Categoria: Críticas

  • Crítica | No Olho do Tornado

    Crítica | No Olho do Tornado

    Filmes de catástrofe são bastante recorrentes. De tempos em tempos, uma produção competente é lançada, atraindo inúmeras pessoas ao cinema, sendo que, na maioria das vezes, o filme em questão traz um roteiro bastante simples, porém funcional, priorizando as sensacionais cenas onde o visual se destaca. É o caso de Inferno Na Torre, Terremoto, O Destino do Poseidon (e sua competente refilmagem, Poseidon), Vivos, Twister, Volcano, Impacto Profundo, Independence Day e todas as versões de Titanic. Ocorre que, por conta do avanço da tecnologia, cuja prioridade é melhorar ainda mais os efeitos especiais, os roteiros acabaram por atrair pouca atenção. Dessa forma, o Cinema nos entregou filmes que, apesar do gosto duvidoso, alcançaram grande sucesso, como Armageddon, O Núcleo, O Dia Depois de Amanhã e 2012, todos baseando-se em desastres naturais.

    Seria impossível não comparar No Olho do Tornado a Twister, afinal os dois filmes têm nos tornados a atração principal; porém, seria muito injusto se aquele viesse para competir com esse, já que a produção de 1996 é um grande filme. É aí que está o trunfo de No Olho do Tornado: ele não compete com a obra anterior, apenas homenageia-a, de forma sutil, e isso talvez seja mérito do diretor Steven Quale (Premonição 5)  o braço direito de James Cameron e diretor de segunda unidade de Titanic e Avatar – e do jovem roteirista John Swetnam (Ela Dança, Eu Danço 5 e Evidências).

    A trama reúne a história de três núcleos de personagens, sendo dois principais e um de alívio cômico. São eles: Gary (Richard Armitage), um pai viúvo e coordenador da escola local, e seus dois filhos, Donnie (Max Deacon) e Tray (Nathan Kress), que estão colhendo depoimentos em vídeo de todo o colégio para uma cápsula do tempo; uma equipe de caçadores de tornados liderados por Pete (Matt Walsh) e a meteorologista Allison (Sarah Wayne Callies), que estão filmando um documentário em busca de um financiamento milionário; além de uma dupla de loucos que curte a vida no melhor estilo Jackass, buscando o sucesso fazendo vídeos para o Youtube.

    São personagens repletos de clichês. Gary, como dito, é viúvo, criou os dois filhos sozinho, mas não tem tempo, nem paciência para eles. Donnie, o filho mais velho, é tímido, porém apaixonado pela linda Kaitlyn (Alycia Debnam Carey). Já seu irmão, Tray, é bobo e descolado. Pete é como se fosse um vilão, pois só pensa no dinheiro que pode ganhar com a filmagem do documentário. Paga pouco por funcionários jovens e sem experiência e não exita em colocar sua equipe em perigo.

    O acerto do roteiro se deu por conta do momento em que os três núcleos se convergem em um só, o que deixa o filme mais coeso e sem tempo para enrolação, já que há uma urgência, uma corrida contra o tempo, uma vez que Donnie decide faltar à formatura para ajudar Kaitlyn num trabalho sobre meio ambiente numa usina abandonada do outro lado da cidade.

    Como se pode perceber, os  núcleos trabalham com filmagens, o que faz com que boa parte da fita seja no estilo found footage. Mas em nenhum momento trata-se de algo negativo por não existirem cenas de correria, com telas tremidas, buscando propositalmente não mostrar a ameaça com o intuito de baratear a produção. O único porém (único mesmo) fica por conta de uma cena terrível em que você percebe claramente que toda a chuva ali (até a água dos vidros dos carros) foi criada de forma pífia por computadores, um elemento que faz lembrar as produções da Asylum.

    De qualquer forma, os “personagens principais” aparecem pra valer, mas nada muito diferente do que já foi visto nos trailers da obra; uma estratégia ousada, porém positiva.

    De acordo com Allison, os furacões Katrina e Sandy são a prova de que a natureza não é mais a mesma e que anomalias meteorológicas poderão ocorrer até mesmo em lugares como Los Angeles. Embora a cidade aparentemente fique numa região condizente com a aparição eventual de tornados, ela é assolada por uma série deles, o que coloca a metrópole em perigo, preparando os personagens para um terceiro ato grandioso, tenso e bastante competente. A cena mostrada do ponto de vista de um carro, que é jogado para o alto, faz com que o espectador realmente tenha aquela sensação de queda estando dentro do veículo.

    Fica aí a grande surpresa para esse final de temporada das grandes produções do cinema americano. Seria ousado dizer que No Olho do Tornado está no “top 5” de blockbusters de 2014?

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Sharknado 2: A Segunda Onda

    Crítica | Sharknado 2: A Segunda Onda

    Em 2013, The Asylum, a produtora trash por excelência, nos brindou com uma das maiores pérolas cinematográficas da atualidade: SharknadoO sucesso, aliado ao baixo orçamento de produção, tornou inevitável uma sequência. Eis que, no ano seguinte, estreia Sharknado 2, e pasmem, a galhofa ficou ainda maior!

    Após os acontecimentos do primeiro filme, April (Tara Reid) escreve um best-seller no qual relata as façanhas de Fin (Ian Ziering) ao combater o temível tornado de tubarões. Logo no início do filme, o casal, agora reconciliado (?), está num avião rumo a New York, mas… Fin tem a impressão de que algo ruim está por vir. E não estamos falando somente de Kelly Osbourne no papel de aeromoça. Uma tempestade surge e os tubarões voltam a atacar! É inacreditável o que acontece nos primeiros minutos de filme,  e na pior qualidade técnica possível: da aparição (e morte) relâmpago de Wil Weathon ao pouso forçado do avião com um CGI digno do PlayStation 1. Tubarões adentram o avião ignorando completamente os princípios da Física. Mas quem espera realismo em um filme como este?

