e tratado como assunto subestimado, uma vez que o regime impunha sua vontade para quem quer que tentasse resistir a ele.
A pesquisa de Paula Fiuza – diretora e roteirista, interessada pessoalmente pelos assuntos legais dos tempos em que a esquerda somente habitava os porões do regime – leva o espectador ao ano de 1999, quando ocorreu o resgate das fitas com os julgamentos dos presos políticos, os quais o jurista Sobral, que destacava sua tremida e passional voz, ainda teimava em defender; tudo através de um material adquirido por um jovem advogado que visava preencher o espaço de sua tese de conclusão de curso na faculdade. As defesas serviam de inspiração para alguns bons defensores de direitos, além de fornecer a garantia da lei, tão ignorada no absolutismo de farda.
A intimidade do já idoso protestante realiza-se através dos depoimentos de seus convivas e descendentes, dos que foram bravamente defendidos por ele. A obra também reúne boas imagens da época, com falas do próprio advogado. A briga para fazer da liberdade a bandeira universal teve um episódio especial na união do biografado com Luis Carlos Prestes, mostrando que mesmo o marxista e militante extremo não tem necessidade de conflitos extremos com o comportamento católico praticante do causídico, exemplificando o quanto tem em comum em relação ao discurso socialista e do moderno modo de Jesus tratar os excluídos dos evangelhos.
O subtítulo do filme reflete a verdade atrás de sua personalidade e trabalho. Não ter preço não era uma expressão, especialmente por poucas vezes cobrar de seus clientes, a maioria formada por gente humilde, de poucas posses. Sobral era um homem do povo, refutava que o chamassem de Vossa Excelência. Por suas virtudes no Direito terem a ver com sua extrema humanidade, contraditas no passional modo de enxergar o futebol e as fases ruins de seu time de coração, o América da Tijuca. A sabedoria do jurista não o salvaguardava do fanatismo do futebol ou do bom humor e sacanice em relação a belas mulheres, inclusive Sônia Braga. Os fatos narrados em relação ao tema, prendem-no à realidade, distanciando-se da ideia de um androide em prol da justiça.
A influência da religião fez Sobral se autopunir quando cometeu o pecado da infidelidade conjugal: a renúncia ao próprio ofício de procurador e a diversões sãs, como partilhar dos estádios de futebol em dias de jogos e sessões de cinema. A marca do erro se fixou em sua alma, revelando o lado conservador do advogado, que só teve sossego sobre o caso quando conseguiu o perdão de sua esposa.
Segundo as falas dos depoentes, Sobral apoiou o movimento “revolucionário” dos militares, por medo igual do possível regime vermelho. A partir do momento em que a constituição passou a ser transgredida, o jurista mudaria de lado. A fala é dada em gritos, com a voz claramente alterada em razão da passionalidade, possivelmente pela indignação consigo próprio ao ter caído no engodo dos que viria a combater. Nem mesmo sua verve e inteligência foram capazes de identificar a tomada de poder ilegítima: mesmo apoiando o golpe em 1964, houve o ato de lançar uma carta de repúdio a Castelo Branco por assumir a presidência mesmo sendo o chefe do exército, o que era também inconstitucional.
A falta de concessões às convicções que tinha e que defendia fazia dele uma personalidade sui generis, algo descoberto em sua integridade anos depois dos seus feitos junto ao romantismo, ao extraordinário trabalho que fazia para o povo de modo geral. Os créditos finais passam-se em uma homenagem no terreiro de samba, ao lado de seu amigo João Nogueira, que canta os feitos de seu amigo e mentor, popularizando uma figura de integridade ímpar, que a câmera de Paula Fiuza busca honrar. Às vezes não dando tanta vazão ao conservadorismo conhecido do advogado, a obra ressalta o viés de luta de seus convivas e o altruísmo que fala mais alto que qualquer pragmatismo pseudo-revolucionário, mostrando um Sobral como o jurista do qual o povo precisava.
Assistir a este filme e decifrar seus signos narrativos é assistir a uma esponja absorvendo um balde d’água de dois litros: uma especulação angustiante e estranha. Paul Thomas Anderson, o cineasta pós-Sangue Negro e o ultra-autoral O Mestre, não parece mais, finalmente, ter a necessidade de impressionar ninguém, o que é tão bom quanto ruim, e faz seu filme mais erótico até agora – esqueça Boogie Nights: Prazer Sem Limites.
