Categoria: Críticas

  • Crítica | As Duas Faces de Janeiro

    Crítica | As Duas Faces de Janeiro

    As Duas Faces de Janeiro 1

    Em sua primeira aventura solo como diretor de longas-metragens, Hossein Amini pretende construir uma história em que os participantes têm fortes pecados morais, restando quase nenhuma opção para o público torcer. No passado de Amini como roteirista, incluem-se filmes como Drive, 47 Ronins e Branca de Neve e o Caçador. Essa miscelânea que compreende sua filmografia ajuda a traçar o esboço do que seria seu As Duas Faces de Janeiro, que trata da criminalidade – vista no filme com Gosling –, assim como mostra-se o intuito comercial – presente no filme com Reeves – e a desconstrução de mitos do conto de fadas repaginado, ao adaptar o livro homônimo de Patrícia Highsmith.

    O tripé de personagens centrais envolve o casal de americanos Chester MacFarland (Viggo Mortensen) e Colette MacFarland (Kirsten Dunst), os quais viajam pela Grécia em um encontro romântico. A diversão que os acomete é interrompida pela presença de Rydal (Oscar Isaac), um guia turístico bastante carismático, mas que esconde em seu sorriso e no verniz social um comportamento de vigarice, se aproveitando freneticamente dos viajantes carentes, e vendo no casal MacFarland, uma boa possibilidade de golpe quase certo, dada a ingenuidade dos dois.

    Ao visitar a dupla, Rydal acaba se deparando com um evento entrópico, com Chester saindo de seu quarto com um cadáver, tentando enganar a ele e a qualquer outra pessoa que viu a cena, fingindo estar cuidando de um amigo bêbado. Logo, o destino do casal e o do malandro se conectam, fazendo da união algo necessário, porém não muito agradável, fato consumado ao analisar as feições tensas de cada uma das partes.

    A tarifa cobrada a Chester pelo segredo que guarda é demasiado alta. Seus níveis de tensão e ansiedade aumentam com o tempo, deixando sua psiquê frágil e seu comportamento errático. Devaneios provindos da insegurança o fazem desconfiar até de seu par, com o marido achando que sua cônjuge tem um caso com seu cúmplice. A ambiguidade da questão é levada por grande parte da fita, o que proporciona ao filme um clima de teoria da conspiração durante toda sua duração.

    Logo, a crise acomete o trio de viajantes, como em um Na Estrada, cuja bad trip é ainda mais exagerada e calcada na inconfiabilidade. Os papéis de fidelidade se invertem, visto que Colette não olha mais para seu marido com o mesmo respeito de antes; em seu lugar, entram questões básicas, como o questionamento da lealdade, que são tão fortes na argumentação que fariam até do possível adultério algo muito subalterno comparado ao crime cometido.

    Aos que restam, fica a necessidade de apoio mútuo. Em uma sociedade macabra, semelhante a da premissa do hitchcockiano Pacto Sinistro (outra obra de Highsmith), e emulando-se também a relação eufemisticamente abordada em um pacto de sangue presente em Festim Diabólico, a básica diferença que há neste, As Duas Faces de Janeiro, é que a credibilidade entre os criminosos é nula.

    A conclusão da trama é salientada por uma perseguição frenética, cujo suspense predomina no drama e nos personagens. Os dois homens, antes simpáticos um ao outro, chegam ao ponto de tornarem-se inimigos mortais, para, então, reatar o coleguismo, enxergando-se mutuamente como errados, mas ainda assim, iguais, análogos àquele universo errático, onde até a moral e ética são conceitos discutíveis. A entrega de Chester a Rydal exibe uma compreensão madura de que, mesmo ante a possibilidade de traição, o sentimento que deveria predominar era a cumplicidade, para o bem e para o mal.

  • Crítica | Perseguição Virtual

    Crítica | Perseguição Virtual

    Perseguição Virtual - poster

    A análise de uma obra deve ser feita conforme a perspectiva da proposta cinematográfica. Não se pode assistir a um blockbuster e exigir primariamente uma história profunda ou erudita. Muitas vezes, a fórmula como tais filmes são compostos não desenvolve base suficiente para isso. Dessa mesma maneira, uma obra mais profunda, de cunho autoral, pode distanciar-se de uma história convencional e ter um apelo menor ao grande público. Evidente que, dentre essas definições, surgem produções feitas propositalmente para serem engraçadas ou intencionalmente toscas. Uma visão que deve ser prevalecida na análise crítica.

    Ameaça Virtual reúne Elijah Wood – que participa igualmente de grandes produções e de obras menores, como se atuasse também por diversão, além de trabalho – e a ex-atriz pornô Sasha Grey representando, desejando ou não, mais uma vez a mulher fetiche, a fim de atrair marmanjos para assisti-la. Filmado inteiramente por webcams, o conceito da produção é exagerado propositadamente.

    Wood é Nick Chambers, administrador de um site dedicado exclusivamente à atriz Jill Godard (Grey). Vencedor de um concurso para jantar com a estrela, Chambers fica decepcionado ao descobrir que a promoção era falsa e, com a ajuda de um misterioso hacker, se transforma em pivô de uma teia virtual que deseja conspirar contra a atriz.

    A trama é absurda. A princípio, pelos exagerados recursos tecnológicos fornecidos pelo hacker anônimo: o fanático observa a musa por câmeras de vigilância, acessa integralmente dados do celular da garota, além de utilizar diversos outros meios que registram imagens. Tudo apresentado como um passe de mágica ao personagem.

    O roteiro é focado no suspense do hacker anônimo, que utiliza Nick e sua fascinação pela atriz para obrigá-lo a realizar uma atividade criminosa. Embora absurda, a tensão se mantém, e o ritmo exagerado, graças aos diversos recursos tecnológicos, produz um tom kitsch à obra, que parece impossível de ser levada a sério. Distanciando-se de qualquer conceito relacionado a uma conspiração real, a história se transforma em um divertimento descerebrado de um garoto tentando salvar a mulher de seus sonhos.

    Os recursos digitais são bem utilizados em cena. Como assistimos à boa parte da obra através de uma tela de computador que captura a imagem de Chambers, observa o celular da atriz, e a vê em câmeras de vigilância diversas, além de outros recursos, o excesso de informação poderia retirar a atenção do público. Porém, a edição e a multiplicidade de câmeras dão agilidade e o enfoque necessário para cada situação que mereça maior atenção do público.

    Se há alguma lição a ser extraída da obra – mesmo que de maneira desnecessária, afinal, como mencionado, a produção não se propõe a isso –, é o cuidado que devemos ter na era virtual; e, principalmente, qualquer donzela em perigo necessita de salvação. O absurdo da produção sustenta uma trama divertida, em que os atores também estão à vontade. Como se, diante de grandes produções de Wood e da sempre pretensa seriedade de Grey, fosse favorável um tempo para a produção de uma obra cujos recursos não são necessários, e em cujo set de filmagem seja possível divertir-se.

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  • Crítica | Os Pinguins de Madagascar

    Crítica | Os Pinguins de Madagascar

    Os Pinguins de Madagascar

    Em 2005, a Dreamworks Animation comemorava o lançamento de sua décima animação. Diferentemente do grande sucesso do estúdio, a franquia Shrek (até então com duas produções), o filme Madagascar dava prosseguimento ao apelo anunciado por O Espanta Tubarão como uma estreia em potencial voltada ao público infantil. Dez anos depois, em sua 30ª animação, o universo dessas personagens retorna, ampliando o sucesso de uma trilogia que arrecadou quase dois bilhões de bilheteria.

    Inicialmente, o inédito Cada Um Na Sua Casa seria o lançamento do estúdio para o verão americano. Porém, devido à concorrência, escolheram um caminho seguro: Os Pinguins de Madagascar, um spin-off da trilogia dos fugitivos do zoológico. A composição do quarteto central, Capitão, Kolwaski, Rico e Recruta, segue à risca a linha de coadjuvantes que, devido a uma personalidade própria e um humor peculiar, destacam-se em animações Devido à ausência de um nome próprio para a equipe de pinguins, o título permanece ligado à franquia original. O grupo também é formado por estrelas de uma série animada da Nickelodeon, porém esse longa-metragem permanece fora da cronologia da série, situando em um momento após Madagascar 3: Os Procurados.

    Os minutos iniciais da produção foram apresentados anteriormente ao público como um curta-metragem divulgado pela Fox em seu canal oficial, mostrado em eventos, como a Comic Con Experience, com direito a comentários de produção de Benedict Cumberbatch, um dos dubladores da versão americana. Em um breve período de tempo, conhecemos a origem da amizade do quarteto, e a trama retorna ao presente, apresentando um vilão polvo, a cara e a voz de John Malkovich, que deseja se vingar dos pinguins. Como apoio, entra em cena a equipe Vento do Norte, um grupo de elite que policia qualquer agressão contra animais indefesos.

    O roteiro de Michael Colton, John Aboud e Brandon Sawyer segue a fórmula da animação tradicional voltada para a família, com o diferencial da Dreamworks não produzir histórias que concorram diretamente com a Disney, a qual sempre trabalha em filmes visando um amplo público, entre adultos e crianças. A trama é mais plana, uma simples história de aventura marcada por muitas cenas de aventura ou humor, escondendo a ausência de um enredo mais articulado. As gags são tantas que, vez ou outra, atingem o público mais adulto também, embora seja notável o quanto as crianças se identifiquem mais com o humor apresentado. Parte do sucesso estrondoso de Madagascar deve-se a seu público-alvo, ávido por consumir filmes do estilo sem um critério equilibrado em relação à qualidade das obras (para estabelecermos um parâmetro, Megamente e Como Treinar o Seu Dragão, duas grandes animações do estúdio, possuem em conjunto uma renda irrisória se comparadas à trilogia Madagascar).

    Sendo assim, dentro da proposta do estúdio, de produzir obras que gerem lucro, suas produções continuam dando um bom retorno e produzindo sequências naturais, mesmo que a maioria dessas produções seja de pouca originalidade, reciclando com a mesma espinha dorsal histórias semelhantes que se destacam, no máximo, por algumas boas e carismáticas personagens. Infelizmente, não é suficiente para sustentar um bom filme.

  • Crítica | O Segredo das Águas

    Crítica | O Segredo das Águas

    O Segredo das Águas 1

    O modo rude como o trabalhador idoso trata a carne sacrificial exibe a dicotomia do filme de Naomi Kawase. Após o epílogo, a cena corta para um ritual religioso, fruto da crença dos aldeões de Amami-Oshima que veem em cada manifestação da natureza uma participação de seus deus, fazendo do contato divino algo comum a existência humana, distante da percepção que separa o homem de seu criador por meio de tabus inalcançáveis. A paz bucólica da região praiana é cessada pela presença de um cadáver com tatuagens remetendo a uma vida diferente daquela presente na região.

