Categoria: Críticas

  • Crítica | Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda do Santuário

    Crítica | Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda do Santuário

    Os Cavaleiros do Zodíaco é um anime japonês que chegou ao Brasil há exatos 20 anos. O desenho contava a história de cinco amigos que se tornaram protetores da Deusa Atena e, apesar da violência, tinha como foco, basicamente, a amizade, o perdão e a superação, já que era recorrente que os os protagonistas não se davam por vencidos, sacrificando (muitas vezes) suas vidas em prol do próximo. Juntando estes três conceitos numa disputa de poder bem elaborada e bem amarrada, não tinha como dar errado.

    O enredo ambientado na Grécia teve como ponto de partida a fuga de um cavaleiro chamado Aiolos, que carregava um bebê que acreditava ser a reencarnação de Atena. O bravo guerreiro acabou sendo morto a mando do Mestre do Santuário, que o acusou de ser um traidor. Porém, ainda vivo, Aiolos consegue entregar o bebê ao senhor Mistumasa Kido, o qual promete criá-lo, além de guardar sua armadura da constelação de Sagitário para o cavaleiro mais honrado quando este tiver a idade necessária. Com isso, a Fundação Kido foi criada, abrigando crianças órfãs das mais diversas nacionalidades. Posteriormente, cada uma das crianças foi enviada a várias partes do mundo para ser treinada. Assim, cerca de 10 anos depois, a jovem Saori Kido, dando continuidade ao legado de seu avô, Mistumasa, realizava a Guerra Galáctica, um torneio, disputado entre todos os cavaleiros do orfanato, cujo prêmio era a bela armadura de Sagitário de Aiolos.

    Essa simples premissa mudou para sempre a vida de Seiya, Shiryu, Shun, Hyoga e Ikki, além de ter mudado a vida de muita gente (inclusive deste que vos escreve). O anime fez um sucesso estrondoso no Brasil e no mundo.

    O arco seguinte ao da Guerra Galáctica faz com que Seiya e os outros percebam exatamente onde eles estão metidos, uma vez que os cavaleiros que cresceram no orfanato não são os únicos cavaleiros existentes. Eles apenas fazem parte de um universo de 88 cavaleiros, cada um sendo protegido por uma constelação do zodíaco, sendo que sua maioria acredita que Saori Kido é uma impostora, o que coloca os outros cavaleiros como traidores, dando início a uma saga de mais de 50 fantásticos episódios.

    E é exatamente dessa saga que se trata A Lenda do Santuário, dirigido por Kei’ichi Sato e roteirizado por Chihiru Suzuki simplesmente para homenagear os 40 anos de carreira do mestre Masami Kurumada, criador e desenhista do mangá Os Cavaleiros do Zodíaco. Com isso, a animação em CGI buscou condensar, em apenas uma hora e meia, mais de 50 episódios na tentativa de fazer com que um novo público conhecesse o anime, além de trazer aquela nostalgia a todas aquelas crianças que hoje estão na casa dos 30 anos. Mas foi em vão.

    Partindo do princípio de que o filme se chama A Lenda do Santuário, significa que a história, por ser uma lenda, não precisava ser contada exatamente do jeito que aconteceu, o que tornariam plausíveis as muitas alterações na história. Mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu. Não há problema algum no fato de todas as armaduras terem sido alteradas; ou até mesmo a manifestação do cosmo nos cavaleiros ter sido reduzida a brilhos nos detalhes de suas armaduras; ou o cavaleiro de ouro de Escorpião ser uma amazona (que mostra o rosto). O problema está justamente onde não houve alteração. Aqui no Brasil, a Diamond Films, que cuidou da distribuição, fez um esforço tremendo e competente para trazer os dubladores originais da saga, mas, ainda assim, Seiya (Hermes Baroli), Shiryu (Élcio Sodré), Shun (Ulisses Bezerra), Hyoga (Francisco Bretas) e Ikki (Leonardo Camilo) se tornaram completos estranhos, talvez por terem muito pouco tempo de tela, visto que o filme é centrado em Seiya, deixando muito pouco espaço e diálogos para os outros. Ikki só aparece duas vezes e isso é um absurdo.

    As lutas também sofreram pesadas alterações e muitas das consideradas clássicas nem chegaram a acontecer, tornando a transposição das 12 casas algo relativamente fácil. Talvez o maior absurdo tenha sido a luta entre Shiryu e Máscara da Morte, de Câncer, o cavaleiro mais cruel das 12 casas que, aqui, foi reduzido a uma cópia barata da pior imitação de Jack Sparrow já vista (ele tem até o cavanhaque com miçangas). Se no anime a casa do Cavaleiro de Câncer é toda adornada com os rostos agonizantes das pessoas que ele matou, em A Lenda do Santuário, os rostos são coloridos, alegres e cantam, ajudando o cavaleiro em um número musical ridículo, buscando emular de forma pífia o que a Disney faz de forma competente.

    E não é só. Tirando as partes que foram mal aproveitadas da versão original, não há nada que seja nostálgico no filme. Por mais que todos os cavaleiros gritem seus golpes conhecidos, não se vê, em nenhum momento, por exemplo, os movimentos que eles fazem antes de tais golpes, como o “balé do cisne” de Hyoga ao soltar seu Pó de Diamante ou os movimentos de Ikki ao invocar a Ave Fênix.

    A trilha sonora é péssima e muito baixa, reduzida sempre à mesma música, não remetendo em nada à ótima trilha sonora original, que consistia em poucas músicas empregadas em momentos certos na história. Pegasus Fantasy só toca no trailer.

    Porém, o filme não é um desastre completo. O Santuário não é localizado na Grécia e fica numa outra dimensão. Tanto que, para chegar lá, os cavaleiros precisam unir seus pingentes onde estão suas armaduras para que os personagens possam se teletransportar. De qualquer forma, o Santuário é lindo. O visual respeita bastante a série clássica, mas traz detalhes grandiosos que a animação dos anos 80 não tinha qualidade técnica para mostrar. Há uma população que mora lá, o Mestre se reporta à população e é escoltado pelos imponentes Cavaleiros de Ouro. As 12 casas são enormes e bem distintas umas das outras, como no anime, e aparentemente são casas de verdade, como as sensacionais mansões dos sheiks árabes que estamos acostumados a ver, o que faz com que as batalhas, portanto, sejam nos saguões dessas mansões.

    E, finalmente, as armaduras. Quando as primeiras imagens começaram a ser divulgadas, percebeu-se que as armaduras sofreram muitas alterações, porém ainda é possível reconhecê-las vestindo os cavaleiros de bronze, cada qual com sua cor predominante. O acabamento é caprichado e conta com uma gama maior de tons. Elas não brilham tanto como no desenho, mas contam com detalhes incríveis, e o destaque fica para as armaduras de Pégaso e Fênix. Já no que diz respeito aos Cavaleiros de Ouro, suas armaduras foram as mais alteradas. Consegue-se reconhecer as ombreiras de Shaka de Virgem ou o chifre de Mu de Áries, mas alguns cavaleiros, como Aiolia de Leão, tiveram suas vestimentas totalmente reformuladas, sendo o destaque (presente em todos os cavaleiros) a adição de um capacete que se fecha durante a batalha, o que deixa o visual dos cavaleiros bem agressivo.

    Infelizmente, Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda do Santuário deixou muito a desejar, porém, embora o desempenho nas bilheterias tenha sido modesto, mas chegando a liderar por algum tempo aqui no Brasil, o filme deverá ganhar uma continuação, conforme confirmado pelo produtor Iosuke Asama (também responsável pela Saga de Hades), o que é bom, considerando que os defensores de Atena poderão ganhar uma segunda chance e mostrar a que vieram.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | A Grande Escolha

    Crítica | A Grande Escolha

    Que o Super Bowl é um espetáculo, todo mundo sabe. A grande final do futebol americano é um evento de proporções gigantescas, que move uma enorme quantidade de dinheiro, para os Estados Unidos e mexe com as emoções dos ianques. O que poucas pessoas fora de lá sabem é que antes do início do campeonato existe um evento chamado “Draft Day”, no qual os 32 times que compõem a NFL escolhem novos jogadores egressos do futebol universitário. É nesse ambiente que se desenvolve A Grande Escolha. Em vez de fazer mais um drama esportivo focando uma equipe disputando um campeonato, os roteiristas Scott Rothman e Rajiv Joseph e o diretor Ivan Reitman preferiram ambientar o filme na disputa que ocorre nos bastidores do esporte.

    A trama do filme retrata a jornada do gerente-geral do Cleveland Browns, vivido por Kevin Costner, em sua jornada de negociações durante o “Draft Day”. Além de ter que administrar a parte esportiva do time, o personagem ainda que lidar com vários aspectos de sua vida pessoal, com a relação delicada dele com o novo técnico do time e também com a expectativa de toda uma cidade que sonha em ver seu time de coração de volta à elite.

    Tudo isso pode parecer monótono e formulaico, mas o diretor Ivan Reitman consegue transformar o filme em um grande show sobre os bastidores do esporte. A direção ágil do diretor, que faz um excelente uso de telas divididas, não deixa a peteca cair em nenhum momento. Momentos melancólicos e cômicos são filmados com perícia e não sucumbem ao sentimentalismo gratuito. Existe ainda uma fuga do didatismo que costuma ocorrer nesse tipo de filme. Tudo é exibido de forma que mesmo os espectadores que não são familiarizados com o esporte possam entender. Os diálogos do filme também são muito bons, principalmente nos momentos de negociação.

    Kevin Costner tem uma ótima performance no filme, e seu rosto de homem comum transmite bastante credibilidade ao papel. Seu Sonny Weaver Jr. é um personagem muito inteligente e que tem uma lábia fora do comum. O ator se equilibra bem nos momentos mais tensos e também nos melancólicos, além de fazer uma ótima dobradinha com Ellen Burstyn, que interpreta sua mãe. Jennifer Garner, responsável por interpretar o interesse romântico de Costner, se sai muito bem e foge do estereótipo de mocinha deslocada em um mundo totalmente masculino. Sua personagem transita muito bem no ambiente sem parecer forçada. Denis Leary e Frank Langella, respectivamente o técnico e o dono do time, estão competentes como sempre. Cabe ressaltar também que os amantes do esporte vão se deliciar com as participações especiais de grandes ídolos (Sim! Terry Crews já foi jogador de futebol americano e aqui está fazendo um papel sério!).

    Dinâmico e bem conduzido, A Grande Escolha é um filme que remete aos bons momentos cinematográficos de Ivan Reitman e Kevin Costner, além de mostrar para as pessoas que os bastidores de um esporte podem ser tão tensos e interessantes como uma final de campeonato.

  • Crítica | Brasil: Um Relato de Tortura

    Crítica | Brasil: Um Relato de Tortura

    Produzido como um documentário acadêmico, que seria exibido nas televisões de San Francisco, o média-metragem começa com um apelo sincero, provindo de um dos exilados brasileiros no Chile. Sem qualquer ressalva, ele fala da realidade daqueles que não tiveram a mesma “sorte” que ele. Curiosamente, o pedido vai em direção a uma das nações que olhavam com olhos que apoiavam o período de regime ditatorial impingido pelos militares no Brasil.

    Após o anúncio dos créditos iniciais da fita, a câmera registra os sobreviventes que reproduzem suas lembranças através de um teatro improvisado, lembrando as queimaduras de cigarro na epiderme e emulando a arquitetura do pau de arara. As legendas em inglês demonstram a que povo esse produto é destinado.

    Uma jovem de vinte e cinco anos começa seu discurso em espanhol, falando em detalhes das torturas que sofreu e que também outras amigas também sofreram, relatando agouros que envolviam até violações sexuais, onde introjetavam objetos mil nas vaginas das moças. Apesar da voz embargada e dos muitos suspiros ao falar da agressividade com que era tratada, não é possível ofuscar o motivo que a fez praticar os atos marginais que a levaram a ser presa. O tempo todo ela destaca que sua luta é pelo povo.

    Após mostrar as marcas de bala em uma mulher vítima dos truculentos atos policiais, o Padre Tito declara como foi tratado na prisão, provando que mesmo uma figura do clero sofria tais situações de aflição, sendo torturado com choques elétricos e outros padecimentos, que o forçavam a fazer suas necessidades em plena roupa, impedindo-o até de se limpar após toda a crueldade dos atos. Esse tratamento era destinado a todos indiscriminadamente, segundo o sacerdote.

    Os torturadores não ignoram fatos como o roubo de carros e outros objetos por meio da expropriação, mas também permitem aos guerrilheiros improvisados explicar os motivos que os fizeram tomar aquelas atitudes. Aos olhos dos “companheiros”, a mentalidade de como o Governo trata seu povo é algo maligno. Destacando-se uma fala de um dos militares, que diz que “é necessário que cada cidadão brasileiro passe pelo pau de arara, para saber quem é patriota ou não”, enquanto a juventude engajada era humilhada por eles e pela mídia, que se dobrou ante os interesses governamentais como terroristas e subversivos.