Vício Inerente é anos 70, é trilha sonora de domingo, é Brian de Palma e Jim Jarmusch em algum lugar do cinema ítalo-americano daquela época, perdido ou integrado informalmente em pleno 2015. Não é de se surpreender o estranhamento, não só pela forma e essência, atemporal e universal, mas principalmente estrutural, numa abordagem tão literária quanto fluida e linear, evitando ser episódica, o que poderia tornar confusa a trama já confusa – de propósito e no bom sentido, no melhor sentido, na verdade. Temos na história todos os elementos e recursos de uma investigação filmada: conversas misteriosas em ruas sombrias, figuras cômicas de tão inusitadas, diálogos que sugerem mais do que revelam, policiais, suspeitos, etc. O quanto esses recursos são usados pelo artista, e como são interpretados a favor de um contexto policial, é a aliança que consagra o filme e garante uma boa impressão no final, ainda que não tão boa e poderosa quanto outros filmes do seu diretor, isso é indiscutível.
A energia de Magnólia vai pra debaixo dos panos e surge a paranoia, por exemplo, extra e intertextual no filme, feito em Embriagado de Amor, comédia romântica cheia de segundas e terceiras intenções e que muito tem a ver com a história de Doc, personagem fantasmagórico de Joaquim Phoenix, perfeito debaixo da peruca afro e óculos escuros. Um agente policial mais interessado em ser primeiro o símbolo de sua época libertária e depois resolver o desaparecimento de um milionário, em meio a um painel de contatos e informantes que contribuem mais com a trama imprevisível e tortuosa do que com a responsabilidade de ser coadjuvantes em torno de Doc, talvez a figura mais icônica do Cinema de Anderson depois do petroleiro Daniel Plainview.
Martin Scorsese e Michael Mann, dois dos maiores diretores americanos em atividade, filmam a América escancarada, nua e crua tanto em forma, tanto em alma emergencial, como se o mundo (ou o país) fosse explodir amanhã, e um último registro precisasse e devesse ser filmado já, como um atestado rupestre em vídeo a ser imortalizado. Anderson, não; filma o que já passou para entender o presente filmado pelos outros. Mas isso não quer dizer nada, não a longo prazo. O que importa e engrossa o caldo é a relevância que ele, Tarantino e outros filhos dos anos 90 dão ao processo de revitalização do cinema americano, quase perdendo o posto de ser um dos melhores do mundo. Mas se ainda é, é por causa de gente assim, que aposta no próprio poder de persuasão artística e cultural para convencer o público que ainda vale a pena assistir a filmes como O Lobo de Wall Street, Colateral, Django Livre e Vício Inerente, somados no retrato nacional de um estilo de vida. Doc é a personificação desse estilo: vivo, porém na beira da overdose.
O filme parece ser improvisado naquela abordagem de época já comentada, apesar de que fica claro ser o bom roteiro adaptado que sustenta suas cafonices deliciosas e bem-vindas, até o final, numa bela conversa conclusiva sobre o amor e suas contradições. Mas Vício Inerente não é suas contradições: é adaptação, inclusive a nossa, de uma plateia pós-moderna assistindo a glórias e pesares de uma época precoce, diante de uma ex-realidade que a atual deve muito de seus vícios e fraturas, vitórias e valores por mais ambíguos que tudo isso possa ser. Não é tampouco um livro filmado ou folhetim de um crime: é, isso sim, o romance homônimo publicado por Thomas Pynchon em 2009, tratado na tela de forma moderna, sem limitações de mídia que não poderíamos esperar de quem adaptou de forma épica o romance de Upton Sinclar, em 2008. Alguém achou que juntar Os Infiltrados com Embriagado de Amor era uma boa ideia. Talvez a obra de Pynchon não precise ter o mesmo poder e escala dados ao livro de Sinclair, por mais viciante que foi aquela força profunda molhada de petróleo, aqui cheirando a maconha e com 1/3 da profundidade. O problema é que o filme não se leva a sério, quando Anderson tem talento o bastante para ser pretensioso numa boa.
Já dizia o filósofo alemão do século XIX, Nietzsche: “Nada lhe pertence mais que seus sonhos“.
Filosofias à parte, o simples bater das asas de um beija-flor, atravessa, de repente, a trajetória de qualquer um de nós, e parece arremessar, para longe, sonhos que começamos a esculpir, transformando-os em fragmentos de desilusões e desânimos.
No entanto, apesar do que possa parecer através do título, Sonhos Roubados é um filme brasileiro que fala da capacidade em manter intactos nossos sonhos, por mais que a vida insista em querer desbotar suas cores. Eles se mostram presentes na sutileza de um shampoo roubado, do retoque do batom sob o reflexo de uma tampa, do desejo de um mp3, de um jeans provado na loja da periferia, ou no prazer do frenesi do baile funk e da serena brisa na areia da praia.