    Amami-Oshima tem uma beleza imensa, enchendo os olhos de quem vê, sendo impossível não associar cada particularidade do local a algo que não seja louvor ao Divino. A religião não apresenta uma primeira face como uma instituição castradora, mostrando aspectos discutíveis em um nível liminar com o gradativo desenvolvimento de seu roteiro. A artimanha visa fugir de soluções simples, com um timing quase perfeito, tomando por base a maioria das discussões relativas as ações religiosas sobre o arbítrio humano sem amputar culpa a instituição, deixando aberta a questão da responsabilidade ser ou não de seus adeptos.

    O elemento venerado em O Segredo das Águas é a força da natureza, magnânima em si com ou sem a ação humana. A mensagem é como uma ode ao planeta, sem preocupações forçadas com a causa ecológica, ainda que valorize o conceito de supremacia da força originária, como julgadora e não refém de quaisquer ações dos homens, da mais simples as mais complexas. A natureza é poderosa e encerrada em si, como nos ecos de outras obras da filmografia de Kawase.

    A trama se desenrola com insights do passado, revelando dias de simplicidade, desarticulando falas corriqueiramente incriminatórias, supervalorizando o contato com o que é natural. A contemplação de Kaito e Kyoko engloba os ciclos da vida, explorando poeticamente os momentos de nascer, crescer, reproduzir e morrer, passando por discursos atentos aos ensinamentos proferidos pelos anciões o vilarejo. Entre as almas dos homens e da natureza, aceitar a condição subalterna seria a única alternativa para a sobrevivência além do ordinário.

    Ao exibir tratores e escavadeiras destroçando a mata para que o “progresso” possa pavimentar a vida na ilha, divide-se o ideal. A partir dali a inocência e ingenuidade seriam feridas, profundas ao ponto de não ter mais qualquer possibilidade de cura eventualmente. O que sobra passos à frente da pós-modernidade resume-se ao efêmero, a morte, solidão e melancolia. As personas presentes no filme dialogam com o público, mas servem especialmente para valorizar algo maior, como em Árvore da Vida, de Terrence Malick, ainda que a abordagem utilizada em O Segredo das Águas seja linear e de fácil digestão para o grande público.

  • Crítica | Batman: A Máscara do Fantasma

    Crítica | Batman: A Máscara do Fantasma

    Batman - A Mascara do Fantasma

    O sucesso de Batman – A Série Animada proporcionou a realização de um longa metragem ambientado no mesmo excelente cenário da série criada em 1992. Batman – A Máscara do Fantasma foi lançado nos cinemas em 25 de Dezembro de 1993, portanto, um ano após a primeira temporada da série e teve excelente recepção da crítica, ainda que o público tenha sido abaixo do esperado. Ainda hoje é considerado um dos melhores longa metragens do morcego.

    O roteiro não apresenta nenhum argumento novo no universo da personagem, mas trabalha de maneira habilidosa com os conceitos básicos em um estilo apurado e dramático suficiente para que se compreenda a dimensão e o fardo de Bruce Wayne. Na trama, os principais gângsteres de Gotham estão sendo assassinados por um misterioso novo vilão. Ao investigar, Batman descobre que algumas histórias do passado podem voltar à tona.

    Dividido entre flashbacks sobre o passado do morcego e o desenvolvimento presente da história, revisitamos o começo da carreira de vigilante de Wayne. Sem dúvida, há uma leve inferência do famoso Ano Um da personagem, porém, o roteiro feito a oito mãos por Paul Dini, Alan Burnett, Martin Pasko e Michael Reaves apresenta mais dúvidas quanto a uma vida de super herói ao incluir um interesse amoroso e duradouro na vida do milionário.

    Enquanto estuda maneiras de intimidação para viver como o futuro alter ego, a vida de Wayne se modifica com a relação duradoura com Andrea Beaumont, filha de um grande empresário do local. Dividido entre a promessa que fez aos pais após sua morte e a percepção de que poderia ter uma vida feliz afeta o psicológico do herói. Há mais fragilidade em sua personalidade nesta história do que na brilhante narrativa de Frank Miller. Com direito a uma bonita cena em que, na chuva, em frente ao túmulo dos país, Wayne questiona a promessa e o fardo perante a possibilidade de ser feliz, reconhecendo que, ao se tornar um herói, não haverá nenhum laço familiar com outra pessoa.

    O entreato passional se realinha com a tradicional história do morcego ao apresentar a desistência repentina da garota ao quase se tornar a futura Srta. Wayne. Um recurso habilidoso que amarra os eventos do passado com os assassinatos do presente, utilizando favoravelmente a presença do Coringa como um dos vilões do longa metragem.

    Um dos grandes vilões do universo do morcego, o Coringa, está presente em diversas sagas devido a sua popularidade, mas nem sempre sua presença garante qualidade. Em A Máscara do Fantasma, o passado do palhaço do crime também é revelado, sendo ele um dos capangas que trabalhou para um dos gângsteres assassinados. Dessa maneira, o personagem adentra a história ativamente, não apenas como um maníaco aleatório como alguns roteiros de quadrinhos apresentam. Produzindo um bom equilíbrio entre o novo vilão e um antigo.

    Mesmo aclamado com o sucesso atualmente, a produção estreou arrecadando uma bilheteria inferior ao esperado pela Warner. Porém, foi indicada ao Annie, prêmio americano de animação (perdendo para O Rei Leão) e sendo bem vendido em Home Video, além de inspirar um tie-in em quadrinhos. Um longa metragem bem superior as duas obras seguintes do morcego nos cinemas: Batman Eternamente e Batman & Robin. Ainda não há uma edição em alta definição desta produção. No Brasil, um DVD foi lançado, porém, em edição fullscreen. Uma pena para uma história com bonita ambientação nos consagrados traços da animação.

    Para ouvir: VortCast 34: Batman – A Máscara do Fantasma

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  • Crítica | Festa No Céu

    Crítica | Festa No Céu

    As cabeças protuberantes dos personagens fazem com que abordagem cartunesca de Festa no Céu se assemelhe visualmente a uma quantidade significante de outras animações, desde Jimmy Neutron até os seriados em duas dimensões, como Meninas Super Poderosas, herdando destes o ponto em comum, o de conter muita cor, saturando a imaginação infantil e algum subtexto, entendido na maioria das vezes por quem tem um maior repertório e vivência. A jornada de “livro da vida” começa em um museu, numa jornada protagonizada por alunos problemáticos obrigados a visitar o local, onde são sendo recebidos por uma bela guia, levemente sexualizada, que começa a contar uma história sobre o México, usando as figuras folclóricas do país norte-americano para cooptar a atenção dos que excursionam e da plateia.

    A coloração ganha contornos belíssimos ao se misturar ao gráfico tridimensional, sob comando de Jorge R. Gutierrez, para compor um quadro singular, valorizando os aspectos espiritualistas da tradição mexicana. A escolha do diretor foi pródiga, especialmente por sua experiência com a série El Tigre: As Aventuras de Manny Rivera. Quando Manolo Sanchez (Diego Luna) aparece, o carisma do filme já é estabelecido, fortificando ainda mais seu drama como órfão de mãe, que tem de conviver com a ausência da progenitora e com a inevitabilidade da morte, caracterizada por De La Muerte (Kate Del Castillo), a qual, por sua vez, acompanha a trajetória dos seres mostrados em tela.

    Manolo cresce em meio a expectativas de sua família quanto ao seu futuro. Seu violão e sua arte representam a doçura da infância, como um modo de comunicação poético em essência que o faz relembrar as perdas que teve. Este ideal esbarra na condição de toureiro, um ofício que está ligado tradicionalmente ao clã Sanchez e ao seu vilarejo. Manolo cresceu com dois amigos, Joaquin (Channing Tatum), que se tornou um exímio manipulador de touradas, e Maria (Zoe Saldana), que deixou a cidade há muitos anos para retornar já adulta. Obviamente, instaura-se um triângulo amoroso.

    Já adulto, o trio de protagonistas é vigiado pelas entidades espirituais La Muerte e Xibalba (Ron Perlman), que veem desabrochar a sexualidade — claro, suavizada para os infantes –, eufemisticamente tratada como amor e paixão. Maria percebe a abissal diferença entre as posturas de seus antigos amigos, um com pompa, fama e muito dinheiro, enquanto outro é munido de sentimentalismo, singeleza e inspiração. A aposta entre as figuras sobrenaturais chega ao cúmulo de ferir a moça, musa dos dois antigos parceiros. Afim de perseguir sua amada, Manolo se submete a morte, viajando para o além-vida, onde pode finalmente reencontrar sua finada mãe.

    A viagem ao mundo incorpóreo é bela, ainda mais repleta de cores. Seu encontro com toda a família Sanchez é bonito, revelando honrarias bem distantes do fracasso econômico de quando eram todos vivos, representando a fuga da decadência e retorno a glória, ainda que o viés de negação esteja implícito. Logo, ele percebe o ardil que sofreu, sendo enganado ao ser levado a Terra das Lembranças.

    A estratégia de trapaça logo se prova um erro, em ambas as dimensões. Enquanto a cidade de San Angel é atacada por um malfeitor, sem qualquer perspectiva de salvação, mesmo com o bravo Joaquin presente, Manolo é obrigado a enfrentar seus maiores medos no além-vida, tendo de combater ao mesmo tempo todos os touros que seus familiares assassinaram. Além da discussão óbvia da sensibilidade contra a brutalidade, há uma perene crítica às touradas e à fútil prática de assassinato de animais unicamente por entretenimento, cujos significados não são pasteurizados ou transformados em discursos baratos, transmitindo uma reflexão ligada ao perdão, mais forte do que qualquer panfletarismo exacerbado.

    Apesar de apresentar alguns pares de clichês em seu desfecho, utilizando um fechamento repleto de música e felicidade, toda a construção do romance e da felicidade mútua é feita de modo natural, formando o quadro gradativamente, cuja mensagem não subestima o entendimento, sequer o das crianças. A história de Festa no Céu torna-se eterna e até encorajadora, apresentando uma atmosfera semelhante à vista nos filmes de seu produtor, Guillermo Del Toro, com um caráter edificante que faz refletir além do lugar comum das animações norte-americanas.

  • Crítica | Pride

    Crítica | Pride

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    O cinema sempre reverencia narrativas baseadas em fatos reais. Principalmente, aquelas carregadas de carga emocional e entraves que se destacaram historicamente. Como grande parte do passado é esquecida ou reduzida pelo tempo, tais filmes ganham representatividade tanto como observação encenada de um acontecimento histórico quanto como símbolo ativo desse momento.

    Pride retorna ao ano de 1984 na Inglaterra, quando medidas econômicas da primeira ministra Margareth Thatcher retiraram direitos dos trabalhadores locais, incluindo os mineradores que, em protesto, promoveram uma das maiores greves registradas no país. Ao mesmo tempo que o país sofria problemas econômicos, a sociedade homossexual ainda era considerada periférica e lutava por direitos igualitários, buscando na união e em passeatas do orgulho gay uma maneira de se destacar a favor de sua causa.