    O documentário ganhou uma importância grande, não somente por seu conteúdo, mas por carregar nas suas fileiras de produtores o nome de Haskell Wexler, ganhador do Oscar de Fotografia por Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (1966) e Esta Terra é Minha Terra (1976). Sua notoriedade em terras estrangeiras garantiu uma voz que o “grupo dos 70” jamais teve em sua terra-natal. O filme, exibido pela primeira vez em 1971, jamais foi liberado oficialmente no Brasil, exceto, é claro, pela presença do produto na íntegra no acervo digital de sites de compartilhamento de vídeos na internet.

    Os últimos vinte minutos do programa se dedica, quase que exclusivamente, aos relatos de torturados que viram seus filhos, crianças que obviamente não se envolveram em nenhuma questão política, sofrerem os mesmos maus tratos, ora suavizados, por serem infantes, ora sendo violentadas no mesmo nível de agressividade. Vê-se que a tortura não conhece limites, e a prisão e exílio conseguem separar os tais revolucionários, mantendo famílias distantes entre si, graças à perseguição ainda muito presente no começo de década de setenta.

    Perto do desfecho, um dos membro do grupo diz o quanto é complicado ter de reviver todas as cenas de tortura, reencenadas para demonstrar visualmente quais eram as dores do povo brasileiro. Essa era a ponta do iceberg da completa falta de democracia do país, o que, em última análise, representa a situação mundial, relembrando o conflito no Vietnã e outros semelhantes. O manifesto dos rebeldes era o único modo que enxergavam de revidar o sofrimento que viveram. Uma visão romantizada do que seria a justiça e do que seria o modo correto e digno de viver em meio a uma sociedade tão subdesenvolvida quanto a brasileira, que ainda enxergava na repressão um bom modo de controlar o povo, fazendo-o refém do medo e do pavor aos que detém o poder. Para Não Dizer Que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, termina a trilha e a película, numa imaginação bem mais otimista que todo o conteúdo dos relatos apresentado no vídeo.

  • Crítica | Orca: A Baleia Assassina

    Crítica | Orca: A Baleia Assassina

    O velho artifício de tentar fazer sucesso baseado no sucesso de outrem é uma máxima hollywoodiana a muitos e muitos anos. A excessivamente longa introdução mostra uma contagem regressiva, que registra os sons típicos do mamífero gigante, acompanhado, é claro, da sempre competente trilha de Ennio Morricone – até nisto o filme busca inspiração no “episódio original”, pautando seu sucesso em outro gênio musical ligado ao cinema. A trilha é tão característica que torna-se impossível não esperar a vinda de um cowboy mal encarado e suado, mas o que se vê é um show de acrobacias, de baleias se exibindo enquanto o sol se põe.

    Após a intro, registra-se um mergulho em mar aberto, com a figura perigosa de um tubarão se aproximando do mergulhador, mas nem de longe fazendo o estardalhaço do filme spielberguiano. A primeira surge somente aos cinco minutos de exibição, para logo ser transferida até um dos closes característicos do western spaghetti, que focava os rostos das pessoas assistindo o perigo de modo sensacionalista.

    Após se surpreender com a identidade do mergulhador, mostrando Rachel Bedford, vivida pela voluptuosa Charlotte Rampling, que junto aos marinheiros, assiste a morte do tubarão branco. Todos estão surpresos, ela não, pois mesmo antes da câmera de Michael Anderson registrar, ela já sabe o que acometeu o animal: uma baleia assassina, claro, afinal, convenientemente ela é uma especialista neste tipo de animal.

    Para enfrentar este perigo periclitante, é escalado o capitão do navio que captura crustáceos, Nolan, no que seria certamente o papel de sua vida. Ele é o Mister Quint (caçador de Tubarão, vivido lá por Robert Shaw) da vez, suas frases de efeitos são tão fortes quanto os arpões que impinge a si mesmo, e seus adversários são igualmente ardilosos, como a baleia boazinha que é atacada por ele, e que após ter um arpão atravessando seu corpo, ainda tenta se matar, jogando sua cabeça contra a ventoinha do barco. Para acabar com a moral do sujeito, o mamífero ao ser fisgado dá a luz a uma baleinha, numa cena que desconstrói qualquer possibilidade de bom gosto dentro da proposta do filme. A tragicômica historieta termina com uma lágrima descendo dos olhos da baleia morta, num enorme close, enquanto seu “parceiro” em alto mar emite grunhidos tocantes e finos, como o choro de um cachorro.

    A vingança dos seres marítimos não tarda, o viúvo retorna com sede de sangue, focando o Dumbledore ainda jovem com seus expressivos olhos. Todo o subtexto presente em Tubarão é completamente inexistente neste filme. Orca trata de uma rivalidade, um imbróglio pessoal entre Nolan e a Baleia do bem que se tornou do mal porque o marinheiro se confundiu. Após algumas conversas edificantes com um índio – alguém que naturalmente tem conexão com a natureza, ao menos para o parco pensamento estadunidense – o capitão passa a pensar na possibilidade do problema com o mamífero gigante ter uma origem espiritual. A única coisa que não chega a ele é a possibilidade desse roteiro esdrúxulo estar sendo levado demasiado a sério.

    O caçador – repare a quantidade absurda de alcunhas deste – entende ser a hipnose o melhor artifício para alcançar seu vilão. Sua psiquê está confusa, tão caótica quanto a continuidade da fita, que apresenta as faíscas de explosão sendo levados para leste e em segundos, levados para oeste. Aquela baía tem um complexo sistema eólico, sem dúvida alguma. E incrivelmente, a baleia parece saber até onde o seu nêmese está alojado.

    O estridente ruído produzido pelo animal maldito é tão agudo que quebra taças de vidro contendo vinho: é a força da natureza, mostrando que não está fácil. Os ataques da baleia são certeiros, pontuais, pois acertam cada um dos entes queridos de Nolan, devastando a moral do marinheiro, deixando-o prejudicado moralmente. O marujo decide ir até o lugar em que teve o primeiro embate com o gigante, porque tinha certeza que ali seria um bom ponto de encontro. É interessante notar que a série de mortes que ocorreram entre os conhecidos de Nolan não aconteceriam se as pessoas estivessem alojadas longe da costa, uma vez que a baleia não tem poderes suficientes – a priori – para atacar em terra firme.

    A baleia se desloca para uma área gélida, e os heróis decidem segui-la, até por que esse é o principal motivo do filme ser feito. Engenhoso, o animal empurra um bloco de gelo para cima do navio e afunda o transporte do seu inimigo. No último momento em que os rivais estão frente a frente, o homem hesita, deixando de atirar no animal mal intencionado. Ele cai na água, enquanto a orca o circunda. Todas as reflexões que deveriam ser feitas nesse momento sublime não o são, ao contrário, o “peixe” prefere matar seu nêmese como em um fatality, jogando sua carcaça contra a sólida rocha, para que ele morra em terra e deslize, caindo sobre a superfície aquática, tendo assim dois caixões. É deste modo, repleto de pseudos-significados que o filme de Michael Anderson se encerra, sem qualquer brilho semelhante ao filme que copiou.

  • Crítica | Arquitetura da Destruição

    Crítica | Arquitetura da Destruição

    De todos os temas da história, o Nazismo provavelmente é o mais conhecido e comentado pelas pessoas em geral, tanto por causa da dimensão do grotesco causado pelos nazistas quanto pela propaganda americana realizada por meio de seus filmes, que reforçam ser este o momento em que os EUA salvaram a humanidade deste mal. Portanto, fazer uma análise sóbria do que foi o fenômeno da ascensão e consolidação do poder nazista na Alemanha não é tarefa fácil.

    Felizmente, o documentarista sueco Peter Cohen consegue desvendar em grande parte o que está por trás de toda a psicologia do Nazismo em seu filme de 1992, Arquitetura da Destruição. A obra deixa de lado grande parte das análises superficiais e sensacionalistas feitas até então sobre Hitler e parte para tentar compreender os fatos enquanto fenômeno da própria humanidade, que é o que todos temos medo, de nos enxergar como iguais aos autores de tais atos.

    Narrado por Bruno Ganz (que ironicamente iria interpretar Hitler em A Queda, de 2004), o documentário tem três eixos principais. O primeiro, em que Hitler e grande parte da cúpula nazista eram artistas e por isso davam tanto valor à estética do III Reich, baseada principalmente na arte clássica greco-romana, quanto à perseguição à chamada “arte degenerada”; o segundo mostra que os nazistas viam na ciência e na Medicina uma forma de aumentar a expectativa de vida da “raça superior”, ao mesmo tempo em que os médicos alemães também estavam por trás da “solução final”; e finalmente o terceiro, em que aventa a tentativa quase desesperada de patologizar o “judeu” na sociedade alemã, investindo pesado em propaganda associando-os a insetos e ratos e outras pragas que contaminavam o “corpo alemão”.

    A visão artística do III Reich era influenciada principalmente pelo romantismo alemão, movimento que vinha de uma forte herança nacionalista prussiana e antissemita e personificado na figura do compositor Richard Wagner, um dos ícones de Hitler. Também havia uma forte sensação de que o III Reich era o responsável por manter a linhagem da cultura greco-romana na era moderna, com foco especial em Esparta, sociedade considerada “ideal” por Hitler. As ruínas da Grécia exerciam forte fascínio sobre o Führer, tanto que ele e seu arquiteto, Albert Speer, projetaram vários prédios para a reconstrução de várias cidades alemãs, as quais imitavam a arquitetura grega para, no futuro, os povos olharem as ruínas dos nazistas com a mesma admiração com que, hoje, vemos as ruínas gregas. Por isso ele também proíbe expressamente o bombardeio de Atenas durante a invasão nazista a Grécia.

    Portanto, é fácil entender a importância que a arte tinha para os nazistas. Tanto que os artistas considerados “degenerados” foram perseguidos ferozmente e tiveram suas obras confiscadas e muitas vezes, destruídas. Para Hitler, a arte degenerada era a arte moderna, judaica e bolchevique, ou seja, sem traços definidos, o que para eles representava sinais de doença mental de seus autores, enquanto a arte considerada correta era aquela romântica, de paisagens campestres e bucólicas, sem nenhum tipo de conflito.

    O componente médico/científico do nazismo é também muito forte. Somos apresentados a dados impressionantes (como o de que quase metade dos médicos alemães aderiram à ideologia) e que reforçam ainda mais a tese de que o Nacional-Socialismo era muito mais um fenômeno de elite do que popular. Enquanto havia campanhas públicas para o alemão fazer exames e evitar a tuberculose e o câncer (tudo centrado na figura do “médico salvador de vidas”), os mesmos médicos estavam por trás dos primeiros passos do programa de extermínio dos “indesejáveis”, mostrando claramente que o uso dos campos de concentração era o passo final de um projeto que começa bem antes, sempre com o auxílio de vídeos feitos pelo governo. Um muito interessante mostra várias imagens de deficientes mentais vinculando-os a informações alarmantes (e falsas) de que, caso nada fosse feito, essa população iria ultrapassar a população alemã “saudável”, mostrando um indicativo de qual caminho os nazistas pensavam em seguir.

    Tendo em mãos relatórios, cartas e documentos da época, Cohen remonta em detalhes todo o plano de execução destes “indesejáveis” e a preocupação dos nazistas em esconder este fato, o que mostra que, mesmo no poder, suas ações não eram 100% aceitas ou inquestionáveis. Os primeiros modelos de execução, muito precários, eram em caçambas de veículos com o escapamento acoplado, o que causava a asfixia das vítimas por monóxido de carbono, enquanto os fornos incineravam os corpos em regiões próximas à cidade. Relatos de funcionários das tabernas, o cheiro forte e pedaços de cabelo nas ruas geravam um clima tenso. Foi quando os nazistas decidiram que migrar para longe das cidades seria melhor.

    Cohen também defende a tese de que a ação final contra os judeus acontece na parte final da Segunda Guerra Mundial, por conta da demora do conflito. Então Hitler decide acelerar os planos e passa a agir utilizando meios de comunicação em massa, especialmente o Cinema, para convencer a população alemã de que o judeu era uma praga que parasitava o estado e o povo alemão, portanto deveria ser exterminado. São categóricas as imagens de alemães dedetizando casas cheias de ratos e cupins com o mesmo gás que seria utilizado nas câmaras dos campos de concentração, o Zyklon B.

    Em resumo, Arquitetura da Destruição se mostra um filme indispensável a qualquer um que tenha a mínima pretensão de entender a fundo o que foi o Nazismo. Muito bem construído e documentado, é daquelas obras que se eternizam no tempo por sua qualidade e profundidade, pois, em um tema tão complexo, é fácil deslizarmos para o senso comum. Segundo o próprio filme, não é chamando Hitler de artista frustrado (ou monstro) que iremos entender tal fenômeno. Tampouco achando que foi uma obra feita por meia dúzia de alucinados ou, tão errado quanto, pela totalidade dos alemães do período. O Nazismo cresceu e virou o que virou porque foi fruto de pessoas de sua época, de contradições de sua época, da anuência do Ocidente com uma ideologia militarista e extremista; mas, acima de tudo, foi um fenômeno totalmente humano. E isso é o que mais nos assusta.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Latitudes

    Crítica | Latitudes

    Viver dentro de um relacionamento amoroso é, normalmente, algo complicado, seja pelos altos e baixos comuns à gangorra emocional inerente à vida ou às dificuldades em conviver com as diferenças. Latitudes, segundo filme longa-metragem de Felipe Braga, foca em Olívia e José, que são vividos – intensamente – por Alice Braga e Daniel de Oliveira, personagens que têm a única chance de suas vidas de contar uma história realmente interessante.

