Categoria: Críticas

  • Crítica | O Hóspede

    Crítica | O Hóspede

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    Recentemente, estava assistindo a uns trailers no YouTube e no canto da tela estava o link para a prévia deste The Guest. Fiquei curioso com o nome. Cheguei a pensar que se tratava de mais um filme de serial-killer, como os vários que povoam as prateleiras das locadoras e têm os adolescentes como seu público cativo. Porém, o trailer é um tanto quanto enigmático, e o fato de a produção ter recebido críticas favoráveis nos festivais de Sundance e Toronto me deixou instigado. Assisti a um segundo trailer que me deixou mais a fim de ver a obra. O tom era diferente. Finalmente, pensei: “Isso deve ser bom”. Mas, para minha surpresa, o filme não é bom, é muito bom!

    The Guest conta a história de David, um soldado que volta do Iraque e vai até a casa da família Peterson. Os Peterson perderam o filho mais velho no combate, e David explica a eles que era colega do rapaz e que havia prometido a ele que cuidaria dos familiares. Prontamente acolhido por todos, David rapidamente conquista a simpatia geral. Porém, uma série de mortes e acontecimentos estranhos passam a acontecer e o soldado começa a aparentar que não é exatamente a figura amável que antes demonstrava.

    Dirigido por Adam Wingard e roteirizado por Adam Barrett, dupla responsável pelo ótimo suspense Você é o Próximo, The Guest é um filme que toma rumos inesperados no desenrolar da trama. O diretor e o roteirista criam uma boa atmosfera de suspense e tensão ao retratar o comportamento do protagonista David e a maneira como ele vai conquistando as pessoas. Posteriormente, quando se inicia a investigação sobre o passado do soldado, sua origem é completamente diferente do que seria usualmente apresentada em filmes com enredos parecidos. Discorrer mais sobre o assunto seria entregar um enorme spoiler. Importante também ressaltar que a fotografia do filme, idealizada por Robby Baumgartner, ajuda muita em toda essa construção. Nada revolucionário, mas tudo executado com extrema competência principalmente nas sequências de ação. A violência apresentada na película é bem gráfica, mas em nenhum momento é gratuita. Tudo tem um contexto e um objetivo, não sendo violento simplesmente por que tem que ser.

    A trilha sonora da produção merece um grande destaque, pois ajuda demais na composição do filme. Logo quando começamos a assistir à obra, percebemos um clima oitentista, em que o diretor reverencia grandes filmes de suspense da época. Tudo fica mais evidente quando prestamos atenção na trilha: músicas repletas de sintetizadores que compõem a homenagem que a dupla Wingard/Barrett faz durante todo o tempo e que fica extremamente evidente na sequência do clímax da narrativa.

    Dan Stevens, o intérprete do protagonista, é conhecido por seu trabalho em Downton Abbey e por sua participação em Caçada Mortal, estrelado pelo astro Liam Neeson. Dan constrói um tipo simpático e assustador com sua fala contida, seus gestos controlados e seu sorriso sempre presente. Maika Monroe e Brendan Meyer, intérpretes dos irmãos Anna e Luke Peterson, defendem com competência seus papéis, especialmente Brendan, uma vez que seu personagem acabando nutrindo um carinho fraternal por David, e o ator poderia cair na caricatura facilmente. Em vez disso, o garoto se contém e mantém tudo de forma plausível. Lance Reddick (Fringe) e Leland Orser (de uma pancada de filmes como Se7en – Os Sete Crimes Capitais, O Colecionador de Ossos, e a saga Busca Implacável) mantém o bom nível de atuações, e somente Sheila Kelley, intérprete da matriarca da família Peterson, destoa um pouco do restante do elenco com uma atuação um pouco abaixo da de seus colegas.

    Ainda que perca um pouco de força na sequência final, que se rende a um grande corre-corre, The Guest é um ótimo filme que presta uma sincera homenagem aos filmes dos anos 80 e em nada lembra as produções de trama previsível que entopem os cinemas e as locadoras todos os anos. Vale muito a conferida.

  • Crítica | Gladiador

    Crítica | Gladiador

    O aclamado filme de Ridley Scott inicia-se introduzindo o espectador no contexto tirânico do Império Romano, com o avanço tático a Germânia sendo impetrado. As mãos do personagem principal, passando sobre a mata alta de sua plantação, remetem ao real desejo de seu coração de habitar as próprias terras em paz; distante do estado caótico que a guerra se impõe, onde a ocupação do estrangeiro ultrapassa os limites do aceitável, passando a ser uma obrigação erguida pelos superiores e passada ao exército por convenção, sem muita discussão dos porquês.

    O discurso inflamado – O que fazemos em vida ecoa pela eternidade – não consegue esconder um descontentamento de Maximus (Russell Crowe), ainda sem o modus operandi do imperialismo, mas já portando um inexorável enfado em seu semblante. Analisando a jornada do herói de Joseph Campbell, o chefe do exército não seria o herói clássico, tampouco anti-herói, mas o arquétipo do herói falido, depressivo, que, apesar da adversidade e das belas cenas de combate introdutórias, guarda um ressentimento e azedume pelas ações que é levado a concluir. Quando ele hesita em matar um adversário, nota-se de maneira concreta sua insatisfação, depois proferida para que não haja dúvidas. Sua posição não é a de discutir métodos ou estratégias: ele é apenas um humilde servo, prostrado ante a vontade de Marcus Aurelius (Richard Harris), que está no final da vida, arrependido de tanto derramamento de sangue e especialmente preocupado com o seu legado, e se seria visto como um tirano de acordo com os olhos da História.

    Qualquer fidelidade e compromisso com a cronologia histórica são varridos para bem longe, assim como foram em Coração Valente. De certa forma, há uma amálgama entre muitos períodos do Estado Romano após a ascensão de Júlio Cesar, ainda que tal influência não tenha sido jamais assumida pelos produtores do filme. Tal característica seria impensável para o nível de acesso a informação atual, passados 14 anos da exibição de Gladiador – ainda que o clima de redenção dos poderosos seja bastante atual nas grandes produções hollywoodianas -, e em se tratando de uma obra de caráter revisionista, de discussão do modo violento e arbitrário que os conquistadores tinham com o território descampado mundial.

    Religião, crenças, sedução e ganância se misturam, tentando atravessar o caminho de Maximus. Focado, o soldado não deseja nada além de sua família, suas terras e sua vida simples no campo. A demora do filme em levá-lo ao lugar desejado é demasiado, fazendo do general mais uma vítima da burocracia e de um legado que não pediu para si.

    A decisão de tornar Maximus o regente da República, retomando o panorama político anterior, é bastante fantasiosa, levando a trama para um lado semelhante ao visto em contos mitológicos, mas exibindo as piores facetas do espírito humano, como o amargor de alma do antigo herdeiro, Commodus (Joaquin Phoenix), que, ao perceber que perderia a sucessão do trono, cometeu o maior dos pecados – o que estava ao seu alcance -, ultrapassando qualquer limite ético e moral.

    Ao se recusar a servir ao nefasto novo senhor, Maximus é condenado à morte. Seguindo finalmente seu senso de justiça, ele tem o revide proporcional à sua boa ação, pondo sua família em risco. Após escapar da pena imposta ao personagem, ele consegue a duras penas retornar ao seu lar para assistir, em meio a lágrimas e salivas, ao extermínio dos seus, na maior mostra de degradação em que ele poderia estar até então. De olhos fechados, carregado à força, o sujeito sofre a morte de sua antiga identidade, renascendo com outra alcunha, outro espírito e função social, ainda mais desimportante do que planejava.

    Como em uma peça teatral, a divisão clara por atos permeia o filme, com uma virada no segundo tomo mostrando o herói falido como escravo, digladiando por sua vida e ganhando um sentido novo para a própria existência, ainda que a glória seja cantada ao nome que lhe deram. O Espanhol logo torna-se o mais carismático e amado guerreiro, exibindo uma tenacidade não antes vista nas arenas romanas, tão corajosa que visa, inclusive, desobedecer uma ordem imperial.

    Diante de seu inimigo mortal, Maximus pensa em dar um fim breve ao opositor, mas se demove da ideia ao vê-lo com a criança que se afeiçoou. Após revelar sua real identidade, consegue ganhar uma pequena fama, a ponto de ter soldados novamente dispostos a levantar sua bandeira, além de ter uma ajuda real por meio da apaixonada Lucila (Connie Nielsen), cujo amor incestuoso de Commodus não é correspondido. As coincidências do roteiro são coladas por uma liga demasiada fraca, conveniente demais aos desejos e desígnios do protagonista.

    Como se esperava, o megalomaníaco plano do gladiador em aplicar um golpe de estado no soberano tem seu destino selado. A grandiosidade e magnificência dos cenários da história e do Ethos de Maximus são elevados a patamares quase infinitos, mas perdem seu peso pela disputa final, disfarçada de embate físico desigual. A justiça dificilmente teria seu lugar no combate entre as contrapartes, entre os dois “filhos” de Marcus Aurelius. O problema é o quão apelativo é o confronto épico, banalizado pela teatralidade excessiva da batalha. O dramalhão enfraquece o plot de Maximus e o retorno da liberdade do povo romano. O sonho torna-se algo de cunho barato, feito para um público idiotizado, acostumado a mensagens felizes, não condiz com a época em que se passava o drama do general/gladiador. O merecido descanso do herói é enfraquecido por mais uma mensagem politicamente correta, mudando rumos históricos e traindo qualquer possibilidade de dignidade. Gladiador é considerado por muitos como um clássico, e até caracteriza-se por um expoente interessante na combalida filmografia de Ridley Scott, mas só garante bons momentos em meio às cenas de batalha, uma vez que seu roteiro só serve para tentar justificar porcamente todos os entraves.

  • Crítica | Superman vs Elite

    Crítica | Superman vs Elite

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    Resgatando a história com o herói clássico ao lado da nova geração de personagens massa véio, cuja ideologia é ligada a uma escusa a moralidade e aos não-costumes. Após uma pequena introdução, que louva os poderes de seu protagonista, até a entrada dos créditos, com imagens da animação dos irmãos Fleischer até momentos do seriado capitaneado por Bruce Timm. O intuito era remeter à historiografia em desenho do Super-Homem.

    Após assistir a si mesmo em um cartoon, Clark discute com sua cônjuge os rumos que toda aquela publicidade daria a sua figura. Uma breve batalha contra o Caveira Atômica faz o kryptoniano ter de lutar, mas ele o poupa, não o executando, mesmo com a morte de muitos e com milhões de danos à propriedade pública.