A diretora, Sandra Werneck, insiste mais uma vez em explorar o avesso dos núcleos sociais, como fez com os seus documentários. Já premiada pelo filme Cazuza – O Tempo Não Para (2004), nacional e internacionalmente, e antes desse, com Amores Possíveis, de 2001, como Melhor Filme Latino-americano, no Sundance Film Festival, Werneck arrebata, com Sonhos Roubados, o prêmio do júri popular no Festival do Rio de 2009. Ainda por este filme, o trio que protagoniza a história, Nanda Costa (Jessica), Amanda Diniz (Daiane) e Kika Farias (Sabrina), divide o prêmio Biarritz de Melhor Atriz, em 2010.
Nanda Costa está, mais do que impecável, vibrante, quando mergulha em todos as nuances de uma garota que encara a prostituição com absoluta naturalidade, já que esta atividade se mostra como a única forma de cuidar do seu avô e de sua filha. É assim que Jéssica acaba conhecendo o presidiário Ricardo, que marca a estreia, como ator, do rapper MV Bill.
Também em torno de uma dinâmica que visa a realização de sonhos, sejam eles de sobrevivência ou de consumo (mas que fazem parte do universo das favelas e de tantas outras garotas no mundo todo), Diane e Sabrina se dispõem a ganhar alguns trocados como pagamento de “favores”.
Baseado em um livro da jornalista Eliane Trindade, que conta a história de seis adolescentes, Sonhos Roubados não economiza na qualidade dos intérpretes, e nos presenteia com as ótimas atuações de Marieta Severo (que já havia trabalhado com Werneck, em Cazuza), Daniel Dantas, Nelson Xavier, Ângelo Antônio e mesmo do estreante Bill.
Ainda que a realidade das comunidades carentes se apresente como tema que vem sendo abordado pelos cineastas brasileiros, essa obra nos traz a cadência, a vaidade, a garra e a fragilidade de um universo feminino, visto pelo mesmo olhar, com honesta humanidade. Sonhos Roubados veste-se de uma leveza que suspira o lado dramático da precocidade da vida das três meninas, sem permitir que a alegria de viver as pequenas (talvez imperceptíveis aos olhos dos outros) conquistas, e o direito de sonhar, lhes seja roubada.
Devo confessar que notei uma certa negligência na elaboração dos diálogos. Mas então me pego pensando: e precisa? Afinal, não é assim mesmo (despreocupada, instável e intolerante a desperdícios) a linguagem de quem se debate entre a necessidade de amadurecer e a secreta vontade de conservar a meninice? Não podemos “ler” nos gestos, nas expressões e nos caminhos traçados, tudo aquilo que não é falado?
A breve primeira cena de Um Momento Pode Mudar Tudo é suficiente para o público estabelecer a relação de Kate e Evan, casados há quase quinze anos: um idílio amoroso no chuveiro, demonstrando intimidade e harmonia, uma abertura que evita insinuações eróticas.
O momento de amor é base para o contraste do drama de Kate, diagnosticada com esclerose múltipla. Tentando negar a condição frágil, a ex-pianista evita enfermeiros ou qualquer profissional que a trate como um paciente delicado. Mesmo com um marido dedicado aos cuidados, o casal procura alguém que a ajude diariamente, e Bac, uma jovem impositiva e diferente das demais candidatas, é escolhida como a pessoa ideal para o cargo.
A história tem leve semelhança com o drama francês Intocáveis, filme que também enfoca uma amizade a partir da relação entre enfermeiro e paciente. Como nessa produção, a relação entre Kate e Bec se compõe entre a amizade e a maternalidade e o choque eventual de gerações divididas: uma vida de casal consolidada e bem-sucedida em contraposição à juventude e suas relações coloridas e a indecisão sobre o futuro.
O título brasileiro representa erroneamente e com certo exagero um fatalismo que não está presente na trama. A doença de Kate é o evento que modifica sua vida, não se tratando de um momento específico transformador. O avanço da doença altera seu dia a dia, a princípio devido à limitação física; em seguida, com o distanciamento de suas amigas e também pelo afastamento do marido, do qual ela descobre uma traição.
A relação de mãe e filha se estreita devido à dedicação e à convivência entre as personagens. Bec é a única a tratar a doente como uma pessoa normal. A presença da esclerose gera uma redoma além da limitação física, como se a incapacidade locomotiva causasse temor e preconceito por parte dos familiares, sendo a traição do marido o ápice da quebra harmônica da relação. Um peso que modifica a estrutura amorosa.
A obra baseada no romance de Michelle Widgen estabelece a amizade como tema central, sem deixar de expor a dificuldade da doença e explorar a frágil questão da eutanásia. Diante de sintomas que cada dia mais tornam o corpo insuficiente, a trama se pergunta se há justiça em prolongar a dor de um paciente ou em aceitar seu pedido para que morra em um momento adequado, enquanto a pessoa mantém a consciência a respeito de seus atos.
O carisma das personagens – em destaque para o talento de Hilary Swank, grande atriz de poucos papéis louváveis – dá sustentação a esse bonito drama sobre relações humanas em um tom suave mas sensível, sem exagero fatalista ou melodramático.