    A trajetória dos dois é mostrada através de encontros casuais, sendo o primeiro deles em Paris, quando José age como um perfeito cavalheiro, acompanhando a dama que parecia ébria, até o hotel onde ela estava hospedada. Na intimidade, eles trocam carícias e credenciais pós-coito, uma vez que jamais haviam se visto, e decidem se encontrar novamente, para compreender melhor qual era a real química entre os dois.

    À medida que o roteiro avança, aumenta também o nível da discussão entre eles. Ao mudar de cidade, José e Olivia acabam se encontrando novamente, e a cada paragem, há mais um degrau percorrido na ligação. Quando se encontram em Londres isso fica ainda mais claro, quando discutem se vale a pena continuarem a se ver, ainda que as cenas intercaladas possam contradizer a fala dita pela mulher. O homem, apesar de se resguardar, deixa transparecer em seu rosto a vontade de que aquilo não termine, já que tudo aquilo se configura como um fruto proibido, e a volúpia o move para frente, para querer mais.

    Ao passear em uma das gôndolas de Veneza, José demonstra ter um olhar espaçado e voltado para o nada, refletindo e, ao mesmo tempo, olhando-se internamente, analisando a vaziez e a completude de sua própria vida. Uma vez em terra firme, ele vai em direção àquela que o faz sentir a plenitude do seu espírito. Os momentos em que o casal trava as conversas mais inspiradas são os que ocorrem após suas relações carnais, onde o medo da intimidade inexiste.

    Longe da civilização e longe de suas casas, acontece a primeira discussão entre eles, devido a um gesto inofensivo. É o estopim para que ambos comecem a transparecer a miséria emocional em que estão inseridos em suas vidas normais, deixando que isso resvale naquela ligação emocional e carnal que não compreende uma relação verdadeira.

    Pela primeira vez dentro da fita, a lente chega em solo brasileiro. Em São Paulo, há uma demonstração de como é a vida de José, fundamentada no mundo real, onde finalmente revela a sua cônjuge o que acontece nos intervalos entre um voo e outro, durante seus muitos trabalhos de fotógrafo. O destino dele se completa, já que a relação primária do filme é a dele com Olívia. As poucos, os dois universos, que antes eram separados por eras e eras de distância emocional, começam a colidir e a se misturar. José é corajoso em se revelar, em mostrar seus sentimentos, ainda que essa coragem possa ser facilmente confundida, ou associada, com impulsividade.

    Após mergulhar na vida do moço, a intimidade de Olívia é mostrada, com seus escrúpulos sendo justificados por ter outras situações semelhantes às que tem com José. Os diálogos inspirados resumem toda a estafa e confusão da psiquê da mulher, que não consegue dar vazão a sua própria vontade, ao menos não de modo pleno ou de maneira boa o suficiente para os seus próprios desejos. Apesar de negar com todas as suas forças, Olívia não consegue fugir de si mesma, da vontade de pertencer e de ter a posse de uma pessoa.

    Após alguns atritos, as duas partes se aceitam e começam a se conhecer de verdade, pulando de encontro em encontro, muito longe da realidade de estarem juntos. José é para Olívia o que ela é para ele, um oásis, a calmaria que curiosamente sobrevive à aridez do cotidiano, o paraíso em meio a uma existência desértica, insossa e sem sentido, o bom motivo que ambos têm para continuarem vivos, e talvez, o único momento em quem ambos podem ser sinceros, verdadeiros, sem qualquer característica hipócrita ou máscaras, onde somente as almas e os corpos nus prevalecem.

  • Crítica | Mega Shark vs Crocosaurus

    Crítica | Mega Shark vs Crocosaurus

    Mega Shark não é uma ave de fogo ou um undead, até porque jamais andou, mas certamente entrou para a categoria dos imortais do cinema, ao lado de figuras mitológicas como Godzilla, King Kong e outros primos não tão gigantescos, como Jason e Michael Myers. O segundo episódio da saga tubaranesca começa ainda mais incisiva e crítica que a primeira, mostrando um comentário social contestador, de escravização moderna, na mesma África (Congo) que séculos atrás produziu a mão de obra utilizada para levantar o mundo moderno. O filme de Christopher Ray é ainda mais corajoso, pois exibe um novo monstro logo de cara, um enorme crocodilo, um Alligator super desenvolvido, chamado Crocossauro, cujo CGI o deixa irreal e cinzento mas que mesmo com todo o tom grafite, ele ainda não tem sua origem definida.

    Outra grande rebeldia da fita é exibir o corpo de cientistas que estuda os peixes (tubarões) formado em seus protagonistas por negros. Até algumas das linhas de frente militar são pessoas cuja taxa de melanina é alta, elevando o desejo de Luther King Júnior a níveis estratosféricos – se Denzel Washington e Hale Berry podem ganhar o Oscar, por qual motivo a rapaziada do gueto não pode enfim ter sua voz no cinema podre da Asylum? A pergunta está respondida nos parcos minutos de Mega Tubarão vs Crocosauro,

    A história é contada sob os olhos do Doutor Terry McCormick (Jaleel White) que está a bordo de um navio militar, que é atacado pelo tubarão super-desenvolvido. Como nem tudo é bonito e belo, o navio é afundado pelo peixe pré-histórico cujo tamanho varia ao gosto de seu realizador, levando consigo a amada de Terry, e um bocado de sua esperança na vida, consequentemente. Sem delongas, a trilha segue até a savana, mostrando Nigel Putnam (Gary Stretch), um branco de cabelo engomado, que consegue manter o penteado mesmo em seu ofício de caçador de animais de médio porte. Logo ele encara o enorme réptil, em terras africanas, fazendo dele um autêntico sobrevivente.

    Terry por sua vez é encontrado pelo governo estadunidense, surpreendentemente vivo – outro sobrevivente – será que a narrativa já é perceptível? Nigel então decide viajar de barco, e lá, encara o peixe descomunal também, para logo depois ser perseguido pelo jacaré colosso. O embate de criaturas titânicas quase ocorre, mas é deixado para mais tarde, afinal, essa premissa única precisa ser segurada por mais dois terços de filme.

    A urgência nesse filme é maior, a pressa para resolver todas as questões que assolariam a humanidade é justificável, uma vez que os dois predadores têm feito muito mais vítimas que no seu anterior, ainda mais com um deles podendo andar em terra, aterrorizando os praieiros com sua textura de glacê sabor lodo. Nigel acaba se juntando ao corpo de especialistas, formado pelo negro, pela agente governamental Hutchinson (Sarah Lieving) e por um constrangidíssimo Robert Picardo, o Doc de Star Trek: Voyager, que em nome de alguns trocados aceita interpretar o militar maníaco por charutos Almirante Calvin.

    Entre muitas viagens de roteiro, o grupo decide destruir as ovas do jacaré, capturando um dos receptáculos e levando para dentro da base dos sujeitos. Após isso, decidem usar os invólucros para chamar a atenção dos monstrengos, não sem antes apresentar mais um sem número de cenas mal editadas em ambientes escuros, cuja iluminação vem das luzes avermelhadas típicas dos botões fosforescentes inerentes a qualquer instalação da marinha.

    A arrogância do homem faz ele não calcular a possibilidade muito real das duas criaturas caírem na porrada em terra firme, mesmo que uma dessas partes necessite da água para se locomover – o que não é exatamente um problema, uma vez que o planeta é formado por dois terços desse elemento, mas o Mega Shark gosta de um preciosismo, e se exibe de modo pouco aconselhável pelas cidades costeiras, trazendo uma destruição enorme, que em vias secundárias, relembra a evolução milenar prevista por Darwin.

    Mais uma vez quem traz a solução é o cientista de cor que insiste em falar gírias sem fim, mesmo sendo um renomado profissional. Sua ideia de atrair o tubarão por meio de uma corrente elétrica é ignóbil, mas passa a ser a melhor saída na suspensão de descrença típica da película. Após algumas conclusões bastante precipitadas, o caçador entende que o tubarão se tornou um animal nuclear. Seus pitacos prosseguem, com frases soltas de cunho óbvio, que entregam algo que o espectador é plenamente capaz de observar sozinho: os  crocodilos filhotes se aproximam de onde eles estão, atraídos por aquele perigo enorme.

    Juntos, os dois heróis superam seus traumas familiares, se veem diante das figuras mastodônticas. De arma em punho, eles cruzam o cenário, distribuindo chumbo e se movendo em câmera lenta, para grafar todo o heroísmo possível em suas ações, atividades belas, perpetradas por bravos homens, cuja genialidade é notada em seus argumentos completamente alucinados e sem sentido. Como mágica – e como já esperado por esse roteiro esquizofrênico – o plano de Terry dá certo, e eles fritam as criaturas malvadas. Tudo acaba bem, e mais uma vez os heróis voltam para suas casas com somente alguns arranhões, nada que um bom banho e descanso não cure. Dessa vez, as criaturas parecem ter sido sepultadas, já que a quantidade massiva de explosivos foi jogada nelas, mas o Mega Tubarão é um ser de proporções tão dantescas, que não é de se surpreender que ele faça mais mal a humanidade em um futuro próximo. Mega Tubarão vs Crocosauro é bem menos divertido que seu anterior, até por ter perdido o fator surpresa, além de acrescentar pouco a mitologia do peixe super desenvolvido, o que é uma lástima, evidentemente.

  • Crítica | Alemão

    Crítica | Alemão

    No início da noite de 26 de novembro de 2013, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, com o apoio da Polícia Federal, Polícia Civil e das Forças Armadas, cercou o Complexo do Alemão, localizado na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, para iniciar uma grande operação de retomada com o intuito de pacificar o local.

    A trajetória das UPP – Unidades de Polícia Pacificadora – ainda permanece no cerne de grandes discussões políticas e nunca teve aceitação completa da população brasileira. Profissionais em segurança, policiais, políticos e até famosos expuseram seus pontos de vista entre os prós e contras destas operações realizadas em diversos morros do Rio.

    A trama de Alemão utiliza a invasão policial como pano de fundo da ação. A produção inicia-se com cenas televisivas sobre o acontecimento, e, em cena, somos apresentados a um grupo de policiais infiltrados no local para informar in loco o desenvolvimento da ação. Mudanças de táticas feitas pelo alto escalão e o bloqueio – também planejado – dos sinais de transmissões deixam estes policiais às cegas, sem saber qual procedimento seguir e acreditando ter entre eles um traidor em potencial.

    Diferentemente de uma história que explora a questão policial e a favela ou de um argumento que explora de maneira global os acontecimentos, tomando ou não partido de um lado, boa parte da ação inicial se desenvolve no interior de uma pizzaria, ponto de encontro do grupo infiltrado. Sem nenhuma informação da Inteligência, os agentes estão em campo desconhecido e de olhos vendados. Há uma sensação de um drama de guerra, com personagens sitiados no fronte inimigo tentando sobreviver e sem se revelarem. Conforme as horas em confinamento se estendem, as discussões ficam acaloradas e os ânimos começam a se acirrar.

    O policial é apresentado como uma figura frágil, independente de sua personalidade, que faz da coragem a guia para seguir em frente. O grupo aprisionado é representado por tipos característicos de outras histórias policiais: o homem esquentado sem nada a perder; aquele que focaliza sua força na família; outro que, embora não tenha talento tático, é hábil com a inteligência. Forma-se, assim, um grupo heterogêneo de investigação. Em comum, todos possuem a dúvida em relação à eficiência da operação e sabem que foram esquecidos pela corporação. Devem se virar por conta própria, sem qualquer heroísmo, se quiserem sobreviver.

    Formado por grandes atores com domínio dramático, visto em outros longas-metragens ou em novelas televisivas, o quinteto formado por Caio Blat, Milhem Cortaz, Otávio Müller, Gabriel Braga Nunes e Marcello Melo Jr é responsável por sustentar a parte inicial da trama de maneira favorável. O drama que aflige os policiais ultrapassa a barreira da profissão, e o público, mesmo contrário às políticas estabelecidas, reconhece o histórico pessoal de cada um dos envolvidos.

    Do lado de fora desta intriga, dois polos contrários também estão em cena. A polícia representada por Antonio Fagundes, um dos chefes da invasão que conduziu a operação dos infiltrados, e o bandido dono do morro, um jovem apelidado de Playboy por sua pose rica e ostensiva, interpretado por Cauã Reymond. Fora do confinamento, a história não tem a mesma intensidade. A representação da polícia feita pelo Delegado Valadares (Fagundes) é de um sistema que mal reconhece sua própria estrutura. O delegado perde qualquer comunicação com sua equipe e, não querendo que o erro caia em sua mão, omite esta problemática dos outros, tentando resolver à sua maneira o resgate de sua equipe. Uma demonstração da fragilidade da operação como um todo. É questionável como uma operação de grande porte possa suportar erros como este apresentado.