    Após o grande susto no avião, Fin deve avisar à sua família que procurem abrigo em New York, pois um novo sharknado está por vir. A partir daí, a catástrofe se inicia no estilo do primeiro filme. As ruas ficam inundadas, infestadas de tubarões, que são onipresentes e surgem de qualquer poça d’água. Para tudo ficar ainda mais bonito, alguns répteis dão o ar da graça dos esgotos, lembrando um certo filme dos anos 80.

    Aliás, houve uma preocupação em trazer mais elementos da cultura pop ao filme, com incontáveis referências a clássicos do cinema e afins. Basta um olhar mais atento para captar a “sutil” homenagem a Evil Dead, Além da Imaginação, e claro, ao Tubarão de Steven Spielberg  – personagens chamados Ellen e Marin Brody. O fato de os tubarões perseguirem April e Fin insistentemente traz à lembrança o plot do horrendo Tubarão 4, contribuindo positivamente para a trasheira deste filme.

    A brincadeira fica ainda mais interessante com a inserção de telejornais reais noticiando a catástrofe. Imaginem se num filme William Bonner anunciasse no Jornal Nacional a aparição de um sharknado. Seria, no mínimo, divertido.

    Não satisfeitos, a Asylum  cria um final absurdo, exagerado, ridiculamente trash, superando qualquer expectativa do mais descrente ser humano deste planeta. A babaquice é tamanha que precisamos aplaudir de pé este blockbuster da zoeira. Jogue seu tênis verde no lixo e aprecie esta obra que vai te divertir horrores. Um colosso!

  • Crítica | Lucy

    Crítica | Lucy

    Lucy é um filme sobre uma mulher que consegue ativar de 50 a 100% de seu cérebro, para uma plateia que não consegue chegar a 5%. A ofensa com o espírito crítico e cultural do público, por boa parte dos produtores, gera contradição compatível no mundo pop a da cantora Beyoncé, cantando a plenos pulmões que a beleza fere e perverte, mesmo sendo a atual deusa da volúpia. As últimas – e primeiras – linhas resumem o que poderia ser tema de uma monografia sobre as manobras da indústria de cinema deste século; cada vez mais capital, cada vez menos arte. Uma crítica de três ou quatro blocos seria o bastante para expressar em breve estudo, a angústia de estar diante de boas intenções cuja realização é emergencial – nem a visão de Scarlett Johansson salva do umbral – onde todas as propostas junto ao pífio entretenimento do filme vêm a padecer ante o belo manto técnico de sempre, a esconder uma repulsiva cadeia de negações de todos os tipos, e contradições já comentadas.‏

    Em Sob a Pele, aliás, também estrelado pela moça (que ocupa o posto com Zoe Saldana de atriz hit do momento), Scarlett vive com elegância e intensidade dramática impressionantes uma mulher igualmente sem emoções, no passado ou futuro, porém com tentadora profundidade na construção da personagem; tentação oriunda do mistério que sua atuação evoca, misteriosa como uma diva noir, cuja beleza é essencial e respeitada a favor da premissa, analítica ao criticar nosso inevitável mundinho de aparências. Na conduta dessa mesma realidade distorcida em filmes de ação/ficção científica, Luc Besson (O Quinto Elemento) em Lucy faz sentir abstinência de A Origem até ao maior opositor de Christopher Nolan, que por pior que ainda seja a muitos, é eficaz quanto a encontrar bom-senso, trama e narrativa coerentes entre suas teorias e ideias surreais.

    Besson se torna especialista em antíteses do próprio projeto, um “pois sim-pois não” que dura uma hora e meia de reviravoltas que, pelo conjunto, beira o insuportável, à luz, ou melhor, à sombra de um roteiro lastimável, sem eira nem beira, uma espécie de jornada individual moderna de um herói, no caso, heroína. Um modelo que Akira Kurosawa imortalizou no japonês Yojimbo, e que encontra na sua cópia americana feminina e ultrajante, em gênero, número e grau, um dos seus piores exponentes a partir do que restou de vergonha e originalidade semi-extintas numa Hollywood que prefere estuprar seus mitos a arriscar novas lendas, visando revitalização e uma melhor reputação, impossíveis neste derradeiro cenário, sendo Lucy outra colher de terra, dessas que são produzidas em escala, contra o que já foi feito e aquilo que poderá florescer.

    Contudo é possível listar uma overdose de filmes, mangás e filosofias, de primeiro a quinto escalão, que o filme de Besson se apoia para existir, ao longo da projeção, desde sua sonoplastia baseada nos efeitos sonoros modernos de 007: Skyfall, Salt, A Origem e Sem Limites, sendo que do último furta ritmo e parte da frágil consistência, até  quando a protagonista, aparece na tela, sem qualquer tratamento de introdução, feito Toshirô Mifune no clássico samurai de ação. Ela é raptada, presa e se torna fera desgarrada logo em seguida, como em um reflexo de Oldboy. Besson se baseia em Sergio Leone e uma dízima de outras fontes de inspiração, mais abusadas e desmistificadas em seus valores que são relembradas em caráter de homenagem, como Quentin Tarantino, que se consagra hoje como melhor exemplo vivo disso, através de seus desvios de linguagem na forma de Cinema pessoal e peculiar.

    Resta a prova que a conta não fecha em filmes como esse. A comida perde o sabor quando requentada mil vezes, exceto, é claro, se o paladar que a degusta nunca a tenha provado antes. Coisa rara, mais que rara, em tempos nos quais Lucy sequer merece duas estrelas em seu céu de diamantes.

  • Crítica | Amores Inversos

    Crítica | Amores Inversos

    O começo de Amores Inversos é agridoce, exibindo o cotidiano incomum de Johanna Parry (Kristen Wiig), cujo comportamento é bastante curioso, uma vez que ela parece ter algum tipo de anomalia mental, que a faz ter dificuldades em expressar sentimentos e até de se alimentar como um adulto “normal”. Logo, sua paciente, uma idosa, que mesmo ela não sabe a idade, falece, deixando a mulher sem um ofício, coisa que não ocorria há 15 anos, quando ela assumiu os cuidados da anciã.