Com a mesma faca usada na morte da galinha que abre o filme original de Fernando Meirelles, Cidade de Deus: 10 Anos Depois inicia-se. A narração de Alexandre Rodrigues, comum em documentários e na ficção, explora como foi o desenrolar da carreira artística de cada um dos integrantes do elenco e a produção do sucesso Cidade de Deus, focando nos moradores do complexo comunitário da Zona Oeste do Rio de Janeiro, em quem permaneceu no mesmo local.
Leandro Firmino da Hora é o primeiro “personagem” analisado, muito além do seu Zé Pequeno, quilos mais pesado e anos mais velho. A confissão de que jamais sonhou seguir carreira artística é surpreendente, especialmente por sua condição de negro e morador de favela. A situação de que a comunidade era uma questão cult se deu a partir de 2002 com o lançamento da obra, passando a nortear a enorme diferença entre a realidade dos envolvidos, do sucesso meteórico, e a volta para suas casas paupérrimas, realidade, segundo os depoentes, digna de choro.
A crueldade do meio artístico é flagrada na fala de Roberta Rodrigues e de Jonathan Haagensen, que lembram as terríveis dificuldades que tiveram ao tentar solidificar a carreira como atores, algo raro mesmo dentro do talentoso elenco do clássico instantâneo. A crueza da fama é ainda melhor mostrada na face de Alexandre Rodrigues, quase sem maquiagem, onde cada sinal de imperfeição é muito bem pontuada, e que em cujas falas mais se demonstra o arrependimento por não ter aproveitado, como deveria, a fama repentina.
Os contatos dos diretores Cavi Borges e Luciano Vidigal fizeram possível o encontro com astros como Seu Jorge, mas os esforços são muito melhores vistos ao investigar como a rotina de pessoas absolutamente anônimas, como o ex-ator Felipe Paulino, cujo papel pequeno, o do menino que tem o pé alvejado por Zé Pequeno. Felipe fala timidamente sobre suas cenas, intercalando com os momentos de seus trabalhos e bicos como servente de um hotel. Confuso, o jovem faz fortes declarações a respeito de sua aposentadoria, inclusive uma polêmica envolvendo o dinheiro que recebeu e quem supostamente o gastou. Apesar dos reclames, de fato se demonstrou que o cachê dos atores foi muito pequeno, variando entre os quatro dígitos de reais para os personagens secundários e pouco mais de dez mil para os protagonistas e antagonistas.
Apesar de louvar carreiras promissoras como as de Alice Braga, os depoimentos mais interessantes são os que revelam o drama de Rubens Sabino, que fez o personagem Neguinho e sofreu enormes dificuldades na vida, ficando conhecido um ano após o lançamento mundial. O motivo da “re-fama” foi devido a um assalto que cometeu e que, claro, deu errado, causando sua prisão e a reputação de contraventor.
As filmagens, realizadas no começo dos anos 2000, aparecem como introdução a discursos emocionantes dos meninos que foram obrigados a amadurecer muito rápido, passando na maioria das vezes a serem os provedores de renda de suas casas. O momento de Darlan Cunha e Douglas Silva após o longa-metragem e o seriado Cidade dos Homens, que foi ao ar entre 2002 e 2005, também é focado. Um efeito semelhante ao tencionado por Linklater em Boyhood – Da Infância à Juventude, com a trajetória de Douglas, que teve de se reinventar e que nadou contra a corrente de seus companheiros, visto que a maioria não teve qualquer sucesso nem em carreira artística, nem em vínculo empregatício.
O rumo das falas lembra a pouca abordagem sobre a vida do negro sendo contada por pessoas negras, quase sempre representados por estereótipos de bandidos desorganizados, como uma inversão do conceito de bom selvagem, um ser irracional, desorganizado e agressivo. A condição de apartheid é comum entre as seleções de casting, raramente contemplando papéis comuns em profissões como advogados, médicos e engenheiros. A fuga do arquétipo de envolvido no “movimento” reflete-se no drama de muitos negros, entre eles Jefechander Suplino, que viveu Alicate, curiosamente invertendo o estigma de conversão do seu personagem, tornando real a ficção que viveu, visto que está desaparecido até a produção do documentário. A realidade do ator é a mesma de muitos outros jovens negros, quando não, chacinados pelo poder paralelo ou pelo Estado.
A ideia de reunir as falas dos que fizeram parte de fenômenos que mudaram completamente o panorama da favela de asfalto é ímpar por resgatar os momentos não contados, até então, dos que não tiveram tanta sorte quanto os famosos “globais” e conhecidos internacionalmente. É no drama que mora o principal adjetivo positivo deste Cidade de Deus – 10 Anos Depois, uma realidade que ainda exclui o preto e o pobre, mesmo quando o indivíduo teve seu momento ao sol. Nem os lembretes textuais das iniciativas de praças artísticas oriundas das favelas cariocas conseguem mudar a sensação de que falta oportunidades a essa classe, exemplificada na demora em distribuir o documentário em questão para o circuito comercial, fazendo deste um evento de quebra da quarta parede, que retrata o tema discutido no roteiro.