    Um grupo de amigos liderados por Mark (Joe Gilgun) observou que o mesmo problema afligia grupos diferentes, gays e mineradores: a falta adequada de uma boa representação na sociedade. Assim, fundam a LGSM – Lesbians and Gays Support the Miners (Lésbicas e Gays Em Apoio aos Mineradores). A primeira dificuldade do grupo é encontrar um conjunto de trabalhadores que aceite ativamente a união entre ambos. O preconceito é deixado de lado em uma pequena vila em Wales, que recebe de braços abertos a ajuda da LGSM. Em uma reflexão comparada com nosso país, talvez pareça estranho que um grupo apoie outro em busca de direitos igualitários. Essa junção de classes faz da história um bonito exercício de como o povo deve agir como sociedade, não apenas focando no interesse de seu círculo interno, mas em um trabalho geral de manutenção e apoio às classes ou grupos que não recebem o apoio correto do governo.

    Durante a adesão dos ativistas ao grupo de mineradores da vila de Onllwyn, surgem eventuais membros contra o apoio dos coligados: uma minoria apoiada em uma opinião preconceituosa e retrógrada. Parte do longa apresenta a sincronia lenta entre esses grupos e as barreiras sendo destruídas. Impressiona que, em plena década de 80, em um país conservador como a Inglaterra, um pequeno vilarejo demonstre estar à frente de seu tempo, levantando a bandeira da igualdade e da união por uma mesma causa.

    A história situa tanto a aproximação dos grupos e sua militância a favor dos mineiros como o drama de alguns personagens compostos especificamente para a trama para potencializar a carga dramática. O jovem Joe Cooper (George MacKay) é um destes personagens fictícios que representam o jovem adolescente gay, e que ainda se sente relutante em assumir sua sexualidade, submetendo-se à repressão familiar, que decide mantê-lo em casa como maneira de evitar sua homossexualidade. Um exemplo dentre outras discussões levantadas pelo longa-metragem, como a presença da AIDS, o preconceito e a instituição familiar tradicional. Dramas que se apresentam e se modificam devido à causa maior a ser combatida. Uma espécie de expiação através da luta unificada.

    O filme é um exemplo de como a união e o protesto são fortalecedores e, acima de tudo, demonstra que é necessário a sociedade reconhecer que o direito do outro também é importante, tanto quanto a consagração de direitos da classe a que o indivíduo pertence. O apoio mútuo apresentado na história, datada 30 anos atrás, ainda é atual por essa mensagem significante.

  • Crítica | Deus e o Diabo Na Terra do Sol

    Crítica | Deus e o Diabo Na Terra do Sol

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    As moscas sobre as carcaças de animais mortos, acompanhadas da crescente música, revelam como é árdua, dura e árida a vida do herói focalizado pela câmera de Glauber Rocha. A iconografia visual condensada na trilha incidental certamente influenciou o trabalho de Sergio Leone, especialmente quando a maturidade o atingiu em Três Homens Em Conflito. O início, em forma de epílogo, contém poucos diálogos, quase nenhum deles direto; a observação, feita por Manoel (Geraldo Del Rey), da paisagem e do estilo de vida do povo do sertão realiza-se apenas por imagens, um resgate da máxima do cinema, pouco em voga no esquema comercial atual.

    A linguagem do discurso é simples, não em seu conteúdo – relevante ao extremo – mas simplista no modo tacanho e humilde da fala. A fé é propagada entre aqueles que sequer têm o pão diário para se alimentar, fomentando a esperança dos miseráveis e necessitados, que não têm onde ou em quem se agarrar se não no Divino.

    A câmera insistentemente trêmula emula os movimentos dos trabalhadores da lavoura e do engenho, que, com o seu suor, tentam produzir o seu sustento, mas que na prática fazem mais enriquecer seu patrões do que através de qualquer outro esforço. Mesmo quando o pobre e incauto peão tenta resgatar o que é seu por direito, esbarra no velho sistema explorador, que tenta roubar o pouco que lhe resta. Ao perceber seus direitos se esgotando, Manoel se rebela, agindo de maneira inversa a dos seus companheiros.

    O modo intimista com que o roteiro de Rocha e Walter Lima Jr. é executado contempla um lado idílico e sobrenatural do sertão, mas seu conteúdo ainda consegue ser direto, especialmente nas perseguições a cavalo e confrontos armados. É como se o expressionismo alemão se colidisse com o faroeste de John Ford, que gostava de contemplar o ambiente e as planícies norte-americanas para contar suas histórias. A Pernambuco de Glauber não tem paragens tão repletas de verde ou de montanhas frondosas, o que resta é o solo arenoso, a seca e as rugas nas testas dos peões, que tinham no sol inclemente o seu único aliado.

    A chacina impingida pelos poderosos ceifa mais vidas do que as precárias condições de vida no desértico nordeste. A perseguição ao pobre homem que tentou executar a “justiça com as próprias mãos” emula o modo com que o povo é esmagado pelo dedo do opressor. O cangaço é mostrado sob um viés diferente, como justiceiros que lutam pelos direitos do povo. Manoel, sem muita escolha, adere ao Capitão Corisco (Othon Bastos), recebendo dele a distinta alcunha de Satanás, para se diferenciar do arquétipo de vaqueiro, e ser finalmente temido pelos inimigos.

    A crença em São Jorge é um símbolo da necessidade de defender o povo do seu destino trágico. O rifle e o punhal são os objetos escolhidos para impor a mudança, algo necessário em meio ao ríspido modo com que todos são tratados. O altruísmo de Corisco é tamanho que ele sequer cogita a possibilidade de fugir do combate, mesmo sabendo que enfrentar o caçador Antônio das Mortes (Maurício do Valle) é quase garantia de perecer. Munidos da coragem e do chumbo, o capitão cangaceiro e Manoel – ou Satanás – vão em direção ao combate final, levados pela balada de Sérgio Ricardo, que narra suas aventuras como canção. O destino arredio dos revoltosos é um grito de louvor à liberdade, teimoso, que não aceita a possibilidade de ser enjaulado, seja pelas grades da cadeia, seja pelo escravismo que predominava no sertão.

    O tom poético do filme exibe verdades, discutindo-as sem ter qualquer pudor em vilanizar os coronéis, que ainda praticavam métodos datados e feudais com o pobre povo, escravizando-o a troco de contrapartida quase nenhuma, além de tomar pessoas normalmente marginalizadas como as figuras heroicas da fita. Não à toa a película ditou tendências estéticas no cinema brasileiro e mundial.

  • Crítica | Michael Kohlhaas: Justiça e Honra

    Crítica | Michael Kohlhaas: Justiça e Honra

    Michael Kohlhaas - Justiça e Honra

    Michael Kohlhaas: Justiça e Honra adapta o romance homônimo, publicado entre 1808 a 1810, de Heinrich von Kleist. O autor baseou-se na figura real de um comerciante local para desenvolver sua novela, que trata a vida de um homem dividido entre a justiça dos homens e a concepção interna de honra.

    A estrutura original da obra, dirigida por Arnaud des Pallières, foi mantida. Porém, a ação se desenvolve em Cévennes, no centro-sul da França. Mads Mikkelsen interpreta o personagem do título, um comerciante de cavalos que, para atravessar uma ponte, é indevidamente cobrado. Deixando em sua guarda dois de seus melhores cavalos e um vassalo como segurança, o vendedor retorna ao local dias depois com o pagamento e encontra os animais machucados e desnutridos e o vassalo, morto. Desejando justiça, o homem pede à corte um julgamento. Após ter o pedido negado, Kohlhaas decide impor sua vontade à força perante a injustiça que o tribunal cometeu.

    A novela é considerada um dos livros preferidos de Franz Kafka, e também responsável por uma das poucas aparições públicas do escritor para fazer leitura de trechos da obra. Trata-se, inicialmente, de uma história com ideário romântico, com uma personagem central incorruptível vivendo a tensão entre a justiça divina e a dos homens.

    Ao ter seu direito retirado por um nobre, Kolhaas utiliza sua influência e capital para arregimentar um exército que lute por sua causa. O grupo destrói locais que estão sob proteção do nobre, e esta violência chama atenção da Princesa Real, que tenta interceder. Porém, há um elemento paradoxal diante desta disputa. A busca quase fanática por justiça pelo comerciante o transforma em um pária diante do mesmo conjunto de leis. O exército não poupa homens, mulheres ou crianças, compondo um cenário curioso a respeito do que é, de fato, a justiça para o personagem.

    Há tensões inversas dentro da história: a injustiça cometida pelo nobre com a devida consequência do ataque de Kolhlhaas, e a ciência por parte do comerciante de que, ao decidir levar suas atitudes até o limite, as leis também serão aplicadas contra si. A honra perde seu contorno heroico e parece questionar a fragilidade do que pode ou não ser considerado correto ou justo. Pode um homem em sua jornada por justiça retirar a vida de inocentes que não lhe fizeram mal? Como um bem maior definido pela honra pode ser capaz de derrubar séculos de leis criadas pelo Estado para, justamente, evitar que atos como esse saiam impunes? A luta do comerciante contra o nobre também pode ser lida como uma análise das classes sociais vigentes na época, ainda que a deturpada justiça do personagem demonstre uma vontade maior em desenvolver seus interesses pessoais do que tratar de uma representação entre esferas de poder.

    A produção escolhe uma narrativa lenta, semelhante à prosa do século XIX. São cenas que evidenciam a beleza do interior da França e desafiam a percepção de que se trata de um país civilizado. A natureza pacata parece remeter-se a épocas anteriores, e o vazio dos cenários concentram ainda mais o drama do personagem, muitas vezes único em cena. A composição de Mikkelsen para Michael Kohlhaas segue o mesmo estilo de outras caracterizações anteriores do ator: são interpretações bem calculadas e contidas e que, em momentos chave, despertam maiores sentimentos. Um conjunto que faz do comerciante um homem dúbio, ciente de sua justiça ao mesmo tempo que parece realizar tais atos com sentimentos calculados. Uma dúvida que gera controvérsias, desde a figura impassível até o mencionado senso de justiça.

    A produção muito bem realizada tem méritos por não apresentar em cena nenhuma eclosão de drama ou sentimentalismo, acompanhando a jornada de Kohlhaas sem um julgamento prévio, além daquele estabelecido pelo próprio comerciante. Porém, a referida dubiedade de sua figura retira parte da simpatia que a personagem poderia conquistar. Como se a moral sobre justiça e honra fosse o principal porto para reflexão, e não o homem que a executou.

  • Crítica | V/H/S

    Crítica | V/H/S

    A primeira vez que tive contato com a franquia V/H/S foi quando o trailer do segundo filme, V/H/S 2, havia sido lançado. Os fãs de terror e os sites especializados estavam em polvorosa com o conteúdo daqueles poucos minutos. E, sim, o conteúdo era interessantíssimo, intrigante, e principalmente assustador.