    Após isso, Johanna consegue outro serviço, tornando-se doméstica de uma família em frangalhos, formada pelos remanescentes à morte da sua amada matriarca. Sobraram o avô Mr. McCauley (Nick Nolte), um senhor a que Parry sempre responde, e que é assustadoramente gentil com ela, a menina Sabitha (Hailee Steinfeld) e o viúvo e “doente” Ken (Guy Pearce) que tem um passado trôpego e relações conturbadíssimas com o sogro e com a própria filha.

    O comportamento pouco convencional de Johanna faz todos a verem com maus olhos, geralmente de modo excludente, inclusive por Sabitha e por sua amiga Edith (Sami Gayle), que resolvem brincar com os sentimentos da cuidadora, forjando um flerte por meio de cartas, usando o nomadismo de Ken e a comunicação escrita para praticar os seus atos maléficos.

    Johanna é subserviente em quase todas as relações em que se embrenha, mesmo as românticas, causadas pela ilusão pensada pelas cabeças maléficas juvenis. Seus primeiros atos são os de conserto e de reabilitação do lugar onde está alocada, para só então agir. No entanto, sua condição não a exime de sentir-se rejeitada ou usada.

    Edith é encarada como má até mesmo por seus amigos, por impingir medo em uma pessoa incapaz de revidar os impropérios que vem a sofrer. Sua atitude covarde é também um mecanismo de defesa, uma vez que seu complexo de inferioridade é latente, motivado por sua condição financeira não ser abastada, o que no high school seria uma afronta das mais graves, condição o suficiente para ser excluída, ainda que isso não se prove num primeiro momento. O ato parece mais uma dissimulação, onde a adolescente usa a coitadice como muleta para praticar seus atos mesquinhos.

    Aos poucos a reunião entre Ken e a protagonista ganha contornos reais, como se a afeição fosse mais fácil entre dois páreas que buscam saciar a aflição de suas almas, cada um ao seu modo e estilo. O casal acabou íntimo por vias tortas, uma vez que pelos emails e cartas ela soube dos podres dele. O retorno dos reprimidos ao seio familiar é complicado para Sabitha e constrangedor em inúmeras instâncias, mas que, chegando ao seu desfecho, torna-se para a moça algo muito próximo do que seria uma vida doméstica normativa, muito aproximado graças ao empreendimento comercial de seu pai.

    Logo, o quadro evolui, mas não sem pisar em ovos e em desagrados. Saber de todas as facetas de seu par, mesmo as aparentemente desagradáveis, fazem-na ter subsídios o suficiente para cobrar dele uma atitude mais enérgica na sua reabilitação e no abandono do seu vício. Para analisar melhor a obra de Liza Johnson é preciso refletir, como quando se dá um passo atrás no momento em que se contempla algumas pinturas, para contemplar a real evolução da trajetória mostrada no ecrã cinematográfico, cujo limite da completude de espírito é analisada e mostrada sob um viés atípico.

  • Crítica | Lado a Lado

    Crítica | Lado a Lado

    O cinema é, de todas as artes, aquela que mais depende da tecnologia para ser produzida. Segundo Walter Benjamin, essa condição torna o cinema uma obra de arte única, fruto do avanço tecnológico e industrial do século XX. Ainda mais singular que a fotografia, o cinema irá gerar debates imensos e comparações sobre o “valor” de sua arte (pode ser um pintor comparado a um operador de câmera?). Portanto, o documentário Lado a Lado, dirigido por Christopher Kenneally e protagonizado por Keanu Reeves, atualiza um pouco o debate nesse sentido, ao confrontar várias personalidades da indústria cinematográfica (como George Lucas, Martin Scorsese, James Cameron, Lars von Trier, Andy e Lana Wachowski, David Fincher, Joel Schumacher, Robert RodriguezSteven Soderbergh, David Lynch etc) com a questão da substituição da película pelo filme digital.

    Com uma proposta didática de ensinar ao espectador o básico da diferença entre os formatos, o documentário assume uma postura um pouco cansativa a quem não é muito interessado no aspecto técnico do cinema. Porém, ao público alvo, possui um formato muito interessante e de fácil compreensão. Dividido em várias partes com subtemas que vão e voltam (tanto na parte criativa, quanto técnica), e entrevistando um grande número de pessoas com frases curtas e cortes muito rápidos, às vezes um pouco da informação é perdida. Mas nada que afete a compreensão geral da obra.

    O filme começa com um debate sobre a facilidade do processo de filmagem digital atualmente, onde tudo pode ser visto enquanto é filmado, enquanto no uso da película é necessário, após o término da filmagem, levá-la a um laboratório onde será revelada e o diretor só poderá ver o que foi filmado no outro dia. São colocados argumentos muito bons dos dois lados do debate, tanto no lado criativo quanto técnico.

    Após essa breve explanação, somos levados a um histórico das câmeras digitais, desde o surgimento do primeiro chip de captação digital de imagem, criado pela Sony nos anos 60, até sua popularização nos anos 90 e seus primeiros usos como ferramenta na produção cinematográfica com o movimento Dogma 95, que depois influenciou outros cineastas, como o inglês Danny Boyle a usar o digital na filmagem do seu longa de zumbis Extermínio em 2003.

    Porém, ainda nessa época a qualidade de resolução do digital era muito pequena em relação à película, e chegava no máximo ao HD (1280 x 720), enquanto a película em 35mm poderia chegar a 4096 x 3072. Mas tudo isso mudou com a chegada de novas câmeras no mercado no final dos anos 2000, onde a resolução começou a dar saltos exponenciais e o argumento a favor da película começou a ficar mais fraco.