    Enquanto isso, do outro lado da lei, o bandido de Raymond passa a maior parte do tempo apenas contemplando de maneira fria a queda de seu império, talvez incrédulo de que uma operação deste estilo fosse implantada de fato. Salvo um relacionamento amoroso que lhe deixa apreensivo, o personagem não tem carisma e não produz sentimento algum no público. Ao contrário de outros personagens limítrofes entre a lei e a sobrevivência, vistos em Cidade de Deus ou Tropa de Elite.

    A semelhança do estilo narrativo deste filme em relação aos outros é visível. E, de fato, sem o sucesso de Cidade de Deus ou Tropa de Elite, um filme como Alemão talvez seria produzido de maneira diferente. A estética visual que foi consagrada imprimou verossimilhança a tais tramas e não sem razão é retomada; difícil seria uma história sobre polícia e tráfico sem esta influência. E o resultado desta aproximação é um roteiro que modifica sua estrutura em sua segunda parte ao escolher mostrar ângulos diferentes de uma mesma situação, fazendo da boa proposta inicial do confinamento obrigatório se perder em cenas de ação e em resoluções que negam os próprios argumentos desenvolvidos entre os policiais sobre a questão da humanidade e o heroísmo. Se nem mesmo a produção tem confiança no argumento inicial que se propõe, não há público que não perceba a fragilidade da história, que decide a saída mais conhecida para uma história já conhecida pelos brasileiros.

  • Crítica | Anjos da Lei 2

    Crítica | Anjos da Lei 2

    Na atual era dos remakes e reboots, o receio de tantas produções serem lançadas apenas como caça-niqueis acaba afastando uma parte do público das salas de cinema. Porém, o grande público parece não se importar muito com isso e acaba consumindo vorazmente essas produções, o que incentiva os estúdios a investirem nesse caminho. Em sua grande maioria, essas produções são feitas a toque de caixa, sem muita preocupação estética ou com roteiro e personagens, gerando cópias e mais cópias cada vez mais genéricas e descaracterizadas.

    “Anjos da Lei 2” vem dentro deste contexto. É uma sequência de uma adaptação de uma série de TV dos anos 80, onde jovens policiais se infiltravam na escola como estudantes para investigar o tráfico de drogas. Dando sequência ao bom filme de estreia em 2011, os diretores Phil Lord e Chris Miller mantêm na segunda parte toda a fórmula que se consagrou na primeira: a relação atrapalhada, mas sempre amorosa, entre os amigos Schmidt (Jonah Hill) e Jenko (Channing Tatum), os conflitos com o chefe, Cap. Dickinson (Ice Cube), a dificuldade de Schmidt ao se relacionar com pessoas enquanto Jenko tira isso de letra, e por aí vai.

    O filme conta a história de Schmidt e Jenko sendo novamente direcionados à unidade de infiltrados para investigar a distribuição de uma nova droga antes que ela se espalhe pelo país, mas dessa vez na universidade, já que se provaram incapazes de fazer o trabalho policial convencional. Após várias tentativas frustradas de identificar a origem da nova droga e de brigarem entre si por conta das novas amizades que aparecem em suas vidas, Schmidt e Jenko precisam deixar de lado todas as suas diferenças para solucionar esse caso.

    Se a proposta do filme soa genérica e um tanto quanto inverossímil, o grande mérito de “Anjos da Lei 2” vem justamente de não se levar a sério. Ao saber que se trata de uma comédia com sátiras de vários filmes e seriados do gênero (além do próprio fato de ser uma continuação), as piadas auto-referenciais não são economizadas, especialmente nos créditos finais. As situações embaraçosas em que os protagonistas se metem durante a investigação também são muito mais exageradas do que no filme anterior, o que arranca gargalhadas do público devido, principalmente, a química entre a dupla de atores.

    Tatum não é dos melhores atores, mas ao encarnar justamente um jovem forte fisicamente, com habilidades sociais, mas não muito inteligente (características inclusive reforçadas na continuação), e com a ajuda de Hill, consegue criar um personagem carismático, interessante e engraçado. Quem também cresce no filme é o capitão Dickinson, que ganha mais espaço ao aparecer como o pai de uma aluna da mesma universidade onde os protagonistas estão infiltrados, mas que acaba dormindo com Schmidt, para aumentar ainda mais a tensão entre eles.

    Dentro disso tudo, o desfecho da história principal é o menos importante, e todos os outros personagens inseridos, como os traficantes, servem apenas de trampolim para as crescentes situações absurdas surgidas entre Schmidt e Jenko. Podemos destacar também como é positivo o fato de um filme, teoricamente de comédia, em momento algum desliza para o humor baixo, recurso tão fácil e sempre muito usado. Em momento algum as mulheres, gays ou qualquer outro grupo minoritário é tratado com desdém, muito pelo contrário. Schmidt fica uma noite com uma mulher, que logo o manda embora. Jenko começa a ter aulas sobre sexualidade e logo se posiciona a respeito dos gays, corrigindo termos ofensivos como “faggot” com um discurso politicamente correto, mas sem parecer caricato ao ponto de desvalorizar o próprio discurso.

    Anjos da Lei 2, então, repete as mesmas fórmulas consagradas do primeiro filme, mas sem se repetir como uma cópia descarada. Há evoluções na história que são interessantes de acompanhar, além das piadas e situações engraçadas que acontecem durante o longa. Quem gostou do primeiro, certamente irá se divertir também com este.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Sem Pena

    Crítica | Sem Pena

    Variando entre a triste e duríssima realidade do sistema judiciário brasileiro e o trabalho com uma linguagem pouco comum ao documentário brasileiro, Sem Pena representa um modo pouco usual de contar uma história em documentário, já que não é refém de fórmulas manjadas ou de uma abordagem mainstream de um assunto já deveras discutido.

    Realização de Eugênio Puppo, o longa-metragem começa com a fala de um sujeito que foi injustamente acusado por estupro e, por isso, encarcerado, unicamente por se vestir igual ao agressor de uma moça, embora fosse levado em conta o seu testemunho. Casos como esses são muito mais numerosos do que se imagina e do que as autoridades gostariam de admitir.

    Um dos diferenciais do filme é mostrado logo de cara, já que os primeiros depoentes dão entrevista, mas não revelam suas faces, buscando priorizar o discurso numa bem sucedida tentativa de universalizar as palavras ditas pelas personagens que se apresentam.

    Com o decorrer do filme, outros maneirismos são exibidos, como a filmagem a partir da perspectiva da carabina de um dos guardas de segurança, que fica nas torres vigiando os arredores de um presídio de São Paulo. Mais flagrante ainda são as cenas dentro das repartições públicas, com pilhas e pilhas de cadernos, onde estão nomes e casos de pessoas que foram julgadas, sem qualquer perspectiva de liberdade ou de reabilitação, mesmo aquelas que já cumpriram suas penas.

    Das falas mais assustadoras, há uma de um ex-policial militar que assume que há uma quantidade mínima de prisões que ele deve efetuar por período de tempo. Ele afirma que só conseguiu refletir e perceber o quanto isso é péssimo para ele e para a sociedade, quando esteve preso também, após uma difusa investigação de homicídio fora do seu tempo enquanto fardado. A denúncia surge não só para demonstrar a miopia do sistema, que prefere punir a corrigir o erro comunitário, mas também evidencia como pensam os agentes da lei, os braços armados que deveriam servir e proteger o povo, mas que aceitam extorquir e denunciar qualquer um, desde que seja conveniente ao Estado.

    A questão de que todo indivíduo é inocente até que se prove o contrário é sumariamente ignorado segundo as investigações de Puppo e de sua produção, ligada ao IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa – que tenciona discutir e consertar essas mazelas e erros de cálculo relativos ao julgamento de réus e do tratamento do preso enquanto parte do coletivo carcerário.

    Ao final, a tônica de não ter rostos é quebrada, mostrando a sessão de julgamento de uma senhora, acusada por tráfico de drogas. A cena é tão prodigiosa em sua feitoria, edição e captação de imagens, que a desassociação desses momentos com a ficção tornam-se quase impossíveis, uma vez que toda a verossimilhança é preservada, tendo uma enorme teatralidade impressa em seus esforços. Sem Pena é um produto que carrega em si um cunho de civilidade atroz e que têm o trânsito perfeito entre a informação pura e simples para o público incauto, além da sutileza ligada à arte de contar uma história.

  • Crítica | O Doador de Memórias

    Crítica | O Doador de Memórias

    Um filme se torna sucesso com boa bilheteria, vira tendência comercial, e o estilo é reproduzido em diversas outras produções. É a natural demanda do mercado, que fornece histórias similares, consumidas pelo público. Tramas tão parecidas e inseridas dentro de um sistema narrativo padrão que é possível deduzir sua fórmula básica em um breve raciocínio.

    Uma distopia futurista apresenta, normalmente, um mundo estéril em que as liberdades pública e pessoal foram cerceadas e onde regras rígidas são a base do bom funcionamento da sociedade. Um personagem ou um grupo são avessos a esta situação e tentam modificar tais estruturas. Há uma tendência grande desta personagem ser um adolescente, um símbolo de uma nova visão de mundo e da força de luta. Ele será imprescindível para batalhas eventuais, se não resolver tudo com as próprias mãos. São histórias com estruturas semelhantes, consumidas pelo público, que reconhece esta jornada e, filme após filme, revive a mesma aventura. O que difere uma obra de outra é a maneira com que se conduz a narrativa.

    Dirigido por Phillip Noyce e baseado na obra homônima de Lois Lowry, O Guardião de Memórias é considerado, pela crítica, um bom romance infanto-juvenil. Lançada em 1993, a obra é a primeira de uma série de livros chamada The Quartet (O Quarteto) e somente agora, na vertente de futuros distópicos, ganhou uma adaptação para as telas, demonstrando que, à procura em agradar ao público, estúdios buscam tanto novos materiais quanto obras mais antigas e elogiadas.

    Na trama, a sociedade, que possui vigilância constante, desenvolveu um sistema em que nenhuma lembrança do passado é transmitida de geração para geração. Neste mundo perfeito, não há mais espaço para guerras, fome e sentimentos como a tristeza ou felicidade. Trata-se de um mundo ascético e estruturado sobre regras radicais e igualitárias. Como o passado deve ser preservado para que se evitem erros anteriores, há um representante conhecido como O Doador (Jeff Bridges), que retém toda a história memorial da humanidade e guarda o segredo do passado para eventuais consultas em momentos de crise.

    Prestes a completar 16 anos, Jonas (Brenton Thwaites) deve passar pela cerimônia de adequação em que a cúpula da sociedade o orienta sobre a profissão que irá seguir de acordo com sua aptidão – outra repetição do gênero, a divisão em castas utilizando algum elemento específico; a cerimônia em questão é exatamente igual a de Divergente, o que nos levar a crer que o livro de Veronica Roth se inspirou neste. Por ser apto em mais de um local, o garoto é escolhido para ser o novo receptador de memórias, muito devido à velhice do doador anterior.

    Em seu treinamento, o jovem contempla recortes do passado e, ao descobrir a beleza escondida pelo Estado, tenta despertar da ignorância as pessoas ao seu redor, assumindo a jornada de redentor, presente na cartilha básica de outros filmes do gênero. A fórmula prossegue até mesmo na estrutura de elenco: atores famosos em papéis importantes para dar credibilidade; uma obra adaptada e elogiada por algum veículo ou premiada em algum lugar; e um grupo de adolescentes como salvadores da pátria.

    Há pouca originalidade nesta história. Devido à uniformidade exigida pelo sistema, o início é eficiente e diferenciado ao ser filmado em preto e branco, mostrando de maneira explícita um mundo regrado onde não dá espaço para o improviso. Uma visão literalmente “preto no branco” da própria realidade, cuja paleta de sentimentos humanos foi renegada. Conforme Jonas recebe as memórias do passado, as cores entram em cena, primeiro levemente, depois em tons naturais.

    Afora este interessante recurso estético, a narrativa repete os mesmos estratagemas de seus semelhantes, sem uma contraposição dramática a ser superada. Em nenhum momento, os anciões responsáveis pela ordem  e liderados por Meryl Streep – demostram força para deter o garoto. Não são ativos e opressores como em outras distopias, que demonstram a mão de ferro de um sistema autoritário, o que facilita a jornada do garoto que deseja sair do domínio vigiado.

    O desfecho da trama, além do eventual e óbvio gancho para uma continuação – se a bilheteria tiver um bom retorno, claro –, é risível, como se um elemento mágico fosse inserido na obra. Não traz nenhuma explicação ao público e, novamente, parece contradizer a ideia de um sistema totalitário. Talvez reconhecendo que seu público-alvo seja os jovens, a autora tenha escolhido amenizar a violência da trama. Porém, a ausência desta contraposição sabota a própria história, repetida em tantas outras obras mas sem a primordial simpatia estabelecida pelos protagonistas e suas aventuras.