Rob Cohen segue na esteira da moda do começo dos anos 2000, variando entre o exploitation dos pegas e corridas ilegais de carro, passando pela base do roteiro tosco de redenção x contravenção vista em Caçadores de Emoção. David Ayer, Erik Bergquist e Gary Scott Thompson conseguem conceber o roteiro de um filme que virou uma mania, mais vazio e mais cheio de personagens estereotipados que os péssimos seriados americanos infanto-juvenis da Discovery Kids e Disney XD. Velozes e Furiosos apresenta caretas, brigas impensadas, rap datado e uma plataforma que faz de Dominic Toretto um homem bem mais alto que seu intérprete Vin Diesel.
Apesar do nome semelhante ao de um serial killer, Brian Earl Spilner (do saudoso Paul Walker) consegue ter a atenção e a boa vontade de Toretto, mesmo com o começo atrapalhado na relação de ambos. Atrás do cabelo desgrenhado e da aparência parafinada, Brian esconde um segredo terrível, quase tão aterrador quanto os passinhos de dança injustificados nos arredores das corridas ilegais, e os diálogos babacas de afeição quase instantânea, que envolvem os corredores.
A entrada triunfal da gangue de Toretto, próximo de uma avenida movimentada, com cada máquina apresentando uma cor diferente, faz lembrar as triunfais aparições dos Power Rangers pela Alameda dos Anjos. Até as personalidades das personagens secundárias têm muito a ver com as do seriado nipo-americano, com Petty (Michelle Rodriguez), fazendo a latina mal encarada que namora o líder dos bandidos, o nerd – e hacker – de compleição física mirrada, Jesse (Chad Lindberg), e o mal encarado – e desconfiado – braço direito do chefe Vince (Matt Schulze), que se vê enciumado com o acréscimo de mais um fator na equação, especialmente por ele chamar a atenção da irmã de Toretto, Mia (Jordana Brewster).
Os outros personagens periféricos basicamente apresentam um show de horrores e de péssima construção de personagens, com Ja Rule fazendo o negro pró-poligamia, zoado por seus iguais. Mas sua vergonha não se compara a do asiático, que não tem nome, e que joga videogame antes da corrida. As esferas de inverossimilhanças pioram depois das falas de Toretto após vencer, inflamando a multidão com ideias tão profundas como as letras de Charlie Brown Jr., e que funcionam como a cereja do bolo presente na estranha armadilha policial que envolve o racha. O findar da perseguição é conveniente, unindo Brian e Dom no mesmo carro de fuga, gerando uma dívida dupla.
Johny Tran (Rick Yune) consegue interceptar o personagem calvo, logo após a fuga, mostrando que a pressa não é só uma característica dos corredores, como também dos roteiristas do filme. A fúria de Domic ocorre por ele ser interrompido e importunado pela cobrança de uma dívida, e só não é maior que a decepção de ter sido abandonado por seus chegados.
Sem qualquer cerimônia, Brian revela-se um policial infiltrado, o que faz se perguntar como é injusto o investimento de dinheiro do contribuinte americano. O absurdo é quase tão gritante quanto as preces em forma de oração que Jesse faz à divindade que cuida das peças de carros.
Apesar de datado, e da eterna predileção pelas corridas, Velozes e Furiosos é, em essência, um filme que discute a necessidade do maniqueísmo, fazendo uma ode ao anti-heroísmo. A obra inclui mais semelhanças com o clássico da Sessão da Tarde de Kathryn Bigelow do que com o filme original de 1955, com pouca substância do drama apresentado, sejam os arquétipos dos protagonistas, seja a tênue linha entre a vida bandida e o cumprimento ético de carreira do personagem infiltrado, pervertido pelas velhas tentações carnais e pela necessidade de adrenalina.
A rivalidade entre Tran e Toretto piora muito depois da invasão ao domicílio do asiático, algo que se agrava pela aposta com Jesse, que finalmente dá um motivo para o personagem, que mais chega perto de ser um vilão, atacar o protagonista fora da lei. O show de trapalhadas piora na cena da ação contraventora em meio a um dia ensolarado, sem qualquer planejamento de que o caminhoneiro roubado poderia retribuir a violência a ele e à empregada.