    Em um outro lado da cidade, Manchester Black e seus asseclas chegam. O traço caricato destoa da seriedade do restante da fita, especialmente com as discussões a respeito do poderio do Superman e de sua responsabilidade com a humanidade. O norte do alienígena é de pouco (ou nada) interferir, de não bancar o júri e o juiz, de não se valer de suas habilidades para ser superior àqueles que são “comuns”. A opinião não é compartilhada pela Elite, cujo modus operandi é muito mais intervencionista. Superman assiste ao grupo lutando com um monstro-inseto, mas não a tempo de conseguir conversar com o líder do quarteto.

    Black transparece uma honesta admiração pela figura do Azulão, apesar de apresentar traços de uma intensa arrogância. Manchester traja uma blusa com a bandeira da Grã-Bretanha, em uma versão debochada do uniforme do paladino, que também usa as cores de sua nação em seu corpo.

    Superman impede Black de lobotomizar dois terroristas, e se surpreende ao contar o fato a Lois Lane, que o indaga sobre a necessidade de poupar os bandidos, uma vez que os mesmos poderiam repetir o feito. A reflexão inclui os métodos que o herói usa, assim como a ética e moral, enquanto a popularidade da recém intitulada ELITE somente cresce junto à opinião pública geral.

    Há uma discussão bastante rasa a respeito do modo como os Estados Unidos tratam seus inimigos, de modo agressivo e intrusivo. De acordo com o pânico, parece ser natural achar que a segurança está no modo agressivo de lidar com os opositores hostis. A apelação para a execução dos bandidos é vazia, de argumentação fraca, baseada num sentimentalismo barato e muito forçado. O “novo tipo de herói” ganha cada vez apelo, e a alcunha de fracassado/ultrapassado pesando sobre os ombros do herdeiro de Krypton.

    O fascismo do anti-herói britânico é causado por narcisismo não resolvido, em que o passado inclui até a execução de seu pai, ao seu bel-prazer, sem motivo algum além da vontade de seu primogênito. As ações da ELITE pioram ao exterminarem os líderes de dois países em guerra, e, por discordância, Superman acaba escolhendo um desafio.

    Apesar do bom-mocismo e das cenas de atitude correta, o discurso do Super exala pieguismo, sem qualquer embate ideológico presente na história original. O que se vê é uma versão suavizada e pasteurizada do texto original, que pouco valida as escolhas do Superman. Munido de uma postura semelhante a de seu adversário, o herói torna-se um tornado azul, fazendo a justiça bem ao modo comum dos estadunidenses, cruzando a linha entre o mentiroso American Way of Life, agindo com a mesma truculência do governo dos EUA. Mas o revide era apenas um truque, neste momento, semelhante ao mostrado na revista. Algo parece ter se perdido na adaptação dos roteiros. O tom demasiado infantil enfraqueceu o plot principal, deixando o longa aquém da tradição da DC Comics em realizar bons filmes animados. A companhia dá cada vez mais mostras de orfandade nos seus cargos sem Bruce W. Timm e sua equipe, que conseguiam equilibrar escapismo e mensagens edificantes.

  • Crítica | Não Pare na Pista: A Melhor História de Paulo Coelho

    Crítica | Não Pare na Pista: A Melhor História de Paulo Coelho

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    Não há meias medidas para Paulo Coelho. Uma parcela identifica-o como um querido escritor, um dos autores vivos mais lidos e traduzidos no mundo; outros rechaçam sua narrativa com veemência, taxando-o como péssimo prosador. Nesta corda banda de amor e ódio vive o autor, um homem paradoxal.

    Não Pare Na Pista – A Melhor História de Paulo Coelho representa a tradicional biografia cinematográfica com espaços temporais distintos apresentando diferentes facetas do biografado. Iniciando-se com uma cena de impacto, uma tentativa de suicídio na época de sua juventude, observamos a agonia do jovem Coelho. Um garoto deslocado, sem muitos amigos, considerado feio demais para se aproximar de uma garota. O único propósito de sua vida é ganhar uma máquina de escrever. Após a tentativa de suicídio e uma internação obrigatória no manicômio, surge a primeira entre muitas rupturas da relação paterna. Para Pedro Coelho, o filho deve seguir uma profissão tradicional, e a incompreensão da visão do filho proporcionaria futuramente a fuga do jovem para viver sozinho.

    Além da juventude de Coelho, acompanhamos o início de sua vida adulta e a maturidade consagrada. Três tempos narrativos demonstrando as fases passadas pelo autor. O período após a saída do escritor de sua casa contém os momentos mais transformadores na carreira de Coelho. Na época, conhece Raul Seixas que, de acordo com o longa, ensina-o a se expressar de maneira direta nas letras que escreveram em parceria. Desde o princípio, observamos que o autor defende o conceito da simplicidade artística, uma maneira direta de atingir o público e que, futuramente, também se tornou parte de seu estilo literário: uma obra rápida com frases precisas e existenciais para impactar o leitor.

    Após o período regado a drogas e bebidas com Seixas, o autor passa por uma intensa transformação interna em uma viagem de peregrinação pelo caminho de Santiago. É nesta viagem que a dimensão espiritual do equilíbrio e do autoconhecimento apresenta-se no longa. São cenas que abusam de falas e personagens, realizando apontamentos que fundamentaram seu caráter e serão base para o primeiro sucesso, O Diário de um Mago.

    As diferentes mudanças de personalidade de Coelho em momentos distintos demonstram uma intenção de nunca seguir modelos tradicionais de vida. O autor sempre renegou o que poderia ser comum a outros, à procura de sua própria vontade. Porém, as fases de sua vida são apresentadas de maneira tão bruscas que não aparenta haver um conectivo direto entre elas. Como se assistíssemos à história de um garoto problemático, um letrista inspirado que alcançou seu próprio nirvana, e o escritor consagrado comemorando seus louros. São elementos chaves que apresentam-se na obra sem dimensionar exatamente como e quando os caminhos de sua vida resultaram no homem que ele se tornou. Um erro que não deveria existir em um filme que intenta ser uma biografia dramatizada de uma vida real. Não cabe ao público conhecer sua história de antemão para compreender o que acontece entre estas lacunas deixadas pela produção.

    As cenas do Mago na velhice são desnecessárias à obra. Funcionam para mostrar o sucesso evidente, algo que, neste caso, o público sabe sem precisar conhecer sua biografia (afinal, estamos falando de um dos brasileiros mais influentes no exterior). A maquiagem em excesso, com uma careca nitidamente feita em látex, tenta produzir uma semelhança com a fisionomia atual do autor, mas que também não funciona. A caracterização e motivação para este trecho do longa-metragem falham por nada acrescentar ao público. Um espaço que poderia ser retirado da obra para dar maior coesão à sua trajetória, incluindo as citadas tensões de amor e ódio que o autor parece despertar.

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  • Crítica | Caminhos da Floresta

    Crítica | Caminhos da Floresta

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    Não é incomum que as pessoas guardem certo ranço pelo musical como gênero cinematográfico. Uma das alegações mais recorrentes diz respeito à dificuldade de envolvimento devido ao uso narrativo da música. É, no entanto, interessante que Disney e Broadway desde seus primórdios lancem mão deste recurso em suas obras, as quais, eventualmente, sejam tão bem aceitas pelo público em geral – como a clássica Hakuna Matata (O Rei Leão) e a recente Let it Go (Frozen – Uma Aventura Congelante) – mas cuja aceitação não seja a mesma quando o gênero é aplicado no formato live action ou o material encenado fora dos palcos. Entre tantos outros exemplos, Caminhos da Floresta encaixa-se na categoria dos que merecem ser vistos sem este tipo de filtro.

    Vindo na esteira de uma leva de filmes propondo reformulações menos monocromáticas nos contos de fadas, como ocorreu com Malévola e o já citado Frozen, Caminhos da Floresta maximiza essa tendência e une os principais contos de fada recontados ou elaborados pelos irmãos Grimm em um mashup capaz de unir, mais do que suas tramas, as discussões morais e éticas já presentes desde sempre nestes contos. Para tal tarefa, a Disney chamou o veterano Rob Marshall, diretor de Nine e Chicago, para reunir todas essas tendências e criar uma paleta mais sutil e atual com o uso de charmosas canções.

    O que vemos aqui é uma única história contada de maneira fracionada com o uso de personagens, de comportamento tipicamente maniqueísta, mas que unidos tornam-se mais profundos. Nos contos originais, a trama desenrola-se a partir do erro ingênuo da jornada dos heróis (chamado de Hermátia, que pode ser traduzida do grego como “Errar o Alvo”). Mas o que Rob Marshall faz com esse material é uma discussão sobre a real inocência deste erro e como ele pode afetar a vida de todos, e faz isso usando como fio condutor o conto de Rapunzel – ironicamente, deslocado e abandonado de acordo com a conveniência do roteiro -, levando adiante a história de sua origem ao nos apresentar as consequências adquiridas pelas próximas gerações do conto.

    A apresentação dos personagens é feita através da narração de suas ocupações e de uma canção que permeia os cenários dos protagonistas exibindo seus desejos e aflições. Neste ponto, podemos separar os protagonistas como alegorias para “O mundo”; a floresta como “A vida”; e a Bruxa (Meryl Streep, merecidamente indicada ao Oscar novamente) como “Os percalços da vida”. E assim está posta a mesa sobre os dilemas da vida, o que faz todo o sentido neste contexto, já que todos os contos de fada usados são “arquétipos universais”, assim chamados por reproduzirem-se mesmo em culturas distintas e não relacionadas entre si.

    Apesar da proposta ambiciosa de buscar o sentido da vida – ou o sentido da floresta -, a produção frequentemente peca pela literalidade com que aborda boa parte de suas teses, o que é uma pena, pois, quando consegue se desfazer deste cacoete, sempre acerta, como na cena de renascimento de Chapeuzinho Vermelho, ou de sua transformação interna com a substituição de sua capa vermelha de menina por uma capa de mulher, fruto de seus erros que será carregada para que possa enfrentar o mundo.

    Com uma metragem maior do que deveria, o filme tropeça em algumas ambiguidades por ceder à falácia do meio-termo como situação ideal, mostrando os extremos e então forçando-os a alcançar um ponto de equilíbrio dito ideal, como quando, após expor o machismo dos contos e dos cafonas príncipes encantados, a adúltera é punida pela vida sem a menor cerimônia; ou, quando fala sobre onde colocar nossos desejos sexuais, argumenta a possibilidade de que no fundo a moça sabia que não deveria ter provocado ou se excitado.

