Categoria: Críticas

  • Crítica | Mommy

    Crítica | Mommy

    Mommy 1

    Apenas quatro anos após seu filme mais notório – Amores Imaginários –, o jovem realizador Xavier Dolan traz à luz um drama realista que põe em xeque sentimentos como impotência, desprezo por parte dos poderosos e mortalidade. Mommy inicia-se violento com um acidente em uma rodovia canadense, remetendo à constante preocupação da matriarca do clã Després, Diane (Anne Dorval), que tem de equilibrar a própria vida pessoal com os cuidados especiais dedicados ao filho. Seu estado nervoso é absolutamente compreensível, diante das agruras de Steve (Antoine-Olivier Pilon), diagnosticado com hiperatividade.

    O fino equilíbrio entre o fardo de ter de sustentar uma pessoa “inválida” e fornecer socorro se mistura à sensação constante de fim do mundo, resultado da impaciência com elementos externos ao seu próprio mundo e de possíveis ofensas à sua cria. A rotina da família mudaria em absoluto após Steve deixar o internato para retornar à casa de sua mãe.

    O modo agressivo com que a família se trata deveria pressupor desrespeito mútuo, algo questionado por personagens periféricos. A agressividade na verdade suaviza uma relação de extrema intimidade, em que impropérios servem para derrubar palavras hipócritas, escondendo também um enorme senso de preservação e proteção das duas partes. Somente Die pode “ofender” Steve, e vice-versa, sob pena de sofrer xingamentos violentos, acompanhados de adjetivações distantes do costumeiro comportamento politicamente correto.

    Os arroubos emocionais pelos quais Steve passa são registrados em estilo semidocumental por Dolan, equilibrando poucos momentos de docilidade (ainda que moderada e repleta de palavras torpes) e de extrema agressividade, tão feroz que faz de sua mãe uma vítima provável. O desespero flagrado tem uma urdição ímpar, graças à perícia no roteiro de Dolan, que não subestima o público, tampouco cai em fórmulas convencionais e conservadoras de contar histórias.

    O paradigma da solidão e desespero começa a ser quebrado aos 30 minutos de exibição com o surgimento de Kyla (Suzanne Clément), uma menina que se muda para o outro lado da rua, e que, numa extrema atitude de benevolência e altruísmo, oferece-se para auxiliar a família na árdua jornada, que mistura perversões, amoralidades e autodescobertas.

    O modo curioso como os Després usam o idioma francês é mais uma mostra do roteiro e o deslocamento compartilhado pelos iguais, como se a vida falasse de modo diferente deles, enquanto outros membros daquela microsociedade têm dificuldade ou completa inabilidade em acompanhar o ritmo daquela língua particular. Mesmo Kyla tem enormes contratempos ao se ver sozinha com o jovem, enxergando em si e no rapaz um estorvo ambíguo, que funciona bilateralmente, com bloqueios enternecidos involuntários motivados pelo inculpável portador do mal investigado.

    Os estigmas antes sugeridos ganham contornos de carnais realidades com o crescente sentimento de isolamento por parte de Steve e dos que o cercam. O ciúme que passa a sentir em relação a sua mãe faz proibi-la de ter qualquer flerte ou relação emocional e física que não seja por ele. A aproximação do espectro da solidão faz o rapaz se desesperar e agir de modo impensado até mesmo para ele, ferindo a si e, por tabela, machucando seus entes queridos.

    Os momentos finais guardam toda a melancolia anunciada no decorrer da fita, sendo absolutamente cruel para os personagens reais mostrados em tela. Depois do incidente maior, mostrado no roteiro, o fantasma da segregação finalmente paira sobre a existência dos Després, unindo dor, desespero e infelicidade dos que ficam do lado de fora do sanatório, e um pouco de entristecimento também nos poucos momentos de lucidez do protagonista. Mommy se baseia em um drama forte que depende da entrega irrestrita dos intérpretes para compor um quadro agridoce, retratando uma realidade frequente e inevitável.

  • Crítica | A Música Nunca Parou

    Crítica | A Música Nunca Parou

    No livro Um Antropólogo em Marte, o neurocientista Oliver Sacks reuniu ensaios sobre casos estudados em sua profissão demonstrando a potência do cérebro, uma das melhores máquinas compostas pela engenharia neural. O escritor narra histórias de pacientes que sofreram algum distúrbio neurológico e, a partir de uma nova condição, tentam se adaptar à realidade.

    Lançado no Festival de Sundance em 2011, A Música Nunca Parou se baseia no artigo O Último Hippie, presente no livro citado. Na trama, o adolescente Gabriel Sawyer (Lou Taylor Pucci) sai de casa à procura de liberdade e anos depois é encontrado pela família em um pronto-socorro com um tumor cerebral que lhe causou sérias lesões, incapacitando-o de reter novas memórias, mas apenas momentos de sua juventude enquanto hippie. Tentando estabelecer uma conexão com o filho agora adulto, o pai Henry procura meios e alternativas para ajudar o garoto.

    Como pai de um adolescente na década de 60, Henry foi um conservador que não admitira as mudanças naturais da sociedade e, em consequência, o comportamento do filho, gerando distanciamento entre brigas e discussões. O reencontro traz à tona velhas feridas e coloca o pai em um interessante conflito: a única maneira de estabelecer uma conexão com o filho é adentrar nas memórias de sua juventude, um universo sempre negado pelo personagem paterno.

    Mesmo que pais busquem a melhor criação para os filhos, há um momento em que os rebentos precisam refletir sobre o mundo por conta própria. Os ensinamentos dados com amor por pai e mãe devem servir como apoio moral, não um guia absoluto. As gerações diferentes promovem valores distintos, e a discrepância entre o passado e o presente é um dos embates naturais na relação familiar.

    Com um herdeiro incapaz de produzir novas memórias, o pai busca construir uma nova relação familiar descobrindo a terapia musical como ponte. As canções ouvidas anteriormente ao problema de Gabriel funcionam como combustível para sua lembranças, fazendo-o sair de um estado mental diferenciado para se conectar às pessoas à sua volta, discutindo sobre canções e relembrando tempos passados.

    A música se configura como símbolo conector entre ambos. Um exemplo simples dessa grandiosa força de expressão, comovente e catártica, como nenhum outra arte. Isso nos leva a uma citação, replicada ao extremo em diversos meios mas representativa da força das canções: sem música, a vida seria um erro.

    O caso de Gabriel é um exemplo acessível do comportamento da máquina cerebral, composta com uma engenharia completa e que trabalha de maneira diferente quando sofre algum abalo. A narrativa é eficiente ao explorar tanto o lado científico de sua condição quanto o modo como um paciente mantém sua nova estrutura de vida.

    J.K. Simmons entrega uma bonita interpretação do pai severo e amoroso, que busca uma conexão com o filho, demonstrando sua competência habitual mesmo que nem sempre destacada pela mídia. Como na interpretação que lhe valeu o Oscar em Whiplash – Em Busca da Perfeição, seu papel é o conectivo da história. O público acompanha o drama do pai em descobrir a respeito da condição do filho, produzindo um laço emotivo que universaliza a sensível história.

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  • Crítica | Cinderela

    Crítica | Cinderela

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    Contos de fadas são parte de uma cultura popular originada em histórias transmitidas oralmente de geração para geração, nas quais temas adultos e controversos que explicam o mundo são atenuados com base na formação moral. Sem autoria definida, os contos de fadas, também chamados de contos maravilhosos, sempre dispõem de elementos sobrenaturais, fantásticos ou de encantamento, sendo as fadas apenas uma representação simbólica.

    A história de Cinderela possui diferentes versões. A mais famosa é do francês Charles Perrault, responsável por reunir diversas fábulas da cultura oral e transformá-las em narrativas simples, breves, tornando-se um modelo seguido por diversos outros autores. Cinderela ganha vida literária como Gata Borralheira no livro Contos de Mamãe Gansa em 1697, junto a Chapeuzinho Vermelho, Gato-de-Botas, Pequeno Polegar, entre outros personagens que passam a ser conhecidos mundialmente através do autor. Ainda que com a mesma base narrativa, essas histórias modificam-se conforme a cultural local, adquirindo diferentes formas. Caso dos irmãos Grimm, que posteriormente adaptariam esses e outros contos de forma a preservar a cultura e o folclore locais, e suas versões mais antigas, mais violentas e nada apropriadas a crianças, difeririam das de Perrault, que procurou manter com seus leitores um diálogo sóbrio e voltado aos infantes.

    Lançado em 1950, Cinderela é fruto da obsessão de Walt Disney pelo conto. O diretor já havia produzido um curta-metragem inspirado na história em um estúdio anterior ao Walt Disney Pictures. Pioneiro nas animações, o Laugh-O-Gram apresentou de maneira cômica uma personagem com roupas da moda da época, em uma linguagem típica do cinema mudo. Passaram-se quase 30 anos para o diretor voltar ao projeto, uma demora influenciada pelo baixo investimento ao estúdio durante o período da guerra. Inicialmente, a história seria uma de suas Sinfonias Ingênuas (Silly Simphonies), mas gerou inspiração suficiente para se tornar um longa-metragem.

    Com poucas modificações da versão literária francesa, o filme narra a vida da personagem homônima, órfã de pai, maltratada pela madrasta, Lady Tremaine e suas filhas Drizella e Anastasia. Sonhando com uma realidade diferente da atual, Cinderela interage com os animais da casa, os únicos amigos com quem divide seu pesar. A princípio, a obra estabelece uma inversão entre a representação dos humanos e animais, onde animais são humanizados e humanos bestializados, dominados pela soberba e vaidade.

    Assim, o roteiro mantém a crítica de Perrault ao regime de trabalho estafante da plebe e à ociosidade e arrogância da corte francesa, representada pela antagonista e suas filhas fúteis, de gosto duvidoso e sem atrativos físicos. A subordinação de Cinderela à madrasta é ainda mais opressiva porque não se trata de um trabalho explorado, mas uma relação familiar. O embate dualista do bem versus mal é comum nas narrativas de contos de fadas, nos quais essas representações tipificadas utilizam-se de conflitos simples como alicerce da trama para compreensão universal.