    Outra vantagem citada do digital era não precisar mais das pausas para trocar os rolos de filmes nas câmeras, que duravam aproximadamente 10 minutos, e eram muito caros. Então havia uma pressão para o ator enquanto ouvisse o barulho do filme rodando, enquanto no digital não há pausa e nem cortes. Depois tudo é editado digitalmente (o processo de edição também é brevemente citado). Após a filmagem, o filme ainda tinha de ser entregue ao laboratório, revelado, preparado, encaixotado e transportado para depois ser visto, e dependendo da quantidade de vezes que era exibido, poderia se deteriorar. Já no digital, nada disso acontece, e a equipe tem todo o fruto do trabalho nas mãos imediatamente.

    Portanto, o filme se foca muito na questão do custo de produção, que cai absurdamente com o digital, o que tem feito muitos estúdios optarem principalmente por este formato. Tudo isso também graças ao pioneirismo de George Lucas que, vendo o potencial do digital, forçou seu uso ao experimentar esse tipo de projeção com seu Episódio I em 1999 e ao filmar, pela primeira vez na história, um longa 100% em digital, com o Episódio II. Porém, Christopher Nolan assume a defesa incondicional da película pela sua qualidade em captar as nuances de cores e as profundidades (já que utilizou esse formato para filmar a trilogia nova do Batman), mas sem menosprezar o digital, que já dá sinais de ser um verdadeiro tsunami tecnológico dentro da indústria.

    Outro ponto interessante debatido em relação ao digital é a massificação não só da produção, como também do consumo, e como o digital afeta essa relação, pois gerações mais novas estão habituadas a assistirem filmes em celulares e laptops em suas casas, e não mais somente no cinema, o que pode ser considerado vantagem por alguns e desvantagem para outros, em um tópico bem interessante, que se relaciona também com a quantidade crescente de obras sendo produzidas. É melhor mais com menos qualidade ou menos com mais qualidade? Um afeta diretamente o outro? São proporcionais? Inversamente proporcionais? Hoje em dia praticamente qualquer pessoa pode fazer um filme em casa com um orçamento baixíssimo devido ao digital. Mas isso significa algo em termos de qualidade? É o debate proposto, cabendo ao espectador a resposta.

    No final, há a especulação de a película se tornar obsoleta ou morrer de vez enquanto formato (já que nenhuma fábrica de câmera está produzindo mais modelos novos para película). Mas, um dos dados mais interessantes apresentados pelo documentário é em relação justamente a preservação. A indústria do digital muda muito, e a cada década novos meios de reprodução e mídias de armazenamento são inventados, inutilizando seu predecessor, enquanto a película se mantém viva, sendo ao mesmo tempo a mídia de reprodução e de armazenamento com grande qualidade. Esse fato gera uma situação irônica, pois os grandes defensores do formato digital dizem ter várias cópias de filmes em mídias digitais, mas que não conseguem reproduzi-las simplesmente por não existirem mais os aparelhos que o façam.

    Sem tomar um lado ou propor uma solução, o documentário termina mostrando que, apesar da briga, o digital veio para ficar e é somente uma ferramenta a mais, que depende muito da forma como é usada. Portanto, é um filme indispensável a qualquer um que se interesse por cinema de forma mais profunda.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Vizinhos

    Crítica | Vizinhos

    A complicada relação entre vizinhos já rendeu vários filmes ao longo da história do cinema. Desde filmes de suspense, passando por dramas bastante pesados e algumas comédias rasgadas, como o caso de Meus Vizinhos São um Terror, dirigido por Joe Dante e estrelado pelo grande Tom Hanks. Se formos puxar na memória, chega a impressionar a quantidade de filmes que tem como pano de fundo essa relação cotidiana que caminha na tênue linha do amor e do ódio.

    Dirigido por Nicholas Stoller, diretor de Ressaca de Amor e O Pior Trabalho do Mundo, este Vizinhos é uma divertida comédia sobre um casal (Seth Rogen e Rose Byrne) que vive em uma pacata vizinhança com sua filhinha de poucos meses de vida. Os dois vivem uma vida sem grandes emoções, até que tudo é virado de cabeça para baixo quando a fraternidade Delta Psi Beta, lendária por suas festas de arromba e liderada pelos alucinados Teddy (Zac Efron) e Pete (Dave Franco, o irmão mais novo de James Franco), muda-se para a casa ao lado.

    O filme tem um ritmo e uma dinâmica muito interessantes. Em vez de simplesmente odiarem os novos vizinhos logo de início, os personagens de Rogen e Byrne tentam inicialmente conquistar a simpatia dos membros da fraternidade com o intuito de tentar controlá-los. Essa tentativa rende um momento engraçadíssimo com os dois tentando pateticamente parecer mais jovens. Tal situação fica mais absurda quando os dois resolvem comparecer à festa inaugural da fraternidade. Seth Rogen e Zac Efron protagonizam uma discussão surreal sobre quem é o melhor Batman de todos os tempos enquanto Rose Byrne tenta se enturmar com as meninas que lá estão.

    O diretor Stoller dirigiu e escreveu somente comédias em sua carreira. Por isso consegue filmar com bastante competência essa película. As gags nunca parecem gratuitas e o filme ganha em comicidade à medida que a disputa entre os vizinhos se intensifica. As artimanhas usadas pelo casal e pela fraternidade são hilárias, ainda que em alguns momentos rendam momentos absurdos. Méritos também para os roteiristas Andrew J. Cohen e Brendan O’Brien, que conferiram profundidade aos personagens principais e povoaram a tela com coadjuvantes engraçados que acrescentam bastante ao filme, em vez de simplesmente desfilarem em cena.

    Seth Rogen está habitualmente engraçado, ainda que interprete um personagem bem semelhante aos anteriores de sua carreira. A australiana Rose Byrne também está muito bem e os dois formam um casal de boa química. Incrivelmente, o maior destaque do filme é Zac Efron. O galã-dançarino que apareceu para o grande público em High School Musical mostra que tem bastante talento e protagoniza algumas das melhores piadas do filme. Além disso, entrega uma interpretação alucinada para um personagem que chega a beirar o sadismo em alguns momentos e forma uma excelente dobradinha com Dave Franco, que também está ótimo em cena. O “bromance” dos dois é muito engraçado. Os coadjuvantes Carla Gallo e Ike Barinholtz estão ótimos, especialmente o último. Seu personagem, Jimmy, protagoniza alguns momentos de pura insanidade. A breve participação de Lisa Kudrow como reitora da universidade também é hilariante.