    Mas não adianta buscar culpados apenas, pois afora passar por esta floresta e seus caminhos – pela falta de caminhos, atalhos ou estradas – passa pela aceitação do outro como parte da resolução, assim como foi parte do problema, tendo o sentido de pertencimento como essencial para lidar com os defeitos do mundo, a vida e seus problemas.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Livre

    Crítica | Livre

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    Com roteiro do badalado escritor britânico Nick Hornby e direção do canadense Jean-Marc Vallée, Livre conta a história real de superação de Cheryl Strayed, escritora que percorreu os mais de 1600 quilômetros da Pacific Crest Trail, que vai do sul da Califórnia até a fronteira do Canadá.

    Após passar por traumas recentes, como a morte da mãe, divórcio decorrido de traições e do uso abusivo de heroína, e sem preparo físico algum, Cheryl decide partir para o enorme desafio físico de percorrer uma difícil e perigosa trilha, entrando em uma jornada de autodescobrimento.

    Baseada no livro autobiográfico lançado em 2012, a adaptação de Nick Hornby deixou um roteiro fluido que permitiu o rápido avanço na história. Narrado como um road movie, a proposta do filme é discutir o doloroso processo físico e psicológico que representa o recomeço. A cena inicial, antes do crédito do filme, é bem emblemática neste sentido: depois de arrancar a própria unha do dedão direito em cima de um penhasco, consequência do uso de botas mal escolhidas, Cheryl perde um dos pés do calçado e então decide jogar pelo penhasco o outro pé, gritando “Fuck you!”.

    Uma das dificuldades de analisar a obra é evitar cair no senso comum e chamar Livre de Na Natureza Selvagem feminino (leia a nossa crítica do filme, e a resenha feita para o livro de Jon Krakauer). Apesar de usar a mesma estrutura narrativa de flashbacks no meio de uma narrativa principal, e de ter uma protagonista sozinha em meio a natureza, são duas propostas completamente diferentes: Cheryl Strayed não nega o seu papel na sociedade como Christopher McCandeless o faz, e muito menos prega o desapego aos bens materiais ou nega os valores da sociedade em si; ela está ali, longe da civilização, para repensar a sua vida e os seus valores. Inclusive, na parte em que é entrevistada contra a sua própria vontade, Cheryl repete várias vezes ao repórter que não é uma andarilha sem destino, e que tem um objetivo muito claro: completar a difícil trilha; em outra parte, ela cria expectativa para as botas novas que irá receber, já que os seus pés estão quase em carne viva em razão da cena inicial. O roteiro de Nick Hornby tenta se distanciar ao máximo da inevitável comparação com o filme de Sean Penn, e consegue com sucesso.

    A tradução do título do filme para o português é curiosa. Livre é selvagem e também serviria como título, pois não há ordem ou papel social a ser representado quando se é “selvagem”. Porém, “Livre” aparenta ser uma escolha mais acertada, já que a protagonista precisava se livrar das amarras que a prendiam para começar uma nova vida, inclusive em outra cidade.

    A atuação de Reese Whitespoon é incrível. Ela consegue encarnar a Cheryl Strayed, a amorosa filha abalada após a morte da mãe, nas difíceis cenas em que se droga e faz sexo violento, até ter a sua redenção através do trabalho físico de percorrer a extensa trilha e ter que lidar com os perigos e contratempos do caminho. Os outros atores têm boas aparições, mas nenhuma que importe tanto quanto a da mãe de Strayed, vivida pela sempre ótima Laura Dern, ou a do ex-marido da protagonista, interpretado pelo bom Thomas Sadoski (o Don Keefer de The Newsroom).

    O canadense Jean-Marc Vallée repete a boa direção depois do ótimo Clube de Compras Dallas, e neste ela se revela novamente na direção de atores, com a atuação solitária de Reese na trilha tendo que lidar com a solidão e os seus demônios internos. No entanto, uma crítica que pode ser feita refere-se ao final um pouco abrupto do filme. Apesar de indicar no roteiro o ponto onde a trilha terminaria, faltou ao diretor trabalhar melhor a informação para dar mais sentido à conclusão da história.

    A fotografia naturalista desempenha o que se espera de um bom fotógrafo como o canadense Yves Bélanger, que também fotografou Clube de Compras Dallas, embora as bonitas imagens da natureza pudessem ter sido um pouco mais impactantes.

    A edição foi um dos pontos altos do filme. O diretor, que também editou o filme junto ao canadense Martin Pensa, outro colaborador de Clube de Compras Dallas, criou cortes rápidos e interessantes quando liga os flashbacks de lembranças de Cheryl com a realidade do presente. Neste sentido, pode ser tecida uma comparação com os cortes ágeis às cenas dos personagens usando drogas em Réquiem Para um Sonho, de Darren Aronofsky.

    Livre vale a pena ser visto não só por estar concorrendo ao Oscar, mas sim por ser uma linda história da mais simples humanidade, que vai do amor à perda, da entrega ao caminho fácil à superação; e, finalmente, de mudança e renascimento.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)

    Crítica | Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)

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    Como é bonito ver uma câmera de Cinema, sendo que só ela atinge a magia a seguir, flutuando do palco aos bastidores num balé muito mais que espacial entre duas nebulosas paralelas – de certa maneira, após uma reflexão de ônibus – bastante inconfundíveis. Talvez seja o teatro, bom e velho reino que suporta e abranda, com uma concordância mais segura sobre todas as outras bases, a alma de um artista posto que venha a ser o que for, numa relação de amor e ódio, concebível e perpétua, refletindo a atração e a repulsa que, seja a vida, seja a arte, sente pelo oposto de cada uma desde eras paleolíticas. Se o Cinema não aguentou ficar no preto e branco e teve que buscar os matizes expansivos do CinemaScope em testamentos revolucionários (tal Os Sapatinhos Vermelhos (1948), um marco histórico de Michael Powell do uso colorido do sentido visual e inspiração de influências soberbas, tipo Os Amores de Pandora (1951), Delírio de Loucura (1956), A Balada de Narayama (1958), ou Yimou Zhang e seu quente O Sorgo Vermelho (1987), primeira empresa do artista chinês), que dirá quanto o artista, seja ela fotógrafo, seja ele músico ou um gari de sítio público, digno sempre de ser maior que sua arte: sua vil e incorruptível semelhança sempre à prova – sempre. Primeiro, à mercê da fome de se tornar artista, aprender o aflito equilíbrio na margem da dúvida se de dia ou se de noite, cedo ou tarde, irá ou não padecer na triste analogia ao conto de Franz Kafka; ser alguém na vida é difícil, mas na arte é delírio de amantes. É a loucura de abrir a caixa de Pandora e espiar com uma lupa o conteúdo do seu plexo solar em noites quentes, em especial de lua cheia. Ser arteiro é a inadvertida sentença de ser o que é.

    Eu queria ser Michael Keaton, ou melhor, o Batman. Eu queria ser o Keaton com a roupa do Batman ganhando aquele beijo (no mínimo) de Pfeiffer e sua clássica Catwoman nos longínquos anos 90 – e também para trabalhar com Tim Burton quando ele sabia usar o taco. Porque, sério, nem o Batman é tão legal quanto Keaton, tanto quanto a pele por trás da máscara. Pele, crise e humanidade a atormentar a intolerância do Coringa que vive em todos nós, dividido em psicanálise e danação para a carga ser mais leve.

    Após assistir à obra de Alejandro Inãrrìtu, a versão talvez mais próxima que o Cinema já chegou dos quadrinhos de Watchmen, todo mundo quer descobrir A Inesperada Virtude da Ignorância, procurando, assim e a partir disso, o sentido por trás dessa metalinguagem galopante e infinita de um teatro e adjacências em Nova York, cheia de seres que precisam se esforçar para serem humanos, às vezes. Lá, onde encontramos o símbolo e os sons simbólicos, a alegoria contextual e o frisson de adentrar um filme que não se sabe o que fala mais alto, se são as palavras ou as ações, pois, afinal, é Iñárrítu. Birdman, o alterego do verdadeiro herói, pouco importa, pois se Federico Fellini focou no Guido, homem e artista (em )Billy Wilder na Norma, mulher e artista (em Crepúsculo dos Deuses), e Werner Herzog e Klaus Kinski além do doméstico e cênico, já nascidos sob aquela sentença, então que mal faz a ambição aos holofotes, quando regidos por quem refina a luz de meia dúzia de vórtices ambulantes?

    O que concluir quanto ao sentimento inesquecível de uma cena inesquecível, em prol de Keaton, homem, ator e personagem, diante de seu esquecimento e agora retorno ao apogeu de Hollywood, quando encontra um ator amador na rua, persona síntese de seu céu e inferno, sendo livre como o ator não se permite ser, sereno em exercício como a pessoa do ator não se deixa, aliás, nem diante de sua imagem num espelho qualquer. Iñárrítu é o típico cineasta masoquista com os arquétipos de suas histórias, mas em seu melhor filme reconhece que a vida já é canalha demais e parte para juiz da partida, impedindo apenas que tudo fique ainda pior, já que o abismo que surge da colisão entre a Vida e a Arte mais inerente não pode ficar. Não é uma questão de profundidade, isso vai de cada um. É pavimentar o terreno, para tanto, com tudo o que há de melhor e conceitual a favor da reciclagem de valores e experimentações de causas epifânicas, sejam quais forem, deliberada a pluralidade de intenções que superam qualquer outra obra do cineasta. Tudo oriundo de uma simplicidade existencial em forma de incógnita quântica. É preciso saber assistir à obra.

    Uma vez que o bendito travelling é uma questão de moral, o “plano-sequência” é do quê? De ética? Precisamos ser tão previsíveis assim? É claro que não. A vida não para. Hoje se está lá, amanhã no purgatório e depois, no espaço. A virtude da grande sequência de consequências na qual Birdman é conjurado, com ótimos e poucos cortes de cena, não só remete à hipnose provocada pela continuidade sensorial no Cinema e Teatro, verdadeira homenagem objetiva aos nobres fundamentos das artes em seu porão compartilhado, mas sobretudo: 1) respira na metáfora intervisual do ritmo urbano moderno; 2) na própria visão continuada do real para a ficção de um preciso artesão artístico; e ainda: 3) na proporcionalmente irônica conexão entre a vontade de se perder para enfim se achar – no desabafo em um bar com uma crítica teatral, ou no enfrentamento ou suplício carnal, como aspectos do natural em um mundo de fantasia, tão almejada como irresistível.