    O conceito tipificado da bondade estende-se também aos animais, tidos como seres puros e figuras presentes na maioria dos contos maravilhosos. Identificando-se com a compaixão de Cinderela, o núcleo dos ratos – os únicos com o dom da fala – ajuda a personagem a lidar com as adversidades da vida, inclusive, durante um divertido musical, os roedores reformam um antigo vestido que ela usaria no baile do príncipe. A bondade, em contraste, não se ostenta nas cenas de Lady Tremaine, onde as sombras dividem espaço com a vilã, revelando sua figura soturna e malévola. A obra costura um retrato benevolente de pessoas que sofrem querendo ocupar algum lugar no mundo. No sofrimento, o coração e alma desabrocham, e a partir das lágrimas de um ser imaculado surge a fada-madrinha.

    A protetora dos contos de fadas salvaguarda a heroína e geralmente aparece quando há a necessidade de atender a um chamado ou pedido. Representada pelo poder de segurança, a fada-madrinha da versão Disney é um pouco atrapalhada e associa-se à figura materna que Cinderela não tem por perto. Apesar dos ratos que falam e pássaros que observam a princesa cantar, é a fada e suas magias o elemento fantástico da história, a figura que transforma e surge como contraponto a um mundo caduco que necessita de compaixão.

    Procurando equilibrar a narrativa, Walt Disney chegou a mudar a estrutura da obra centenas de vezes. Perfeccionista, o diretor não teve medo de deletar cenas extras ou personagens desnecessários à trama. Muitas passagens foram cortadas, inclusive foi pensado um final diferente no qual o príncipe vê a Gata Borralheira com seus trajes modestos, após descoberta a sua verdadeira identidade. Retirada essa indicação desnecessária, a obra mantém a coerência, sem margem de interpretação para a surpresa que a realeza teria ao ver a princesa com roupas simplórias, algo muito diferente da contemporânea versão cinematográfica Para Sempre Cinderela, que subverte o desfecho, gerando um conflito em relação ao fato da heroína ser ou não uma moça da nobreza.

    Seguindo a estrutura de um conto de fadas tradicional, com introdução, conflito e desenlace, e apoiado pela boa trilha sonora, que oferece maior profundidade às cenas chave da película – ponto para a dublagem clássica brasileira, mantida na versão do blu-ray, com Simone de Morais dando à personagem principal um caráter mais doce –, o filme marca mais um momento dos estúdios Disney, após um difícil período mundial. Cinderela não só conta uma boa história como também torna a personagem a figura definitiva da princesa, elevando-a a um conceito que se sobrepõe à própria mitologia.

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    Texto de autoria de Karina Audi.

  • Crítica | Eden

    Crítica | Eden

    Eden 1

    Remontando à geração French Touch, iniciada em 1992 e viva até hoje, responsável pelo advento musical do estilo eletrônico house, Eden, da diretora Mia-Hansen Love, se propõe a ser o retrato de uma época. A câmera segue os passos do iniciante DJ Paul Vallée (Félix de Givry), que busca um modo de se sustentar e de planejar seu futuro na arte, usando o tempo vago que dispõe para planejar novas apresentações, ouvir músicas e discutir com seus parceiros o rumo de seus trabalhos.

    O uso irrestrito da intimidade de Paul tem a função de desenhar o destino de grande parte de seus fraternos, que passam demasiado tempo trabalhando no entretenimento alheio, vivendo uma árdua rotina, quase sem intervalos. A entrega de corpo e alma é praticamente integral, em uma jornada de busca ao som e batida mais acurados possíveis. As atuações dos Cheers passam a ser mais frequentes, reunindo cada vez mais gente ao seu redor.

    A acirrada discussão a respeito da plausibilidade de Showgirls – filme controverso e fracasso comercial de Paul Verhoeven – é o catalisador para a pouca paciência de Paul, claramente mais exaltado que todos os presentes na reunião de amigos, sentimento este fruto da extrema ansiedade que sofre e da abstinência de não estar em sua ilha, trabalhando. Sua satisfação só ocorre quando está em ação, e mesmo as frivolidades, como a discussão a respeito de um filme que divide opiniões, parecem de um enfado sem tamanho.

    O nome original da obra foi preservado na versão brasileira sabiamente, uma vez que seu significado vai muito além da referência cristã. Como é sabido na cultura popular, o Jardim do Éden era um local paradisíaco, onde o deus cristão pôs sua obra-prima em forma de carne, o homem, que só saiu daquele lugar motivado pela ingratidão do pecado, que o fez separar. A busca por retornar às bem-aventuranças e ao lugar idílico, onde sonhos e realidade dividem o mesmo espaço, é comum à trajetória das personagens.

    No entanto, falta envolvimento do espectador com o drama das pessoas retratadas em tela. A trilha sonora, apesar de competente, não tem o poder de envolver o público, por ser a intenção de seus realizadores: emular através da câmera a frieza e extrema solidão que atravessam o caminho dos Cheers e que permeiam a existência deles.  Mostrando que há muito mais do que somente cor, batida, drogas e pessoas bonitas dançando, na vida de um clubber, a obra problematiza o conceito de que, mesmo cercada de muitas festas, a existência de um ser pode ser também muito miserável. Apesar de sua bela fotografia e edição, Éden não se destaca demasiado de seus pares, caindo na irresistível fórmula de frivolidade presente nas boates que servem de cenário para a miniepopeia.

  • Crítica | Golpe Duplo

    Crítica | Golpe Duplo

    Golpe-Duplo-poster

    No início de 2000, roubos e assaltos com temática cinematográfica voltaram à tona e se tornaram uma vertente popular. Diversos filmes, sendo o remake Onze Homens e Um Segredo o mais significativos destes, pontuaram as telas com ladrões charmosos, grandes feitos glamourosos e reviravoltas como uma constante em suas histórias.

    Vindo de um fracasso de bilheteria dirigido por M. Night Shyamalan, Depois da Terra, o carismático Will Smith retorna às telas ao lado de Margot Robbie (O Lobo de Wall Street) formando uma dupla de golpistas nesta produção que segue a fórmula do roubo de maneira genérica. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, o filme estreou em primeiro lugar na bilheteria, demonstrando que, apesar do enredo simples, a popularidade de Smith é capaz de garantir uma base de público nos cinemas.

    A dinamicidade didática de Golpe Duplo se apresenta desde o título brasileiro. A trama é dividida em dois atos passados entre um período de três anos, justificando, portanto, os dois golpes citados, e nos dando a impressão de que a fraqueza da história inicial promove uma segunda de maior impacto.

    De maneira rápida, o golpista Nicky conhece Jess e descobre sua habilidade em roubar. As cenas partem do pressuposto de que o personagem é um especialista no que faz, e não só demonstra superioridade de furtos em relação à moça como faz um jogo cênico apresentando tudo que é capaz de roubar. Em seguida, faz uma rápida introdução à técnica do crime para Jess – arte que o próprio disse denotar tempo para aprender – com pseudo-conceitos teóricos sobre distração, teatralidade e outras maneiras de conquistar pessoas, logo aceitando-a no bando.

    Como ladrão charmoso, a personagem vive de pequenos roubos e esquemas locais que exploram uma cidade de grande rotação turística, dentro de um sistema de furtos generalizados entre cartões, dinheiro, joias, roupas e tudo o que pode ser furtado e revendido por uma grande equipe de especialistas. As apostas estão no sangue de Nicky, assim cenas frívolas, como a do apostador viciado que não resiste à tentação, surgem como um conflito para uma trama que não possui nenhum.

    O primeiro ato da trama encerra em uma hora e salta temporalmente para três anos depois. Surge um novo golpe que, coincidentemente, reúne o mesmo casal, separado após o último. Em cena, entra Rodrigo Santoro como Garriga, dono de uma equipe de carros de corrida na Argentina. O destaque da imprensa brasileira é feito em demasia: Santoro destaca os cartazes brasileiro, e, de fato, é louvável que o ator prossiga na carreira internacional. Porém, seu papel ainda se mantém próximo do estereótipo, o de um latino-americano representando um hermano argentino.

    A obra é voltada para o entretenimento rápido. Sem profundidade de nenhuma personagem, o enfoque está centrado nos roubos, no glamour que o cinema produziu dos furtos, e nas naturais reviravoltas que parecem surgir para subjugar o público, como se dissessem: sim, nosso roteiro é superficial mas será capaz de te surpreender.

    Durante a exibição, o público pode ser divertir. Mas desde já é possível observar que Golpe Duplo não será o grande redentor de Smith que, há dez anos, começava uma excelente fase com Eu, Robô, Hitch – Conselheiro Amoroso, À Procura da Felicidade e Eu Sou a Lenda, filmes que fundamentaram ainda mais sua credibilidade, o que justifica a boa bilheteria de sua mais recente aparição.

  • Crítica | Mapas Para as Estrelas

    Crítica | Mapas Para as Estrelas

    Mapa Para As Estrelas 1.5

    A viagem em um ônibus popular que atravessa municípios está longe demais da realidade almejada por Agatha Weiss (Mia Wasikowska, cada vez mais linda e madura), que chega a Hollywood para dar uma volta na limusine dirigida pelo aspirante a ator Jerome (Robert Pattinson). Numa breve conversa, revelam-se as dificuldades que se apresentam ao viver no olho do furacão da cultura pop, surgindo, claro, os graves assuntos familiares que a fazem ser obrigada a ficar longe dos seus.

    A câmera de David Cronenberg trata de variar logo seu foco, mostrando uma família disfuncional, que em níveis diferentes reflete as neuras e paranoias típicas do show business. O pai Sanford, feito por John Cusack – com visual tão bizarro quanto em Obsessão –, é um psicólogo que se vale dos incautos que compram seus livros de autoajuda. Ele é o guia do clã rumo a qualquer possibilidade de sucesso, e investe em carreiras distintas entre os parentes. Seus esforços físicos são mais voltados ao tratamento de uma atriz cinquentenária repleta de crises – interpretada por uma oxigenada Julianne Moore –, que tenta, através de madeixas louras, esconder a real idade (e o envelhecimento físico visto a quilômetros) no intuito de conseguir interpretar um papel que sua mãe fez, em um remake. Havana Sangrand tem sérios problemas psíquicos, encarando com frequência o espectro de sua mãe Clarice (Sarah Gordon), que a atormenta e faz duras críticas a cada performance sua.