    V/H/S é um projeto audacioso de Brad Miska, conhecido por ser um dos fundadores do site Bloody Disgusting, talvez o maior portal sobre terror já feito. Consiste na reunião de curtas-metragens de terror gravados em fitas VHS. O projeto fez muito sucesso, rendendo mais duas continuações, sendo que Miska, ao criar a franquia, entrou em contato com promissores diretores e roteiristas, que entregaram histórias muito bem feitas e principalmente cheias de tensão – algumas delas com finais surpreendentes –, as quais passaremos a analisar a seguir.

    TAPE/56

    Dirigido por Adam Wingard e escrito por Simon Barret, Tape/56 é o curta-metragem base para todas as outras histórias. Um grupo de jovens delinquentes anda pela cidade aprontando pegadinhas, praticando vandalismo e até abusos sexuais, tudo, obviamente, documentado por câmeras. Eles são recrutados por um amigo a invadir uma casa para recuperar a mítica Fita 56. Ao adentrarem a residência, encontram o dono morto, sentado no sofá, em frente a uma televisão, com diversas fitas VHS no chão. Um deles senta-se em frente à tela e começa a assistir à primeira fita VHS, enquanto os outros procuram mais fitas pela casa.

    Tape/56 é o único curta que é intercalado com os outros justamente porque cada um deles é visto por um membro dos delinquentes. De longe, é a história mais fraca, porque contém os clichês menos interessantes dos gêneros de suspense e terror.

    AMATEUR NIGHT

    A primeira fita a que o grupo assiste é dirigida e escrita por David Bruckner, e mostra alguns rapazes se divertindo num pub quando conhecem duas jovens, sendo uma delas bastante esquisita. Após muita bebedeira, eles conseguem convencer as moças a passarem o resto da noite com eles num motel barato. Embora o desfecho da história seja o mais comum possível, o mérito desta fita recai na atuação dos atores, deixando o espectador tenso e com medo, assim como os protagonistas.

    SECOND HONEYMOON

    Second Honeymoon mostra um casal, como o próprio nome já diz, vivendo sua segunda lua de mel, viajando pelos Estados Unidos e dormindo em motéis à beira de estrada. Em uma das noites, eles recebem uma visita inesperada. Aliás, a cena em que a visita aparece é muito bem feita e realmente causa intrigas, fazendo aquele que está assistindo a ela se perguntar várias coisas. O desfecho é muito inesperado, mas totalmente plausível. A fita conta com a direção de Ti West, que também escreveu o curta.

    TUESDAY THE 17TH

    Fita totalmente inspirada em Sexta-Feira 13, Terça-Feira 17 conta a história de quatro amigos indo acampar num local onde uma das personagens jura que foi a sobrevivente de um massacre ocorrido tempos atrás. A semelhança com a história de Jason Voorhees é tão grande que os personagens, inclusive, nadam num lago, em alusão ao Crystal Lake. O que difere do clássico do terror é justamente a ameaça, que, mesmo sendo violentíssima e agressiva, manifesta-se de uma forma que só a câmera consegue captar, por meio de interferências. Muito bom!

    THE SICK THING THAT HAPPENED TO EMILY WHEN SHE WAS YOUNGER

    Dirigido por Joe Swanberg e escrito por Simon Barret, essa talvez seja a fita com o final mais surpreendente de todos. James é um médico que está viajando a trabalho e mantém contato, pela webcam, com sua namorada Emily, que vem reclamando de um inchaço em seu braço. A jovem também acredita que o apartamento para o qual se mudou é mal assombrado. Esse segmento lembra bastante Atividade Paranormal, mais precisamente o quarto filme da franquia, em que algumas das manifestações da entidade se dão enquanto a protagonista conversa por meio da câmera com o namorado. Ao contrário do quarto filme do segmento milionário, The Sick Thing… é muito melhor, com um final que te deixa com um semblante de dúvida, algo que talvez nunca será explicado, mas que demonstra a mente doentia dos roteiristas do projeto.

    10/31/1998

    Como o próprio nome diz, o último conto de V/H/S se passa durante a noite de Dia das Bruxas, em 31/10/1998, e mostra um grupo de rapazes se preparando para uma festa de Halloween que acontecerá numa casa. Ao chegarem ao local, eles percebem que a mansão está aberta, mas vazia, o que é muito estranho. Porém, ao irem ao sótão da mansão, eles descobrem um grupo de homens prestes a assassinar uma moça aprisionada por eles. Aparentemente, trata-se de algum ritual satânico, e os jovens conseguem evitar a morte da garota. Ocorre que, na verdade, eles impediram um exorcismo, e a entidade demoníaca passa a se manifestar pela casa toda. Braços saem pelas paredes, objetos de decoração voam pela casa. Tudo muito bem feito (considerando o orçamento “pobre”) e muito bem conduzido pela direção colaborativa do grupo conhecido como Radio Silence, formado pelos diretores e roteiristas Matt Bettinelli–Olpin, Tyler Gillett, Justin Martinez, Glenn McQuaid e Chad Villela.

    O saldo de V/H/S foi tão positivo que existem outras duas continuações: V/H/S 2, de 2013, e V/H/S Viral, de 2014.

    Quem se preocupa demais com detalhes técnicos ou com a qualidade dos curtas deve passar longe da obra, pois vai reclamar bastante. A impressão é que o projeto foi feito para os fãs mais hard core, aqueles que cresceram assistindo a grandes clássicos do terror, mas que não são um primor de técnica. Outro detalhe importante é que, para alguns, será fácil reconhecer algumas homenagens, ou easter eggs. O estilo é o já desgastado found footage, que, aqui, não é um problema, uma vez que contribui para a tensão dos contos e que de certa forma ajuda a mascarar as falhas técnicas. Que mais fitas e talentos sejam descobertos!

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Relatos Selvagens

    Crítica | Relatos Selvagens

    Uma coisa é verdade: A versão pós-moderna de Amarcord não faz feio, pelo contrário, faz rir quem suspeitava que o cinema argentino fosse invejável ao do Brasil. Essa colcha de retalhos toda empolgada é uma heterogênea visita, às vezes sem qualquer consciência de expressões peculiares a determinada história, mas com noções muito fortes de impacto e narrativa em blocos, ao clássico de Fellini, ou melhor, a partir do clássico, sem nenhuma responsabilidade com o cânone italiano em questão, nesta crítica.

    Relatos Selvagens é uma viagem histérica de um sociólogo que esqueceu seu remédio tarja preta em casa no embarque de um trem que atravessa a Argentina, recolhendo histórias (não tão diferentes assim) de seus conterrâneos. Assim, o filme encontra sua apoteose sumária em duas passagens diferentes mas que se completam na missão de sintetizar o filme: a inicial e hilária reunião coletiva em um avião, onde todos se encontram sem saber como nem por onde, e a rebeldia do personagem de Ricardo Darín diante de um sistema corrupto, enfatizando – em analogia – a insatisfação do cidadão comum perante a conjuntura política do país. Se melhor tratadas, essas e mais uma ou duas exaltações poderiam ser as únicas do filme, tamanha é a força e o forte destaque em meio a outras nem tão favoráveis ao saldo inegavelmente positivo da obra.

    Uma iniciativa corajosa, apoiada pelo já lendário Pedro Almodóvar, que produz um material equilibrado, fragmentado por excelência, conduzido pelas peculiaridades de cada história às suas próprias, enquanto uma peça única, mas que consiste de glória e lembrança mais pela iniciativa do que pelo quadro geral e reunido. É a moldura de algo abstrato que uma perspectiva objetiva denuncia – feito pulga atrás da orelha, seja nas conclusões dos blocos ou em certa lucidez incompatível ao todo – não encontrar verniz, caso a peça venha a ser tratada como uma só, sem seus fragmentos. Relatos Selvagens, além de ter aberto a 38ª Mostra de Cinema Internacional de SP, é o típico filme que tenta se encontrar de várias formas, e atira para os lugares certos sem qualquer exagero ou aspecto digno de reprovação, mas, sabe a história do sujeito que de identidade em identidade esquece quem é, de fato? Então…

    Ainda sobre paralelos e resgates sensoriais de nível atemporal, a loucura orquestrada por Fellini celebra os vários tipos de esgotamento comportamentais do animal social, sempre em grupo, em constante mudança deste social, sem especificar, contudo, se o mudar consiste em melhoramento ou atraso. Em Magnólia e Babel, de Paul Thomas Anderson e Alejandro Iñárritu, obras bem mais recentes, nota-se a antítese relativamente bem-sucedida aos esgotamentos nervosos de uma das comédias mais tradicionais da Itália, esbanjando nestes dois filmes, e agora em Relatos Selvagens, então, o também nobre exercício de expor os traços mais imutáveis do ser humano (compaixão, raiva, bom-senso – ou a falta dele –, instintos primitivos de todos os tipos) em um contexto bem mais realista e de caráter emergencial, como se o mundo fosse acabar após qualquer decisão que qualquer representante das menções acima possa vir a tomar.

    Em 2014, com meia dúzia de situações absurdamente reais, ou sonoramente absurdas, o satírico cinema dos irmãos Coen casa com o cínico de Haneke na América Latina, e a boa – ótima – recepção das audiências e críticas mais diversas só pode revelar uma coisa: esse é o mérito de uma produção que contém, entre seus altos e baixos, entre o limite e o não limite, em tempos de politicamente correto, momentos de orgulho de certas fontes históricas, que o filme de Damián Szifron se apropria de atualizar, e se apropria muito bem; um antônimo bem construído de qualquer leveza que possa existir na sobrevivência humana de cada dia – ou noite.

  • Crítica | Acima das Nuvens

    Crítica | Acima das Nuvens

    Acima das nuvens 1

    A câmera de Olivier Assayas foge de qualquer efeito estático, movimentando-se de modo tremido, como se sofrendo movimentos involuntários. A primeira personagem a ser retratada é Valentine (Kristen Stewart), uma moça ocupada, que usa o telefone para se comunicar com os profissionais que cercam sua cliente. Nas primeiras falas, a intérprete afasta o estereótipo de mulher insensível, conseguindo, com poucas expressões, subverter o julgamento feito a ela e que a fez ficar famosa, fechando o ciclo de críticas azedas a sua performance em tela.

    A trama de Acima das Nuvens gira em torno da obsolescência, focada no drama da atriz veterana Maria Anders (Juliette Binoche), que vê a personagem que a fez tão celebrada ser entregue a uma novata. O caminho que o trem faz, atravessando o continente europeu, serve para levá-la ao confronto com sua contraparte, para ensaiar uma possível interação com a estrela hollywoodiana, contrapondo-se dois mundos no mesmo palco.