    Em suma: Iñárrítu, mais bem-sucedido do que nunca, apresentando a bússola de orientação de homens e mulheres num cenário de pura desorientação, de fato não poderia ter achado técnica mais certeira que a sequência infinita pelas escadas e camarins onde lirismo e pressão comercial vivem juntos, muito mal, obrigado, como todo jogo de interesses nada pequenos. Birdman é de uma atuação espetacular enquanto coletivo de atores pulsante e inebriante. Obra livre, pássaro livre de qualquer explicação singular. Não é um filme completo, mas é um dos poucos filmes americanos recentes que são tão completos e interessantes de se revisar quanto poderia, por fim, se impor e vir a calhar a algo ou a alguém.

  • Crítica | Invencível

    Crítica | Invencível

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    Invencível, novo filme dirigido por Angelina Jolie, adaptado do livro Invencível – Uma História de Sobrevivência, Resistência e Redenção, conta com os irmão Coen no roteiro para dar corpo à vida e à memória do atleta olímpico Louis Zamperini (Jack O’Connor), que após sobreviver 47 dias no mar é feito refém pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial.

    A literalidade da obra não fica apenas no título, porém. Invencível é um drama clássico, ao menos em teoria, feito aos moldes da Poética de Aristóteles: é a síntese da busca pela catarse através da dor e sofrimento, com o objetivo de nos provocar medo e compaixão, para, em seguida, entregar uma breve purificação como fruto do sofrimento compartilhado.

    Apesar de seguir à risca o caminho canônico da tragédia dramática, falta a Jolie e ao roteiro dos Cohen o compartilhamento sobre o real estágio humano de seu protagonista, que em nenhum momento parece saber por que sobreviver. Falta comunicação com o espectador e um fio condutor melhor resolvido do que a frase “se puder suportá-los, pode vencê-los”, a qual Zamperini leva consigo como mantra.

    Datado como obra, Invencível não só é aristotélico como também platônico. Ao trabalhar diversos combates e situações em um plano quase etéreo, eleva seu protagonista aos céus, enquanto seus companheiros – tão sofridos quanto – mantêm-se no plano mundano. Jolie idealiza seu protagonista a ponto de achar que não precisamos de suas motivações, e que sua sobrevivência fala por si. Fora das convenções do cinema, sua fibra moral é óbvia, mas em determinado momento Zamperini deixa de reagir às privações, o que é problemático em termos de dramaturgia.

    Isso influencia no trato dos coadjuvantes, subaproveitados, que poderiam ter dado um pouco mais de sustância ao roteiro se houvesse nisso a tentativa de decodificar Zamperini ao público. A idealização faz sentido, já que o veterano foi vizinho e amigo pessoal de Angelina Jolie, chegando a participar ativamente da produção. Mas ao espectador falta justamente a catarse, da qual temos apenas vislumbres, como na belíssima composição da batalha ideológica do personagem principal e seu algoz, o sargento Watanabe, que perde seu potencial de conquistar até mesmo o mais blasé dos espectadores ao reafirmar a santidade do atleta olímpico e fazendo da cena um bem filmado exercício de futilidade. O resultado são 162 minutos do que seria uma bela história de resiliência filmada como se fosse apenas teimosia da parte de Louis.

    A crítica especializada (sic) diz que, quando uma crítica começa a análise falando bem sobre a fotografia do filme, é porque este não é tão bom, mas sim simpático. Simpático, mas nada empático; bonito, mas carece de poder cinematográfico, pois logo nas primeiras cenas a mão pesada da montagem enfeia todas as incríveis composições da direção de fotografia idealizada por Roger Deakins (Onde os Fracos Não Têm Vez, 007 – Operação Skyfall), e consegue tornar o filme mais insensível do que seu roteiro ao simplesmente não nos permitir contemplar cena alguma por carecer de ritmo. Não há suspiro quando deveria haver, nem tensão quando deveria haver. A tentativa de tensão é feita sem sutileza na transposição das cenas, levando o espectador a perder-se geograficamente mesmo em ações simples.

    Não faltará nem mesmo a tradicional explanação sobre o destino de seus personagens, apenas burocraticamente colocada para arremate. Um trabalho visualmente muito bonito e inspirado que funcionaria melhor em mãos mais delicadas e focadas.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Sherlock Holmes e a Arma Secreta

    Crítica | Sherlock Holmes e a Arma Secreta

    A cine-série protagonizada por Basil Rathbone apresenta a temática da Guerra contra o nazifascismo e pretensa soberania alemã, numa “adaptação” do conto de Arthur Conan Doyle, The Dancing Men. Dessa vez a obra é regida por Roy William Neill, que prosseguiria na franquia por mais 11 filmes. Logo de cara nota-se que os disfarces de Holmes estão melhor construídos do que a versão de 1939 para As Aventuras de Sherlock Holmes.

    Sherlock, em frente a um espelho, se desvencilha da máscara que usava como maquiagem, mostrando ao público sua real face e compartilhando com ele um pouco do seu processo de trabalho, numa frase bastante emblemática que lembra muito o detetive dos contos doylianos: “Eu nunca suponho, Watson”.

    Graças a um atentado, e com receio disso respingar em sua amada, Doutor Franz Tobel (William Post Jr.) aliado de Holmes, exige que seus experimentos não tenham interferência ou supervisão inglesa, fato interessante por si só por demonstrar de forma clara o paralelo com a costumeira neutralidade da Suíça, país de origem do espião infiltrado, e que só se permite entrar no esforço de guerra contra o Führer em seus próprios termos. A elevação de Tobel evidencia um defeito que cada vez mais se agrava: a lastimável transformação de Watson em um alívio cômico; o médico mal entra nas investigações.

    A única semelhança factual entre o roteiro final e o conto original é o código usado para esconder o segredo do agente infiltrado, que serve mais como easter egg do que como fonte de inspiração. A versatilidade de Rathbone constitui um dos pontos mais altos do filme, principalmente pela quantidade de disfarces que Sherlock lança mão. As cenas de tortura também são muito bem executadas.

    O Professor Moriarity – grafado errado na ficha técnica – é completamente diferente do retratado por George Zucco em Aventuras de Sherlock Holmes. Lionel Atwill, que já havia feito o Doutor Mortimer em O Cão dos Baskerville de 1939, metamorfoseia-se em um vilão comum, apenas preocupado com o lucro, em nada lembrando o Napoleão do Crime, inferior, e muito, ao seu antecessor no papel. O problema é tão gritante que ganha ares de ato falho, em uma fala de Sherlock/Basil emblemática: “Ora essa, esse não é o professor Moriarty, mestre dos crimes, que eu conheço”.

    A tentativa de deter Sherlock é muito facilmente desbaratada, e caracteriza este plano como algo muito mal construído, aliado à armadilha que o Detetive arquiteta para o seu rival, que o reduz a um simples bandido ordinário e sem criatividade própria, o que leva a crer até mesmo na possibilidade deste ser um impostor. Sua morte é ainda mais indigna que a versão do pastiche presente no filme.

  • Crítica | A Teoria de Tudo

    Crítica | A Teoria de Tudo

    A Teoria de Tudo - Poster brasileiro

    O século XX, mesmo sendo considerado um dos períodos mais sangrentos da história da humanidade, deixou heranças culturais sólidas em nossa cultura, e a popularização da ciência e do discurso científico foi uma delas. Einstein é mais conhecido por suas frases a respeito da moralidade da humanidade e por sua oposição à violência do que por sua obra na física. Depois dele, o grande divulgador da ciência (e polemista nato) é o astrofísico britânico Stephen Hawking, que, além de ter mudado os rumos da física moderna, é portador de uma doença séria chamada esclerose lateral amiotrófica (ELA), que o impossibilita de se movimentar, tornando sua figura ainda mais interessante aos olhos do mundo.

    Sua ex-esposa, Jane Hawking, publicou em 2008 o livro A Teoria de Tudo – A Extraordinária História de Jane e Stephen Hawkin contando a experiência de ter sido casada durante tantos anos com o físico. Em 2014, o diretor James Marsh e o roteirista Anthony McCarten trazem essa interessante história aos cinemas com A Teoria de Tudo, tendo o excelente Eddie Redmayne no papel de Hawking, e Felicity Jones como sua esposa.

    Por não se tratar de um filme biográfico sobre a vida e obra do cientista, a história começa com Hawking já na faculdade, buscando um tema para seu doutorado. O jovem, então, começa a perceber que algo está estranho com seus movimentos musculares, ao mesmo tempo que lida com colegas, professores e conhece a jovem estudante de línguas Jane. Após pouco tempo, quando ambos já estavam em um relacionamento, ele sofre um tombo do qual não consegue se levantar. Levado ao hospital e diagnosticado com a grave doença, recebe uma estimativa de vida de dois anos. Por isso, tenta afastar Jane, que reluta e decide manter-se ao lado do físico teórico, o que se manterá por 26 anos e três filhos.

    Retratando fielmente a perseverança do britânico, o filme mostra o passo a passo de sua degeneração física em contraponto a sua ascensão meteórica como astrofísico, desafiando todas as convenções da academia impostas até então, como, por exemplo, sua ideia a respeito dos buracos negros (que ele iria alterar posteriormente) e conceitos sobre a expansão do universo. O filme também aborda, de maneira mais leve, a postura que possui em relação a religião e à crença em deus. Apesar de se declarar publicamente ateu, o filme evita escancarar tais posições e mostra a vida de Stephen Hawking, de jovem cientista arrogante a um idoso cientista que “prevê a possibilidade de deus”, sendo que isso está longe da realidade. O que faz é brincar com as palavras e as convenções das pessoas usando seu famoso senso de humor, e essa fina ironia o filme não consegue captar nesse aspecto.

    Porém, a relação entre ele e sua esposa Jane possui momentos belos e profundos. Jane se doa à família, e deixa sua própria vida de lado. Mesmo quando tenta retomar seus estudos, o pesado cotidiano a impede de prosseguir com isso. A sombra de Hawking é muito grande, e sua teimosia em aceitar ajuda profissional reforça sua visão tradicionalista, beirando o machismo. Porém, tudo muda quando Jane conhece o professor de música de uma igreja local Jonathan H. Jones (Charlie Cox), que logo passa a morar com o casal, suscitando vários boatos de que ele e Jane eram amantes, o que o filme em momento algum aborda diretamente, apesar de ser fato conhecido por todos.