A revelação da verdade do disfarce se dá ao modo do clássico de Tarantino, Cães de Aluguel. Repentina e abrupta, a descoberta ocorre através de uma ligação para salvar o personagem que menos se afeiçoou por Brian, e que tinha total razão para duvidar de sua índole. Mesmo com todas as incongruências de roteiro, a evidente mensagem edificante consegue funcionar pela junção de fatores, a trilha sonora, o cenário arenoso, a tentativa de vingança e o assassinato do mais frágil membro do quinteto de foras da lei.
Em algum momento, o revide torna-se justificável, e toda a irregularidade fica plausível diante do compromisso do personagem de ser um pária social. O sucesso posterior prova que algo a mais causou a popularidade no telesseriado. Talvez a culpa seja das variações das máquinas e a ode ao Dodge Charger 70 do protagonista. O sucesso foi tanto que a partir de Velozes e Furiosos, surgiram inúmeros sub-produtos, inclusive provenientes de refilmagens, como na mini franquia Corrida Mortal, igualmente baseada nos filmes de Roger Corman.
A corrida que Toretto e O’Connor fazem rumo ao infinito reafirma a necessidade por adrenalina, além de extravasar a testosterona de duas figuras que se assemelham em espírito, e que devem muito mais um ao outro do que se aparentava antes. Apesar de toda a cópia da história de Caçadores de Emoção, o diferencial é a relação dos dois personagens masculinos, que não se permitem maiores afiliações sentimentais de ordem sexual, uma vez que o vínculo deles é exclusivamente de amor aos carros e às pessoas que os envolvem. A transformação em franquia fez bem ao filme de Cohen, já que ele é muito menos execrado do que deveria, visto os seus defeitos de concepção atenuados pelo conceito de representar como poucos a época em que foi realizado.
Carga Explosiva foi o primeiro papel principal de Jason Statham, e um bom cartão de visitas que ainda hoje lhe garante o status de astro de ação contemporâneo. O performático filme produzido por Luc Besson foi lançado em uma época em que coreografias marciais eram uma vertente em decadência. Ainda assim, entregava ao público a necessária ação frenética e destacava o ator como um brucutu em potencial.
Representante de um único estilo de papel, o personagem bruto com um passado violento, suas personagens se configuram como o tradicional herói de ação fundamentado na década de 80. Homens solitários e fortes fisicamente com potencial para serem um exército de um homem só. A trilogia Carga Explosiva e a paródia cômica Adrenalina trazem o melhor do ator. Ação direta, violenta e rápida, com maior enfoque para a luta corpo a corpo.
Se estabelecermos essas primeiras produções como um parâmetro, observamos que o ator tentou diversificar a carreira em filmes de ação sem as lutas desenfreadas dessas primeiras interpretações. Histórias levemente dramáticas que, supostamente, garantiriam mais peso aos seus personagens. As cenas de ação se tornaram menores e mais concentradas e, em certos filmes, quase inexistentes. Uma ausência decepcionante se você espera que o ator entregue a brutalidade costumeira do gênero.
Dirigida por Simon West, responsável por diversos filmes medianos e os excelentes Con Air – A Rota da Fuga e Mercenários 2, Carta Selvagem é a nova produção solo de Statham. Dessa vez, o ator é Nick Wild, um mercenário que vive em Las Vegas como consultor de segurança. Quando uma ex-namorada é espancada por um figurão da cidade, a personagem se vê obrigada a retornar à violência que tentou deixar para trás. Baseado em um livro de William Goldman, roteirista responsável por grandes obras como Butch Cassidy e Maratona da Morte, a trama já fora adaptada anteriormente em 1985 com Burt Reynolds no papel principal.
A vingança ocupa aproximadamente um terço do filme, como um primeiro ato de uma trama maior. Wild tem ciência de que, após a execução da vingança, deve sair da cidade e, à procura de dinheiro, passa a apostar freneticamente, e vencer, em uma mesa de blackjack. Um entreato que dura mais do que necessário e não parece dramático e urgente o suficiente. A trama se arrasta fazendo o público se perguntar se haverá algum momento em que a ação entrará em cena definitivamente.
Há poucas cenas de ação no longa-metragem. West incorre no erro de apresentar os primeiros embates em câmera lenta, um recurso saturado no estilo e que ameniza o potencial das lutas de Statham. Normalmente, é sua agilidade nas artes marciais e a brutalidade que marcam suas cenas coreografadas. Promovê-las em câmera lenta torna-se diferente do habitual, sem dúvida. Mas perde em impacto.
O terceiro e último ato da história retorna a ação em boas sequências e tenta retomar o pulso de uma situação-limite, mas nenhum personagem parece ameaçador para tornar-se um problema para a missão de fuga da personagem. Ao tentar diversificar sua carreira, o britânico tem estrelado filmes que seu público-alvo não deseja ver. E a cada nova produção, permanece a expectativa de que seja esta a obra que lavará a alma do ator, em fúria, porrada e sangue. Faltam-lhe boas histórias que direcionem seu talento para aquilo que Statham faz de melhor: ser um astro de ação físico, sem um drama profundo que o afaste do brucutu que se tornou.