    Ainda que peque por apresentar um final de certa forma redentor, indo de encontro ao tom anárquico da fita, Vizinhos é diversão de primeira qualidade, que não apela para a escatologia e rende boas risadas.

  • Crítica | Tubarões

    Crítica | Tubarões

    Tubarões (ou Shark Attack, no original) é mais um dos ótimos sub-produtos calcados no hype de filmes clássicos. Produzido pela Nu Image, traz logo em seu título figuras tarimbadíssimas, como o protagonismo de Casper Van Dien, que em 1999, era uma estrela em ascensão, muito mais que um rosto bonito à frente de uma produção tão esmerada em trazer uma história inédita. O clima de suspense permeia o início da fita, onde um mergulhador desavisado é emboscado por sujeitos mal intencionados e mal encarados, para só então ter seu braço cortado por uma peixeira de proporções dantescas e ser jogado ao mar, claro, para atrair a atenção do predador máximo dos sete mares.

    Os personagens mostrados são de uma profundidade impressionante, preconizando toda a canastrice que seria grife nos anos pós 11 de setembro, e se tornariam ainda mais famosos nas produções da Asylum, como Sharknado. Logo, como se não houvessem problemas suficientes no mundo, o biólogo marinho Steven McRay (Van Dien) começa a estranhar a rotina dentro do seu laboratório, e em uma noite, decide encarar um estudo sobre o temido assassino marinho.

    Não há espaço para sutilezas ou criação de expectativa, com pouquíssimo tempo de tela já há uma enorme exposição do vilão que moveria toda a obra, mostrando o animal sendo autopsiado, desconstruindo a figura que impingiria terror sobre toda aquela geração. Steven Spielberg não poderia pensar em uma abordagem mais esdrúxula que esta. McRay fica muito triste quando descobre que seu antigo amigo – aquele que morreu no começo – pereceu, e demonstra estar mal, logo que chega a África para desenvolver o seu trabalho. O grave problema é que ele não consegue expressar sua tristeza naquele momento tão oportuno, já que este não é o maior préstimo dramaturgo de seu intérprete – se a cena desoladora fosse substituída por uma explosão, certamente teria dado mais certo.

    Impressiona o fato de que mesmo ante uma presa fácil, um infante, a máquina de matar mais poderosa do planeta seja capaz de capar a criatura, em seu próprio campo de habitação, achando que uma jangada vazia é melhor opção para um efusivo ataque. No entanto, é nessa empreitada errada que o mocinho do filme convence seus rivais e a comunidade de que ele é bad ass, e de que sabe lidar com os peixes malvados. Tubarões têm o poder de fazer as amizades mais improváveis acontecerem.

    Todo o besteirol exibicionista típico do verão é visto, com corpos esculturais habitando em biquínis pequeninos, sendo mostrados paralelamente a dilacerações de gosto duvidoso, e de pouco goire – um pecado imperdoável para um filme tão baixa renda. O visualizador mais exigente tende a chorar ao ver a falta de cuidado com que o diretor Bob Misiorowski leva o seu filme. Tudo é demasiado tímido, nem as atuações são tão caricatas; este Shark Attack parece um protótipo do que seria explorado nos próximos dez/quinze anos.

    Com o desenrolar da trama, uma teoria da conspiração ganha corpo e uma intrínseca rede de mentiras é mostrada, cuja extensão vai até os mandatários do laboratório. Steven é caçado e perseguido, mas nem as ameaças de morte são capazes de fazê-lo parar. Curioso é que quase todos os seus esforços enquanto detetive são recompensados nas primeiras opções, não há tentativa e erro, somente acerto nos primeiros chutes, e como no guião o que menos importa é a coerência, nada disso é discutido. A ganância é a verdadeira inimiga, a vilã deste maravilhosamente orquestrado teatrinnho. Os tubarões servem somente para fazer um paralelo com o instinto humano desnecessariamente ligado a caça e ao uso incontrolado da inteligência para algo necessariamente mal.

    No final, há uma bela luta, mostrando bandidos e heróis combatendo ferozmente, lutando por suas parcas vidas em meio a um laboratório repleto de produtos químicos, enquanto os valentes engravatados se escondem covardemente atrás de suas mesas. O mal tem a sua porção de castigo muito bem pensada e gasta com sabedoria. Há direito até a redenção de anti-herói. No final, o vilão mais malvado, vivido por Ernie Hudson, é engolido pela besta marinha, o ser que impinge justiça, passando por cima de qualquer barreira geográfica ou social. Um filme tosco, uma mensagem infantil e uma abordagem séria. Não há como achar este um bom produto, nem com as cenas de tiroteio em alto mar.

  • Crítica | Locke

    Crítica | Locke

    Se há uma coisa que une todos os seres humanos é a que somos frutos de escolhas, acertadas e erradas, de nós e de nossos pais. Nossas escolhas, por vezes, são condicionadas dentro desses caminhos já existentes, e raramente conseguimos romper com esse círculo vicioso. E é mais ou menos sobre isso que a nova produção do experiente roteirista, e novato diretor, Steven Knight trata. Ivan Locke (Tom Hardy) é responsável por uma obra de importância muito grande no interior da Inglaterra, porém decide pegar o carro e ir a Londres para acompanhar o parto de Bethan (Olivia Colman), uma mulher com quem teve um caso extraconjugal. E isso terá consequências nada práticas na vida de Locke. Filmado todo dentro de um carro em movimento, Locke tinha tudo para ser um filme monótono, pois deposita todas as suas fichas em Tom Hardy e na construção dos diálogos.