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  • Crítica | O Capital

    Crítica | O Capital

    O Welfare State surgiu em meados de 1942, na Grã-Bretanha, mas passa por um forte desenvolvimento após a Segunda Guerra Mundial também nos EUA e boa parte da Europa Ocidental, sendo um modelo exportado pelo mundo todo. O Welfare State, ou Estado de Bem-estar Social, ficou conhecido por ser uma medida de política pública intimamente relacionada às áreas de direitos sociais, além de intervir diretamente na política econômica de seus Estados de modo a assegurar uma regulamentação dos capitais a fim de realizar uma tentativa de diminuição das desigualdades sociais.

    Difícil conceber a razão da criação desse tipo de política pública, que é atualmente uma das bandeiras levantadas por boa parte dos partidos de esquerda, por governos declaradamente capitalistas. Talvez tenha sido motivada por razões altruístas, ou mais provavelmente, pela tensão política causada pelos sindicatos e pela crescente ascensão do Socialismo na Europa Oriental. Ocorre que, nos anos 1970, esse modelo político passa a entrar em colapso, e os governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan representam o desmonte histórico do sistema, seguidos por regimes de outros países, dando lugar ao neoliberalismo e sua campanha contra o intervencionismo estatal.

    O Capital, de Constantin Costa-Gavras, não trata necessariamente deste período histórico, mas um pouco adiante, já que o filme se passa durante o clima de crise europeia, ainda vivido, fruto do neoliberalismo que colhemos diariamente. O cineasta mais uma vez se mostra incisivo, e até mesmo obsessivo (ainda bem), em retratar o poder político, uma assinatura temática de sua filmografia. Aqui, Gavras constrói – para em seguida desconstruir – o complexo modelo reestruturado do Capitalismo e a barbárie social e financeira causada por ele.

    O longa se inicia com uma partida de golfe; de modo metafórico, o diretor dá sinais do que veremos adiante, e claro, do que vemos cotidianamente no mercado financeiro: um jogo. Gavras repetirá isso dezenas de vezes ao longo do filme através de figuras metafóricas, mas não à toa isso ocorre de maneira brilhantemente colocada pelo diretor ao explicar a lógica do jogo do capitalismo globalizado.

    Marc Tourneuil (Gad Elmaleh) é um escritor e homem de confiança do então presidente de um dos maiores bancos da Europa, que o considera talentoso para assumir a presidência em seu lugar após descobrir-se acometido de câncer nos testículos. Tourneuil assume, mas sua nomeação é temporária, já que o conselho quer usá-lo apenas como marionete para uma verdadeira transição e que ajudará o banco a sair da crise em que se encontra. Dali em diante, veremos a rápida ascensão de Tourneuil como banqueiro e sua decadência moral advinda de suas escolhas. Sua ambição maquiavélica pelo poder e dinheiro, como uma tentativa de obter respeito pelos seus pares, denota a importância do dinheiro no mundo atual, o que fica claro em um dos diálogos da personagem com sua esposa; ao ser indagado sobre o que quer, ele diz apenas que deseja o dinheiro para ser respeitado, pois quanto menor o salário, menor o respeito. Observação dura, mas facilmente vista em nossa sociedade do consumo.

    As pérolas metafóricas espalhadas por Gavras demonstram um pouco do pensamento do autor, ou seria mera coincidência o afastamento do antigo presidente em decorrência de um câncer nos testículos? Claro que não. A esterilidade do ex-presidente é também a esterilidade do mercado de capital. A perda de virilidade é a crise e a ruína desse modelo político. Não à toa, essa mensagem é reforçada através de relações humanas artificiais mostradas no filme, ou o desejo não consumado de Marc pela modelo.

    Em contrapartida, Gavras mantém uma visão bastante pessimista quanto a essa possível ruína do capital financeiro, o que deixa claro, inclusive, na escolha do nome do banco: Phenix. Assim como o capitalismo, que sempre se renova, para o bem ou para mal. Ainda assim, o cineasta greco-francês não deixa de realizar suas críticas e colocar o dedo na ferida, indo ao cerne do mundo político e econômico, retratando a desfaçatez desse mundo ao utilizar os ensinamentos da figura do líder socialista chinês Mao Tse-Tung como estratégia para realizar uma demissão em massa e ainda aumentar os lucros do banco. Uma completa inversão de valores.

    O Capital é uma leitura esmiuçada sobre os aspectos perversos do neoliberalismo. A síntese desses males é bastante clara em dado momento, quando o tio do protagonista questiona: “Seu banco obtém benefícios e você demite as pessoas. Como lida com isso?”, ao que Marc diz: “Muito mal, tio. O Banco estava afundando. Tive que salvá-lo. E tive que despedir para salvar 100 mil empregos.” A indignação de seu tio explode, e ele responde: “Não me venha com isso. Cansei de ouvir isso. Vocês sangraram as pessoas três vezes: primeiro, a bolsa quer sangue. Você realoca, funcionários perdem emprego; segundo, você os sangra como clientes; terceiro, pressiona os Estados endividados e quem paga é o cidadão. E como o funcionário é cliente e cidadão, você o fode três vezes. O dinheiro contamina tudo.”

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  • Crítica | O Selvagem

    Crítica | O Selvagem

    Antes até do advento da Harley Davidson, nos primórdios do exploitation dos motorcycle movies, a fita da Stanley Kramer Production começa sensacional, com uma música que sobe seu tom dramaticamente, seguida de uma mensagem alarmista, de que a tragédia que seria mostrada poderia acontecer em qualquer lugar. O eco dos anos cinquenta ainda não permitia uma abordagem que não fosse calcada no extremo moralismo. A narração de Marlon Brando, ainda muito jovem, representava o alerta que o sujeito americano deveria tomar para si. É deste modo ultra conservador que começa o filme de Laslo Benedek, usando o conto anárquico para exemplificar o quão selvagens são os adeptos daquele estilo de vida em duas rodas.

    Baseado num conto de Frank Rooney, chamado The Cyclists’ Raid, o filme com roteiro de John Paxton e Ben Maddow – que não é creditado – é focado nas ações de bando de desordenados, que cortam a pequena cidade de Wrightsville trajados em suas jaquetas de couro, de postura arredia e regada a antítese do bom mocismo. Eles estão a margem da sociedade, e são liderados pela imponente e sexy figura de Johnny Strabler (Brando), responsável pela alcunha do grupo, Black Rebels Motorcycle Club.

    Analisar todo esse comportamento anacronicamente é um esforço de futilidade sem tamanho, uma vez que em tempos mais modernos a postura dos rapazes possa ser considerada como leve e até saudável. O modo como toda a população enxerga o moto-clube é de um pavor sem limites, sentem-se amedrontados por aquele pastiche de boêmia, caricatural em sua essência por ser planejada para uma plateia excessivamente burguesa.

    O dito popular de que o homem teme o desconhecido ganha um bom capítulo em seu registro cinematográfico com esse espécime, mesmo que a partir de uma análise bem observada a maior parte das ações de Johnny sejam completamente inofensivas. Na maioria dos casos é como um adulto se municiar de armas de fogo para combater a malcriação infantil, oprimindo-a ao ponto dela não querer mais se expressar por nenhum meio que não seja a vontade de seus parentes mais vividos.

    Mas o estado de suposta paz logo é interrompido, com a chegada de Chino (Lee Marvin), um antigo desafeto de Johnny, que o procurava em todos os cantos imundos possíveis. Não demora muito para os dois darem início a um embate, aos olhos dos cidadãos da pacata Wrightsville e da donzela por quem o protagonista se afeiçoou – uma vez que um coração valente necessita repousar em um lugar tranquilo – a bela Kathie Bleeker (Mary Murphy), que assiste a tudo atônita.

    As buzininhas estridentes dos adversários representam o chamado à aventura do anti-herói, um som agudo e incômodo, originado da audácia de um adversário sem honra, que não respeita nada nem ninguém e que tem o atrevimento de envolver seres inocentes, que nada têm a ver com a peleja entre motoqueiros. Apesar da capa de pretensa vilania que é sugerida a Johnny e seus asseclas, aos seus pares ainda é guardado um comportamento honroso, que a despeito até da abordagem simplista de seus reclames, é grafada de modo notório pela câmera de Benedek.

    A Triumph Thunderbird 6T pilotada pelo personagem principal simboliza uma biga romana, as mesmas que eram usadas nos embates de gladiadores, cuja memória popular remete ao clássico Ben Hur, com Charlton Heston. O estranho senso de honra de Johnny também tem muito a ver com o comportamento dos tais combatentes, que carregavam um escudo de virtude mesmo sendo páreas sociais. O paralelo do motociclista com os “duelistas” é maior se analisado pelo viés da escravidão, ainda que em Roma os grilhões fossem de metal e os vistos em The Wild One sejam as amarras morais e sociais de uma coletividade que os torna bandidos, baseados somente em sua aparência.

    A velha questão paradoxal da origem do mal é elevada, discutindo se os rebeldes são assim por serem tratados como uma mazela social ou se a comunidade os trata desta forma por suas arruaças, claro, com a película pendendo para a segunda opção, exceto pela conduta de Strabler, que a despeito do couro e da boina, é um perfeito cavalheiro, ao menos, até a metade do filme. Seu personagem é o único dimensional da fita – novamente é preciso apelar para a cronicidade do filme e de sua época, já que este é um retrato. A relação de Johnny e Kathie passa por estágios de aceitação e rejeição, muito presentes em qualquer romance clássico, mas claro, com situações de altos e baixos muito mais agressivos do que o normal, mas que em sua intensidade, remetem até ao conto shakesperiano de Romeu e Julieta, cujas partes também não podem conviver em paz graças ao entorno caótico.

    A realidade por trás da emblemática figura de bad boy que Johnny tomou para si não passa de uma carapaça, um despiste para uma alma que na verdade é aflita, cujo discurso contestatório é na verdade um pedido de socorro, para um sujeito carente e imaturo, que faz da atitude malcriada seu modo de expressar demasiado infantil perto do ideário de cavaleiro andante que ele tenta ser. Mas a horda de enfurecidos cidadãos, que decide deflagar ao “infante” a sua fúria vê o terrível acaso agir, jogando sobre seus ombros uma tragédia, que obviamente sofre a tentativa de culpar o elo mais fraco daquela corrente, mas que não logra êxito.

    Ao final, mesmo provada a inocência do líder do clube, a sensação de culpa parece ter acometido ele, mesmo que sua fala não vá de encontro com o ato de assumir para si a autoria do delito. Em seus ombros pesa o olhar condenatório da moça, que em meio as investigações, declara que não poderia sentir-se apaixonada por aquela figura, ainda que a questão guarde em si muita ambiguidade. A despedida solitária do condado exemplifica qual seria o futuro do jovem, solitário, possivelmente remetendo até aos dizeres no começo do filme de que “história chocante cujo desafio público é não deixar acontecer de novo”. É incrível como mesmo dentro do ultra-moralismo da obra ainda é possível arrancar uma dura crítica a hipocrisia da época e da sociedade. São filmes como este que merecem um revisionismo mais atento por parte da crítica e público.

  • Crítica | Ação Entre Amigos

    Crítica | Ação Entre Amigos

    O método de edição escolhido por Mingo Gattozzi demonstra como Ação Entre Amigos é diferente dos seus pares, já que seus créditos iniciais são exibidos como se fossem parte do relatório de uma das autoridades militares que estavam no poder em 1971. O filme é construído como um episódio antigo, mas é abordado de uma forma vanguardista, ao contrário do resto da iconografia típica do cinema brasileiro dos anos 90.

    O presente mostrado em tela apresenta um grupo de amigos de meia-idade, já em uma fase decadente de suas vidas, relembrando momentos dos seus melhores dias, quando as ideologias eram muito mais presentes em suas ações, do que em suas idéias. A reunião é convocada por Miguel (Zé Carlos Machado), que teria descoberto um antigo torturador do seu grupo revolucionário, 25 anos após o aprisionamento dele e dos seus.

    Miguel tem seu grito abafado por seus amigos, que ou não acreditam no fato do sujeito ainda estar vivo, uma vez que os jornais noticiaram a sua morte, ou não querem remexer em todo o passado, arriscando-se mais uma vez, já que a o peso da idade e da maturidade os obriga a pensar de modo menos instintivo e mais racional. A revolta toma Miguel, que não consegue esquecer o que sofreu, nem se conformar com isso, possivelmente até cedendo à paranoia típica dos anos de chumbo.

    O extremismo dos ativistas é discutido no núcleo dos anos setenta. Lúcia (Melina Anthís) tenta convencer seu parceiro sexual de parar com a luta armada e resolve fugir com Miguel, ainda jovem (encenado por Rodrigo Brassalto), já que ela espera um bebê dele. O aborto para ela é um preço demasiadamente alto a pagar, mesmo com a luta e com a revolução que eles tencionavam instaurar a qualquer custo. Com alguns pontos semelhantes ao raciocínio sofista, os guerrilheiros normalmente não se envolviam com seus colegas exatamente para não cair na tentação de abrir mão da revolução.