    A relação apaixonada e conturbada de Jane e o marido também é mostrada de forma interessante. Com empenho no começo e depois passando por problemas, como quando Jane explica a Jonathan um resumo das ideias de Stephen (sobre como ele queria uma teoria que explicasse todo o funcionamento do universo, desde as grandes massas até as pequenas partículas) de forma passivo-agressiva, tentando conter ao máximo a frustração de sua própria vida sendo contida ali dentro daquele universo.

    Porém, após uma complicação em uma viagem, Hawking é submetido a uma traqueostomia e perde a habilidade de falar para sempre, o que causa também o afastamento de Jonathan da família. É nesse momento que o físico teórico recebe o sintetizador de voz, que hoje é uma de suas maiores características.

    O peso de cada uma das dificuldades que Hawking precisou passar é enorme. Superar o diagnóstico, a expectativa de vida, o uso da cadeira de rodas e depois o sintetizador seriam brutais para qualquer pessoa. Porém, ele consegue continuar avançando e produzindo. De onde ele tira essa força é um mistério para todos nós, e o filme falha em problematizar justamente esse lado. O cosmólogo britânico sempre foi contrário à eutanásia (apesar de recentemente ter mudado de opinião) e nunca se apoiou em nenhuma religião para obter conforto ou uma fuga da realidade. Sua mente genial está para sempre aprisionada nesse corpo, e raras vezes o filme parece questionar como foi passar por tudo isso. Em sua família, conseguimos sentir esse peso, mas não nele.

    A ciência também vai, conforme o filme avança, perdendo importância na narrativa. Cada vez menos as universidades e professores aparecem, tornando a história cada vez mais pessoal e intimista, o que por sua vez dificulta um pouco a compreensão do espectador a respeito da forma com a qual Hawking se tornou conhecido realmente. O caminho é corrigido subitamente quando aborda a publicação de seu primeiro livro, Uma Breve História do Tempo, em que ele tenta explicar um assunto complicado e “chato” para o leitor comum, e com isso vende milhões de cópias por todo o mundo, saindo de vez das revistas científicas e indo parar nos jornais e tabloides. O tempo sempre foi sua grande paixão. E compreendê-lo por completo, seu maior desafio.

    A vantagem de A Teoria de Tudo é sua honestidade. Não se propõe a decifrar por completo a figura do cientista ou de sua esposa, e sim os frutos de sua interação por todos os anos de casamento, e como um impactou a vida do outro na intimidade. Apesar de flertar com momentos um pouco clichês em cenas românticas, mostrar epifanias criativas em momentos aleatórios e expor discursos de autoajuda em palestras que mais parecem motivacionais do que científicas, consegue jogar luz dentro deste personagem tão fascinante. Vale a assistida, mas consciente de suas limitações, como qualquer biografia.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

    Crítica | Boyhood: Da Infância à Juventude

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    Boyhood tem tudo – tudo sob medida – para ser um clássico da Sessão da Tarde. Infelizmente, o espaço vespertino de filmes na programação da emissora é de péssima qualidade, há muito alheio a apostar no êxito de outrora, como com A Lagoa Azul, Elvira ou Uma Babá Quase Perfeita. Filmes família (Lagoa já não é mais visto inocentemente como antes) que todo mundo curte e curtia, principalmente se houver um cachorro como cereja do bolo; se for falante, melhor ainda. No filme de Richard Linklater, filmado em 39 dias (1 mês e pouco) ao longo de 12 anos (1 ou 2 dias pra cada cena, talvez), não há animais nem nada “do barulho” que desde a época que começou a ser gravado já não funcionava mais com a plateia. A obra carrega em si, por excelência, no tratamento da narrativa, a alma leve dos anos 80 que fascina o espectador (sempre carente de modéstia) dos anos 2000, tempos complexos em que desejamos cada vez mais a simplicidade, o alívio, o despretensioso. Num mundo cheio de segundas e décimas intenções, quando encontramos um filme, livro ou música que invoca um quase extinto frescor lenitivo, a problemática teia social vigente, ah… Brisa no deserto.

    Só que os méritos do filme de Linklater param por aí. O cara merece aplausos pela iniciativa de tornar o sonho real? Sem dúvida! Mas a tal da profundidade que muitos apontam em sua obra mais ambiciosa (e incomparável diante do valor de qualquer filme de sua trilogia romântica) não afunda muito na superfície da simplicidade do tempo, numa rasa exaltação da família e da riqueza da entidade familiar, como se uma homenagem a Era Uma Vez em Tóquio ou Pai e Filha – ópios soberbos sobre laços étnicos – ganhasse território americano nos moldes épicos do cinema de Yasujiro Ozu, impraticável por qualquer cineasta que não seja o próprio, tamanha a força de seu talento, sabedoria e leveza artística que nenhum outro, oriental ou não, conseguiu repetir até então. Linklater homenageia mesmo sem querer (querendo) a pureza de um Cinema leve e emocional ao extremo, mas acha contradição ao resgatar valores que já se repetiu em resgatar antes, e ao (simplesmente) focar 12 anos mundanos de uma família branca de classe média em fórmulas de publicidade que vendem a obra a partir de sua forma, e não do seu conteúdo, do recheio que iria, por fim, perfurar a validez do filme no tempo.

    James Cameron levou de 10 a 15 anos para rodar Avatar, mas foi na sua revolução tecnológica e no seu conteúdo 3D puramente técnico que o filme honestamente se apoiou, e não no seu arremedo de história. Boyhood só é levemente mais nobre por transcender e preferir a carga dramática ao aspecto técnico, mas cujo status de proeminência da tola história de um menino e sua família chega a ser tão leve quanto uma formiga se comparada à grandeza dos longos anos de produção, tal um elefante numa balança desigual de destaques relevantes. Um filme que exalta e, devido à longa duração, superestima as digressões em uma história, pois vai e volta, vai e volta, entre o limite do agradável e descartável, o rico e o gratuito, coisa típica da Sessão global, também.

    Na verdade, o que mais vale na obra não é nem a história, nem a duração das filmagens, mas sim o que de ambos os aspectos se pode extrair da plateia: o exercício da interpretação individual. O que mais cada um gosta em um filme e desgosta, se inspira para recriar na arte ou na vida, admira, reflete, se espelha ou repreende na tela é tão relativo quanto o gosto duvidável da direção irregular de Linklater, no começo compatível a um diretor de filmes amadores, ainda nos anos 90, terminando o filme de um jeito 100% carinhoso e paternal ao material que cultivou com tanto esmero, por mais de uma década. Certeza mesmo vem da ótima montagem em torno da obra, e acima de tudo, do talento à prova do tempo de Patricia Arquette, ótima como a matriarca que, quando vê barba no rosto do moleque, trava um diálogo emocionante sobre a brevidade das coisas, espécie de resumo do filme e a melhor cena de uma bijuteria que brilha, mas não é ouro. Deixemos ao tempo mostrar até aonde o brilho chega.

  • Crítica | Como Na Canção dos Beatles

    Crítica | Como Na Canção dos Beatles

    Como Na Canção 1

    Baseado na obra Norwegian Wood, de Haruki Murakami, Como na Canção dos Beatles exibe uma história que mistura melancolia existencial com viés revolucionário político. A base da experiência é a solidão sentimental de Toru Watanabe (Keniche Matsuyama), cuja confusão mental começa por sua dedicação à moça que é seu primeiro amor, Naoko (Rinko Kikuchi), uma bela menina, com dificuldades sérias de socialização, cuja introspecção faz Toru afundar-se ainda mais no desolamento e exílio.

    O principal fator que mantém o casal unido é um segredo do passado, que envolve a dor da perda de um amigo próximo, cujo trauma jamais foi superado por nenhuma das partes. Mais do que amor carnal e dependência sentimental, há uma relação de divisão do luto, um compartilhamento da dor que não deveria ser quebrado.

    A modernidade da vida adulta exerce em Toru seu domínio, inserindo-o no mercado de trabalho e na vida acadêmica, o que o faz ter contato com mais pessoas, se abrir para maiores experiências e provar de vieses que antes nem imaginava existirem. O mundo de possibilidades que se abre a ele faz nascer a amizade com Midori (Kiko Mizuhara), cujo comportamento absolutamente sociável difere, e muito, de seu par amoroso.

    O apoio que a nova amiga de Toru exerce é tão grande que ela até o acompanha às visitas que faz a Naoko, sendo uma presença constante no relacionamento de ambos, reforçando a ideia de ambiguidade, pavimentando a bifurcação da estrada da dúvida, que insiste em se apresentar ao coração do rapaz.

    As planícies geladas cobertas de neve resgatam ao cenário uma sensação de extrema solidão, que remete ao estado de espírito de cada uma das partes da equação. Um isolamento que não é quebrado mesmo nos momentos de interação carnal entre o casal. A depressão evade a mente de Naoko, se alastra como uma doença contagiosa, tomando a alma dos que a querem bem, fazendo da estima própria de seu parceiro algo cada vez mais baixo.

    A trilha sonora muda de tom ao se aproximar da meia-hora final. Os tons ditados pelo conjunto de cordas prenunciam o destino trágico, fazendo até dos movimentos de câmera de Anh Hung Tran algo acessório, apenas. O choro derramado sob as pedras, que ilham o personagem principal, é resultado de toda a trajetória que ele fez, com a dramaticidade elevando-se a cada segundo de fita. O amor corre ao lado da calamidade.

    As lágrimas de Naoko e Toru insistem em aparecer, mesmo com a chuva lavando a face dos amedrontados românticos. A angústia é a sensação constante para Toru, que vê na impossibilidade de se aprofundar em uma relação com Midori um avatar para sua tristeza, ainda que o movimento final seja o de sinalizar uma possibilidade de mudança, em uma atitude de pouco alento. Como na canção dos Beatles, uma histórica romântica repleta de pesar, em que a culpa e o trauma norteiam o destino mostrado na película, sem chances claras de redenção para nenhuma das partes.