    Benjie (Evan Bird) é um jovem menino, que tem sua precoce carreira cuidada pela mãe da família Christina (Olivia Williams). A pressão que sua genitora realiza para que ele tome as melhores decisões possíveis revela – mais uma vez – a profunda perseguição à notoriedade no ambiente que é o mundo dos célebres astros do audiovisual. A tentativa do roteiro de Bruce Wagner é parodiar esse ambiente apontando seus absurdos, que se tornam caricatos pela lente e edição de Cronenberg, exagerando o tema em muitos pontos da trama para provar os pontos que defende.

    Cada um dos humanos parece deslocado da realidade, como se a febre da corrida por glória e renome anestesiasse os personagens, tornando relação e conversa travada por eles artificiais e aéreas. Apesar de não perder o apelo sexual, o visual de Moore e Wasikowska é estranho em algum nível, revelando defeitos estéticos, como marcas e envelhecimento da epiderme, provando que elas são espécimes humanas vvendo pateticamente em um ambiente semifantástico.

    A aura predominante é uma ode ao grotesco. As reações às recusas são intolerantes, especialmente da parte da debilitada Havana. Há estranhamento do público ao analisar os fatos recorrentes da fita. Os inimagináveis exemplos fazem lembrar a face pouco usual do cinema de David Lynch, onde os limites explorados passavam longe do comportamento padrão da indústria cinematográfica e não restringiam o desenrolar de qualquer história. No entanto, o modo como Cronenberg faz seus planos não é tão inspirado, também pelo caráter depressivo de seu conto.

    A esquizofrenia e as cicatrizes de deformação de Agatha não só a diferenciam visualmente dos corpos sem vida que vagam pelo mundo estranho apresentado na película, como também são avatares da insanidade que habita a mente e alma dos fúteis homens que compõem o clã dos Weiss. Uma análise cuidadosa do quadro revela que os demônios que atormentam uma das gerações reverberam na outra, denotando a maldição hereditária e a praticamente incombatível realidade inexorável e incondicional.

    As esferas de perturbação mental variam seus ápices entre as tentativas de morticínio familiar e a quantidade exorbitante de devaneios e ilusões com seres incorpóreos, algo que ocorre a mais de um personagem por vez e cuja razão não é explicada. As maiores possibilidades de origem de tais fatos podem prevalecer no uso abusivo de alucinógenos ou na cada vez mais crescente possibilidade de insanidade do coletivo, igualmente agravados pelo envolvimento com infantes e adolescentes, pessoas cujo caráter e inteligência emocional ainda estão em formação, mas dentro do escopo dessas fantasias.

    A obra segue fiel aos preceitos do início da carreira de seu diretor e faz lembrar, em espírito e algumas cenas violentas, o gore dos clássicos insanos Scanners e A Mosca. Ainda assim, Cronenberg perde em seriedade, repetindo grande parte dos erros de Um Método Perigoso, ainda que, em se tratando de qualidade, Mapas Para as Estrelas esteja anos luz à frente dos últimos filmes do cineasta. O foco em apresentar um deboche inspirado na falsidade ideológica que Hollywood exala é pontual, mas o roteiro que tinha em mãos é bastante atabalhoado, sendo, em alguns momentos, salvo pela ótima direção de atores. Porém, sobra em excentricidade em alguns dos núcleos. O saldo final é positivo, especialmente pelo pastiche e pela referência à crueldade do método e da arte.

  • Crítica | Terceira Pessoa

    Crítica | Terceira Pessoa

    Terceira Pessoa 1

    Paul Haggis (Crash – No Limite) tem duas grandes qualidades como idealizador, sendo a primeira sua percepção humanística e descentralizada das interações cotidianas que transbordam em seus roteiros  ̶  mesmo nos mais populares como Cassino Royale, e principalmente nos mais intimistas como Menina de Ouro, Crash  ̶ , e a segunda qualidade é sua capacidade de agregar grandes nomes para o elenco de seus filmes.

    É fácil identificar-se com suas obras, mesmo aquelas mais densas como Vale das Sombras, pois em um mundo onde as pessoas pouco se relacionam, pouco sentem e pouco se tocam, sua escrita promove uma pequena torrente de reflexões e a quebra das “minicertezas” do dia a dia ao escancarar, de forma franca, a efemeridade da vida e a fragilidade das relações humanas. Por ter laços tão sutis, a dinâmica social torna-se um nó górdio no qual a dilaceração é destino mais provável, e que por ser assim, Haggis traz em suas obras um estranho senso de otimismo, aceitação e bondade.

    Premiado em três categorias no Oscar por Crash, Haggis também carrega o estigma de dirigir um dos vencedores mais controversos pela Academia de Ciências Cinematográficas. Estruturado sobre um roteiro que costura vidas e cenários a fim de montar um panorama social dos EUA e seus cidadãos, a direção, roteiro e montagem trabalham perfeitamente para criar um ambiente único e sujeito a variações caóticas diante da menor perturbação. Honesto, sucinto e humildemente relevante, é uma pérola do cinema. Esta digressão, porém, serve para contrapor Crash com seu novo longa, Terceira Pessoa, o qual não consegue ser a sombra do primeiro.

    Dotado novamente de um elenco competente e estrelado, de nomes como James Franco, Liam Neeson, Mila Kunis, Adrien Brody, e a desperdiçada Kim Basinger, Haggis tenta lidar com suas próprias dificuldades humanas ao elaborar uma teia de vidas, que têm em comum a dificuldade de lidar com a realidade e assumir-se como aquilo que realmente são. Um ladrão que se diz “homem de negócios”; uma mãe incapaz de lidar com suas falhas psicológicas; uma mulher perdida em relacionamentos autodestrutivos; um escritor notoriamente atormentado por seu passado e incomodado com o declínio de sua trajetória profissional, hoje tão opaca; e, por fim, o próprio filme que, apesar de ser intitulado “Terceira Pessoa”, não consegue perceber o egocentrismo inerente à toda sua estrutura.

    E assim, todas as qualidades que poderiam relacionar a película com a carreira de seu diretor dissolvem-se por conta da falta de carisma e relevância das histórias. Dessa forma, os erros ocorrem pela montagem defeituosa que em diversos momentos desnorteia o espectador ao invés de orientá-lo na transição entre os segmentos, pela direção burocrática, bem como pela tentativa frustrada de usar o histórico cinematográfico de Haggis e clichês narrativos dos filmes de histórias entrecruzadas, para incentivar o espectador a ter a boa vontade de supor sobre os destinos daqueles personagens para algo além do óbvio. Infelizmente, é apenas óbvio mesmo.

    Distante do impacto emocional que poderia causar, o que se tem aqui é um filme muito mais longo que o ideal, e que se torna ainda mais enfadonho ao deixar escapar já antes do encerramento do segundo ato que não há mais nada a dizer ali.

    Na tentativa de gerar alguma dinâmica mais atrativa, as resumidas tramas fecham-se em um anticlímax desatencioso e incapaz de decidir com quais decisões deve arcar. A trilha sonora tenta atuar como ferramenta para adicionar alguma sustância aos diálogos bobos e direcionar os sentimentos que deveriam ser suscitados pelo espectador, e desta forma torna-se quase onipresente, chegando a incomodar.

    Essa alienação dos elementos narrativos, uns pelos outros, faz com que vozes e clamores dos personagens ora tenham múltiplos representantes, ora não tenham nenhum. Talvez o diretor esteja em uma crise pessoal, talvez por isso a crueldade no trato com o amor romântico e o amor familiar, talvez por isso a incerteza tautológica. Mas, como para aquele que escreve, toda obra é autobiográfica, talvez assim Paul Haggis tenha conseguido expulsar seus demônios.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Enchente

    Crítica | Enchente

    capa dvd enchente

    Antes mesmo de iniciar o documentário, os cineastas Julio Pecly e Paulo Silva utilizam a tela dos créditos para exibir um pronunciamento oficial, ministrado por uma autoridade local da cidade do Rio de Janeiro, apelando para que o cidadão de bem não saísse às ruas a menos em caso estritamente necessário, já que, nos idos de 1996, a cidade se encontrava em estado de calamidade. O pedido não poderia ser aceito por quem morava na Cidade de Deus, já que suas casas foram invadidas pelas águas, cuja fatalidade levou, inclusive, a vida de alguns moradores.

    Através de imagens da televisão à época, o diretor tenta resgatar em imagens a dor e o desespero que seus vizinhos e família sofreram. Seguido a isso, mostram-se moradores do local naquele período, rostos que não conseguem esconder nem o alívio por estarem vivos, tampouco o amargor pelo infortúnio causado à comunidade.

    Sem infraestrutura, comida, com os comerciantes sofrendo saques, os moradores pereciam – outra vez – no abandono por parte da prefeitura e das autoridades cabíveis. De positivo, há muito pouco. O que resta é a curiosidade de conferir os relatos por parte dos sobreviventes, que, mesmo perdendo grande parte dos seus bens, comemora momentos do resgate, como afirma um morador local ao conseguir salvar ao menos seu aparelho televisor da enchente que tomou a sua casa, ainda que o nível da água estivesse já na altura do tórax.

    A maioria dos habitantes do local simplesmente jogava seus pertences fora, como em um rito desesperançoso de passagem, exibindo o fim de um ciclo para um começo do zero. O simples baixar das águas não faria os problemas simplesmente sumirem, tampouco traria de volta à vida aqueles que morreram. Todos tiveram marcas provindas da tempestade, mas apagar os sinais visíveis pela favela era o mínimo para que se começasse uma mudança.

    Outras enchentes ocorreram e tiveram grande exploração midiática nos anos 60, inclusive em tons dramáticos transmitidos pelos programas de reportagens da época. O pouco feito pelas autoridades é o mote da fita, que destaca a total ignorância do poder público, marginalizando os homens com menos dinheiro e recursos, pois eram esses que, na cidade do Rio, ficavam desabrigados e perdiam tudo.