    A viagem na estrada sobre trilhos, rumo ao inconveniente embate, é irrompida por uma péssima notícia: a morte de um autor e dramaturgo muito próximo a Maria. Além de realizar  os espetáculos, a artista deveria também receber um prêmio em homenagem ao falecido, além de dividir as honrarias com um antigo desafeto Henryk Wald (Hanns Zischler). O primeiro e revelador encontro físico entre os dois reativa as rusgas do passado, rememorando velhos traumas, depois narrados por Anders. A intimidade da atriz é revelada por verborrágicas conversas dela com sua curiosa assistente Valentine, que contempla ávida todo o discurso de Maria.

    O convite para interpretar outro papel na peça faz a protagonista viajar dentro de si, procurando uma nova motivação válida para executar o trabalho. A partir dali, ela não seria mais a musa, e sim uma coadjuvante, simplista, prostrada ante a beleza e juventude de Jo-An Ellis, cuja trajetória inicial coincide com a de sua intérprete, Chloë Grace Moretz, por ter menos de 20 anos, ser uma estrela em ascensão e ter protagonizado um filme de herói. Ao escrutinar a intimidade da nova “substituta”, Maria se depara com uma pessoa problemática, agressiva com os paparazzi e pouco afeita às gracinhas da imprensa. A fúria e a dor da atriz excedem o comportamento normativo, fazendo dela uma artista errática, que age por instinto, com um senso artístico latente, que não consegue se encerrar internamente, fazendo-a agir como uma louca. A manifestação tresloucada do talento faz Anders mudar de ideia, se preparando para as sobras que sua carreira lhe deixou.

    O desenrolar das emoções da atriz revela um medo de se mostrar decadente, e com um receio ainda maior deste movimento tornar-se uma verdade absoluta. Todas as suas certezas são questionadas, desde seu talento, envelhecimento aos olhos vistos – apesar da ainda mui bela compleição da nudez de Binoche – e as fraquezas de espírito, que a fazem querer desistir de tudo a todo instante. As pressões mentais atingem também a sua auxiliar, que aceita um outro ofício em um continente distante, dando um fim definitivo à extensa e íntima relação de interdependência.

    A heroína da fita percebe suas falhas de relação, repensando todas as suas ações, ao aceitar conversar com Jo-Ann, passando a se afeiçoar pela intrépida jovem, fazendo a aceitação do tal papel mais tragável, apesar de toda a confusão moral que envolve a novata.

    A aceitação do fato de ser obsoleta é quase ofuscado por conhecer uma persona tão ligada aos desígnios de diva presentes no comportamento de Ellis. Assistir à versão mais jovem de si, andando ao seu lado e cometendo erros semelhantes aos que Maria passou é demasiado grotesco, mas é uma sensação subalterna diante do desejo de reinvenção.

    Anders descobre que a transformação é o caminho mais digno a seguir, provando ser superior à sina que estava prestes a abraçá-la. A transformação que sua mente sofre se reflete em sua postura em tela, evoluindo-se a ponto de não precisar mais lançar mão de seu passado e currículo para sentir-se plena. Acima das Nuvens é um filme sobre evolução, que trata as relações inexoráveis à existência humana, tomando o estado de depressão como uma tela em branco, jogando com a alma e espírito humanos para apresentar uma contemplativa história de superação, distante de qualquer melindre ou covardia narrativa.

  • Crítica | A Entrevista

    Crítica | A Entrevista

    A Entrevista 1

    O narcisismo da curiosa persona do ditador norte-coreano é cantado por uma simpática menininha, que destaca os feitos hostis de seu país, além de xingar largamente a política dos Estados Unidos. Kim Jong-un (Randall Park) mostra-se como uma figura controversa, um personagem semelhante à caricatura dos piores líderes políticos da história. O modo como a figura pública é exibida é jocoso e distorcido, como se espera de uma fita de humor explorada por um comunicólogo sensacionalista.

    Dave Skylark, vivido por James Franco, é um apresentador que faz da fofoca o principal plot de seu programa, tendo já nos primeiros minutos de exibição uma revelação bombástica relacionada a Eminem. Cada mexerico que ele consegue tirar dos artistas é louvado por seu produtor, Aaron Rapoport, interpretado pelo co-diretor Seth Rogen, que repete a parceria razoavelmente boa, depois de É o Fim, com Evan Goldberg. A valorização da faceta cinza do jornalismo é a tônica do trabalho dos citados, e é em meio a uma das demonstrações de segredos grotescos de artistas que vem a notícia de que a Coreia do Norte executou um ataque terrorista.

    A perda de audiência mexe com o complexo narcísico de Skylark, que em uma pequena investigação percebe que o político asiático é fã de seu trabalho, e dessa forma o jornalista abutrino resolve tentar explorar tal estratagema. Passando por cima de todas as improbabilidades, Aaron é chamado a conversar com os representantes do tirano. O encontro se dá em um local ermo, distante da civilização, e ocorre rapidamente unicamente para o humorista acima do peso zombar da dificuldade que o ditador tem em utilizar informação, uma vez que os termos discutidos poderiam ser enviados em um simples e-mail. O que Un chama de estilo, os americanos acreditam ser “atraso”. Logo, o comunicador vira a notícia, sendo alardeado por inúmeros colegas que o criticam por glorificar um assassino.

    Uma agente da CIA intercepta os protagonistas com uma missão árdua. A dificuldade que Aaron e Dave têm em se concentrar em algo que não seja os seios de Lizzy Caplan, e sua Agente Stacey, é mais uma crítica superficial ao machismo implícito no modo de pensar do americano médio, que não consegue se concentrar sequer no belicismo que é comum ao dia a dia imperialista. A espera por uma propaganda velada ao capitalismo é cerceada, até mesmo por causa do caráter absolutamente debochado da fita.

    O modo como a Coreia comunista é retratada não é uma versão ainda mais pobre de Cuba: até os personagens estadunidenses se surpreendem por não haver fome nas ruas ou miséria nas esquinas de Pyongiang. Logo, Kim Jong visita Dave para tietá-lo antes da famigerada gravação. Apesar de toda a valorização do ridículo via pastiche, o modo como o roteiro mostra o líder coreano é até leve, com poucos defeitos realmente lamentáveis. O que realmente é execrável é a postura de filho rejeitado, que dá prosseguimento aos planos do procriador em uma tentativa de compensação, além da inveja clara à política super-capitalista dos EUA, nada que não seja esperado vindo de uma produção hollywoodiana. A figura demasiada carismática de Kim faz o apresentador se confundir com relação a suas preferências, certezas, missão e abordagem midiática, claro que através de uma análise política rasa.

    Com a polarização errada no posicionamento, Skylark passa a agir lealmente ao seu novo amigo, dando as costas aos seus amigos e nação, com um comportamento à la síndrome de Estocolmo, e do modo mais cretino possível. No entanto, o patriotismo e senso de dever falam mais alto, realocando a mente do personagem de volta ao lugar onde jamais deveria ter saído, “coincidentemente” no momento em que o roteiro perde um pouco do seu fôlego.

    A mácula de desrespeito em relação à figura do soberano do filme não é justificada em momento algum. Como mencionado antes, a crítica ao partidário não é profunda: mesmo nas cenas em que ele é mostrado nu, não há qualquer piada fácil, como referências a um membro diminuto, ou algo que o valha. A reviravolta comportamental visa desconstruir a imagem divina do líder ante os seus conterrâneos, claro, levando em conta o julgamento ocidental sobre a sua figura, o que certamente motivaria em qualquer adepto do personagem biografado um incômodo atroz. Mas nada que chegue perto da completa humilhação vista em Team America, de dez anos antes, que julgou seu pai, Kim Jong-il, como um puppet master infernal.

    O discurso de Un, ao ser questionado sobre os alarmantes números de famintos, destaca o embargo dos EUA ao seu país, assim como a alta massa carcerária, formando uma incômoda alfinetada ao país que se julga dono do mundo. O decorrer da entrevista é catastrófico, para os dois distintos lados. A posição de fragilidade de Kim Jong colaborou, inclusive, para todo o alarde do ditador, assim como a cena em que ele é executado.

    A revolução tosca acabou sendo televisionada e tratada a sério, não condizendo em nada com seu gênero humorista. Um preço alto, presumindo-se que os ataques a Sony foram promulgados por agentes de Kim Jong-un. Não há qualquer justificativa para a transmutação do filme, de comédia dentro de tela, para o drama fora dela.

    O posicionamento radical do tirano parece ter ocorrido mais por este não crer que qualquer sanção legal aos envolvidos na produção fosse atrapalhar as vendas de ingressos ou a propagação do ideal do que uma ofensa verdadeira à sua moral. O desfecho feliz, com Aaron, Dave e seu cachorrinho embarcando em paz rumo a América, exibe para o público a ingenuidade da fita, presente em cada ação, e em cuja supervalorização e desnecessária seriedade por parte das autoridades norte-coreanas – e das forças “terroristas” – transformou A Entrevista em algo muito maior do que deveria ser, atraindo uma atenção que não existiria certamente sem este tipo de publicidade.

  • Crítica | Operação Big Hero

    Crítica | Operação Big Hero

    Operação Big Hero - poster brasileiro

    Desde Enrolados, a Disney vem traçando um novo caminho em ascensão, distanciando-se da época em que as melhores produções eram feitas pela Pixar e reassumindo o posto de grande produtora de animações, como na época viva de seu criador e postumamente a ele, até o final da década de 90.

    Operação Big Hero realiza uma união positiva entre dois universos: a narrativa costumeira do estúdio, lançada anualmente nas férias, e o estilo dos animes tradicional no Oriente – uma composição que resultou, para a Nickelodeon, na excelente animação Avatar – A Lenda de Aang. A história se passa em San Fransokyo, um criativo nome híbrido de São Francisco e Tóquio como uma maneira de preservar o produto americano mas que demonstre a influência da cultura do Japão. Envolvido em lutas clandestinas de robô, o prodígio Hiro – não à toa, seu nome é homófono (palavras de mesmo som) ao título do filme – é um desses garotos que representam a criatividade e o talento que surgem sem a necessidade de uma educação formal. Porém, seu irmão Tadashi deseja para o garoto um futuro mais útil e, ao levá-lo ao laboratório em que trabalha, o menino se interessa em estudar no local. Para isso, é necessário realizar uma apresentação de uma nova invenção para ser aceito no colégio.

    Em comparação com o filme anterior do estúdio, o premiado Frozen – Uma Aventura Congelante, a história foge do clássico universo de princesas e reinos. Em uma época de dissolução de gêneros, é difícil apontar a produção como se voltada a este ou aquele público em específico. Porém, é evidente que o enredo está mais focado na ação do que no elemento emotivo e amoroso do interior.