  • Crítica | Quero Matar Meu Chefe

    Crítica | Quero Matar Meu Chefe

    cartaz-quero-matar-meu-chefe

    A tônica do discurso de Nick Hendricks (Jason Bateman) reprisa-se na “fatalidade” dos outros dois protagonistas, cuja única diferença é na dor causada por seus “superiores”. O foco da edição modernosa, cuja narração muito acrescenta ao conteúdo, é uma ode ao desconforto, um conformismo moderado, mas incomodado com algo básico: os desmandos de seu chefe, o autoritário Steve Wibie (Kevin Spacey). A causa do infortúnio de Dale Arbus (Charlie Day) é sua consultora, uma dentista fogosa chamada Julia Harris, vivida por Jennifer Aniston, exalando sexualidade para o pobre rapaz que quer manter-se fiel ao seu compromisso. As agruras de Kurt Buckman (Jason Sudeikis) não são exatamente relacionadas ao seu chefe, mas ao filho mimado e megalomaníaco deste, Bobby Pellitt (um Colin Farrell fazendo o melhor papel de sua vida), que repentinamente torna-se o responsável pela empresa em razão da doença de seu pai.

    O trio de atraentes homens de meia-idade tem uma autêntica encruzilhada dramática: trabalhar em suas respectivas carreiras em ambientes hostis, cujas oportunidades de crescimento são escassas, não importando seu alto nível de comprometimento e esforço em realizar um bom trabalho.

    Apesar dos múltiplos repertórios e das diferenças de personalidade que incorrem a cada um deles, na essência, o mesmo destino catastrófico recai sobre a existência deles. Dos sacripantas que ordenam a miséria na vida dos funcionários exemplares. A escolha básica deveria ser entre manter suas dignidades intactas, saindo do serviço e da miséria financeira, mais calamitosa ainda em tempos de crise, o que inviabiliza qualquer chance de saírem de seus postos. A única alternativa é fugir completamente da norma padrão, contratando um assassino de aluguel para se desfazer do incômodo que os acomete.

    Claro que, em se tratando de três espécimes sem qualquer experiência, o simples ato de procurar alguém para fazer o trabalho sujo teria que ser aventuresco, repleto de situações nonsenses. Após fracassar algumas vezes em arranjar um assassino, o trio é orientado a verificar os hábitos de seus mandantes para eles mesmos cometerem homicídio, com a responsabilidade trocada de acordo com o vínculo empregatício dos homens. Todo o estratagema é uma desculpa para se inserirem na intimidade completamente louca dos excêntricos próceres.

    As referências farsescas a filmes clássicos são diversas, desde Pulp Fiction até a despretensiosa comédia Trovão Tropical. A histeria causada pela falta de traquejo de Nick, Dale e Kurt só não é mais engraçada que todo o entorno de Bobby Pellitt. Nenhum aspecto de sua desfaçatez é minimamente aceitável para uma pessoa adulta. Todo o conjunto de ações de Bobby revela uma personalidade machista e fajuta, caricata ao extremo, tão ignóbil que ele se torna extremamente engraçado.

    O carisma dos “vilões”, tal como a completa falta de confiança que Harken sente de si mesmo e da esposa, faz de Quero Matar Meu Chefe um filme diferenciado. A experiência de Seth Gordon em comandar comédias televisivas faz com que ele seja a escolha perfeita para fazer transitarem suas piadas em núcleos diferentes, dando o mesmo nível de importância para cada uma das causas. O carisma, roteiro e loucuras da trama fazem com que a obra seja muito superior às comédias que percorreram os cinemas em 2011.

  • Crítica | De Volta ao Jogo

    Crítica | De Volta ao Jogo

    De volta ao jogo - poster brasileiro

    Não é novidade que Keanu Reeves divide opiniões em relação a sua forma de atuação, bem como aos filmes que escolhe atuar. Desde sua participação na franquia Matrix, o ator passou a oscilar em papéis de maior ou menor expressividade dentro de Hollywood. Vimos Reeves participando de grandes produções, desde Constantine a filmes de baixo orçamento, como Sem Destino. Certo é que o recluso ator tem voltado a aparecer cada vez mais no circuito comercial, a começar pelo exagerado filme de fantasia samurai 47 Ronins e agora com De Volta ao Jogo.

    O filme conta a história do personagem que intitula originalmente o filme, John Wick, um assassino de aluguel que se aposentou do mundo do crime pra viver uma vida pacata ao lado de sua esposa. Uma vida perfeita até que uma doença levou a vida de sua mulher. Como último presente em vida, ela lhe presenteou com um pequeno cachorro e uma mensagem carinhosa para que John não desistisse.

    O destino de John muda completamente quando um capanga da máfia russa resolve invadir sua casa, espancá-lo, matar seu cachorro e, por fim, roubar seu Boss Mustang 1969. Por esse motivo, John retorna ao seu eu do passado para se vingar dos agressores da memória de sua esposa.

    A sinopse aparenta ser boba, talvez um pouco ingênua, mas a simplicidade do plot não faz jus ao filme em si. O roteiro simples e direto não diminui a execução soberba e as excelentes cenas de ação que são apresentadas durante a obra. Chad Stahelski, dublê responsável por cobrir Brandon Lee no clássico O Corvo, apresenta um trabalho impecável, refletindo sua longa carreira no cinema. Em De Volta ao Jogo, os movimentos de câmera frenéticos e cortes rápidos que acompanham lutas – técnica muito utilizada com o intuito de conceder dinamicidade às cenas ao mesmo tempo que facilita a filmagem da ação propriamente dita – dão lugar a uma filmagem precisa, calma, que explora cada momento das cenas de ação, extremamente bem elaboradas e coreografadas.

    De Volta ao Jogo empolga. E não só empolga como diverte. O envolvimento da trama e das situações absurdas em que John é posto – bem como em todas as situações do filme que giram em torno da fama que o personagem tem entre os assassinos no submundo – gera momentos hilários. Humor involuntário, porém natural, que cativa o espectador a embarcar com mais naturalidade na vendeta de John Wick e observar as centenas de mortes que seguem dali em diante.

    Michael Nyqvist também merece o devido destaque por sua participação, bem como Willem Dafoe, e até Ian McShane em um papel mais singelo. Porém, os holofotes mais uma vez estão mirando em Keanu Reeves, o qual incorpora com naturalidade a personalidade obscura e contida de John Wick. Gostando ou não de Reeves, ele tem nossa atenção.

    Texto de autoria de Pedro Lobato.

  • Crítica | Amor, Plástico e Barulho

    Crítica | Amor, Plástico e Barulho

    Amor, Plastico e Barulho 1

    O nome extenso e composto esconde uma intenção pseudo-simplista da diretora Renata Pinheiro. Amor, Plástico e Barulho brinca com os elemento do ritmo tecnobrega, cada vez mais popular no Brasil, que ganha as ruas a partir do Norte/Nordeste para contar uma história de vaidade e narcisismo, mostrando uma jornada de intensa competição e rivalidade feminista, duas trajetórias, duas mulheres, que dividem os mesmos amores.

    A trilha que mistura ritmos populares no estado de Pernambuco, resgata elementos do forró, misturando com a batida groove, produzindo um cenário ideal para a prática bulímica que ocorrerá em tela, que já no primeiro momento, discute a glamourização das moças de família, que se escondem atrás de saltos agulhas e maquiagens fortes, capazes de embelezá-las e sexualizá-las, mas não de esconder suas carências e necessidades básicas.

    A arte musical é a oportunidade de avanço e apogeu econômico, possivelmente o único modo de “sair da lama”, primeiro para a protagonista mais vivida, Jaqueline Carvalho, interpretada pela premiada Maeve Jinkings. A personagem é dançarina e vocalista principal da banda Amor com Veneno, cujas letras melosas engodam o coração de homens e mulheres de origem humilde, cuja exploração do corpo e do sexo é uma das poucas formas de livre expressão.

    O protagonismo do filme é divido com a personagem Michelle “Shelly” (Nash Laila), outra das dançarinas da Amor com Veneno, que guarda um sonho de poder cantar dentro dos shows da Amor com Veneno. Por trás das palavras cafonas e imagens de gosto duvidoso, esconde-se uma enorme vontade de ascensão social também da parte de Shelly. Entre os detalhes nas partes erógenas de suas personagens, o progresso sofre uma amálgama com a sensualidade, reforçando a formula comum ao homem simplório.

    A duplicidades de personagens heroicos femininos tenta combater o pensamento misógino em meio a um mundo comandado por homens poderosos, usando o showbizz brega como a representação do mundo externo, mas sem livrar suas personagens de viver tentações e traições. Cor, dança, figurinos escalafobéticos, contribuem para o verniz da banda retratada, cuja nitidez de imagem contrasta com o aspecto embaçado dos comerciais do governo, com os poderosos distante da realidade enquanto o “comum” é próximo do público consumidor.

    Os períodos do dia servem de elemento narrativo, explanando a miséria econômica e sentimental das duas rivais, mostrando que o mundo e dramas de ambas é compartilhado. Pela manhã há a contemplação do ócio, enquanto a noite explora-se e “degradação do corpo”, claro, factoide este destacado pelos olhares do espectador mais identificado com o moralismo.

    Os diálogos naturalistas presentes no roteiro de Pinheiro e de Sérgio Oliveira destacam que o “brega” dá voz a multiplicidade de interpretações das relações humanas. A utilização indiscriminada do gênero musical não exige do público qualquer conhecimento ou apreço pelo ritmo, uma vez que o fato é irrelevante, servindo apenas como pano de fundo, como era o Jazz para Whiplash e o Balé para Cisne Negro.

    Impedida de enfim estrear como cantora, Shelly exibe uma tristeza que predomina entre os elementos visuais. Mesmo estando maquiada, bela e pronta para a ação da noite, ela é incapaz de demonstrar qualquer reação positiva, sofrendo medo de ser enfim rejeitada pelo público e empresariado. Ao enxergar a decadência de sua antiga rival, impera o sentimento de obsolescência, que por sua vez trava um duelo com a insignificância e invisibilidade entre as gerações. O medo maior é o perigo de ser ordinário, de não alcançar a notoriedade buscada por todo o decorrer do filme.

    A resignação de quem percebeu dedicar seus dias a um ofício fútil, que ignorava até os entes queridos faz enfim Jaqueline cair em si, retornando a casa de seus familiares. Os aspectos simples como purpurina, plumas, neon e a batida prosseguem no ideário de Shelly, que ainda não aceitou a derrota, mesmo com a rejeição do público e decadência de sua contraparte. Renata Pinheiro traz uma história realista, que flerta com a fantasia e o torpor da fama, deixando a sina do insucesso acometer seus personagens, elevando as estatísticas ao patamar de protagonista.