    Mesmo entre os entrevistados, não há um consenso entre quem seria o principal culpado pelo acontecido, ou a razão maior. Desde destino até o desprezo das autoridades, todas as causas possíveis são levantadas, inclusive com registros do então prefeito Cesar Maia, mais uma vez reclamando que o governo federal e estadual não assumiam a responsabilidade junto com ele, tirando o atestado de autoria por aquele pecado de perto de si. Tudo isso dito pelo político que vê a cidade do alto, em um helicóptero, fazendo com que distância entre os dois mundo se mostrasse puramente visual.

    A mensagem que Pecly e Silva passam escolhe um lado, mas não ignora o outro. A voz dada aos que acham que a culpa era dos próprios moradores não ignora a parcela de responsabilidade dos governantes. Mesmo que diante da tragédia anunciada e da ação praticamente nula dos que foram eleitos pelo povo, e que assistiam passivamente à morte daqueles homens.

    A trilha instrumental, deixada ao final, traz um conjunto de cordas tocando Unforgiven do Metallica, para então revelar que, em 2010, outra enchente ocorreu, vitimando mais cinco pessoas na Cidade de Deus, e outras centenas no restante da cidade. Tudo fruto do imperdoável desprezo com o pobre, ainda muito comum na triste relação de chefes de Estado e população carente.

  • Crítica | Leviatã

    Crítica | Leviatã

    leviatã

    Leviatã. Rima com amanhã, exatamente sobre o que trata este filme. O futuro e a angústia das incertezas a partir da insegurança que o amanhã confere. Quanto a essas incertezas, o filme discorre suas razões de cabo a rabo, desde o que move a vida dos habitantes de lugar-nenhum no fim do mundo – o mundo deles no qual só os “nativos” parecem ter acesso e conhecimento de como sobreviver em bando por lá – até o ambiente, que, por mais lúdico e inspirador, chega a sofrer influência e alteração pelo homem pelo simples fato deste viver em determinados recantos da Terra, culminando em caráter de parasita, muitas e muitas vezes. A troca de influência entre o social e a ambiência é a coluna dorsal de um atestado felino das relações humanas – astuto e expressivo, ainda que discreto, diga-se de passagem. É como se o magnífico turco Era Uma Vez na Anatólia fosse (re)filmado na ótica implacável e cética do francês Michael Haneke, e nem é preciso medir as palavras para atestar tal delírio alternativo.

    Bobagens (e uma atmosfera semi-emergencial que remete muito a Onde os Fracos Não Têm Vez) à parte, Leviatã adere à eterna moda soviética de ser realista a ponto da realidade ser surreal, e precisar ser ficção na tela de Cinema, exigindo do público uma fuga na ilusão para esquecer que o real pode ser tão mundano e frio, com certeza. Os cineastas Sergei M. Eisenstein e Vsevolod Pudovkin já faziam isso há quase um século, em Potemkin e A Mãe. Essa total apropriação da realidade pelas mãos da ficção, e todo o resto, pode ser percebido nos primeiros 15 minutos de Leviatã, contadinhos. Filmes de respeito são assim mesmo.

    O filme é um relato de um presente regido por suas pontas, um momento atual resultado e estopim do que já foi e do que será, uma não-oficial adaptação literal ao cinema, com veias de forte e imponente literatura russa, da melhor qualidade, a tanger aspectos de reinações da história, triste e contemplativa, moderna e histórica no mesmo nível, e ao mesmo tempo. O filme é uma enorme metáfora indireta só aos cegos que não querem ver, para com algo maior ainda: a Rússia e suas fundações refletidas no comportamento da civilização. Leviatã é um filme universal e com situações universais que, por acaso e entre aspas, calha de ser russo. Sabe as famílias despejadas no Rio de Janeiro, movidas para não enfeiarem os arredores da Copa de 2014? Aqui, essas famílias falam russo, os políticos têm cara e religião hipócrita, e as resoluções para os abusos e pressões de autoridades são expostas sem medo – essa história poderia estar em qualquer jornal do Brasil se manchetes não vendessem devaneios.

    Do suspiro “Toda minha vida está aqui” se resume a sensação de uma família de advogado reunida ao redor de uma mesa, o olhar geral num quadro pagão, com seu habitat estampado entre a moldura e prestes a ser corrompido num país gigante em que a pequenez se faz na ação jurídica de quem comanda suas tangentes. O cineasta Andrey Zvyagintsev vai fundo sabendo onde termina o abissal e começa o inferno, e desbrava tradições de um povo e de uma classe (baixa, claro) ignorando limites sensoriais – cada rosto no filme é uma bomba a explodir num barril de pólvora cercado por rochas milenares e um mar de lágrimas, lágrimas daqueles que o olham sem saber se almejam nadar para longe ou limpar com suas ondas o que infesta a pátria das pessoas que só querem viver em paz. De pequenos grandes momentos nos quais o silêncio grita tanto quanto as discussões, Leviatã admite que não há futuro respeitável sem respeitar o histórico do que poderia consagrar o estado atual das coisas. Sim, é uma obra de hipóteses. Alice no País das Maravilhas no mundo real – é impossível saber qual cabeça será cortada antes do fim, talvez todas. Destaque para a atuação coletiva, gloriosa.

    Com uma míngua de esperanças, a família se reforça para cantar ao político que rouba seu sono o refrão de Apesar de Você, de Chico Buarque, através de atos e relatos contra o abuso político e a favor da boa e velha resistência existencial da parte de baixo da pirâmide, sempre e ainda sofrida. E assim como os personagens que são maiores que seus dilemas e ensejos de sobrevivência, o filme se expande além de suas personas, locais e iluminação, à luz de um prisma enorme de interpretação ao gosto do público, cortesia do cineasta Andrey. Mesmo com a falta de uma alegoria épica aos moldes de cineastas como Ceylan ou Lav Diaz, e com algo mais prático ao estilo de Abbas Kiarostami e do próprio Andrey, Leviatã, onde nada é gratuito e toda ação e reação tem seu pesar, se consagra como narrativa mais que sólida, exemplar, e ainda nos oferece a obrigação, enquanto público, de prover conclusões ao filme. Uma obra complexa, mas com uma história bem aberta, de propósito, dada a revisões se não for pedir muito. Nós somos o ponto final nesse espelho interativo ao lado de cá da tela, onde, lá e cá, a corrupção política é natural e inerente ao espírito humano (pelo menos enquanto a ficção não prova o contrário). Daí o esforço pelo amanhã, num mundo dividido entre o natural e o mecânico.

  • Crítica | O Universo Graciliano

    Crítica | O Universo Graciliano

    Universo Graciliano 1

    Intentando resgatar a memória de um notável brasileiro, Sylvio Back se aventura pela trajetória panorâmica do autor Graciliano Ramos, elevando a carreira e visão de mundo do alagoano ao patamar cósmico, ao apresentar seu O Universo Graciliano, de Sylvio Back. Não à toa, o primeiro personagem flagrado em cena é Oscar Niemeyer, cujos desígnios políticos eram muito semelhantes aos ideais sociais do escritor, transmitindo a mensagem antes mesmo do preâmbulo.

    A câmera invade a intimidade dos que depõem, com closes fechadíssimos, expondo pele e rugas -, defeitos que tornam cada um dos participantes ainda mais humano. Com a trêmula câmera, comum ao movimento de quem registra, sem modificação estética, a obra faz do ofício um paralelo com a carreira e o texto de Ramos, o que já havia sido realizado anteriormente por Nelson Pereira dos Santos em seus Vidas Secas e Memórias do Cárcere.

    Em cada palavra da parte dos convidados, nota-se o destaque que Graciliano dava ao socialismo e à crença de que a revolução soviética seria a resposta para todos os males sociais, algo representado em suas obras pelo árido deserto nordestino, onde as condições paupérrimas impediam que qualquer coisa se proliferasse. Como principal motivador desse decréscimo de vida, a condição de supervalorização do capital. Voraz leitor e estudante das condições econômicas, Graciliano batizou de Lênin um de seus filhos, homenageando o homem que, segundo seu pensamento, conseguiu se aproximar mais do pragmatismo recorrente de Karl Marx.

    A verve política de Ramos é bastante focada, especialmente em seu ingresso no PCB (Partido Comunista Brasileiro) junto a outros tantos ilustres, como Jorge Amado, Cândido Portinari, Niemeyer, além de outros autores, intelectuais e proletários. Sua participação aconteceu desde a inspiração a Luis Carlos Prestes até o fomento à entrada de escritores mais moços para que adentrassem as fileiras do grêmio político. As diretrizes eram levadas a sério, ipsis literis na maioria das vezes, seguidas como em uma seita onde nada se destaca. Em determinado ponto, o documentário de Back envolve tanto a figura de Graciliano quanto os efeitos do socialismo sobre toda uma geração de pensadores brasileiros, com ele incluso, claro.

    A edição de Mariana Fumo e a fotografia de Erick Mammoccio ajudam a  transcender os formatos comuns ao gênero documental, mesmo levando-se em conta os novos modos de registrar os fundamentos biográficos. A linguagem enquadra uma visão fidedigna, resgatando dos entrevistados detalhes privados do personagem, humanizando-o de um modo pragmático, mas bem distante da literatura propagandista e panfletária. Revela-se uma persona repleta de nuances, com uma multiplicidade de pensamento aberto, e a quebra de rigidez típica de quem pensava o comunismo dentro do partido, sendo uma voz dissonante que visava analisar a estrutura do Brasil, adaptando o modo de governo aos anseios e necessidades do povo.

    O sertão era o cenário das histórias de Graciliano por exibir uma dura realidade, pessimista em essência, por conter na região o resumo das necessidades básicas do brasileiro às quais eram relegadas pela disparidade social, que na prática resultava em fome, desnutrição e miséria. Apesar da questão tender a ser ignorada por teóricos, graças à quantidade exorbitante de burocracia que tomou grande parte da esquerda, tais anseios se associam naturalmente ao pensamento básico socialista. A escolha de Back em retratar esta faceta de Graciliano Ramos não só humaniza a figura mítica como também mostra o engajamento e alma do artista e do homem por trás da grandíssima obra.