Estreando na direção de animações em longa-metragem, a dupla Anthony Stacchi e Graham Annable se vale da mesma estética stop motion utilizada em Coraline e o Mundo Secreto para remontar uma história de cunho político, ao menos em comparação com outros produtos infantis. A história gira em torno de uma sociedade fanática por elegância e por queijos que tem em seus esgotos uma subexploração do povo, seres vivos tão inteligentes quanto os cidadãos da superfície, mas que são caçados unicamente em razão do medo do diferente.
Os boxtrolls são criaturas de aparência grotesca que aparentemente não entendem a dualidade do bem e do mal, fator que os diferencia dos demais cidadãos, possivelmente pondo-os em uma escala maior de inteligência. A subsistência deste grupo realiza-se pela exploração do lixo dos moradores da cidade Ponte Queijo, e eles somente têm coragem para ir à superfície no período da noite, por medo de serem capturados por Arquibaldo Surrupião (dublado por Ben Kingsley) e sua gangue.
É do meio dos excluídos que surge a maior atitude de altruísmo, repetindo os dogmas de muitas histórias de redenção, levando o tema a uma nova geração. Ovo é um menino humano, tratado como um nobre pelos pequenos monstrinhos. Ao ingressar no mundo dos humanos, sempre buscam novas formas de entretê-lo, seja com brinquedos, música ou demais aspectos culturais típicos dos homens.
Já crescido, Ovo – interpretado em fase adulta por Isaac Hempstead – Wright – decide ir à cidade para ver como seus colegas de espécie agem. Uma vez na meca, ele observa um forte discurso contestador formado por verdadeiras ofensas aos seus criadores. Sua missão é resgatar um de seus velhos amigos na casa de Rupião, onde se prova que a caça de Arquibaldo é motivada por rancor e supercorreção, uma vez que ele tem intolerância ao bem maior social, o queijo. A incursão revela detalhes da origem do bebê Trubshaw, além de mostrar pelo relato da pequena filha do monarca, Winnie (Elle Fanning), que Ovos na verdade não é um boxtroll, e sim um menino.
Não demora para revelar-se que a origem do protagonista é intimamente ligada a do vilão, que em um ato cruel assassinou seus pais. O roteiro, baseado no livro de Alan Snow, ganha ares de obra adulta ao abordar a temática de não julgar as figuras de autoridade por seu poder ou aparência, além de focar seu enredo em uma parcela de pessoas excluídas de seu universo, debochando do estilo de governo oligárquico, mas sem abrir mão de um discurso leve.
O fator que faz os oprimidos agirem é a iminência de suas próprias mortes, e os boxtrolls finalmente agem, pouco antes de serem exterminados, em uma reviravolta muito comum em desenhos animados, mas que em análises mais profundas serve de alegoria ao comportamento revolucionário, quando o povo se une para acabar com o czarismo que os escraviza e os deslegitima.
A ação dos pequenos trolls acontece pouco antes da execução de Ovos. Em uma cena demasiado forte, vestido como um boxtroll, o personagem é posto para ser queimado vivo por uma população conservadora e inflamada, provando que suas atitudes são mais dignas de honra do que as dos até então poderosos. Perto do final, é mostrada a nova configuração da sociedade em Ponte Queijo exibindo as mazelas desfeitas, e ambas as espécies convivendo harmoniosamente, mesmo com a antiga rejeição. Prova-se, portanto, nunca ser tarde para a mudança de postura, levando o belo ensinamento a uma animação muito esmerada.
Jennifer Lopez tem como maior atributo a beleza de ascendência latina. Em anos anteriores, foi uma das cantoras que adentrou o cenário pop musical dos Estados Unidos representando uma figura diferente da popular loira americana. Em paralelo a esse sucesso, desenvolveu uma carreira de atriz estrelando produções como Sangue & Vinho, Selena, Irrestível Paixão e Anaconda, filmes que, com ou sem qualidades, eram destaques na época de lançamento. Concentrando-se com maior ênfase na carreira musical, permaneceu em papéis simples, a maioria comédias românticas ou histórias dramáticas sem muito destaque, porém sempre mantendo seu nome na mídia, seja nas telas ou nos singles musicais.
Produzido pela própria atriz, O Garoto da Casa ao Lado é o novo thriller de suspense de Rob Cohen, diretor conhecido por suas costumeiras obras medianas mas que antigamente ao menos conquistavam o público de ação, caso de Velozes e Furiosos, Triplo X e Daylight. Não fosse a popularidade da atriz e do diretor, a produção seria um genuíno filme B com lançamento direto em home video. Considerando a época de seu lançamento, a história parece formatada propositadamente para acompanhar o nicho recente de romances que misturam erotismo em uma trama qualquer, principalmente devido ao lançamento da adaptação de Cinquenta Tons de Cinza.