    A trama é baseada em um gibi da Marvel Comics, sendo esta a primeira animação da empresa lançada pela Disney. Estranhamente, como vem acontecendo com outros casos de direitos autorais, o estúdio de quadrinhos informou recentemente que não publicará novas histórias de seu gibi devido ao lançamento do filme, em parte porque o conglomerado do Mickey também possui direitos sobre alguns personagens. Devido às delicadas negociações destes direitos, alguns não concluídos, os nomes e as etnias dos personagens foram mudados.

    De qualquer maneira, o ritmo dessa aventura aproxima-se do conceito de uma história em quadrinhos feita nos Estados Unidos, porém claramente utilizando o traço padrão oriental, e ação e humor equilibrados. A Disney está atenta aos novos tempos, demonstrando sincronia com o que o público atual espera de uma animação. Hiro é um personagem que contém os traços característicos dos heróis do estúdio, porém também demonstra novos contornos, uma novidade introduzida recentemente nos roteiros, em que, mesmo com a bondade predominante, há uma maior gama de sentimentos, entre eles a raiva e o desejo de vingança, que perpassam os pensamentos do menino. Uma queda do personagem mais puro para ascensão de um mais crível. Também, o público tem exigido este maior grau de realidade nas produções animadas, elemento que também fornece a criança um aspecto maior de representação do mundo. O roteiro confia na habilidade de cada infante em saber a importância do bem contra qualquer ato malévolo.

    Se a composição destas histórias sempre segue um padrão formular de uma trama com uma mensagem universal que atinja também as crianças, é interessante como roteiristas sempre são capazes de escolher um ótimo personagem para a comédia. Em Enrolados, o cavalo Máximus representava o riso; em Frozen, o boneco de neve que gostava de abraços quentinhos. São personagens que sempre ressaltam uma personalidade própria e um tipo de humor non sense ou bobo. O representante da comicidade, e também parte integrante do grupo de Hiro, é o robô BayMax, criado pelo irmão do garoto como o futuro da Medicina, um agente da saúde robótico. Ele tem a personalidade típica de uma inteligência artificial que faz análises objetivas a respeito do que o cerca, o que provoca confusões interpretativas com expressões e palavras de mais de um sentido. Composto de vinil, que lhe dá a proporção de um robô cheinho, o tamanho do autômato também faz o público rir quando em cenas de ação, um riso tão simples que atinge o espectador de maneira universal, ainda que pareça funcional apenas para uma plateia mais infante.

    Mesmo sem um roteiro complexo, ao contrário das produções da Pixar que, costumeiramente, sempre são analisadas por suas narrativas em camadas, Operação Big Hero vai direto ao ponto por meio de uma história simples, como uma animação deve ser, e equilibrada entre a sensibilidade e a diversão em forma de ação.

    Além do filme, o bonito curta-metragem O Banquete apresenta-se antes do longa. Uma história curta tradicional, sem a animação em terceira dimensão e poucos diálogos em cena. Durante seis minutos, acompanhamos a trajetória de um homem pela visão de seu cachorro. As fases da vida do homem são representadas pelo tipo de alimento dado ao cachorro. Inicialmente, sobras de pratos gordurosos e, após a relação do dono com uma chef de cozinha, pratos requintados e bem apresentados. Uma bonita maneira lúdica de observar a transformação do tempo e a evolução natural do ser humano. Duas experiências cinematográficas opostas vistas em uma mesma exibição.

    Por fim, fica a recomendação para o espectador aguardar até o final dos créditos de Operação Big Hero, para ver uma cena final com um grande conhecido do público.

  • Crítica | Debi & Lóide: Dois Idiotas em Apuros

    Crítica | Debi & Lóide: Dois Idiotas em Apuros

    Debi e Loide A

    O começo tímido, que se vale de piadas sexistas pouco ofensivas, introduziria uma dupla de protagonistas estúpidos, pensada pelos irmãos Peter e Bobby Farrelly. Lloyd (Lóide) Christmas (Jim Carrey) é um condutor de limousine de moral frágil e que tem na figura de sua patroa Mary Swanson (Lauren Hoolly) a sua musa. Seu pouco traquejo com as mulheres garante momentos de absoluta comicidade e falta de noção, com explosões tomando a estrada enquanto pratica direção perigosa. A despedida de sua amada – que acabara de conhecer – é emocionante, segurando o público de imediato, inserindo-o no drama. Logo ao acenar o “tchau” para a moça, após uma trapalhada, o espectador percebe uma trama policial escondida atrás de toda a pataquada da fita.

    Do outro lado da cidade, sua contraparte Harry Dunne (Debi, na versão brasileira, interpretado por Jeff Daniels) exibe todas as suas inabilidades como cuidador de cães. Ao final do dia, os dois amigos voltam ao apartamento que compartilham, desempregados, fruto, é claro, da incompetência de ambos. Cansados de fracassos sucessivos, eles resolvem se aventurar, viajando para Conneticut a bordo de seu cachorro-móvel.

    Na estrada, eles arrumam confusão com alguns caipiras, demonstrando covardia e instinto de sobrevivência, algo que os faz pregar peças nos bullyers e até nos policiais. A hilaridade idiota é a tônica dessas interações. No decorrer da viagem, Lóide tem sonhos de cunho erótico com Mary, imaginando os momentos em que o romance finalmente se concretizaria, incluindo rodas de amigos cujo centro das atenções era ele e suas piadas. Em determinados pontos, ele fantasia discussões intensas nas quais destila seus supostos dotes de briga, espancando um restaurante inteiro, como um Bruce Lee retardado, tomando o coração do chef, à força, para logo depois sonhar com as curvas de Mary, em que os seios expostos da garota como faróis de caminhão demonstram que a virgindade é o maior trunfo do personagem.

    A química entre Carrey e Daniels se dá especialmente pela troca de ofensas e pegadinhas entre um e outro, uma eterna competição para provar quem é mais infantil e imbecil, quase sempre sendo Lóide o vencedor. Qualquer um que atravessa o caminho da dupla sofre as agruras de estar ao lado de pessoas tão incrivelmente irritantes, mas absurdamente gentis e solícitas. Curioso como a ingenuidade dos dois consegue cooptar também um bom coração.

    À procura da bela mulher, os amigos sofrem muitas perdas, até terem noção de que carregam uma maleta repleta de dinheiro. O consumo indiscriminado de dinheiro nos eventos mais supérfluos possíveis. Suas atitudes fazem mal a praticamente tudo que os envolve, deixando um rastro de destruição ao matarem aves raras e esmigalhando propriedades públicas enquanto tentam se divertir.

    A rivalidade entre os dois se acirra ao perceberem estar os dois emotivamente envolvidos pela(s) mesma(s) mulher(es), algo natural, uma vez que há falta de tato de ambos com o sexo oposto. Logo, Lóide acaba por passar pelo destino da mesma moça que flertou antes com Harry, enquanto o amigo loiro se diverte na neve com Mary. A mágoa atinge a personagem de Jim Carrey, que não consegue esconder sua frustração e se vinga dele, pondo laxante na solução alimentícia do amigo.

    A disputa faz com que Lóide se jogue desesperadamente nos braços de sua amada, tentando se declarar a ela, se frustrando após descobrir que ela é na verdade uma pessoa casada. Após muita discussão e situações das mais toscas possíveis, os dois seguem seu caminho, retomando o valor da amizade, salvando um ao outro, mostrando uma inexoravelmente unida relação que suporta toda e qualquer barreira. A comédia dos Farrelly não tem qualquer mensagem edificante ou evolução aparente, mas dá voz a valores simples, como companheirismo e desapego material, sob uma ótica boba que fez muito sucesso entre o público infantil e ajudou a salientar um subgênero da comédia, que se vale de pastelões e de piadas físicas.

  • Crítica | Amar, Beber e Cantar

    Crítica | Amar, Beber e Cantar

    Alain Resnais foi um pintor de emoções: literalmente pintava humanidades e o avesso à frente de nossas óticas e tópicos pessoais de aceitação. Foi ou é? Será? Seu legado é extenso desde muito antes do óbito do artista, e homem apaixonado pela arte, arte da luz, captação de movimento e fluxo narrativo de tantas belíssimas histórias, compôs, pintou e tocou feito marinheiro seu barco à frente, tão à frente a ponto de nos deixar órfãos de sua presença, agora retida e ampliada, é claro, em seus clássicos eternos, infinitos em gênero, ação e interpretação. Chabrol, Rivette, Resnais eram expressionistas tímidos, nos intimidavam feio com suspiros, angústias nos olhos, de tão fortes suas intenções. O francês não brincava em ofício, mas brincava sem dó com nossa percepção da vida, distorcia, refinava-a. Em Hiroshima, Meu Amor, o que estamos vendo: um casal de fantasmas perdidos numa paixão insondável? Uma alma que se vê dividida em dois corpos? Não é possível colocar ou espremer em palavras, daí o Cinema pra cumprir tamanha tarefa além-vocabulário. Dói não a partida, mas saber que não haverá mais estreias com seu nome. Resnais virou cineasta de Mostras especiais, de herança, cineasta de parâmetros a outros no futuro; Resnais, como tantos outros, virou uma bússola. É o destino. É a única chance do mortal virar imortal.

    Amar, Beber e Cantar é um digno desvio de linguagem e homenagem para com a verdadeira obra-testamento de Resnais, o colosso de 2006 Medos Privados em Lugares Públicos, um dos grandes filmes da primeira década do século 21. O filme de 2014, o último do mestre, é delicioso, feito pra se comer com os cinco sentidos. De degustar a precisão da anatomia exposta e as tripas, sobretudo as tripas do que move a história por detrás da imagem, em terreno subjetivo onde o que acontece é projetado – ou não. Não é teatro filmado, é alegoria transposta, é microcosmo assinalado em realidade recriada, obtida a nós, o público, em diferentes ângulos de um mesmo cenário limitado, de poucos metros, menor que um palco teatral, mas onde absolutamente tudo pode acontecer a todos em cena – tudo o que envolve os sentimentos humanos em sua imensidão de causas e consequências. Mas William Shakespeare já fazia isso, e, antes dele, todos também! E é isso que Resnais resgata em seu novo filme: A beleza do resgate quando há algo de reconhecidamente pertinente a se resgatar. A obsessão, a desconfiança, o desprezo, a mentira e a competição já eram datados nos tempos de Otelo e Hamlet, e não é por isso que hoje não os praticamos mais; senão, ainda mais.

    Uma história pessoal, tragicamente cômica e comicamente trágica entre amigos, sobre o teatro, em um teatro, filmada no cinema. Deu nó? Não vale falar de metalinguagem, é impreciso, torto, mas pode ser entre tantas abstrações um caminho para demonstrar a intimidade do Cinema com o Teatro, como um completa o outro em pretensões que simplesmente não merecem ser atribuídas a eles. Obras magníficas tal A Balada de Narayama, Noite de Estreia e Cantando por Detrás das Cortinas são herdeiros diretos da junção do berço e da evolução tecnológica da atuação humana; esse reflexo que o público tem de suas ações normais ou não, quem pode saber? A todo momento, aliás, Resnais joga peteca com um e outra, com palco e câmera, tocando o terror com personagens comuns surrealmente despreparados aos desafios e imprevistos da vida real.