  • Crítica | O Mensageiro

    Crítica | O Mensageiro

    O Mensageiro 1

    Em sua estreia dirigindo longas-metragens para o cinema, Michael Cuesta destaca o discurso público dos políticos iniciado pelo conservador presidente Ronald Reagan, falando da profunda luta e perseguição ao comércio de drogas no território estadunidense. Após os créditos iniciais estilizados, a câmera passa a acompanhar o drama biográfico do repórter, infiltrado em um esquema de tráfico de drogas, Gary Webb (Jeremy Renner), que é logo cooptado em uma operação policial.

    Após o susto, a trama acompanha o meticuloso trabalho de Webb, averiguando fontes e correndo atrás de notícias que municiassem sua investigação. A obra ora alterna cenas de seu cotidiano familiar, em casa, relembrando sua condição de normal humanidade, ora o ambiente de trabalho, em uma redação nada glamourosa na época modorrenta dos anos 1990, quando se passa a história. O modus operandi do jornalista é igualmente monótono, repleto de noites em claro, representando a classe comunicóloga, assim como O Espião Que Sabia Demais o fez em relação ao serviço de inteligência e investigação das grandes nações.

    A construção da figura heroica de Webb é feita ao modo do cinema hollywoodiano: tentando diferenciá-la dos muitos personagens amorais que cedem a pressões psicológicas e às tentações sexual e monetárias comuns em biografias. Seu personagem é fiel em ideais, exibindo tão somente uma atuação quando é jornalista gonzo nas matérias em que se dedica. Sua posição é o meio-termo entre o anti-herói americano e o clássico paladino, que tem de se ver “corrupto” somente quando necessário, mas que, mesmo ao mergulhar no mundo inimigo, consegue manter-se são e distante daquele padrão de conduta, num fino equilíbrio do roteiro de Peter Landesman. Como um texto de denúncia, apresenta-se um personagem apolíneo sem soar falso ou chapa branca.

    A trajetória do biografado tem dois momentos distintos, e, como em uma peça do teatro grego, tem seu apogeu e uma queda bem distinta. O movimento começa lentamente após a segunda metade das quase duas horas de duração do filme, apesar de já dar indícios do que ocorreria ao longo de todo o filme, especialmente de seu início. Após lançar com sucesso seu livro, Webb passa a ter de dar “satisfações” às autoridades que acusou através de seus relatos, fundamentados, claro, em fatos investigados por fontes plausíveis. A odisseia pela qual o personagem passa faz com que ele se envolva mais na história, a ponto de se deparar com grandes mandatários do narcotráfico ao receber uma inesperada visita no território de John Cullen (Ray Liotta), tendo a própria vida e as dos seus em perigo.

    Praticamente não há nenhuma cobertura por parte de sua editora Anna Simons – de uma surpreendentemente performance madura de Mary Elizabeth Winstead –, tampouco do resto de seus superiores. A batalha passa a ser do exército de um homem só, que tenta provar a própria inocência, zelando por seu nome e pela segurança de seu seio familiar. Por jamais ter cedido aos apelos dionisíacos que se apresentavam a ele, a situação agrava-se.

    A superação das questões que se puseram à frente do personagem central tem um fim inesperado, com a opinião pública tomando rumos tão controversos quanto o desfecho de todo o momento dificultoso. Seus relatórios serviram muito à investigação do tráfico de drogas nos Estados Unidos, e toda a construção de persona non grata tem finalmente sua justiça, visto que ele para de trabalhar com sua paixão, levando-o a um fim trágico, sabiamente não mostrado pelas lentes de Cuesta. O Mensageiro tem em seu nome original – Kill The Messenger – uma sucinta mensagem, exibindo um conto enxuto, equilibrado e muito necessário a uma figura que foi controversa e calada – apesar da tão louvada primeira emenda.

  • Crítica | Hook: A Volta do Capitão Gancho

    Crítica | Hook: A Volta do Capitão Gancho

    Hook - Blu Ray

    Hook: A Volta do Capitão Gancho é um daqueles filmes que ficam na memória de qualquer criança que hoje está na casa dos 30 anos. Lançado em 1991, com jeito de super produção e com um elenco estelar, o longa teve muitos problemas, demorando, praticamente, 10 anos para sair do papel, além de trocas de estúdio, abandono (e posterior retorno) do diretor Steven Spielberg e demissão de roteiristas..

    À época, Spielberg já tinha em seu currículo clássicos dos estilos mais variados como Tubarão, Contatos Imediatos de Terceiro Grau, Os Caçadores da Arca Perdida, E.T. – O Extraterrestre, A Cor Púrpura e O Império do Sol, portanto, expectativa suficiente para fazer de Hook um grande sucesso. O que se viu, então, foi um sucesso de bilheterias, mas um desastre de críticas.

    Baseada na obra e na peça escrita por J.M. Barrie, a história é centrada no pai de família Peter Banning (Robin Williams), um advogado de sucesso que não tem tempo para a família, já cansada de seus atrasos e de suas falsas promessas. Durante uma visita à casa de sua sogra, Wendy (Maggie Smith), os filhos de Peter acabam sendo sequestrados pelo Capitão Gancho (vivido brilhantemente por Dustin Hoffman). Assim, a fada Sininho (Julia Roberts) também sequestra Peter e o leva de volta à Terra do Nunca. O problema é que Peter não lembra absolutamente nada a respeito de sua época na Terra do Nunca, nem da própria Sininho, muito menos dos Garotos Perdidos, que ficam divididos naqueles que acreditam ou não que aquele Peter é, seu líder, Pan. Porém, Peter tem apenas três dias para se lembrar e se preparar para um duelo contra o Capitão Gancho e que decidirá o futuro de seus filhos.

    A premissa já foi (e ainda vem sendo) desgastada por Hollywood, e a performance do grande elenco é o que mais deixa a desejar. Julia Roberts concorreu ao Framboesa de Ouro; Robin Williams deu início à saga de papéis iguais que o tornaram famoso. Além do mais, hoje, chega a ser constrangedor vê-lo adulto, levemente fora de forma vestindo a roupa de Peter Pan. Tais fatos acabaram por deixar Dustin Hoffman sobrecarregado, mas sem perder o brilho, juntamente com seu aliado pirata, Smee (Bob Hoskins) e um ou outro Garoto Perdido que se sobressai em relação aos demais.

    Analisando friamente a fita, chega-se à conclusão que o destaque fica para a direção de arte, que construiu uma Terra do Nunca bastante lúdica, além de um navio pirata sensacional, e os figurinos dos personagens (principalmente o do Capitão Gancho), que são impecáveis. Mas em que se pesem os aspectos negativos, podemos perceber que Hook: A Volta do Capitão Gancho é um filme feito pra entreter, e ele cumpre bem o seu papel. Pelo menos, o projeto seguinte de Steven Spielberg foi Jurassic Park.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Dois Lados do Amor

    Crítica | Dois Lados do Amor

    Dois Lados do Amor 2

    O começo do novo filme de Ned Benson começa debochado, em uma conversa descompromissada e humorística entre Conor e Eleanor, um casal apaixonado que se divertiria pregando peças em restaurantes, retirando-se às pressas para não pagar as contas. Um dia, tal espontaneidade teria seu preço, maior do que o simples viver dos sentimentos, e o casal enamorado já não seria mas tão unido, causa justificada por nenhum motivo específico; somente as vicissitudes da vida foram responsáveis pelo gradativo afastamento.

    A narrativa do diretor autoral passaria por mostrar eventos em atos, como em uma peça teatral. O primeiro, após a breve introdução, exibe Eleanor Rigby, caracterizada emocionalmente por uma cada vez melhor Jessica Chastain, que em um momento rotineiro prende a sua bicicleta a uma grade e se joga ao mar, impedida de morrer por um transeunte anônimo, fruto da entropia que se torna menos estranha pela completa ausência de explicações anteriores. A aura de aleatoriedade permeia a existência da personagem e faz com que qualquer diagnóstico torne-se confuso.

    Conor Ludlow, o homem, sente-se mal e responsável por todo o drama que chega a sua casa. James McAvoy é o perfeito sujeito tomado pela responsabilidade do “delito”, digerindo o remorso pelos atos de sua esposa que são piorados, é claro, pela subjetividade inerente ao término da relação e o consequente apartamento das partes, reforçado por um pedido de Eleanor para que a distância permanecesse intacta entre ambos.

    A métrica usada por Benson compreende uma linha temporal dionisíaca, que mostra cada momento específico da relação de acordo com o que o realizador julgar melhor. O fino equilíbrio não é quebrado, e a composição estratégica valoriza o romance perfeito do passado e a amargura de ambos após o fim da relação amorosa, que apesar dos pesares, não perdeu força, tampouco significou a interrupção do sentimento e da atração mútua.

    O lugar que o casal administra é um restaurante, curiosamente o símbolo que demanda amor, lugar onde muitas relações começaram ou simplesmente passaram, mostrando que a intimidade dos personagens é repleta de momentos de exploração da afeição típica de consortes enamorados. Mesmo assim, a sorte dos dois não fez prever o atropelamento que sofreriam, literal ou figurado. Curiosamente, após o rompimento, o estabelecimento é gerenciado somente pelo homem, o que coincide com a vontade de tornar o negócio em um empreendimento unilateral. Ao menos em um nível liminar de pensamento, que somente se manifesta em Conor.

    Após algumas incursões ao consultório psicanalítico da Professora Friedman (Viola Davis), Eleanor enfim percebe que não conseguirá mudar ou evoluir permanecendo no mesmo lugar. A moça tenciona sair da cidade, mas é fortemente aconselhada a não agir tão drasticamente, sugestão dada por sua analista e por todo o corpo de apoio formado pelo belo elenco de coadjuvantes, que conta ainda com Bill Hader em um papel diferente das comédias habituais – emulando o drama já visto em Skeleton Twins – e uma comedida Isabelle Huppert, que faz a matriarca Rigby, prenunciando alguns dos defeitos de introspecção de sua herdeira.