Claire (Lopez) é uma mulher divorciada que teve um casamento manchado pelas aventuras conjugais do marido. Após a separação, procura o recomeço como professora de literatura em uma escola. Em uma noite após um encontro ruim, se envolve romanticamente com o vizinho, um adolescente que recentemente veio cuidar de um tio doente. Reconhecendo a disparidade da relação, Claire tenta negar o amante após a noite de amor e, lentamente, a personagem se torna agressiva e utiliza a chantagem, intimidação e medo como maneira de manter os laços.
Não há nada de novo nesta história que siga à risca os argumentos básicos de uma intriga. O vizinho, a princípio atencioso e atraente, revela-se um homem obsessivo e violento e sem nenhuma credibilidade. Ampliando seus domínios, a personagem aproxima-se do filho de Claire, um garoto com idade próxima da dele e tenta influenciá-lo negativamente contra a mãe e o pai, que ainda tentam manter uma relação. O erotismo em cena é precário e parece um recurso obrigatório para tentar atrair parte do público devido à fórmula que alterna atração e perigo. Nenhum dos atores tem o talento necessário para dar sustentação ao seus papéis, e o desenvolvimento da trama, tentando amplificar a tensão, entrega ao público frases de efeito, cenas tradicionais de suspense com personagens olhando janelas de maneira furtiva e o evidente fim redentor para a história.
A brevidade do filme é suficiente para não causar estragos no público, mas a narrativa superficial com interpretações rasas não promove nenhum tipo de emoção, nem mesmo o suspense rasteiro que era o alvo desta história. Lopez e Cohen estão distantes de uma carreira brilhante, mas juntos conseguiram compor quase um manual de tudo que deve ser evitado quando se intenta contar uma boa história do gênero.
O Ano Mais Violento se passa no árido inverno de 1981 em Nova York, e inicia-se já apresentando o histórico violento da cidade bem como o seu futuro incerto e desajustado. Índice de assassinatos em alta, roubos não investigados, e um sistema judiciário inchado e coberto de interesses políticos.
É neste cenário que o empresário e imigrante Abel Morales (Oscar Isaac) e sua esposa Anna (Jessica Chastain) lutam para progredir no negócio de venda de combustível enquanto tentam lidar com suas éticas internas e com a violência opressora da cidade. Vítimas constantes de roubos e da vigilância do ambicioso promotor local (David Oyelowo), os personagens empalidecem sua aparência civilizada a cada novo golpe que sofrem, cada vez mais tendendo à opção de moldarem-se ao modus operandi da cidade.
Em plena ascensão, Abel é mostrado como um homem rígido e eventualmente caridoso que subiu na vida através do seu talento e do casamento com Anna, e tendo como carta final a compra de um terreno de logística privilegiada que lhe garantirá o poder que tanto almeja. Seu destaque empresarial e resiliência pessoal contrastam-se, porém, com a trajetória de seu jovem empregado Julian, que se quebra frente à pressão de suas próprias incapacidades até apresentar-se como um problema para Abel e suas ambições.
Uma das preocupações do roteiro é não mostrar apenas a violência urbana. Está claro que na verdade estamos falando de uma época mais civilizada que antes. Esse “antes” é a época dos gângsteres, que dominavam o mercado na violência e na troca de tiros. O que faz desse ano descrito o mais violento não é a violência física em si, mas a recente desinstitucionalização dessa violência.
Não é incomum pessoas que viveram sua infância na década de 1940, por exemplo, rascunharem o relato de uma época mais pacífica, saudável e solidária que a atual, mesmo que esta tenha sido a década em que 40 milhões de pessoas morreram tão violentamente em uma guerra mundial. O motivo é que, quando sob aval social, a violência perde impacto, e com o tempo acaba por ser digerida pelo sistema.
Usando Oscar Isaac (Inside Llewyn Davis – Balada de um Homem Comum) como astro, é notório que, apesar de seu talento, o ator desaparece cada vez que Jessica Chastain (A Hora Mais Escura) aparece em cena. Isso não é por acaso, pois a direção de J.C. Chandor faz questão de iluminá-la e destacá-la em todas suas aparições, demonstrando todo o magnetismo daquela mulher que, ao contrário do marido, é capaz de fazer o que é necessário. Cria de uma sociedade gângster, ela se mostra capaz de adaptar-se à sociedade atual, mais civilizada e de sobretudo, mas sem deixar suas garras de lado.
Subliminarmente perversa desde o início, Chastain faz um belíssimo papel demonstrando que, como disse Mario Puzo, por trás de toda grande riqueza sempre há um grande crime, fazendo do “American Dream” tudo, menos um sonho.