    O resultado é, de novo, delicioso, com uma mise-en-scène, um arranjo, um ambiente geral exemplarmente bem estruturado e ativo em cores, formas e resumos visuais de extrema importância para o entendimento da história sobre a comédia humana, a graça vital por apenas estar vivo, cercado por pessoas tão vivas e coloridas, e a chance de achar esse humor percebendo a brevidade da vida, em especial. Contudo, tal ambientação, tal norte às dependências da realidade onde o filme se encontra e acontece, é aqui, acima daquilo que compõe os cenários em filmes rasos e gigantes apenas no visual, como Avatar, os próprios atores. Os atores são o cenário, e há poucos aspectos mais nobres no Cinema ou no Teatro que isso (nos filmes de Cassavetes ou nas peças de Molière, esse respeito é recorrente). Resnais coloca meia-dúzia de sacos de defeitos ambulantes pra contracenar, num verdadeiro ping-pong sensorial à beira do overacting, do excesso, da histeria, da perda do controle emocional (a atuação geral é irretocável, mas Sabine Azéma dá um show, uma atriz extraordinária).

    Muitos podem acusar Amar, Beber e Cantar de ser apelativo: é homérico a questões já analisadas no cinema de Resnais; entretanto, sem a sua elevada carga emocional, seria superficial ou não tão penoso de se aprofundar, e, com certeza, não seria a obra-prima moderna e eterna sobre as relações humanas que acaba por ser. Ambicioso e singelo na medida certa, Resnais não era, é, com honra ao mérito, um pintor, e dos mais sensíveis e malandros; perpétuo equilibrista entre o abismo sem volta da razão e emoção.

  • Crítica | Olho Nu

    Crítica | Olho Nu

    Desde o início da carreira, Ney Matogrosso é um intérprete impossível de ser definido em poucas palavras. Em plena ditadura, ao lado dos Secos & Molhados, foi um transgressor pela postura exibida no palco, entre pinturas, adornos, danças e nudez, elementos que ainda mantém em sua carreira. Em entrevista recente, reconheceu que se tornou um representante de tabus persistentes na sociedade. Mesmo negando assumir a bandeira de qualquer causa, sabe de sua força autêntica.

    O homem de um profundo olhar imagético se mantém na ativa e bem representado em discos elogiados, turnês de sucesso, trabalhando na produção de outros músicos – dirigiu o show Coração Inevitável de Ana Canãs – e também com vigor para, vez ou outra, estrelar produções cinematográficas – foi o bandido da Luz Vermelha na continuação Luz das Trevas, dirigido por Helena Ignez.

    Olho Nu é uma obra documental que foge dos padrões do gênero e faz de Matogrosso um personagem da própria história. Não se trata de um documentário linear que apresenta depoimentos a respeito do cantor, nem mesmo conta sua trajetória como artista. Dividido entre imagens antigas e cenas contemplativas do cantor visitando sua casa da infância, demonstrando o contato direto que faz com a natureza, o documentário volta-se mais para uma obra de cunho metafórico e memorialista do que um documento narrativo da densa história de Ney.

    É um documentário-ensaio – se é que existe tal definição – que reverencia a figura conhecida pelo público. Um projeto que se transforma em uma obra para iniciados, voltado àqueles que conhecem sua obra e, por consequência, compreendem as informações, imagens e videos apresentados. Não há assunto não abordado pela obra. Porém, sem uma linha narrativa aparente, perde-se espaço para definir, mesmo que brevemente, quem é Ney Matogrosso.

    Em entrevista, o próprio cantor afirmou que sentiu falta de maior exposição, ainda mais que algumas facetas de sua vida tenham sido citadas brevemente. Levando-se em consideração que é um artista que sempre permitiu a observação do público, sempre foi autêntico em expressar suas opiniões e nunca se esquivou de perguntas polêmicas, é entristecedora a lacuna deixada pelo documentário.

    Sem ousar desvendá-la, a figura de Ney Matogrosso, que tem 40 anos de carreira e 70 de vida, é contemplada no documentário. Evoca poesia em suas imagens, desconhecendo que o próprio intérprete basta neste quesito, registrando com sua voz aguda diversas e grandiosas canções. Falta alguém que o observe com profundidade e realize uma obra, seja biografia ou documentário, à altura deste Homem – com maiúsculas.

  • Crítica | Uma Nova Chance Para Amar

    Crítica | Uma Nova Chance Para Amar

    Romances com personagens maduros são um tanto raros no mercado comercial. Dentre os poucos lançados anualmente, filmes sobre a maturidade, ou a velhice, são retratados com um exagero realista e com personagens desolados, quase fatalistas, vivendo a infelicidade até o fim de suas vidas. O cinema abre espaço para dramas existenciais, mas nunca reconhece a possibilidade de existência do amor em outras épocas, além da juvenil.

    Estrelado por Annette Bening, Ed Harris e Robin Williams (em um de seus últimos papéis em cena), Uma Nova Chance Para Amar apresenta Nikki, uma mulher devastada pela perda do marido, falecido em uma praia mexicana durante uma viagem amorosa. As cenas iniciais do longa demonstram com habilidade o passar do tempo da vida da personagem e de como a memória do cônjuge ainda se faz presente em seu imaginário, nos objetos em comum do casal e em situações cotidianas. Uma lembrança que lhe causa choque ao reconhecer, em uma galeria de arte, um pintor idêntico ao marido.

    A leveza agridoce do início do roteiro, composto com qualidade nas citadas cenas cotidianas, se intensifica em um melodrama que procura atingir o emocional do público. A princípio, a trama analisa a delicadeza do ser humano perante a perda de entes queridos, ainda mais em um acidente inesperado. A personagem central demonstra fragilidade interna e parece procurar neste homem, semelhante à sua alma gêmea, um retorno ao passado; fazer deste novo amor uma representação do marido.

    O roteiro direciona sua narrativa com maior intensidade para o romance que irá acontecer e à análise da necessidade de um mínimo de preparo psicológico para o conhecimento, a compreensão e a aceitação de outro ser humano. Embora a questão do duplo seja apresentada em breves diálogos, justificando que não há nenhuma pessoa genuinamente única, a trama focaliza a confusão interna da personagem nesta projeção semelhante de dois personagens.

    Ed Harris sustenta ambos os papéis, sendo capaz de entregar nuances diferentes para cada um deles: mais alegre para o marido falecido, mais irônico e contido para o pintor. A princípio, a semelhança causa estranheza também no espectador, e, sem estarmos cientes do enredo, é possível pressupormos a fragilidade da saúde de Nikki. Seria o público um cúmplice de um desvio psicológico ou quem corrobora com a semelhança de ambos? Novamente, o longa não parece interessado em analisar a negação do luto, mas foca diretamente o conflito entre homem e mulher em uma relação amorosa. Este enfoque dramático amplia-se conforme conhecemos a história oculta do passado de Nikki. Uma proposta arriscada por depender da recepção emotiva do público e da aceitação de que o enredo possui um conceito minimamente realista.

    Por outro lado, o enfoque romântico gera bonitas cenas de amor maduro e, distante de um fatalismo exagerado, compõe com naturalidade um quadro de personagens equilibrados mesmo em situações limite. Robin Williams, em uma de suas últimas performances, interpreta um viúvo que também sofreu a perda da esposa. Um laço que o une a Nikki como um triste clube que relembra a brevidade da vida. O bom elenco de veteranos produz a credibilidade deste roteiro sentimental e melodramático que atinge o espectador pelas interpretações, demonstrando que mesmo a maturidade física requer também apoio sensível para poder amar.

  • Crítica | Uma Viagem Extraordinária

    Crítica | Uma Viagem Extraordinária

    O atual cinema francês não tem nada de atual, é de tradição e de comprometimento social como vem tentando ser desde os anos 60, com a resistência de grande parte da crítica e dos cinéfilos franceses, temerosos – no fundo – pelo tamanho das garras e presas da globalização prestes a engolir tudo e todos, muito além da terra do croissant e de outros clichês idiotas. Em termos de prestação de serviço ao registro da vida do público, de mistificar o que não cabe em jornais ou revistas, o cinema française mistifica e expande o sentido de seu microcosmo sócio-político como, hoje em dia, nenhuma outra filmografia de qualquer país consegue fazer, e esse é o principal de seus méritos: não apenas evitar ser uma televisão gigante com fatos não descartáveis, se atendo apenas a interesses públicos, como foi no século XXI o cinema inteiro da América Latina, mas ser mais teatro do que TV, muito mais nobre do que o horário nobre da telinha – como Alan Resnais tratou objetivamente de provar na ‘‘peça filmada”, ou no ‘‘filme encenado”, que é Amar, Beber e Comer, grande e rica obra de 2014.

    Mas nenhum filme desde a virada do milênio encantou tanto o mundo feito Amélie Poulain, de 2001, com um visual acachapante (e a beleza de Tautou) em prol do impacto que uma história simples e comum pode ter, se contada usando todo o poder absoluto da sétima-arte. Esse filme levou às grandes massas um cinema até então muito ligado à intelectualidade exagerada, digamos, algo arrogante e frio como ficou conhecido desde os tempos que Godard, Chabrol, Rivette e outros cineastas mandavam no jogo da exposição artística – de novo, com muito desdém pela turma mais antiga, acostumada só com Renoir e Carné, artistas de cinema em estado bruto. A Nouvelle Vague também já é passado, e, agora, Uma Viagem Extraordinária é a consolidação, o fruto do que começou no ano de 2001, quando o cinema do sotaque parisiense e do l’amour e da revolución ficou mais pop e livre do que nunca. E todo mundo, claro, amou e está amando o que não precisa mais ser rebelde – mas que não evita ser quando é preciso.

    A beleza e o encantamento como difusores de um conceito. Esse é a ideia, iniciativa e visão de Jean-Pierre Jeunet, o mais comportado dos surrealistas, justamente por ser mais expressionista que surreal, apesar de brincar de um jeito único com as duas vertentes. Para o artista, usar a lupa da graça ao analisar a vida neste mundo é básico, é uma obrigação a ser alcançada em cada facho de luz contra as sombras da desgraça. Com influência visual de grandes artistas do passado, franceses, americanos, e principalmente britânicos, poucos cineastas filmam o mundo de maneira mais viva e exuberante que Jeunet – Malick e o fotógrafo Roger Deakins podem entrar na lista. É burrice dizer que a estética de Amélie Poulain já não encanta mais, 10 anos depois, pois quem ainda não conhece o cinema de Jeunet vai se encantar do mesmo jeito ao assistir à obra, ao absorver a história francesa (em solo americano) de um jovem gênio, Spivet, um guri carismático que decide cair no mundo em busca de um prêmio conquistado por uma de suas invenções – que mais remete a um daqueles projetos de Da Vinci.