    Quando a melancolia torna-se o norte dos indivíduos em separado é que a real necessidade de estarem juntos aparecem, quando não se pode mais ver qualquer traço de identidade sem enxergar-se duplamente, sendo uno somente quando estão unidos. A maturidade passa por conhecer o momento de parar e tomar rumos opostos. Nesse ponto, a mensagem que Ned Benson produz é muito clara, e curiosamente não é dúbia na questão mais importante da inevitabilidade do des-romance.

  • Crítica | O Sétimo Filho

    Crítica | O Sétimo Filho

    Setimo Filho 1

    Após um começo de carreira intimamente empenhado em retratar batalhas épicas, como as dos elogiados da década passada Nômade e O Guerreiro Gengis Khan, o diretor russo Sergei Bodrov foi escalado para encabeçar o blockbuster de capa e espada O Sétimo Filho, uma aventura epopeica fantástica que conta a trajetória lendária de Bem Barnes (Tom Ward), um rapaz cuja profecia garantia poderes incríveis e possível soberania sob um mundo completamente destroçado por trevas e desesperança.

    O que se vê já nas primeiras cenas é um arremedo de referências a contos “medievais” diversos, com inspirações visuais e grandes semelhanças com a última trilogia que Peter Jackson capitaneou, além de conter o mesmo espírito aventureiro das adaptações de livros da saga Eragon, incluindo a desfaçatez de roteiro, em comum principalmente os defeitos de concepção de personagens.

    As duas figuras centrais do elenco são as personagens de Jeff Bridges, Master Gregory, um aposentado e deprimido guerreiro, único remanescente vivo de uma ordem de honrados cavalheiros, já extinta; e Mother Malkin, personagem que quase custou o Oscar a Juliane Moore, compondo uma caricata vilã que se vale de um sex appeal que jamais condiz com as feições repletas de maquiagem exagerada da maniqueísta figura, a rainha das trevas daquele mundo. Malkin e Gregory enfrentam um embate ainda no início do filme, exibindo uma relação emotiva das mais artificiais possíveis, tão tosca quanto o esdrúxulo figurino dos intérpretes.

    Mesmo com o exagero gráfico dos efeitos especiais e com as risadas maléficas que lembram vilões de desenhos animados da Filmation, não há como esconder a pobreza dos diálogos e do argumento primário. Baseado “livremente” nos livros da série O Aprendiz de Joseph Delaney, o roteiro de Charles Leavitt, Steven Knight e Matt Greenberg tropeça em si mesmo, apresentando um conjunto de pessoas tão mal construído que faz lembrar todo o espectro genérico das aventuras de He-Man, She-Ra e das adaptações em live action de Dungeons & Dragons, piorando a disposição das cenas pela postura de absoluta seriedade da película, que consegue ser digna de deboche desde o começo da exibição.

    Após fracassar algumas vezes em procurar o sétimo filho de um sétimo filho, Gregory finalmente se depara com Barnes, mas percebe ter se equivocado ao confiar no poder de luta de um rapaz que jamais tinha visto guerrear. O mocinho se envolve com uma menina de feições belas e com características semelhantes às das princesas Disney mais afeitas a ação, compondo, então, mais um par romântico típico das aventuras épicas.

    Os momentos de reclusão de pupilo e mentor nas montanhas verdejantes até guardam boas cenas de ação, talvez o único ponto realmente positivo do filme de Bodrov, quando o equilíbrio consegue ser estabelecido. Ainda assim, falta inspiração tanto na caracterização dos virtuosos quanto nas atuações, sendo a maioria sem convencimento algum ou completamente patética. Os veteranos Moore e Bridges, no auge da afetação que negaram em todos os papéis que já fizeram, personificam os papéis mais dignos de reprovação da filmografia de ambos, certamente.

    O que deveria ser poético apresenta-se pífio. Os momentos de exaltação soam ridículos e fazem rir. O Sétimo Filho talvez consiga enganar alguns (poucos) ardorosos maníacos por aventuras fantásticas, mas, para o espectador minimamente exigente, o resultado é um filme enfadonho, difícil de digerir. Tudo graças aos inúmeros defeitos encontrados na execução do roteiro, piorados pela expectativa da filmografia de seu diretor.

  • Crítica | Em Busca de Iara

    Crítica | Em Busca de Iara

    Em Busca de Iara 1

    Todo o mistério a respeito da morte da psicóloga e ativista Iara Iavelberg é analisado no documentário de Flavio Frederico. Iniciando os relatos com uma reportagem de televisão, que acompanha a tentativa da família de exumar o corpo da moça, conclui-se que o falecimento de Iara não foi por suicídio, como as autoridades anunciaram. A tentativa foi fracassada, e a partir da narração da codiretora  – e sobrinha de Iara, que teve o sobrenome mudado para não atentar aos olhos do Regime Militar – Mariana Pamplona, claramente obcecada pela história de sua familiar, a obra explora a tradição religiosa judaica da família, mostrando como a biografada começou a se interessar pelo discurso libertário.

    Unida a outros jovens, Iara começa a viver na VPR – Vanguarda Popular Revolucionária, composta por estudantes, trabalhadores e militares. Iara também integraria o Polop (Organização Revolucionária Marxista Política Operária), e depois o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), todas organizações de extrema esquerda que tinham em comum a luta contra a ditadura. A sensação de pressa acometia Iara e todos os outros integrantes destes grupos, movidos pela possibilidade de não ter um futuro garantido, uma vez que os militares estavam no auge de suas ações de poder.

    Os depoentes relembram o quão diferente tornou-se a repressão após o AI-5, recrudescendo e torturando de modo muito mais intenso e emocional, fazendo do decreto um divisor de águas na vida política e comum do Brasil, afetando diretamente os militantes. Iara transitava nesses meios e convivia com guerrilheiros na clandestinidade, usando o nome de Mariana para desviar a atenção de possíveis perseguidores, uma vez que era comum a polícia ficar de tocaia.

    Em determinado ponto, a obra se dissipa em dois caminhos servindo como uma boa análise da biografia de Carlos Lamarca, desertor do exército brasileiro que ajudou a treinar um grande número de guerrilheiros. A câmera mostra um flagrante curioso, de que os “subversivos” militantes eram vistos como agentes do caos e um perigo para o status da família normativa, enquanto Lamarca era considerado um pária, um traidor das forças armadas que se debandou para o time inimigo.

    Os detalhes da execução de Iara são explorados ao máximo, especialmente no depoimento do amigo e também militante Cesar Benjamin, que foi um dos primeiros a ver o corpo da moça, executada e com um corte que ia do queixo até a cintura, centralizado entre os seios. Além dessa imagem demonstrar um sinal de profundo desrespeito com o preso, ainda demovia a ideia de suicídio, sendo somente este um dos gritantes sinais de que a versão oficial da morte de Iara por suicídio era, na verdade, uma farsa.

    A conclusão do filme não poderia ser mais simbólica: a segunda cerimônia de sepultamento de Iara, ministrada pelo religioso Henry Sobel, no ano de 2006, encerrando a memória da guerrilheira de modo emocional, seguindo a tônica presente em todo o filme. Em Busca de Iara consegue reunir depoimentos para montar um panorama de proporções pequenas, mas que não exclui argumentos contrários. O ponto alto da obra está em seu formato, bastante pessoal e carregado de emoção, fazendo da moça que buscam um personagem tão vivo quanto qualquer um dos que estão na produção ou na plateia do filme.

  • Crítica | Happy, Happy

    Crítica | Happy, Happy

    Happy Happy 1

    A tradução em português para Sykt Lykkelig, filme de Anne Sewitsky, é insanamente feliz. Isso é passado ao público através da atitude da personagem central Kaja, vivida por Agnes Kittelsen. O estágio de absoluta paz de espírito preconizada por um número musical, apresentado antes mesmo dos personagens, remete à negação clara da miséria existencial da protagonista. O tédio causado pela solidão impingida a Kaja por ela mesma a faz viver expectativas muito altas para as visitas que se aproximam da gélida paisagem onde sua casa fica.

    Dois vizinhos se mudam para a casa ao lado, Sigve (Henrik Rafaelsen) e Elisabeth (Maibritt Saerens), e ambos tocam automaticamente a expectativa de Kaja como o perfeito casal, arquétipo do ideal que buscava para si e para o já distante marido Joaikim (Joachim Rafaelsen). A falta de interação e principalmente a castidade imposta pelo homem fazem com que o mantra de combate à própria depressão seja cada vez mais frequente para a personagem central, fazendo de episódios corriqueiros, como um jantar entre vizinhos, eventos entrópicos e cheios de situações. Uma breve análise no cotidiano familiar, repleto de desprezo, dá a tônica do porquê a mulher sente-se tão lisonjeada quando outro a trata minimamente bem.

    Happy Happy trata de carências e da inevitabilidade do espírito humano em encontrar eco para as suas situações sentimentais e medos que habitam sua alma, demonstrando que a falta de reciprocidade pode ser esmagadora para a moral de qualquer espécime. A falta de alento ou de esperança em viver uma relação saudável acaba se mostrando verdade também na interação do casal recém-chegado, o que abre portas para as indiscrições anunciadas no segundo terço da fita, claras desde a premissa do filme, insistindo em transformar em tragicomédia a intimidade conjugal mal resolvida.

    O formato, com insights do grupo na capela pontuando as sensações dos protagonistas, fornece um fôlego de ineditismo à película, além de destacar a ambiguidade do anseio de Kaja, que nutre cada vez mais a volúpia em se despir de suas roupas, algo que, mesmo em análises pouco profundas, remete à vontade de ser outrem, fazendo-a esquecer os problemas que esmagam sua autoestima e vivendo uma realidade paralela a sua enfadonha rotina.

    A capacidade de desprezar os supostos entes queridos não salvaguarda os detratores de seus próprios sentimentos, especialmente quando sua moral é abalada pelas indiscrições de seus parceiros. A música começa a pontuar o conjunto de sensações dos que são os “novos” ignorados, dos que um dia fizeram sofrer e que, no presente, passam a amargar o desdém dos que juraram amar. Quando a verdade se revela, toda a configuração inicial se modifica, produzindo momentos de ásperas reuniões, nas quais a confusão emocional reina, propiciando momentos de completa ignorância no mundo dos adultos, o que se reflete nas sérias brincadeiras protagonizadas pelos filhos dos casais, numa história paralela que perde todo seu impacto ao se revelarem seus detalhes.