    Felizmente, tudo é tão bem construído que os 85 minutos do longa passam voando. Inicialmente, temos dificuldade em entender as razões pelas quais o protagonista faz escolhas tão contrárias à sua, até então, natureza íntegra, como abandonar a obra que seria responsável pelo “maior depósito de concreto da Europa fora do setor militar e nuclear”. Pelo telefone (usando o bluetooth do carro), ele tenta convencer um subordinado e um superior que não vai poder estar lá no dia seguinte, no horário da entrega pela qual é responsável, mas que tudo dará certo.

    Depois, liga para casa e explica, de maneira muito tensa, à sua esposa Katrina (Ruth Wilson) por que não estará em casa para ver o jogo com seus dois filhos que o esperavam. A revelação também acaba implodindo seu até então sólido casamento. A motivação para abrir mão de um bom emprego e de seu casamento é a de que Locke foi abandonado pelo pai, e não quer que seu filho bastardo tenha o mesmo destino que o dele, o de crescer sem uma presença paterna ao lado. Conforme o filme avança, nos deparamos com vários problemas que vão surgindo, intercalando as várias ligações que Locke faz e recebe. Problemas tanto na obra, que oferecem uma crescente tensão, quanto em casa, onde sua esposa passa, em algumas ligações, da negação ao rompimento; até mesmo com Bethan, uma desconhecida, mas que tem seu apoio neste momento difícil. Locke, com sua voz calma e leve, mas com acentuado sotaque britânico, cresceu com um pai ausente e que agiu errado com ele, portanto fez questão de fazer tudo certo na vida.

    Era o melhor empregado da firma de construção, e era o único a entregar os planos para a prefeitura antes do prazo, além de ser marido e pai exemplar. Mas um erro, em uma noite regada a vinho, colocou tudo a perder. Locke poderia muito bem não assumir a criança e manter sua vida, mas a rigidez moral de fazer o certo, mesmo em uma situação impossível, o leva a acompanhar o parto dessa criança, que não nascerá sozinha no mundo. Como não vemos nenhum outro personagem do filme, Locke sustenta-se somente pela excelente atuação de Tom Hardy, que luta internamente contra si ao dar notícias tão ruins a todos apenas por acreditar que está fazendo a coisa certa para a criança. A fotografia, que joga, a todo momento, com as cores e sombras típicas de uma autoestrada, ajuda a compor esse cenário solitário e melancólico no qual o personagem está inserido por escolha própria.

    Enquanto está indo para Londres, no carro, realiza diálogos imaginários com o pai, também em cenas fortíssimas. A relação de raiva e culpa fica ali escancarada, assim como as cicatrizes que nunca irão sarar. O personagem tenta tornar sua dor menor ao não fazer o mesmo com a criança, que não tem culpa de nada. Essa difícil linha divisória entre o “certo” e o “errado” é que colocará o espectador em um dilema, pois se ele agiu errado “uma única vez” ao ter um caso fora do casamento, está agindo certo com Bethan, mas sua esposa também está agindo certo ao abandoná-lo e dizer que a diferença entre uma ou nenhuma vez faz toda a diferença. Também estão certos seus colegas de trabalho ao ficarem possessos com ele por abandonar a obra em um momento tão crucial.

    Porém, a força do filme está justamente em se concentrar nesse momento intenso da vida do protagonista, onde o dano causado pelo pai se torna mais importante do que todo o resto, e isso ele precisará resolver, pois a responsabilidade de não reproduzir um ciclo de descaso é maior em seu interior do que o casamento ou o emprego. Usando uma tecnologia moderna de comunicação a serviço do filme, a obra também é um retrato de uma época em que as interações e relações são moldadas de acordo com o aparato tecnológico que nos cerca.

    Fica difícil não imaginar como seria a história de Locke se ele vivesse na década de 70 e não conseguisse resolver, através do telefone e dentro do carro, todos os seus problemas, nem se teria a mesma força para largar tudo e acompanhar de perto o parto de seu filho. Mas tudo isso fica a cargo do espectador refletir, como possivelmente fará, a respeito do filme, de suas próprias escolhas e como elas o trouxeram até aqui. Algo que, no final, todos nós fazemos.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Magia Ao Luar

    Crítica | Magia Ao Luar

    Após uma longa e prolífica carreira, é absolutamente impossível desassociar a audácia e ineditismo ao ideal de um cineasta. Experimentar novos espaços e desafios diferentes do habitual é algo sempre cobrado de artistas que executam suas funções há muito tempo. A filmografia de Woody Allen é um bom exemplo a ser analisado, uma vez que o diretor já vivenciou mil infâmias fora do escopo artístico e  tantas outras declarações de que seu trabalho deveria ser cessado. Todos esses comentários são de origem e consequências discutíveis, e também foram baseadas na suposta aposentadoria  do diretor por tempo de ofício. Magia ao Luar chega sem muita pompa após um premiadíssimo filme. Não que o sucesso faça qualquer diferença para o seu realizador, que gosta de manter a discrição a reconhecer toda e qualquer canonização de suas obras.

    A história de Magic in Moonlight envolve o misterioso mundo do ilusionismo, focado em Stanley (Colin Firth), cujo sobrenome de difícil pronúncia muda de acordo com a ocasião e ao seu bel prazer. Stanley é um britânico caucasiano que interpreta um mago chinês conhecido como Wei Ling Soo, que no palco é carismático ao extremo, mas que tem em sua contra-parte um sujeito pretensioso, inteligente, genial em sua área e asqueroso no trato com outros seres humanos. Em suma, um misantropo.

    O começo do filme é típico, com uma música instrumental que remete ao ano de 1928, quando Wei Ling faz um show em Berlim, e onde os préstimos de beleza surreal do personagem principal são exibidos. Após a apresentação, Howard Burkan (Simon McBurney), um velho amigo de Stanley, também mágico, vai cumprimentá-lo. Sua compleição e comportamento são o extremo inverso de Stanley, pois Howard é inseguro, tem as costas arqueadas demonstrando ser uma presa fácil se comparado com o mito que está a sua frente. Woody Allen continua com a mania de se inserir nas tramas, ainda que sua presença esteja diluída em vários personagens, com Stanley fazendo o diretor idealizado pelo público e por parte dos críticos, enquanto Howard simboliza a sua visão sobre si mesmo: um velho americano careca, que apesar de ter muito talento, não se destaca mais do que o necessário, e ainda guarda uma série de hesitações provenientes de uma autoestima bastante baixa.