    O fantástico vem da extravagância que faz o filme ser o ícone de si mesmo. Tudo é visto pelo deslumbre que só uma criança vê o banal, o cotidiano, que não tem mais graça, visto da janela de um trem por um adulto, já integrado demais na vida real. O garoto Spivet é irmão do menino de Os Incompreendidos, cada um em uma realidade, mas unidos na curiosidade pelo proibido; ambos netos de Cabral e Colombo, todos sedentos pela promessa do além-abismo devido à sede pelo amanhã. Assim sendo, antes de ser um cientista, o moleque é descobridor da vida, e antes de ser um artista, Jeunet é adulto o bastante para expor sua criança interior na pele de outra, e sem medo de ser feliz. O resultado é o melhor e mais belo filme infantil desde O Garoto da Bicicleta, de 2011, na tradição do primeiro filme da história a se dedicar ao universo infanto-juvenil: O Ator Tokkan Kozo (1929), do mestre Yasujiro Ozu.

    Uma Viagem Extraordinária pode investigar o papel da criança no mundo de hoje, diferente da época do filme de Truffaut, mais livre e inteligente do que as gerações passadas para se libertar de dogmas familiares e descobrir seu lugar no mundo, de forma prematura. Ou ainda, pode debater o autoconhecimento através das relações pessoais que uma viagem nos traz, a todos nós, independente de nossas idades, por que não? Acima de tudo, atrás da paleta de cores e da experiência audiovisual que nos convida a assistir várias vezes o filme, sempre descobrindo algum sentido novo, com certeza é indiscutivelmente gratificante quando o cinema americano brinca de ser francês, e brinca de maneira tão graciosa.

  • Crítica | Libertem Angela Davis

    Crítica | Libertem Angela Davis

    Libertem Angela 1

    A evocação primária de Libertem Angela Davis envolve uma forte trilha sonora, muito ligada ao ideal da principal biografada. Os gritos de “freedom” acompanhados do groove inserem o público na aura de luta pela igualdade racial, mais do que qualquer cena anterior à trilha. Após a apresentação, toda a formalidade é quebrada de modo necessário, expondo as indignidades que os marginalizados padeciam, além da resposta agressiva que os manifestantes sofriam, agredidos com brutalidade e repressão por parte dos policiais, com a mesma medida violenta que eles viam nas ruas, longe dos holofotes. A desfaçatez reinava no modus operandi das forças armadas, na tentativa de manter o estado totalitário no poder, sem que nada mudasse.

    O cunho político do documentário de Susan Lynch visa analisar o momento histórico pelo qual passava os Estados Unidos da América, antecipando a condição que seria vista mais tarde na África como Apartheid. O viés escolhido é o olhar de uma professora, uma função de fundamental importância na sociedade civil e que contribuía para a filosofia social predominante, até que esta norma muda. Ao menor sinal do ensino – em escolas segregadoras, que separam alunos por cor – dos ideais marxistas, faz-se dela uma inimiga do governo e da ordem imperante.

    A luta das autoridades com Angela era política, tomada pela paranoia da Guerra Fria, que fazia perseguir quaisquer afiliados do Partido Comunista, uma vez que o discurso era tratado como algo “diabólico”, tirado de contexto a fim de parecer ir contra a tradição, família e propriedade. Nos discursos do povo manipulado, havia gritos de “volte para a Rússia” e “volte para a África”, além de exibir uma variação ainda mais pesada de preconceito racial, com desenhos caricaturais de Davis assemelhando sua figura à caracterização da população zulu.

    Toda hecatombe ocorria ao lado do recrudescimento da máquina de governo, com o governador Ronald Reagan achando em Davis uma párea e perigosa inimiga do país, claro, junto ao estouro do confronto no Vietnã e a ascensão dos Panteras Negras. O estado de sítio estava instaurado, e uma guerra civil tomava o asfalto, fruto da dificuldade de evolução e de reflexão do antigo discurso de Abraham Lincoln. A igualdade parecia cada vez mais distante.

    Em razão de um incidente, na época muitíssimo mal explicado, Angela Davis foi indiciada, tendo sua prisão decretada e executada sob muitos protestos, que alegavam manipulação de informação por parte da mídia. A culpabilidade da professora foi tão alta que até o presidente Richard Nixon a endossou. A pena para Davis incorreu no desejo de extradição, o que intensificou ainda mais a onda de protestos.

    O caráter de atualidade do filme é impressionante, especialmente por notar-se a praticamente nula evolução a que o mundo se submeteu, mesmo após 40 anos decorridos após o início do movimento. A controvérsia a respeito dos direitos à liberdade política e da marginalização do “diferente” prossegue em países de diferentes histórias e tradições de luta, dos mais ricos até os ditos subdesenvolvidos; alguns com arquétipos mudados: dos negros sendo substituídos por outras minorias igualmente marginalizadas, como o público LGBT, ao lado da perseguição dos que pensam à esquerda, e contra tantos outros. E a questão racial ainda longe de ser resolvida.

    A contextualização documental mostra muitos registros visuais da época, assim como inúmeros depoimentos dos envolvidos, até de lados opostos. Serve como um bom retrato do panorama cronológico, tanto que reforça a injustiça presente no julgamento de Davis, uma vez que o argumento é um dos poucos fatores em cujo contexto abrange todas as falas. Os membros do movimento e os mais conservadores enxergam a professora da mesma forma: uma lutadora dos direitos civis.

    O recurso narrativo para remontar as cenas do tribunal – que obviamente não poderiam ser filmadas – foi perene ao exibir uma arte peculiar entre os depoimentos dos entrevistados. O destaque ao penteado black power de Angela revela uma idealização do ícone acima da figura humana, do símbolo da eterna luta de classes presente no epicentro do capitalismo do século XX.

    A poesia vencia no discurso desintoxicante da ré, que lutava contra os grilhões que amarravam os seus braços e os de muitos. O conteúdo do filme de Lynch é contestador, assinalado pela fala do branco advogado de defesa, Leo Branton, que profere ao também branco júri, o qual decidiria a sentença de Davis, convidando-o a pensar de modo diferente:

    “Eu quero que você interprete um papel comigo, para os próximos vários minutos: eu quero que você pense “preto”. Eu quero que você seja negro. Não se preocupe. Vou deixá-lo voltar a ser branco quando isto acabar. Se você é negro, você sabe que seus antepassados foram trazidos a este país como escravos. E o Supremo Tribunal dos EUA determinou: não há direitos. Uma pessoa negra tinha que ser o que os homens brancos queriam, e era obrigada a respeitar esta decisão. Uma intelectual como Angela Davis sabia disso. Cada vez que uma pessoa negra erguia a voz em apoio a liberdade e à liberdade do homem negro, foi assassinada. E, por isso, você sabe todas essas coisas, se você é Angela Davis ou se você é negro. Você, como negro, não se pergunta por que ela fugiu, só se pergunta: por que o mundo permitiu que fosse apanhada?”

    Após toda a luta, o desejo da já idosa Angela Davis é que a discussão amadureça, além até de seu reclame. O lema de sua vida é voltado para que mais vitórias, como as que conseguiu naquela época, se repitam, na tentativa de tornar o mundo moderno o mais igualitário possível. Libertem Angela Davis consegue informar e emocionar o público de maneira equilibrada, com a inserção total do espectador no drama da biografada.

  • Crítica | O Massacre da Serra Elétrica (1974)

    Crítica | O Massacre da Serra Elétrica (1974)

    Texas Chainsaw Massacre - classic poster

    Valendo-se do pensamento tipicamente repressor predominante no Sul dos Estados Unidos, aproveitando a estrada do clássico hitchcockiano Psicose, e também tendo em comum a base da história real de Ed Gein, O Massacre da Serra Elétrica foi o pioneiro dos slasher movies nos anos 70, uma obra responsável por elevar seu realizador Tobe Hooper a habitar o seleto hall de mestres do terror ao lado de John Carpenter, George Romero, Wes Craven, Mario Bava e Dario Argento, graças a uma abordagem transgressora de um conto interiorano.

    As fotos exibindo as partes putrefatas revelam a corrosão e decomposição de espírito dos humanos que seriam mostrados em tela, uma ruína de alma abissal. Os corpos empilhados ou em pé causam sustos imediatos no espectador, inserindo o público no terrível drama que será visto adiante. O vermelho profetiza o caráter sanguinolento do roteiro de Hooper.

    A câmera por trás dos arbustos funciona na trama como uma observadora anônima, a inserção do público na história, representando os olhos normais perante o mundo bizarro. Mesmo os menores incidentes são tratados pelas lentes como eventos trágicos. O velho bêbado tenta avisar aos soberbos rapazes das estranhezas típicas do lugarejo, mas eles não lhe dão ouvidos.

    O grupo de jovens, liderados por Sally Hardesty (Marilyn Burns), teria uma surpresa horrenda durante a psicodélica road trip que fazem. Tencionando uma viagem repleta de libertinagem, eles atravessam o Texas com sua van. Ao estacionar o veículo, o grupo é abraçado pela tradição familiar pervertida pelo canibalismo, que tem em Leatherface o seu maior expoente no quesito físico, sendo o braço forte dos facínoras, cuja intenção de matar é uma correção dos sacrilégios que os jovens fariam. Ao menos era essa a ótica do ultramoralista clã texano.

    Até a falta de talento dramático do elenco ajuda a assinalar a estranheza daquele microuniverso tão distante da realidade e do mundo comum. Os cortes rápidos, variando entre um personagem e outro, denotam pressa, uma sensação que se sobrepõe à prudência. Mesmo com todos os avisos, os moços vão em direção ao matadouro. O anseio pelas obras da carne pesaria em seus destinos. O macabro lugar, repleto de móveis feitos à base de ossos humanos, logo lembraria aos imberbes moços e moças da efemeridade da vida, chegando a um destino infernal.

    Ao analisar a plateia do cinema, notam-se risos involuntários que revelam o quão sádica é esta nova geração. O grupo de vilões, cretinamente caricatos, aumenta a aura fantástica e bizarra da trama, tornando o desespero que toma os irmãos Hardesty, plausível. O tal “sentimento” não seria nada diante do horror que viria, com Leatherface cortando Franklin (Paul A Partain) em frente à câmera e aos olhos de Sally.

    Diante do medo de sucumbir, a “virgem” promete se entregar aos malfeitores, fazendo o que eles queriam. Sally corre desesperada, atravessando a propriedade, se jogando na caçamba de uma picape para fugir dos demônios que a perseguiam. O corte seco que Hooper dá na gargalhada desesperada da moça resume toda a perversidade contida no clássico, com o sangue escorrendo sobre a pele da scream queen, lamentando-se por uma existência certamente traumática para os terríveis dias que a acompanhariam até o seu falecimento.