  • Crítica | Antes de Dormir

    Crítica | Antes de Dormir

    O primeiro corte de cena em Antes de Dormir remete à vermelhidão dos olhos de sua personagem principal, Christine Lucas, vivida por Nicole Kidman, uma mulher de meia-idade que sofre um mal raro, causado por um golpe acidental na cabeça. Sua memória é muito curta, dura apenas os momentos em que está acordada de dia, o que a faz duvidar de sua condição de esposa.

    Seu par, Ben Lucas – Colin Firth – é um marido devotado, que tenta a todo custo reconstruir o que deveria restar da combalida psiquê de Christine, ajudando-a a anotar fatos importantes de sua vida em um diário, reunindo em escrito o que deveria ser importante para sua vida. Nesse ínterim, Christine, que acabou de saber de sua condição, recebe o telefonema do Doutor Nash (Mark Strong), que tenta ajudá-la a se reabilitar, montando com ela um banco de memórias através de vídeos, mas sem o conhecimento do seu marido, que já num primeiro momento parece ser uma ameaça ou certa possibilidade de reter alguma lembrança.

    Rowan Joffe tem em sua filmografia uma variedade de filmes de temática ansiosa, desde o thriller de ação Extermínio 2, ao filme de espionagem O Homem Misterioso. Tal experiência tem a função de produzir os momentos de tensão máxima, elementos chave para atiçar no espectador a curiosidade para os dramas exibidos em tela. O que salta aos olhos é a vertente da ambiguidade, presente em praticamente todas as conclusões que são tiradas a partir da investigação minuciosa de uma personagem que não consegue lembrar o que fez na noite anterior.

    A repulsa ao sexo presente no comportamento de Christine é um dos indícios de que sua mente combalida realiza na tentativa de consertar seu defeito primordial, um modo de tentar não repetir as derrotas para seus agressores. A opressão faz reprimir mais que suas lembranças, mas também sua feminilidade e instinto materno, nunca inteiramente satisfeito, até o final.

    O embate físico a que a protagonista se submete é acompanhado da mais importante de suas gravações, fruto da libertação que a realidade lhe traz, ao poder abraçar a verdade que deveria regê-la de uma vez por todas. O dia seguinte ao combate começa em um hospital, onde os seus desejos finalmente têm um fim ideal, aparando as arestas que se puseram ante a existência da mulher e mãe que Nicole Kidman vive. O final, resolvido de modo agradável, destoa um bocado do resto da fita, fechando a curva descendente e óbvia do que poderia ter sido uma história bem mais transgressora. Mas seu fim não é uma decepção completa exatamente por entregar um fim de jornada justo para uma personagem que labutou o tempo inteiro.

  • Crítica | O Filho do Batman

    Crítica | O Filho do Batman

    O Filho Do Batman 1

    Iniciando-se nas instalações de Ra’s Al Ghul, a animação O Filho do Batman começa com uma invasão ocidental, com soldados armados massacrando os ninjas da Liga das Sombras, cujo contra-ataque começa por esforços isolados de Talia, filha do soberano e mãe do pequeno prodígio Damian. As profecias em torno do jovem eram muitas, sempre associadas a um legado sanguinário e massacrante, como nas primeiras cenas de ação.

    Logo a origem da investida é mostrada como fruto de uma vingança impingida por Slade Wilson – ou Exterminador – que busca o revanchismo pela expulsão do clã de guerreiros, decidida pessoalmente por seu antigo mestre, que sucumbe ante a sua espada. Diante da morte do Cabeça de Demônio, a voluptuosa mãe resolve levar seu filho ao único destino onde ele estaria seguro: Gotham City.

    O resgate ao arco de Grant Morrison, Batman e Filho, contém inúmeras liberdades criativas, tantas que quase não é possível identificar uma releitura tão fiel, exceto pela premissa de resgatar o filho perdido de Batman e da filha do Demônio, pensada pelo escocês. Como nas revistas, Talia deixa o rebento com o Morcego para que o menino fique longe de problemas, mas não distante dos incômodos provenientes da pouca idade. As travessuras dão lugar a um instinto assassino e a uma voracidade causados pela ausência de uma figura materna e pela persuasão dos assassinos com quem cresceu.

    Sem se prolongar muito, o roteiro trata de fazer o menino começar a agir contra o submundo de Gotham, onde encontra Asa Noturna, antigo pupilo de seu pai. Depois de lutar ferozmente com o antigo Robin, o menino reclama para si o capuz de garoto prodígio, e após uma acurada pesquisa de campo, com seu pai e Dick Grayson, Damian descobre o possível paradeiro de sua mãe, que é mantida refém pelo traidor da Liga das Sombras.

    Ao suprimir grande parte dos eventos mostrados nas sagas de Morrison, o roteiro acaba por perder um bocado do sentido, constituindo, em si, eventos, ocorridos um atrás do outro, sem muita significância, simplificando a história, mas também tornando-a menos atraente, especialmente para o espectador atento ao cânone dos quadrinhos. A versão filmada é como alternativa, no estilo dos Novos 52, aos fatos ocorridos antes do reboot da editora.

    Apesar da animação conter um escopo de violência poucas vezes visto em adaptações de super-heróis, ainda falta conteúdo. Os cortes feitos na história não alteraram a lógica de entendimento, mas sim um bocado do espírito presente nas tramas que introduziam Damian no universo do Morcego. Qualquer menção aos escritos de Morrison não passam de inspiração, quando muito. O Filho do Batman é semelhante às animações pós-reboot do Universo Animado da DC que substituem figuras chave e exclusivas por personagens mais famosos, sem tomar o cuidado básico de não descaracterizar a história, fato que infelizmente ocorre nesta animação.

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  • Crítica | Foxcatcher: Uma História Que Chocou o Mundo

    Crítica | Foxcatcher: Uma História Que Chocou o Mundo

    Foxcatcher 1

    O piano que predomina na trilha remete a uma singeleza espiritual bastante diferente dos golpes presentes nos membros superiores e inferiores dos personagens de Foxcatcher, nova aventura de Bennet Miller na direção. A história, baseada em eventos reais, começa exibindo a rotina de Mark Shultz, interpretado por Channing Tatum, claramente afetado pelas condições que envolvem o proceder das lutas, com o pensamento e modo de caminhar afetados pelos materiais comuns aos lutadores profissionais, e abalado emocionalmente pela ausência de seu irmão, Dave (Mark Ruffalo). A presença do caçula, em um discurso em uma escola primária, já prenuncia a tragédia que ocorrerá na família, sem necessidade de sinopse ou qualquer aviso prévio.

    Mark e Dave trabalham arduamente em um ginásio, onde as posições distintas de ambos são exibidas, mais uma vez reforçadas pelos belos ângulos em que a câmera se insere, fazendo com que cada golpe proferido e esquivado tenha texturas e significados diferentes entre si. Cada movimento exprime sentimentos, vontades e sensações diferentes, agravadas pelas diferenças entre o sonho olímpico de Mark e os rumos profissionais que Dave pensa para a dupla.

    Como se fosse um evento do destino, o cotidiano de Mark é interrompido pela ligação de um homem rico e famoso: John Du Pont, interpretado por um modificado Steve Carrell, quase irreconhecível pela maquiagem que o faz parecer um brutamontes. Seu comportamento envolve alguns métodos simples, mas com uma ambição sem igual. Sua fama e ostentação material seriam frutos de um passado de investimento explorando o espetáculo das lutas pagas. Cada palavra que sai de sua boca mantém um conteúdo de motivação e inspiração, traçando paralelos entre o wrestling e as guerras travadas pelos americanos, tendo em comum a supervalorização da honra, o que claramente seduz Mark e o faz tentar conversar com seu irmão.

    A recusa da proposta causa um racha entre os irmãos, com o caçula acreditando ser o comodismo o principal fator da estabilidade, mas eles encerram as discussões em paz, cada um seguindo o seu rumo. O modo curioso como os lutadores se movimentam lembra um comportamento primário, repleto de selvageria, quase animalesco, como se seres irracionais tentassem com todo esforço possível se adequar ao mundo civilizado, invertendo o paradigma, por exemplo, de histórias como O Planeta dos Macacos.

    Aos olhos de Du Pont, o alvo prioritário era o irmão mais velho, que, preso a sua família, demonstra-se pouco seduzido pelas propostas do aposentado homem rico. As conversas, travadas entre os personagens, são quase sempre executadas sem música, em um silêncio que inquieta o espectador, maximizando a sensação incômoda ao exibir o amor de Du Pont por armas raras. Seu comportamento, passivo agressivo com os que deveriam ser seus pupilos, faz perguntar a todo momento quando será o momento em que ele explodirá, como um barril repleto de pólvora, com um furo que permite um lastro prestes a explodir e desgraçar tudo a sua volta, sob o risco de ocorrer uma fatalidade ao sinal de qualquer mínima faísca.

    Entre financiador e empregado nasce uma relação diferente, de interdependência, incluindo treinamentos físicos e um compartilhar sentimental que engloba segredos e vícios químicos, mesmo os que são tratados pelos esportistas como pecados globais. O salário desses atos logo é cobrado, com uma derrocada de seus desempenhos atléticos, e uma entrada superficial no ambiente depressivo, que faz com que seu novo mentor o deprecie, movendo seu antigo tutor para perto de si novamente. Logo, Du Pont e Dave se veem frente a frente disputando a atenção de Mark, claro, com o irmão mais próximo do protagonista, que retribui ao magnata um pouco da rejeição sofrida anteriormente.

    A preparação física do lutador é semelhante à carreira odisseica de Ulisses, pautada na superação física e mental e repleta de reveses, fazendo com que as vitórias sejam ainda mais valorizadas. O trio de personagens focados pela lente mostra indivíduos com limitações físicas e espirituais, todas contidas em tudo o que representa o grupo Foxcatcher. A entidade é claramente posta acima do fraquejar humano, perfeita, sem possibilidade de nuances humanas, o que faz dificultar ainda mais a já atribulada relação entre John e Mark, que se deteriora cada vez mais no decorrer da fita.

    As desavenças têm suas resoluções baseadas na simplicidade, sendo possivelmente resolvidas caso o estado mental dos que brigaram estivesse em perfeitas condições. O que sobra no certame é a vaidade, e a principal vítima do arbítrio gratuito, a ponta do “triângulo amoroso”, que se mostrava a mais compreensiva, paciente e condescendente.

    O tom dourado da medalha de Mark não esconde a sensação de tristeza absoluta e amargura proveniente das perdas. O andar de cabeça baixa finalmente justifica-se, possivelmente pela vergonha e culpa que sente por agir tardiamente.