    O encontro entre os dois é basicamente para bajulação por parte de Howard e para a realização de um pedido, pois o experiente ilusionista diz ao seu amigo famoso que ele presenciou uma sumidade, uma moça que parece ter poderes mediúnicos e que, mesmo com todo o conhecimento do mágico, ele não conseguiu provar que ela era uma fraude. Após a recusa em primeiro plano, Stanley resolve assumir o pedido do amigo, e vai ao encontro da suposta charlatã.

    Como era de se esperar, o protagonista exala um sarcasmo extremo ao chegar no local onde deveria começar sua investigação. Sua alcunha falsa é uma representação do desprazer dele em exercer este fútil esforço para desmascarar outrem, e sua misantropia consegue ser percebida por todos ao seu redor, que se mostram imediatamente descontentes com tal desprezo. No entanto, ele prossegue naquela empreitada.

    O fino semblante da suposta advinha também era esperado. Sophie é interpretada por Emma Stone, que apesar de não ser uma figura de beleza tão destacada quanto outras musas de Allen, ainda assim guarda uma aparência de docilidade extrema, condizente com seus poucos anos de idade e com seu jeito meigo de tratar seus clientes, o completo inverso do ilusionista disfarçado. No entanto, já no primeiro contato com o veterano, a moça se afeiçoa pela figura dele.

    Stanley é definido por Sophie como um pessimista que, como Freud, não gosta de respostas fáceis. Chega a ser neurótico e deveras derrotista. Suas crescentes piadas escondem uma enorme carência: uma vontade de ser reconhecido por seus préstimos, além do desejo de receber elogios da imprensa e de especialistas. Entre todas as revelações, a questão amorosa é a que verdadeiramente o incomoda, uma vez que ele se mostra insatisfeito sempre que se refere ao seu par. Ainda que sua fala pareça elogiosa, suas feições contradizem o discurso.

    O ceticismo de Stanley segue firme, apesar de esbarrar nos talentos dedutivos da jovem. Sua deprimente existência – e a de toda humanidade – faz  com que ele não creia nem um pouco em um mundo metafísico, onde ectoplasmas definem a subsistência das criaturas racionais. No decorrer da trama, ele fica irritadiço ao perceber cada vez mais os poderes dela. O intuito do cineasta é dar um tapa na face dos céticos pretensiosos que se consideram superiores somente por não terem fé em nada.

    Os olhos azuis da dupla contemplam o céu também azul. A noite torna-se uma mostra muito mais positiva da observação do cosmo – e consequentemente da vida – do que era mostrado até então na película, muito disso graças às falas dos caracteres flagrados pela câmera. O intuito um tanto piegas desse ato é afirmar que, afinal, a vida não é tão previsível, nem os sentimentos podem ser enquadrados em um escopo tão matemático e exato quanto a pretensão humana às vezes insiste em definir.

    Aos poucos, Stanley cede, e a partir disso, todo o seu ideário muda. A desconstrução do niilista, começa apresentando novamente a fé no Divino em virtude do que se vê. Isso chega até a surpreender o espectador, mas a surpresa dura poucos instantes, pois não demora para que o britânico intua novamente que Sophie é uma fraude. A misantropia o fez enxergar a verdade por trás da traição. Novamente, seus “maus sentimentos” o salvam, como sempre fizeram. O otimismo continua a ser visto por ele como uma ilusão e perda de tempo. Um tempo inútil, empregado para o nada, muito semelhante ao modo que muitos misantropos, como Stanley, veem o amor e sentimentos semelhantes.

    No entanto nota-se uma evolução no comportamento do protagonista. Apesar de sua arrogância e rejeição a assumir suas falhas, ele reconhece ser caústico e desagradável. Sua análise parte de um viés realista, que o faz encarar o universo da mesma maneira com que enxerga que não precisava ser tão amargo ou azedo no tratamento daqueles que vivem em seu círculo. A superioridade do amor sobre os argumentos pomposos, e uma visão poetizada desse sentir não garantem que a emoção seja retribuída. Somente as relação afetuosas pragmáticas e insossas funcionam do modo apolíneo com que Stanley conduz suas relações.

    Talvez a única advertência taxativa que se pode fazer à condução do roteiro de Woody Allen seja a mudança de postura do protagonista. Não que não seja factível ou plausível, porque aliás, é carregada de verossimilhança, mas a expectativa era de que o personagem permanecesse em sua posição arrogante, acima das vicissitudes alheias. A opção por focar na crítica é um artifício inteligente, mas não é incomum para o diretor. Mais comum ainda é a atenção às facetas humanas que na maioria das vezes são ignoradas, como o diretor faz ao abordar a ostentação depressiva em Blue Jasmine e o enorme vazio existencial dos céticos em  Magia ao Luar. Quanto a esse aspecto, o filme é perfeito em seu molde.

     

  • Crítica | Os Caça-Fantasmas

    Crítica | Os Caça-Fantasmas

    Já se passaram 30 anos desde que esse clássico da comédia fez sua estreia nos cinemas. Fenômeno de crítica e bilheteria, Os Caça-Fantasmas é um filme que está presente na memória afetiva da maioria dos marmanjos nascidos na década de 80.

    Em uma época povoada por comédias direcionadas especificamente para adolescentes, a película dirigida por Ivan Reitman conseguiu atingir diretamente o coração de todos os públicos. A premissa do filme, simples e muitíssimo bem amarrada, retrata três parapsicólogos fracassados que, após serem demitidos da universidade onde trabalhavam, resolvem montar uma agência de caçadores de fantasmas, tal qual uma dedetizadora. Quando um ser sobrenatural chamado Zull abre um portal para invadir nosso planeta, Os Caça-Fantasmas tornam-se a nossa única esperança.