    A simplicidade do roteiro que Sewitsky conduz apresenta uma narrativa simples e criativa, que toca a alma dos personagens e espectadores igualmente. Ao fazer valer a verve e necessidade humana de tornar o homem comprazido, pleno em espírito e alma, a obra consegue atingir assuntos espinhosos dizendo tão pouco, de forma completamente apolínea apesar dos assuntos aviltantes. A melhor qualidade de Happy, Happy certamente é a delicadeza em sua condução, fazendo com que a verdade se contradiga: justificando o nome original, que remete à felicidade insana, apesar de todas as agruras inerentes a vida, o causo é produzido a partir da estranha normalidade da hipocrisia moderna.

  • Crítica | Trinta

    Crítica | Trinta

    Trinta

    Uma das maiores festas populares no Brasil, o Carnaval se consagrou como um típico produto de nossa cultura, representado em diversas manifestações pelo país. Símbolo de nossa nação, as festividades, principalmente os desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro, são um atrativo para turistas de várias partes do globo, que vêm assistir a esse espetáculo visual e musical. A representação histórica e cultural do carnaval afeta até os não-carnavalescos que reconhecem sambas-enredo populares, como Chiquinha Gonzaga e seu “abre alas”, ou recordam-se de nomes das escolas mais consagradas, uma parte de nossa cultura inegável.

    Aos apreciadores que ainda têm paciência para assistir, noite adentro, às transmissões de cada escola – ou aqueles que se dedicam à tarefa de ver in loco as apresentações – sabem que cada desfile é trabalhado com cuidado, em cada ato de sua composição, na tentativa coerente de unir música, imagem e teatralidade. Durante a evolução dos carnavais, a tecnologia adentrou a passarela, e consequentemente um investimento cada vez mais alto foi necessário para as realizações dessas apresentações repletas de cores e adereços.

    O carnaval como objeto de uma cultura também passou por transformações e aprimoramentos. Nas visões de profissionais que visavam o lado mais belo dessa celebração; personagens que dedicaram uma vida à passarela e foram capazes de marcá-la pela inovação.

    A produção Trinta biografa a vida de um dos carnavalescos mais conhecidos pelo público. Joãozinho Trinta se tornou um dos grandes inovadores do carnaval, com uma capacidade criativa de misturar culturas diversas na passarela e promover rupturas nos contornos tradicionais da época. O roteiro de Joana Mariani, Matias Mariani e Paulo Machline é bem amarrado e concentra-se em dois períodos temporais que apresentam a trajetória de João, um recorte bem delineado que evita os excessos de biografias que abarcam a vida toda da personagem central.

    Como parece tradicional em roteiros baseados em vidas reais, uma cena chave abre a história em um momento de transição na vida de Trinta, quando aceitou ser o carnavalesco da Salgueiro. Porém, diferentemente de outras biografias que apresentam apenas uma cena e retornam a um início cronológico, há um ato breve que antecipa as tensões que promoveram o artista ao cargo citado. E, assim, a trama retorna à década de sessenta, quando João vai ao Rio de Janeiro tentar a carreira de bailarino. Mesmo selecionado para o Corpo de Baile do Teatro Municipal, o dançarino de pouco mais de um metro e cinquenta sentia-se inferiorizado por não ser a estrela dos espetáculos. A ausência de destaque é o primeiro passo para adentrar os bastidores e, ao lado do cenógrafo Fernando Pamplona, iniciar uma carreira na cenografia e nos figurinos, onde poderia brilhar de outra maneira.

    O teatro deu a experiência base para Trinta, um fracasso que o levou ao carnaval, em 1973, escolhido para produzir o desfile da Salgueiro. Selecionar seu primeiro desfile como desenvolvimento narrativo é suficiente para apresentar a personalidade do biografado e, ao mesmo tempo, retratar as tensões de produzir um evento de grande porte. Em cena, Matheus Nachtergaele retrata a delicadeza natural e a fúria perfeccionista deste homem desacreditado por boa parte da comunidade local, vivendo na pele o preconceito por ter sido bailarino, mas ciente de sua própria capacidade inovadora. O personagem João revela-se um homem erudito, que não via a festividade do carnaval somente como uma manifestação popular: comparava-o a ópera, produzia acessórios com profunda pesquisa de outras épocas e temas, criando figurinos, adereços e afins que apresentavam facetas múltiplas pelo jogo intertextual. No desfile escolhido para este filme, Trinta retomava as histórias orais afrobrasileiras em meio a um universo da corte francesa. Uma mistura que se tornou inovadora na época e, em futuros anos, foi superada pelo próprio autor em outros famosos desfiles, tanto pela Salgueiro quanto pela Beija-Flor.

    A tensão de realizar um bom carnaval excede a figura do biografado e, mesmo sutilmente, demonstra que por trás da beleza há sistemas duvidosos que sustentam financeiramente o carnaval quanto um grupo dedicado em produzir arduamente um espetáculo, que será apresentado em um breve espaço de tempo. Uma concisão também presente neste filme, que seleciona um excelente recorte da vida da personagem, no espaço de transição entre João, um bailarino frustrado e aderecista, para o carnavalesco Joãosinho Trinta. Uma obra que narra uma boa história e demonstra a popularidade do carnaval.

  • Crítica | Dois Lados do Amor

    Crítica | Dois Lados do Amor

    Dois Lados do Amor - Poster Brasileiro

    A primeira referência que salta aos olhos do público retoma uma canção dos Beatles, composta por Paul McCartney, presente no álbum Revolver, de 1966. Eleanor Rigby é uma majestosa canção sobre a solidão, composta como uma crônica cotidiana poética e com um belo arranjo orquestral. Uma música que ecoa nesta produção, terceira parte de um projeto idealizado pelo roteirista e diretor Ned Benson.

    Buscando uma alternativa de inovação nas narrativas românticas no cinema, o diretor compôs uma trilogia sentimental sobre uma mesma história com ponto de vistas alternados. As duas primeiras produções lançadas em 2013 contavam o ponto de vista masculino e feminino separadamente. Narrativas que foram lançadas no exterior, mas ainda não chegaram ao país. Os Dois Lados do Amor é a união destas duas histórias anteriores, em uma nova edição que suprime partes dos filmes anteriores, produzindo uma nova cronologia em que conhecemos as duas personalidades da relação.

    O título original, The Disappearance of Eleanor Rigby, remete não só à canção dos Beatles como naturalmente infere a temática da solidão. A cena de abertura com o casal em harmonia é apenas um contraponto à separação de Conor e Eleanor após um acontecimento traumático, que será analisado no decorrer da história.

    Ainda que a personagem feminina tenha uma breve fuga, o desaparecimento é apenas uma metáfora simbólica que representa o transitivo. Neste aspecto, o amor do casal representava um momento anterior que, por escolha ou não, chegou ao fim. As personagens estão recomeçando a vida de maneira primária, reaprendendo como viver sem a presença do ex-amado, retornando a casa dos pais e observando que a percepção do que era concreto – o “para sempre” do amor – agora é parte do passado.

    O roteiro retém a motivação para a separação do casal enquanto demonstra a inadequação de ambos na nova vida. Eleanor tenta retomar a vida de solteira tentando voltar aos estudos; enquanto Conor, que mantém um restaurante estável, parece incapaz de viver sem a companheira e passa a persegui-la à procura de satisfações.

    A trama se constrói entre os espaços do fim e das circunstâncias que levaram a perda de laços dos protagonistas. O amor interrompido ganha maior composição trágica ao descobrimos que a perda de um filho parece o fator primário para o afastamento do casal. Infelizmente, não há aprofundamento que revele os motivos da morte da criança, e muito menos o drama que produziu no amor um sentimento repulsivo que impediria o casal de manter sua relação. Ao mesmo tempo, tais lacunas parecem intencionais para que a história adquira um caráter maior, simbolizando a dificuldade de uma relação a partir de um acontecimento inesperado por si só, sem a necessidade de que os pormenores dramáticos sejam revelados ao público.

    A medida da sensibilidade é um risco razoável para o roteirista e diretor, que depende de maior entrega do espectador para que este leia as entrelinhas inferidas pela obra. James McAvoy e Jessica Chastain demonstram competência ao interpretarem o casal recém separado, ao mesmo tempo que manifestam a ternura ainda existente. É uma obra bonita e reflexiva que mesmo perdendo a composição mais autoral ou audaciosa, apresentando somente um lado da relação como nas histórias anteriores, narra uma relação madura que não envereda nem para o lado excessivamente cômico, nem ao dramático.  Dessa forma, edifica-se a sensação de uma realidade assistida e comum a tantos casais cujo amor já não é residência constante.

  • Crítica | João e Maria: Caçadores de Bruxas

    Crítica | João e Maria: Caçadores de Bruxas

    João e Maria 1

    Na última década, o cinema tem explorado muito os contos escritos pelos Irmãos Grimm, responsáveis por Branca de Neve, Cinderela, João e Maria, Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel e A Bela Adormecida, todos estes conhecidos por todo o planeta por conta das adaptações infantis de grande sucesso feitas pela Disney. Com o sucesso da Saga Crepúsculo e se aproveitando do fato de que todos os contos citados estão em domínio público, Hollywood resolveu reaproveitar o vasto material, trazendo um conceito um pouco diferente, mostrando ao espectador uma abordagem mais adulta, gótica e com teores de suspense.

    Assim como A Garota da Capa Vermelha (que adapta Chapeuzinho Vermelho), Alice (que adapta Alice No País das Maravilhas), Branca de Neve e o Caçador (que adapta Branca de Neve), Jack: O Caçador de Gigantes (que adapta João e o Pé de Feijão) e Malévola (que adapta A Bela Adormecida), João e Maria: Caçadores de Bruxas adapta, de maneira divertida, João e Maria, dois irmãos que, após passarem por um evento traumático, sendo sequestrados por uma bruxa, decidem dedicar suas vidas a caçá-las.