    Foxcatcher é um relato sensível que confunde a ordem de seus fatores, oras sendo mais um relato de uma versão, para, em outro momento, ser uma cinebiografia realista, que resgata o sentimental de seu objeto de análise. Semelhante ao vencedor do prêmio acadêmico Capote, a obra tem o agravar de serem três os espécimes analisados pela câmera de Miller, todos igualmente interessantes e bem interpretados, vivendo em uma atmosfera crível e bastante emotiva.

  • Crítica | Antes de Dormir

    Crítica | Antes de Dormir

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    A memória faz parte da composição de nossa identidade. É sua função organizar e registrar os acontecimentos vividos e, mesmo que de maneira transformadora, produzir uma linha narrativa de nossa própria história. A ausência da lembrança, seja crônica ou como um sintoma passageiro, é um tema recorrente em produções cinematográficas, tanto como enfoque central, visto em Amnésia, de Christopher Nolan, quanto usado como elemento para encorpar um roteiro, casos de Como se Fosse a Primeira Vez e Como Não Esquecer Essa Garota, romances cujos personagens possuem um curto espaço de lembrança memorial, gerando um viés bem-humorado.

    Adaptado da obra de S. J. Watson, relançado pela Editora Record devido ao lançamento do filme, Antes de Dormir reúne novamente Colin Firth e Nicole Kidman como casal, repetindo a parceria do drama Uma Longa Viagem. Kidman é Christine Lucas, uma mulher que sofreu um acidente traumático e que, todos os dias, acorda sem nenhuma lembrança de seu passado. Cada despertar de sua vida é uma reconstrução de seus próprios passos. Com a ajuda de um médico psiquiatra que recentemente acompanha seu caso, a personagem tenta restaurar pontos de sua vida. À medida que avança, surge a desconfiança natural do meio que a cerca.

    Se a confiança é uma construção mútua e naturalmente lenta, a condição da personagem depende da segurança que sente ao lado do marido, quem a atualiza diariamente sobre o casamento duradouro. Trata-se de uma fé cega diante de um homem aparentemente desconhecido, que não teria motivos para mentir para sua amada. À procura de exercícios que melhorem o quadro da paciente, o Dr. Nash (Mark Strong) aconselha Christine a fazer um diário filmado, mantendo-o escondido do marido, para lembrar-se do dia anterior. Este será o elemento de intriga que apresenta histórias que a personagem desconhece.

    Trata-se de uma produção em que tudo não é o que parece. Cada dia é como o primeiro de conquista e confiança, e a trama vai desafiando cada personagem e trazendo ao público a dúvida sobre a índole dessa pessoa. Durante a exibição, o público se representa pela personagem de Kidman tentando desafiar as intrigas e desfiar o fio da verdade, se é que há somente uma. A parcialidade narrativa promove uma maior intensidade do suspense. Como o público reconhece a base da história e se atrai por ela devido à curiosidade gerada, cada momento é visto com a expectativa de uma reviravolta. O quebra-cabeça mental será revelado até o final da trama e, mesmo que siga a cartilha de suspenses atuais, a dúvida é suficiente para que o enredo se sustente sem desembocar em exageros narrativos.

    Novamente permanece a impressão de que Nicole Kidman está tentando superar uma fase ruim de sua carreira. Porém, seu parceiro parece mais consciente de sua interpretação, e exterioriza melhor tanto o olhar cândido de um marido amoroso, como a fúria de um possível inimigo. A atriz reduz sua caracterização às naturais caras de pânico e medo que, em comparação com outros personagens de suspense/terror feitos por ela, como Grace, de Os Outros, permanece aquém em gestuais com leve exagero.

    O filme, que entrega ao público o suspense esperado, é uma destas produções tradicionais que se valem do talento de seus atores centrais. No entanto, no decorrer do ano, com diversos lançamentos semelhantes, pode não se destacar entre os melhores do gênero.

  • Crítica | Amor Obsessivo

    Crítica | Amor Obsessivo

    Mesmo reconhecendo que a linguagem escrita difere da cinematográfica, há aqueles que se incomodam quando sua obra predileta sofre modificações necessárias em uma adaptação. Um romance dentro de um filme é uma transposição impossível devido aos parâmetros estruturais que devem ser convertidos de maneira adequada, tudo para não perder a intenção original do autor e ser uma obra íntegra como longa-metragem.

    Baseado no romance Amor Sem Fim de Ian McEwan, Amor Obsessivo foi transposto de maneira parcial às telas. A bela linguagem formal do autor é naturalmente deixada de lado, visto que é impossível de ser inserida em um roteiro. Paralelamente a isso, a densidade dramática composta por situações simples, movidas pelo acaso e determinantes na vida de seus personagens, foi também esquecida no roteiro de Joe Penhall.

    Na trama, um acidente de balão em um parque em Londres é a situação-limite encontrada para expor o drama. Joe, um professor universitário, e outros presentes no local tentam prestar socorro às vítimas, mas são incapazes de impedir a fatalidade. É nesse momento delicado, compartilhado por estranhos, que surge Parry (Rhys Ifans), um dos socorristas que acaba se apaixonando pelo professor em um misto de amor e obsessão.

    Interpretada por Daniel Craig, a personagem de Joe foi bem reconstruída nas telas. No romance, a personagem narra a própria história enquanto a produção evita a narração em off e o transforma em um docente de uma universidade – originalmente, era um escritor científico –, um caminho correto para que, em cenas de aulas, a personagem apresente suas definições sobre o mundo, estabelecendo levemente parte do drama denso de McEwan.

    O dilema central situado na obsessão crescente de Parry perde a imparcialidade e se transforma em um drama com cenas de thriller de suspense. A força da obra original, que é a análise das relações e a fragilidade humana, é posta de lado para concentrar-se na obsessão, o tema mais banal da obra inicial.

    As mudanças são necessárias quando se trata de uma adaptação literária, mas, ao escolher somente um viés, dos diversos propostos pelo autor, a trama densa transforma-se em um fraco drama linear. Uma má execução que Christopher Hampton, roteirista de Desejo e Reparação, outro romance de McEwan, evitou: compôs um roteiro capaz de apresentar os dramas das personagem e a intenção fatalista que circunda a obra do autor. A reflexão que adensa as páginas do livro se transformou em um jogo de um homem solitário, obsessivo e doente, desintegrando a tensão das relações.

    Se comparações entre original e a adaptação enfraquecem argumentos, sempre favoráveis às obras originais, não há, com ou sem romance, profundidade suficiente que faça da produção uma história a ser recomendada. Explorando levemente o drama da obsessão, perdeu-se a profundidade original e não houve coragem suficiente que fizesse da obra uma trama de suspense. Funciona melhor como um complemento ao romance. Em outro caso, melhor optar pela obra original.

  • Crítica | O Predestinado

    Crítica | O Predestinado

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    Clamando pelos clássicos filmes de ação focados na vingança, com um visual que mistura elementos noir e aspectos visuais e estilísticos steampunk, O Predestinado começa violento, com uma câmera inquisitiva, investigando os meandros do modus operandi de um exímio assassino que teria feito um mal terrível por seus rivais. Baseado em um conto de Robert A. Heinlein, a fita desconstrói alguns dos recursos típicos dos filmes sci-fi.

    O ofício detetivesco é o aspecto policial mais evidente na rotina do personagem anônimo de Ethan Hawke, ferido gravemente por queimaduras, causadas logo no início da fita, marcas que deixaram seu rosto deformado, e seu espírito, ainda mais desejoso por um revés. Logo, o agente retorna ao passado, quando atuava como um competente agente de campo, munido de dons físicos e de um arsenal vasto que faziam dele o espécime perfeito para o tipo de trabalho que exercia.

    Trabalhando como bartender, o personagem principal encontra uma contadora de histórias vivida por Sarah Snook, que, no balcão de bar, movida pelo tédio, começa a remontar sua história, como uma órfã tradicionalmente rejeitada por figuras superiores e por aqueles que deveriam ser seus amigos. A aflição de sua alma, a instabilidade emocional, o pouco traquejo social, além da capacidade de observação bastante avançada fazem dela a escolha ideal para o ofício de agente governamental, servindo a uma filial que controla ações no espaço.

    Em comum com as histórias que conta, a personagem antes chamada Jane focaliza as rejeições amorosas que sofre, repetindo o paradigma exaustivamente, fato que a torna ainda mais vulnerável às propostas indecentes do braço podre do governo, o qual faz experiências com seu corpo, dando-lhe uma chance de sucesso quase nula. Ao se aproveitarem da moça partindo de sua principal característica, a carência, de certa forma até amenizam-se os desmandos que a “organização” faz com ela, quase justificando a mudança clínica – e pouco ética – pós-parto. A mudança clínica realizada a desfigurou tanto que uma mudança de identidade se fazia necessária, algo semelhante processo ocorreu com o funcionário do bar, no preâmbulo do filme.

    Logo, o destino dos dois personagens se mostra cruzado tempo demais antes do encontro casual, interligado por uma questão que flerta com teorias da conspiração, sociedades secretas e clichês de ficção científica, mas apresentados de modo hermético e muito natural. As mudanças feitas no espaço-tempo fazem lembrar belas referências a filmes laureados, os recursos narrativos presentes em 12 Macacos, claro, com um significado bastante diferente, catastrófico em essência.

    O conceito de predestinação é corrompido, mostrado nos últimos momentos como algo literalmente arquitetado, e não como um talento natural. Cada gama desse destino construído é explicado de um modo esmiuçado, mas não exageradamente didático. A rede de acontecimentos faz com que a linha temporal se assemelhe a uma intrincada rede de eventos que devem ser seguidos, ou ao menos algo a se buscar, mesmo a custo da sanidade daqueles que viajam por tais vias.

    A ética e responsabilidade de quem tem acesso a informação são questões levemente discutidas pelo encontro do protagonista com o Detonador Sussurrante, que, além de escancarar um fato que era prenunciado há tempos, exibe outro paradoxo, no qual consiste em mais chamar atenção por sua moralidade do que pelo fato de reprisar as questões de enfrentamento das contrapartes.

    A questão fundamental da inexorabilidade da existência é mantida, mesmo com tantas idas e vindas no espaço-tempo, acrescentando um viés bastante filosófico ao competente filme de Michael e Peter Spierig, que conseguem reunir ação frenética a um roteiro cativante. Apesar da fórmula redundante em si e dos furos, não cansa, até por seu caráter de absoluta despretensão.