    Em 1996, Miguel segue com as suas suspeitas e, em uma reunião com seus três amigos, mostra os dados que reuniu, sendo mais uma vez  demovido de suas ideias. Em uma pescaria, ele resolve parar um instante para verificar o túmulo do sujeito e de sua esposa. Os membros do grupo, já adultos, têm a calvície em comum, exceto – obviamente – Miguel, talvez em uma referência visual à rebeldia e juventude ainda presentes na vida do personagem, enquanto os outros se permitiram envelhecer, tentando apagar de suas identidades as marcas da dor e do cárcere a que foram submetidos.

    Como era de se esperar, o líder do grupo estava certo, descobrindo o paradeiro do ex-militar, que é pego em uma rinha de galo, um dos seus muitos pecados antigos. Os quatro encontram a propriedade do sujeito, um lugar enorme, fruto do sangue de muitos dos ativistas, onde vive com uma identidade nova. O revanchismo dentro do grupo era muito mais pessoal que político, movido pela emoção e com a mesma animosidade que os impedia de traçar um plano à prova de falhas.

    O quarteto se divide, e somente três vão atrás do objetivo. O acerto de contas com o aposentado senhor ocorre sob protestos do idoso soldado, que declarava que aqueles eram tempos de guerra. Essa era mesma fala dita nos anos setenta, quando suas atitudes eram extremas, o que, claramente, não justifica o que ele fez a Miguel e aos outros.

    O sentimento de vingança do protagonista o faz ficar cego e ir atrás do suposto delator. A sede de justiça passa dos limites, fazendo-o atentar contra o covarde que os deixou. O roteiro de Marçal Aquino, Brant e Renato Ciasca acaba trágico, validando até alguns dos pontos do acordo de anistia, que obviamente precisava ser revista, mas que tem pontos cruciais para as resoluções dos problemas do grupo. Beto Brant não tem qualquer receio em demonstrar suas influências estilísticas estrangeiras de Quentin Tarantino, Martin Scorsese e Michael Mann. Em seu drama, é aventando o ódio desmedido, tão perigoso quanto a omissão e a falta de coragem de abrir os inconvenientes segredos pecaminosos entre os ditos amigos. Um thriller repleto de ansiedade, cujo fôlego impressiona por não se perder em nenhum momento.

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  • Crítica | Tubarão

    Crítica | Tubarão

    Tubarão 1

    Ainda começando a pôr os pés dentro do cinema moderno, Tubarão talvez seja o pioneiro dos chamados filmes de verão, que evoluíram para o conceito de blockbuster com Star Wars. A direção de Steven Spielberg é ousada, construindo um filme essencialmente cosmopolita, que trata de uma questão universal que é o medo. Essa abordagem utiliza uma figura que, apesar de estar longe das ações humanas, mostra que o temor é algo inerente à vivência humana e que, muitas vezes, não há onde se esconder. O termo original escolhido para nomear o filme, “Presas” (Jaws), utiliza os mesmo conceitos de Encurralado, sendo quase uma continuação do mesmo espírito, mas com varição do cenário .

    A sensacional ideia de começar o filme nas profundezas marinhas já prova quem será o protagonista da película. Até mesmo os nomes do elenco que aparecem na tela preta dos créditos, não têm qualquer destaque em comparação com a introdução filmada sob os olhos do predador máximo.

    Após o preâmbulo, um grupo de adolescentes na flor da idade e ávidos por dar vazão aos seus pecados carnais – influência do slasher Psicose de Hitchcock, homenageado ao longo de todo o filme – nadam na praia de Amity despreocupados e movidos pelo torpor do verão e por suas vidas sem responsabilidades . Logo na primeira cena no mar, a ótica singular do diretor é posta à prova com uma tomada vinda do interior da água, resgatando a parte baixa e anunciando o suposto ataque do monstro. Mesmo que a pobre personagem interpretada por Susan Backlinie não se debatesse de modo desesperado, já seria possível desenhar o panorama catastrófico que viria a seguir. As consequências das mortes são mostradas de modo sutil aos olhos atuais, mas grotescos para a época.

    O bravo chefe policial, Martin Brody (Roy Scheider), ao se dar conta do homicídio, quer interditar o banho de mar, mas esbarra nos interesses do empresariado local, que subestima as chances de um – outro – desastre acontecer. Assim, é decidido unilateralmente que seria seria dada a permissão para o livre uso da praia, o que faz com que Brody assuma o papel de salva-vidas, cercando o mar com os olhos, quando é surpreendido por uma vítima fatal: uma criança. Mesmo diante da fatalidade, ele não consegue adentrar à água, fica somente na margem, atemorizado pelo que poderia ocorrer se entrasse no território de seu futuro nêmese. É nesse momento que o entrave começa de verdade.

    Em meio a uma reunião com as personalidades mais importantes da cidade, que não sabem o que fazer diante da tragédia, surge uma figura bizarra, de compleições rudes e fala lunática. Mister Quint (Robert Shaw) tem experiência em lidar com criaturas semelhantes ao que estão enfrentando, e após sua apocalíptica apresentação, os cidadãos passam a ficar mais assustados, finalmente fechando a praia. A partir daí, toda população passa a caçar o bicho e acaba capturando um tubarão tigre. A caça logo é inspecionada pelo inseguro oceanólogo Matt Hooper (Richard Dreyfuss), que contesta a identidade do assassino, baseado nas mordidas que marcavam os músculos das vítimas.

    A culpa e a acusação batem à porta de Martin, que se sente responsável por não ter impedido os banhistas de usufruírem da água enquanto havia apenas a suspeita de morte. Hooper tenta prestar seu apoio aproximando-se do delegado, mas sua falta de traquejo social o faz parecer um sujeito inconveniente. Matt e Martin são dois opostos, enquanto o estudioso ama tubarões e todas as criaturas marinhas, os medos do oficial da lei envolvem barcos, água e afins. Tudo piora quando o homicida passa a habitar a costa, um choque que faz o policial tomar uma atitude mais enérgica, muito a contragosto.

    O medo causado na população e na plateia ocorre muito devido a aura do inimigo marítimo, uma vez que ele quase nunca é mostrado em tela, aparecendo somente sua silhueta no interior da água. A sensação de impotência se mostra ainda mais presente quando torna-se notável que o comércio da cidade tem mais importância que a segurança de seus habitantes. Até as autoridades, como o prefeito Larry Vaughan (Murray Hamilton), sentem-se fracas perante a predação que se impõe. A proposta do alucinado assassino de tubarões, Quint, torna-se apetitosamente tentadora, além de inexorável.

    A jornada pelo mar demarca mais do que a simples inversão de espaço, pois praticamente muda o gênero da película. Quando Martin vislumbra pela primeira vez a criatura, sua expressão, assim como seu comportamento, mudam por completo. As broncas e brincadeiras têm de ser deixadas de lado em nome da caça e de sua própria sobrevivência. O tamanho dos tubarões era um problema, uma vez que os espécimes vivos tinham somente 4 metros, porém os que aparecem no filme, teriam 8 metros, causando uma diferença descomunal que faz com que os antigos prêmios de Quint pareçam nada diante da magnificência do animal.

    A contribuição de Carl Gottlieb para o roteiro serviu não só para enxugar o guião em seu primeiro tratamento, mas também para humanizar os personagens, já que, no livro de Peter Benchley, havia demasiadas histórias paralelas, cujos dramas não necessariamente acrescentavam à trama. Unindo à verossimilhança das pessoas mostradas em tela, a música pontual e icônica de John Williams, mostra-se uma sinfonia perfeita para a ópera de horror de Spielberg. A inspiração nas facadas de Psicose, acompanhada da música de Bernard Herrmann dão o norte para a trilha, que segundo o diretor, é responsável por 50% do sucesso do filme.

    O embate final é custoso, pois cerceia a vida de um dos personagens centrais. Seu desfecho é emocionante e simbólico, provando uma superação significativa de Martin, que consegue dominar seus temores, passando por cima do seu horror ao mar e conseguindo derribar o arauto da morte. O animatrônico de Ron e Valerie Taylor, retornaria às profundezas, dessa vez incapaz de impingir mal a mais ninguém. Infelizmente, a ganância desenfreada fez de Tubarão uma franquia que, em toda sua sapiência, buscava ofuscar os momentos únicos do clássico de 1975, tendo sua primeira continuação lançada três anos depois.

    Mesmo ainda muito novo, Spielberg já conseguia imprimir sua marca através da lente precisa de suas câmeras, além de capitanear uma edição perfeita, que fez dos defeitos de fabricação do tubarão mecânico o seu maior trunfo, aumentando as expectativas ao não exibir seu monstro de modo descabido. O subtexto de Jaws inclui não uma mensagem ecológica politicamente correta, mas sim, uma interessante odisseia, que inclui críticas desenfreadas ao capitalismo e, principalmente, a soberba humana no que toca a questão de mostrar-se a criatura mais soberana do planeta.

  • Crítica | Praia do Futuro

    Crítica | Praia do Futuro

    A nova produção dirigida e roteirizada por Karim Aïnouz – agora ao lado de Felipe Bragança – merece uma análise cuidadosa referente às intenções da obra e sua interpretação perante público e crítica. Devemos considerar que um filme como objeto de arte, a ser assistido, analisado e estudado, fornece elementos específicos, arbitrariamente selecionados, para compor as necessárias camadas da narrativa. Um procedimento que parte desde a elaboração do roteiro, como o estilo do personagem central e o foco narrativo, até elementos visuais, como decupagem, direção e fotografia.

    Sem uma divulgação da elaboração do projeto e das decisões da produção, é impossível ponderar se todas as pressuposições e inferências feitas por público e crítica foram idealizadas pela equipe. Críticos divergem quanto a totalidade interpretativa de um objetivo de arte, afirmando uns que autores compreendem linha a linha seu projeto, e outros defendendo a tese de que há sempre um leitor aleatório que pode surpreender o criador com uma análise diferenciada daquela pensada inicialmente.

    Diante destes dois primeiros e maciços parágrafos com suposições teóricas, cabe ponderar se este filme é uma história sem grande inventividade ou se funciona amparado na interpretação pessoal do público e nas inferências simbólicas de sua narrativa (Levando em conta, desde já, que é evidente que toda obra requer uma interpretação de seu espectador. Porém, há obra de maior e menor grau; um filme de ação do Michael Bay não requer o mesmo tipo de interpretação que uma arte abstrata de Jackson Pollock. Exemplos díspares que funcionam somente para situar que toda obra pede uma compreensão elucidativa).

    A Praia do Futuro é dividido em três capítulos ou atos, explicitando diferentes fases narrativas. Ao observamos que o cartaz anuncia a personagem central como um herói, inferimos tratar-se de uma história épica, um recorte sobre a jornada de um personagem. E se levarmos em conta a divisão em três capítulos, poderíamos até pressupor que a divisão de atos remete a peças clássicas da dramaturgia, compostas em atos bem distintos.

    Wagner Moura é Donato, um salva-vidas da Praia do Futuro, no Ceará, considerada uma das mais perigosas da costa. Após perder uma vida em um afogamento, a personagem encontra uma relação suficientemente forte para modificar sua vida. A tragédia é o ponto de partida para sua mudança. Graças a essa morte, o profissional do mar encontra Konrad (Clemens Schick), alemão, melhor amigo do falecido e seu companheiro de aventuras, pelo qual, após uma noite de sexo, se desperta amorosamente. O primeiro ato situa-se no Ceará, sendo o personagem alemão o estrangeiro que parece ainda mais deslocado de sua realidade natural após a morte do amigo. Um luto que diminuirá com a relação amorosa estabelecida junto ao herói-protagonista.

    Entre os supostos simbolismos da produção, a praia do futuro significaria o presente estagnado de Donato. Um homem que vive à margem da própria vida como um observador da dos outros, capaz de salvá-los mas incapaz de olhar para si mesmo como indivíduo. Em diálogo com Konrad, menciona o alto grau de sal dos mares desta praia, afirmando que, devido à maresia, é impossível viver naquele local. A praia não dá frutos e o ambiente parece cerceador de conhecimento.

    O ambiente é modificado no segundo ato, em que Donato é o estrangeiro na pátria-mãe de Konrad. Em outro habitat, excepcionalmente frio em relação ao caloroso Ceará, o conflito centra-se entre o laço primordial com o passado e sua família e o local onde vive seu amor. Uma questão existencial entre local consagrado e que lhe é confortável mas, ao mesmo tempo, parasita que o impede de seguir novos rumos. Em uma discussão sobre a covardia de Donato, o ato encerra-se com a indecisão da personagem de ficar na Alemanha ou voltar para sua terra.