    Diferente das outras adaptações, a história de João (Jeremy Renner) e Maria (Gemma Arterton) que conhecemos é contada apenas nos 10 minutos iniciais do filme, dando mais espaço para a fase adulta do casal de irmãos e isso, talvez, tenha sido um erro, uma vez que não haveria problema se a infância deles fosse novamente retratada, já que o tempo de fita é muito curto, resultando em apenas um hora e vinte minutos de filme (sem contar os créditos), o que prejudicou, de certa forma, não só o desenvolvimento dos personagens, mas também o da história escrita pelo também diretor Tommy Wirkola .

    O desenrolar da trama é muito simples, sendo que, por conta de sua fama, os irmãos chegam a uma cidade com o intuito de investigar o desaparecimento de crianças, entrando em confronto direto com a bruxa Muriel, vivida por Famke Jansen. Como dito, os personagens são mal desenvolvidos e, dentre todas as bruxas que aparecem no longa, Muriel não chega a ser tão ameaçadora ou poderosa quanto parece. E o destaque, ironicamente, fica para as outras bruxas, todas bem distintas umas das outras, carregadas de maldade, com visuais lindos, porém grotescos e que, ainda assim, necessitam de algum pedaço de madeira para que possam voar. As bruxas siamesas ligadas pelas costas são fantásticas.

    Um outro ponto bastante curioso, mas muito divertido é que João (responsável pelo lado cômico), por conta do consumo excessivo de doces na época em que estava encarcerado pela bruxa, sofre de diabetes e precisa aplicar sempre uma injeção de insulina. Inclusive, João é o único que tem uma trama paralela no longa, ao libertar da fogueira uma mulher do vilarejo que estava sendo acusada de bruxaria.

    O destaque fica para a parte técnica e artística, que desenvolveu um filme com bastante violência visual, sabendo trabalhar bastante a parte fotográfica, trazendo uma cidade medieval que elucida a tristeza pelo sumiço de suas crianças, se utilizando de cores frias, sem vida, numa época do ano que está sempre com o céu nublado, mas de qualquer forma, uma diversão para um dia frio e chuvoso.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | O Sexto Sentido

    Crítica | O Sexto Sentido

    O Sexto Sentido - poster

    Após quinze anos de lançamento, não é exagerado afirmarmos que o desfecho de O Sexto Sentido é conhecido por grande parte do público. Desde sua estreia, a obra recebe elogios e foi responsável pelo destaque a M. Night Shyamalan, que dirige uma trama sobre um garoto que vê fantasmas e é ajudado por um psicólogo juvenil, em um suspense que reverencia o cinema de Alfred Hitchcock.

    A qualidade desta produção e uma consequente exigência do público de que outros filmes do diretor apresentassem um plot twist surpreendente e bem realizado talvez tenham sido significativas na derrocada de sua carreira, hoje quase sem credibilidade. Parece absurdo que este mesmo diretor, que na época conquistou comparações exageradas com o mestre do suspense – uma inspiração confessa de Shyamalan –, tenha realizado posteriormente uma adaptação regular do excelente desenho Avatar, feito um suspense bizarro sobre a natureza em Fim Dos Tempos e uma insossa ficção científica com Will Smith e o filho.

    O Sexto Sentido é um excelente thriller psicológico, bem executado no roteiro e na direção. Bruce Willis ainda era um ator de renome, em uma posição confortável de papel de destaque em filmes de ação – atualmente, Willis parece ter voltado somente para salvar filmes do gênero do desastre completo, vide G.I. Joe: Retaliação, R.E.D. – Aposentados  e Perigosos –, uma vertente interpretativa perdida em sua velhice. Confiando em sua performance, o ator é um premiado psiquiatra infantil que trata infantes com distúrbios mentais ou sociais. Após um evento traumático envolvendo um antigo paciente, o Dr. Malcolm Crowe estuda o caso de Cole Sear, um garoto tímido e deslocado socialmente.

    Abandonado pelo pai na infância, Cole estabelece uma relação paternal com Malcolm, transformando-o no único adulto confiável de seu círculo. A perda do pai é a primeira ruptura familiar do garoto, e também o princípio traumático que trazem à tona suas visões fantasmagóricas. Consciente de que nem todos são capazes de ver as entidades, o garoto teme contar seu problema à mãe por medo de rejeição. Enquanto a matriarca possui dois empregos para manter o sustento familiar, ela parece desconhecer ou ignorar os abusos que o filho sofre na escola.

    Manipulando tradicionais conceitos do terror, o roteiro estabelece uma boa justificativa para a presença de espíritos no mundo real, a mesma base presente em dogmas de certas religiões. Os espíritos seriam seres desencarnados que ainda desconhecem a própria morte e, por isso, permanecem na presença dos vivos. Manifestações físicas aparentemente com baixa temperatura, objetos que se movem, seriam tentativas de contato destes espíritos.

    Esta abordagem transforma a sugestão no melhor recurso cênico para provocar medo. Nem sempre o horror é visto na tela, mas imaginado pelo público com base em seus medos internos. Shyamalan realiza bonitas cenas em uma linguagem cinematográfica própria e repleta de símbolos visuais. O uso do vermelho indica cenas de maior tensão sobrenatural, um detalhe que permite ao espectador, em uma segunda exibição, observar as pistas dadas pelo roteiro até a revelação no desfecho da trama.

    A edição, com cenas breves e finalizadas em um rápido fade-out, passa a impressão de uma narrativa entrecortada. Somente ao final do filme, compreendemos o motivo da narrativa elíptica, que amarra suas histórias em pequenos três atos. Primeiro, o caso de Cole encerrado pelo Dr. Malcolm. Ao propor ouvir os mortos, o garoto encontra paz à sua maneira. Pressupomos que ele será um destes mediúnicos que dialogam diretamente com o outro mundo, à procura de ajudar mortos na passagem além-vida. Em seguida, Cole faz as pazes com a mãe em uma bonita cena em que revela sua percepção sensitiva ao observar os mortos em um acidente de trânsito à sua frente. Talvez em seu pensamento infantil, o garoto nunca imaginaria que a mãe poderia aceitá-lo. Por fim, o gancho que muda a perspectiva do roteiro e, sem dúvida, produz uma boa revelação.

    Diante desta informação, rever a obra é procurar pistas e inferências, inseridas, em cenas, diálogos e cenários, por Shyamalan. Na cena em que Cole revela ao doutor sua capacidade de ver fantasmas, a cena seguinte é um close no rosto de Bruce Willis. Em seguida, ao comentar sobre a falência de seu casamento, o psiquiatra menciona a mudança da relação após um problema – o acidente no início do filme. Um jogo que expõe pistas ao público de maneira pontual, até o final revelador.

    Mesmo visto após conhecer a revelação, o suspense estabelecido e a tensão dramática da obra ainda produzem um intenso thriller. Bom motivo que trouxe popularidade ao diretor, com um perfeito equilíbrio que nunca mais conseguiu compor. Chega ser espantoso que, hoje, ainda viva à margem deste brilhante filme sobre espíritos.

  • Crítica | Bob Esponja: Um Herói Fora D’Água

    Crítica | Bob Esponja: Um Herói Fora D’Água

    Bob Esponja Um Herói Fora Dagua 1

    A animação Bob Esponja: Um Herói Fora d’Água é a segunda incursão, na grande tela, de Bob Esponja Calça Quadrada, série produzida pela Nickelodeon e criada pelo biólogo marinho Stephen Hillenburg originalmente como um programa educativo sobre os oceanos.

    Diferente do modesto primeiro longa de 2004, desta vez os diretores Mike Mitchell e Paul Tibbitt aproveitam-se do recurso 3D e da animação CGI para extrair todo o potencial comercial deste personagem, que conta inclusive com um clipe de Pharrel Willians como peça promocional. O resultado é uma bilheteria astronômica que foi capaz de desbancar o fenômeno Sniper Americano em solo americano.

    Sucesso desde sempre, a série é sobrevivente de uma outra época das animações por manter-se convicta de seu carisma e apelo cultural, e não à toa é produzida desde 1997. Nada muda. Não possui arcos ou desenvolvimento de personagens: é apenas uma comédia bem moldada nas bases do humor físico de caráter ingenuamente “vergonha alheia”.

    Um herói que deve consertar seu erro ingênuo é ingrediente essencial em qualquer aventura, porém na comédia o herói não aprende com seus erros, mas sim os repete à exaustão. Neste aspecto, as aventuras de Bob Esponja são precursoras do meme ao trabalhar aspectos recorrentes e esgarçar a piada no limite do incômodo, porém com a inserção de gags que trabalham a quebra da lógica, criando o efeito humorístico. Não seria diferente então nos cinemas. Aqui, vemos as mesmas piadas de sempre, com o Planck tentando roubar a fórmula do hambúrguer de siri  ̶  que é basicamente a sinopse do filme  ̶ , adicionada a uma excelente justificativa do porquê ninguém decorou essa fórmula ainda.

    Com um desenrolar mais lento que o de costume, os diretores conseguem acelerar o ritmo para o padrão alucinado que as animações têm hoje em dia ao fazer a troca periódica da ação e cenários como quem estivesse submetido a um metrônomo, e assim manter as crianças filhas da Ritalina entretidas.

    O resultado, porém, é um filme enfadonho em diversos momentos, por ser bem menos ousado que sua versão televisiva e pela necessidade de prender a atenção do público por mais tempo do que o tempo de piada, o que diminui a malemolência de sua comédia perante a imposição de um ritmo bem mais rígido que retira o prazer da surpresa e da subversão costumeira.

    Com bons momentos, como a participação do primo do Fliper na obra e uma ou outra piada, mas sem conseguir potencializar o que já conhecemos, Bob Esponja: Um Herói Fora d’Água é uma adaptação competente, mas bem distante de seu “verdadeiro eu” da TV. Há algum espaço para deixar claro que Bob esponja vem de outra mídia, tanto que, ao ir para o mundo real, a animação muda de técnica e tira sarro do melodrama heroico, daquilo que é nativo do cinema. Neste ponto, o filme mostra realmente a que veio, mas aí ele já está quase no final.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.