    O último ato inicia-se após um salto temporal. Donato é um cidadão alemão, trabalhando em um parque aquático limpando aquários, sua maneria própria de se conectar com a água, residência da qual não quis abrir mão. Parte deste ato é marcado pela figura do irmão (Jesuíta Barbosa) como um retorno ao passado; o personagem que vem de outro local para desestruturar a ordem estabelecida. Neste caso, o irmão demonstra o passado negado por Donato à procura de sua nova vida.

    A história é uma jornada de autoconhecimento de uma personagem que deixa seus laços para fundamentar e dar vazão a suas vontades e desejos. Os três atos partem da paralisia, seguindo para a mudança e a afirmação. Sob este aspecto, a homossexualidade da personagem é mais um laço dramático da trama. Este recurso leva em consideração o mundo dividido entre aceitar ou não casais homossexuais, questão acompanhada de estúpidos preconceitos enraizados. Bem situado na história, este elemento é mais uma característica da jornada de Donato, um descobrimento dentre tantos outros.

    A condução dos três atos é feita de maneira aberta, apresentando as situações sem delineá-las por completo. Uma história contada à meia luz. Ao público, cabe analisar a obra em duas vertentes principais: se trata-se de uma trama aberta e repleta de simbolismo ou uma simples história de jornada e transformação.

    Dentro da análise simbólica, em que muitos retiraram das cenas, objetos, falas, nomes, apelidos maneiras de metaforizar o recuo diante da aceitação de seus próprios caminhos, observamos uma história bonita e poética, repleta de signos inseridos em cena que necessitam da interpretação do público. Porém, se vista sob uma ótica mais simples, porém não diminuta, de um salva-vidas que não enxerga a si e vai de encontro ao mundo para se conhecer, temos uma produção com um apuro técnico excelente, mas com um roteiro insuficiente se comparada a diversas outras jornadas de autoconhecimento que o cinema proporcionou nos últimos anos – dentre elas o filme chileno Gloria e o dinamarquês Deixe a Luz Acesa.

    O que nos faz retomar a indagação inicial: como compreender uma produção se, em sua realização, as escolhas ambíguas foram propositais para que mais de uma interpretação surgisse entre público, crítica e afins? A obra precisaria necessariamente de uma interpretação ativa do público, leitor de signos, para alcançar sua intenção? Ou talvez a demasia deste signos propõe uma erudição falsa para esconder uma trama simples? É a questão que toca a indefinição da arte. Não há nenhuma resposta plausível.

    Dessa forma, a produção parece um exercício interpretativo, como uma casa de espelhos ou um caleidoscópio infantil. Interpreta-se da maneira que a vê. E, sendo assim, nenhuma unidade crítica seria capaz de abarcar a intenção dos realizadores em relação à obra.

    Por fim, diante da polêmica que deu certa popularidade ao filme, de espectadores saindo durante as sessões por conta da relação homossexual em cena, absurdo é o único comentário que pode ser feito. Nenhuma das cenas em questão é inédita no meio – o próprio Deixe a Luz Acesa citado apresenta cenas semelhantes –, e tais cenas são, por si só, bem dirigidas e interpretadas, belas em sua demonstração carnal de amor, não importando quaisquer sexos envolvidos. Um destaque sem razão para uma trama que espera muito mais de sua audiência. Uma produção que parece mais um convite à analise interpretativa do que uma narrativa composta tradicionalmente de começo, meio e fim.

  • Crítica | Hércules

    Crítica | Hércules

    O terceiro filme da primeira trilogia X-Men só não foi mais criticado porque nenhum fã do universo Marvel pensou em formar uma religião anti-Brett Ratner. O diretor levantou a cólera de quem se acostumou à excelência e amor-de-fã de Bryan Singer e de quem não engoliu uma história que não tratava tal universo de forma especial. Com os pingos nos is, é certo que a estética de Ratner não possui muita personalidade e outros atrativos destoantes das demais, quiçá superior, a ponto de honrar certas lendas populares que, vez ou outra, superam em potencial e vigor o próprio toque de Midas desse ou daquele cineasta, corajoso o bastante pra desmentir profecias negativas a seu respeito, no tratamento de certo universo. É o caso de Hércules, o último Batman Begins do semi-deus.

    Uma figura icônica e previsível em tudo que faz, onipotente em imagem e não-semelhança perante o elenco de apoio, que, obviamente, gira ao seu redor feito o sol da produção que é, de fato. Só que o que já foi transportado mais de 25 vezes ao Cinema merece, ou em tese merecia, uma visão bastante particular para justamente tratar melhor sua mitologia e atualizar certas questões através de um cenário extremamente rico e vasto de símbolos de uma forma ímpar e contra a semelhança da overdose de iniciativas tomadas ao longo dos anos. A simbologia é imediata à vista de Dwayne Johnson, bom moço, leal e confiável, que dá presente às crianças enquanto as ensina sobre o que é ser um herói e fazer o certo, um verdadeiro político ancestral, cujos atos e músculos falam por suas ideologias. No caso, sua atuação Sylvester Stallone do ano, mesmo com a poeira das explosões de Os Mercenários 3 ainda por abaixar em 2014.

    Contudo, Johnson foi a escolha certa para o papel. Perante a (divertida e clichê) proposta de ação, exala virilidade e convicção durante suas missões homéricas em nome de um reino obtuso, comparável aos 300 de Esparta apenas pelo guerreiro mortal aparentemente invencível na linha de frente, inspirado no Gladiador de Russell Crowe  mas sem um Russell Crowe para interpretá-lo, essa é a verdade. O guerreiro olímpico de Johnson é um cérbero perturbado por não poder descansar suas três cabeças ao mesmo tempo  um conflito que rende uma única boa cena, já na reta final do contexto, mas antes tarde do que nunca.

    Se as concepções visuais e as alegorias sonoras de Mel Gibson em  Coração Valente ainda inspiram inúmeros épicos, uma nova e inédita apresentação da estética de grandes cenas de ação ao ar livre, sob o luar ou à luz do sol, parece ser uma tarefa maior no Cinema que as doze clássicas às quais Hércules sobreviveu em sua mitologia original. É louvável, ao menos, o leque de referências empregado nos belos cenários de Tróia, O Senhor dos Anéis e As Crônicas de Nárnia (quem precisa de coerência?) em contraposição ao decadente reaproveitamento do fraco estilo de Fúria de Titãs, Os Imortais e Percy Jackson (que Zeus perdoe os envolvidos no último exemplo), enquanto num básico uso do formato widescreen, exércitos e impérios liderados pelo fortão marcham no que parece, em algumas cenas, um faroeste americano, sem armas ou viúvas, mas com bigas, flechas, gregos e centauros no lugar (o que é coerência?). É tudo uma questão de adaptação, de influências positivas, com um personagem-título mais limitado do que à vontade, num figurino de bronze que não empolga muito ou faz deslumbre visual.

    Brett Ratner evoluiu (um tantinho assim, ó!) desde o ultra-criticado O Confronto Final, de 2007, e suas outras tentativas, desde então, na realmente árdua tarefa de empolgar uma plateia cada vez mais exigente, como naturalmente tende e deve ser – precisa ser, pois é sempre o público o estímulo principal para que a revitalização de ideias não seja adiada, de tempos em tempos, seja quanto tempo durar uma tendência , mas ainda não poderia caber ao diretor de A Hora do Rush 3 a tradução, em uma visão moderna de uma figura milenar, a ser melhor explorada em projetos futuros. No final, Ratner não ofende ninguém com seu Hércules, pelo contrário, diverte e conta uma história de forma competente  em determinada cena importante, a sonoplastia e edição ganham até uma nítida e direta inspiração do gigante Era Uma vez no Oeste, o que mostra até onde foram as intenções de quem fez a obra acontecer. Sem contar a meia dúzia de momentos bacanas ao longo da projeção e um final que faz justiça ao poder físico e moral do primeiro Schwarzenegger da história.

  • Crítica | Entre Nós

    Crítica | Entre Nós

    Na jornada humana, a passagem temporal de uma década produz mudanças significativas, entre distanciamentos, transformações e outras eventualidades relacionadas à evolução natural do homem. Ao observar o próprio passado, muitos poderão reconhecer modificações estruturais devido ao tempo, e, não raro, adultos se colocam em um estado duro, frio, maduro e descrente em relação ao próprio presente.

    A produção brasileira Entre Nós se desenvolve em dois tempos narrativos, demonstrando a degradação natural das relações em um período de dez anos. A ação acontece em uma fazenda do interior de São Paulo, um belo paraíso artificial, distante da selva de concreto em que moram as personagens. É neste local que, em 2002, um grupo de amigos celebra com bebidas e canções, delineando os primeiros passos de uma vida futura feita de trabalho e esforço próprio. São jovens que acreditam ser capazes de agarrar este futuro com as mãos, discutindo a paixão por literatura e arte e o desejo de se tornar um artista – seja este escritor, crítico ou de outros movimentos – neste espaço vindouro. Em um ritual juvenil, escrevem cartas, para si mesmos, a serem lidas em futuro próximo. Um final de semana que seria uma reunião perfeita não fosse um acidente que tira a vida de Rafa, considerado um dos prodígios do grupo.

    Dez anos depois, as personagens se reencontram no mesmo local, que mantém as estruturas mas demonstra velhice tanto pelos materiais quanto pela fotografia levemente desbotada, retirando as cores da juventude. Cada um chega em seus próprios carros, demonstrando uma significativa diferença do passado, em que um único veículo estava à disposição do grupo. Envelhecidos e modificados pela vida e pela morte do amigo, possuem entre si somente a ilusão de um passado conjunto, forte o suficiente para que se honre a promessa das leituras das cartas escritas dez anos antes.

    A dor da perda é compartilhada por todos e recai sobremaneira em Felipe, melhor amigo do falecido. A personagem tornou-se um renomado escritor que fez uso da própria biografia – e da história destes amigos – como argumento para sua obra-prima. Nesta reunião em que os amigos tentam retornar o fio da amizade – mesmo que temporariamente para este encontro –, descobrem que não há nós suficientes que reconstruam laços desgastados e que existem mais sombras no acidente que tirou a vida do amado amigo. A morte inferida como o primeiro elemento a destruir a integridade do grupo.

    Ao observar o próprio passado, cada personagem contempla a miséria particular que surgiu em contrapartida dos sonhos anteriores. São pessoas marginalizadas pelas expectativas e ainda incrédulas com o abismo que há entre a projeção juvenil e a realidade adulta. O roteiro reflete tanto sobre a construção e compreensão desta identidade como também, através das personagens, dialoga sobre a própria arte.

    Ao escrever uma ficção sobre a própria biografia, a personagem de Felipe segue a tradição de escritores que fizeram da própria vida material para a obra, como Charles Bukowski, Ernest Hemingway entre outros manipuladores de histórias pessoais. A maneira como se impõe, como um escritor bem-sucedido, parece fazer dele uma caricatura de si mesmo, distante do outrora amigo querido pelo grupo. E sua ambição em tornar-se relevante adquire contornos mais sombrios quando a leitura das cartas guardadas é realizada.

    A cena em questão é simbólica, além de reveladora. Como símbolo, demonstra que as certezas individuais podem ser destruídas ou manchadas, o que é identificado pela parcela de cartas destruídas pelo tempo e impossível de serem lidas. Uma metáfora da própria condição transitória da vida. Ao lerem estes documentos, as personagens buscam uma redenção inexistente, um apoio deste passado iluminado. Mas encontram a revelação agressiva do caráter do escritor renomado.

    A trama se desenvolve entre silêncio e inferências não apenas pelo jogo cênico, mas pela falta de diálogo entre o grupo. Não há mais suavidade compreensiva e silêncios compartilhados. Tudo parece agudo e conflituoso, como um acertar de contas com o passado, que choca este reencontro com a ilusão de tempos anteriores. O elenco formado por Caio Blat, Carolina Dieckmann, Martha Nowill, Julio Andrade e Paulo Vilhena compõe as personagens com a leveza e a dor necessárias para o drama, vivido em uma situação destruída e amarga. Uma história de relações e de mudanças entre o futuro imaginado e o presente vivido. Nós que permanecem e nunca são fáceis de serem aceitos diante do estúpido desejo humano de apoiar-se na paz e na harmonia.

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  • Crítica | Jovens, Loucos e Rebeldes

    Crítica | Jovens, Loucos e Rebeldes

    De tempos em tempos, surgem alguns filmes que retratam uma época em toda sua essência, mas poucas obras conseguem captar uma década como foi o caso de Jovens, Loucos e Rebeldes (Dazed and Confused), de 1993, dirigida pelo ainda novato Richard Linklater.

    À primeira vista, o longa parece apenas mais um entre tantos filmes que retratam um pouco da cultura jovem americana e visto repetidas vezes, principalmente ao longo da década de 1980. No entanto, ele se mostra um exemplar mais próximo de produções como American Graffiti, de George Lucas; Clube dos Cinco, de John Hughes; Picardias Estudantis, de Amy Heckerling (com roteiro de Cameron Crowe), além de outras que possuem mais camadas do que simples histórias sobre adolescentes, como Porks, American Pie, Superbad, ou mais recentes, como Projeto X.

    Linklater parece não se importar em não focalizar sua história em um personagem específico, mas seguindo o maior número de jovens possíveis para fazer um retrato destes no último dia de aula, que se estende atravessando a longa noite, até o seu desfecho. A trama é ambientada na década de 1970 e não traz um enredo específico em seu material, apenas salienta as experiências da idade, como flertes, festas e alguns ritos típicos desses estudantes, tudo isso regado a muita cerveja e maconha.

    O grande acerto de Jovens, Loucos e Rebeldes é a forma com que o diretor captura essa geração, colocando uma lente de aumento nesses grupos de personagens tão diferentes e ao mesmo tempo tão parecidos entre si. Esses vislumbres de muitas vidas retratam todas as ilusões, distorções e, claro, a rebeldia típica contida no discurso anti-establishment dos jovens dessa época, como fica claro na fala final de um dos protagonistas, o qual diz: “se algum dia eu disser que estes foram os melhores anos da minha vida, lembre-me de me matar”.

    Jovens, Loucos e Rebeldes não se trata de um filme sobre o galã do high school que se apaixona pela garota inocente, ou sobre o nerd em busca da perda da virgindade em uma dessas festas típicas de colegiais norte-americanos. Acima de tudo, a obra discute uma form de luta contra um modo de vida que a sociedade te impõe, luta essa que a maioria sabe que já começou perdida.

    O cineasta é incisivo ao mostrar a personagem de Jason London se negando a assinar o termo de compromisso com o time de futebol e deixando claro que não deixará de jogar, mas que será do jeito dele. Linklater demonstra, em um pequeno gesto, toda uma geração que parecia compreender que ignorar as regras impostas era a melhor forma de se sentir livre. Tudo isso sem grandes romantizações, por vezes bastante tolas, algo que, felizmente, todo jovem é.

  • Crítica | Monstros Marinhos

    Crítica | Monstros Marinhos

    A trilha sonora meio infantil é acompanhada de uma filmagem panorâmica, sob as frias planícies, montanhas cobertas de neve e gelo. A fita orquestrada por Ace Hannan (aka Jack Perez) tenta trazer uma sobriedade e uma visão de mundo bastante civilizado, onde homem e natureza convivem harmoniosamente, mas somente até a página 15, uma vez que as ações humanas são catastróficas para a ocorrência da vida no planeta.

    Blocos dantescos de gelo se derretem, enquanto em imersões na água atlântica, são mostradas hordas e mais hordas de tubarões, desde os brancos, cinzas, martelos e tantos outros, além de mamíferos, baleias que encantam os olhares dos personagens, que até então não são completamente estúpidos. O público menos atento aos detalhes da produção é capaz até de ser enganado quanto ao gênero deste Monstros Marinhos.

    Quando o submarino de última geração mergulha tanto nas profundezas que encontra um ser de proporções titânicas, a chave é virada e toda a abordagem muda, inclusive o cenário varia após o início/epílogo. Uma espécie de polvo ataca uma estação de tratamento de petróleo, e após o apagar das luzes é mostrada uma criatura gigante, encalhada na praia, fruto de uma disputa, certamente, mas sem origem conhecida. Claramente isso não importa, o que realmente é ressaltado é a briga entre os homens, protagonizada por Emma MacNeil (Deborah Gibson) e Dick Ritchie (Mark Hengst), o que já deixa claro que o homem não conseguirá seguir na coexistência pacífica, uma vez que Emma é mulher das mais bisbilhoteiras, até pela natureza de seu ofício como… isso não fica exatamente claro, ela é uma amante dos oceanos.

    O fato preponderante para entender a história é que seres descomunais, a muito adormecidos, finalmente despertaram, após terem suas sepulturas geladas violadas, graças talvez ao aquecimento global, algo que os cientistas sempre usam para alertar a população, mas que a humanidade insiste em ignorar. Como um grito panfletário travestido de filme B, a fita faz sua propaganda, mostrando um enorme Polvo e um Tubarão muito maior que um jato comercial, e capaz de dar saltos a muitos milhares de pés acima da linha oceânica.

    São na verdade dinossauros, antigos como o mundo, que adormeceram desde o tempo em que dominavam o planeta, e que retornariam para tentar reaver seus tempos gloriosos. E qual seria o papel do homem neste jogo fadado ao fracasso, se não perecer diante das criaturas poderosíssimas? A resposta do parco roteiro era a de que o humano é um coadjuvante no certame, já que nenhum dos humanoides é tão bem concebido quanto os seres gigantes, que mal aparecem em tela. A despeito até do começo tímido e pouco escapista.

    Logo uma junta de cientistas, que inclui em seus esforços Emma – após quase metade do filme se entende qual é a profissão desta – é cooptada pelo governo, levados de modo agressivo para uma instalação militar para verificar um modo de impedir as tais criaturas de vencer o homem em seu território. Claro, a plataforma é bem próxima ao mar, pois é ótimo habitar perto do perigo, e claro, mesmo sendo vigiados pelas autoridades, os indivíduos de jaleco conseguem tempo para a “sarração”, que logicamente lhes dá uma ideia maravilhosa, atrair os seres com feromônios.

    O valor espiritual de Emma é testado a todo momento, e ante até a figura máxima de autoridade, vivida pelo militar Allan Baxter – interpretado pelo imortal Lorenzo Lamas – o talento da moça é valorizado, talvez numa referência a carreira de cancioneira de Debbie Gibson. Fato é que suas aventuras por dentro dos oceanos são reativadas, e lá ocorrem batalhas nos CGIs mais vagabundos possíveis, com cenas intercaladas de dentro dos pódios submarinos do alto comando, com shows repletos de atuações toscas e claro, tubarões em efeitos tridimensionais com textura semelhante a isopor molhado – super condizente com o maravilhoso modo que o roteiro é guiado.

    No entanto, mesmo com toda a cretinice do roteiro, a solução encontrada pelos homens é muitíssimo condizente com a realidade, com posturas belicistas e tentativas de utilização de artigos nucleares para fazer valer a força, sob o pretexto pobre de que esta execução tencionaria salvar vidas. O artifício de usar fáceis soluções para problemas sérios é utilizado largamente na realidade, e o é assim nesta fita.

    Depois de mais uma leva de embromação, encontra-se uma solução amenizada, de união entre nações, visando vencer o inimigo em comum que o ser humano tinha. Nesta utópica união, decide-se por um plano um bocado louco, mas que em um universo completamente descacetado como este poderia funcionar, que seria reunir os dois monstros gigantes para se embater, dando fim a existência de ambos, preferencialmente.

    Como era de se esperar, a fita termina sem grandes consequências, tanto para a humanidade, quanto para as criaturas pré-históricas, que vão para as profundezas oceânicas, descansar mais uma vez e se preparar para mais uma agressão ao bicho homem, que teima em pôr questões básicas e fofas, como o amor e a amizade acima até de sua sobrevivência e do posto de líder inconteste da cadeia alimentar terráquea.

  • Crítica | Livrai-nos do Mal

    Crítica | Livrai-nos do Mal

    Baseado em uma história verídica, Livrai-nos do Mal começa focando o deserto arenoso do Iraque, com uma gravação amadora de militares americanos, que, em solo estrangeiro, tencionam levar a mesma civilização nada conciliatória que descobriram para sua terra natal. Após os créditos iniciais, é apresentada uma Nova Iorque oprimida, vítima de assassinatos a sangue frio, que tem em Ralph Sarchie (Eric Bana) o avatar de todo o seu pessimismo. O policial é cético, de relações nada íntimas e pouco fáceis, que vê somente em sua família a possibilidade de paz, mesmo que nem junto a ela consiga encontrar a serenidade.

    A partir da larga experiência do diretor Scott Derrickson em chocar, de modo amedrontador, o espectador – tomando por exemplo seus momentos anteriores, como em O Exorcismo de Emily Rose e A Entidade –, a fita segue apelando para lugares comuns no quesito fobia, em que a câmera constantemente evidencia o medo de aranhas, cobras e morcegos. Até em seus aspectos emocionais, o roteiro se baseia na melancolia, outro clichê de temor. Tudo, claro, calcado no personagem de Bana, que, ao mesmo tempo em que possui uma vida familiar bela, tem de encarar uma profissão cuja função é resgatar bebês em lixeiras. No entanto, as imagens chocantes perdem um bocado do seu impacto, por serem seguidas de momentos de humor extremo.

    A fotografia e iluminação ajudam a aumentar a aura de horror por serem mostradas quase sempre no breu, tanto nas casas quanto no zoológico – um lugar assustador quando anoitece, como um dos personagens destaca. Algo oculto move as pessoas vitimadas, um artifício que parece incorpóreo e irreal e realizado por meio de uma clara apelação para um medo comum. Sem contar o fato de mostrar pessoas repletas de cicatrizes, outro temor comumente compartilhado por todo o público.

    No decorrer das investigações, Sarchie começa a ter sua falta de fé questionada, pois os mesmos eventos vistos em sua intimidade ocorrem também na casa em que vive, onde a origem paranormal ou espiritual é deveras discutida. Ele é descrente quanto a ações de seres invisíveis, mas incrivelmente ouve uma estática nas gravações e o som de pessoas rindo, elementos exclusivamente contemplados por ele e fruto de um radar, dito por seus colegas como um talento inato.

    Após verificar uma moça que tentou matar seu filho, Sarchie encontra um padre latino de aparência bela. Padre Mendoza (Édgar Ramirez) é um religioso diferente, que tenta convencer o agente da lei sobre a “verdade”, o irremediável mal que insiste em provocar pavor nos homens, tentando-os com seus mistérios, que, em última análise, são como ritos de invocação para ação dos maus agouros. É como se todo lugar fosse o hall, a passagem para a habitação dos que estão embevecidos pelo torpor da ação daquilo que os inspira. As escrituras do Iraque são reproduzidas nas casas dos envolvidos e parecem provocar nos que as habitam uma influência hostil e maléfica, primeiro fazendo temor, depois, tomando suas ações.

    Sob a trilha de The Doors, o padre conta sua intimidade e antigos vícios em heroína que lhe fizeram mal, mas que o impediram de beber ou fumar – ou de ceder a uma olhada a belos corpos femininos. A desculpa – plausível – é de que as drogas legais o matam lentamente, e não rapidamente como as anteriores. Finalmente Archie cede, após começar a se identificar com o pároco. Aparentemente não fica apenas nisso, visto que o personagem até volta a proferir o chamado a Jesus, mesmo que sua fé tenha sido abandonada há décadas.

    Seu intenso trabalho forense invade sua casa; os mesmos sinais malignos investigados passam a habitar seu lar, e a construção do roteiro é lenta, gradual e plenamente cabível. Ele teria um dom chamado “discernimento de espírito”. O tal radar, que seus parceiros acham ser um talento policial, seria, segundo Mendoza, um dom espiritual que nem mesmo o reverendo teria a sua mão, dada a raridade desta habilidade. Aos poucos, a relação dos dois se estreita cada vez mais, emulando as duplas de agentes de raças diferentes, típicas dos filmes de tira oitentistas.

    O grito abafado pelos sons cotidianos simboliza o abandono ou o receio de que isto isto se concretize por parte de Sarchie, assemelhando-se demais à fala do sacerdote: “Um santo não é um exemplo de moral, um santo presenteia à vista.”. A premissa justificaria as falhas de ambos os protagonistas, além de unir os dois em torno do mesmo objetivo.

    Ao contrário de seus primos semelhantes, Livrai-nos do Mal tem no elenco, equilibrado e inspirado, um ponto forte. Por mais irreais que sejam seus dramas, a abordagem se aproxima muito do verossímil, um realismo fantástico bem construído e que faz poucas concessões à suspensão de descrenças, mesmo nos insistentes duelos de facas feitos por Butler (Joel McHale). A experiência de Derrickson como realizador fez valer os préstimos na toada espiritual, mas se mostrou ainda mais incomum e bem-sucedida nas sequências policiais e nos momentos de inspiração e tentativas de redenção. Toda a tragédia que toca o policial é maximizada pela ótima interpretação de Bana, na volúpia do personagem pelo perdão, que ignorou por anos, mas que não o impediu de sofrer represálias. Os pecados de Ralph até aparentam ser o motivo de todo aquele apuro que se apresentava, o que evidentemente era uma artimanha do rival de suas almas, que buscava engodá-lo.

    Após as fortes cenas onde é feito um ritual e onde todos os pecados pretéritos da dupla são escrutinados e usados contra si, enfim ocorre a bonança, com a libertação da alma de Santino (Sean Harris, irreconhecível quase), que logo traz à luz a paz de volta à vida de Sarchie, sobrevivendo até mesmo à mudança de gênero. Sua segunda metade, apesar de ser bem mais didática do que o todo, é reveladora, tendo sua credibilidade posta em cheque por abandonar um pouco o suspense, mas conseguindo apresentar uma boa ambientação policial. Os últimos momentos têm uma notável queda de qualidade, por ter um cunho demasiado piegas, mas que, à luz de toda a extensão do filme, não se caracterizam como um elemento necessariamente ruim.