    Roteirizado pelos também protagonistas Dan Aykroyd e Harold Ramis, e dirigido por Ivan Reitman, o filme tem um ritmo ágil e empolgante. Duas sequências merecem um destaque especial: a da abertura na biblioteca, feita no melhor estilo dos filmes de suspense, com a câmera acompanhando a bibliotecária e com a tensão aumentando até a conclusão da cena; e a do hotel de luxo assombrado pelo “Geleia”. Reitman filma o despreparo da equipe sem fazer com que eles caiam no ridículo. Outro ponto merecedor de destaque é a agilidade dos diálogos, que além de espirituosos em vários momentos, são extremamente naturais.

    Inicialmente, os roteiristas queriam Eddie Murphy, John Belushi e John Candy para compor o elenco. Porém, devido à morte de Belushi e outros fatores que impediram que Candy e Murphy estivessem no filme, a equipe acabou sendo formada por Bill Murray, Ernie Hudson, Dan Aykroyd e Harold Ramis. Provavelmente, esse foi o grande acerto do filme. A química entre eles é sensacional, ainda que Hudson aparente estar um pouco deslocado em cena. Isso torna a interpretação dele bem interessante, uma vez que seu personagem só se junta ao time pelo salário. Aykroyd e Ramis estão bastante à vontade em cena e suas performances são ótimas. O contraponto do exagero do primeiro com a face sempre contida do segundo é bem engraçada. Porém, o grande show é de Bill Murray. Seu Peter Venkman é simplesmente genial. Completamente confortável no papel, o ator age naturalmente e nunca parece que está atuando. Fica a impressão de que ele está constantemente improvisando e que não possuía nenhum texto decorado. Um verdadeiro espetáculo. Sigourney Weaver, que faz a mulher assombrada por Zull e por quem Venkman é interessado, defende seu papel com competência e Rick Moranis arranca gargalhadas como seu apatetado e estranho vizinho.

    A trilha sonora de Elmer Bernstein é muito boa e ajuda a construir a atmosfera do filme. A música-tema, composta por Ray Parker Jr., marcou época e não aparenta ter a idade que possui. Quanto à cenografia, tudo é muito bem feito e os cenários são muito bem filmados pelo diretor Ivan Reitman. Entretanto, o Palácio de Gozer, apesar de ser visualmente interessante, acaba entregando um pouco a idade do filme. O mesmo acontece com algumas criaturas geradas por efeitos especiais e com a batalha final, quando a personificação de Zull tem uma aparência que remete um pouco à de David Bowie quando ele se apresentava como Ziggy Stardust. A fumaça de gelo seco no cenário ajuda a piorar um pouco a situação. Já o boneco Stay Puft não ficou velho e funciona bem em cena até hoje.

    Ainda que pareça datado em alguns momentos, principalmente quando faz grande uso de efeitos visuais em cena, Os Caça-Fantasmas ainda é um filmaço, e 30 anos depois, ainda é garantia de diversão. Não à toa, sempre figura nas listas das melhores comédias de todos os tempos.

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  • Crítica | Anna

    Crítica | Anna

    A investigação criminal ganha contornos fantásticos em Anna (Mindscape no original) onde nos primeiros cinco minutos já é mostrado um método bem diferente de detecção. Mark Strong faz John, um detetive com um poder especial – o de se inserir na lembrança alheia, revivendo os momentos que outros viveram, como um autêntico expectador, mas passivo em seu caráter, uma vez que ele só pode observar, ao menos em um primeiro momento. O thriller sci-fi é o primeiro longa-metragem realizado pela madrilenho Jorge Dorado.

    A prática deste tipo de detecção é comum, já que a Mindscape, empresa que emprega os préstimos de John, é a principal agência de detetives do mundo, e o personagem citado é o mais conhecido dos profissionais da área. Tal fama não foi o suficiente para que ele fosse requisitado para um caso de repercussão grande, envolvendo um político. Após ter isto recusado, ele aceita o caso de uma adolescente com problemas de isolamento e suspeita de sociopatia, de nome Anna (Taissa Farmiga). Ao encontrá-la, John percebe um pessimismo que pode indicar tanto a depressão quanto o niilismo, com uma leve inclinação (consciente e voluntária da parte da moça) para o segundo, uma vez que o cinismo impera em seu discurso.

    A fotografia nas cenas de inserção muda de tom completamente, primeiro porque o ambiente fica polvilhado de uma granulação, remetendo a películas mais antigas, já que estas são lembranças de um passado não muito agradável. A cor que predomina nos cenários também muda muito, descendo uma escala de tonalidade, onde tons grafite dão lugar a amarelados, que visam remeter ao mesmo pretérito incômodo encontrado no granulado. O que ocorre na viagem ao âmago da mente da menina incorre aos motivos que a fizeram se fechar em si, e claro, nas suspeitas de ter um instinto assassino desde a infância. A orfandade claramente a abala, ainda que ela não assuma, e sua relação com Robert (Richard Delane), seu padrasto, não é das melhores, a despeito do testemunho de sua mãe, Michelle (Saskia Reeves), que não percebe com total clareza as desavenças entre os dois membros de sua família.

    Com o desenrolar da trama, os casos de violência e tentativa de assassinado vão aparecendo e cercando toda a existência de Anna, fazendo seus argumentos perderem valor graças ao que John vê, no entanto ele teima em dar mais crédito a ela do que a qualquer outro suspeito, enxergando todas as exceções segundo o julgamento desta. Seu passado trágico o faz se identificar com ela e até relevar alguns de seus “pecados”, ainda que os mais sérios ele não consiga ignorar, procurando ir a fundo, no cerne da polêmica atitude dela, pesquisando os motivos que fazem ter o inventário cibernético que tem.

    Os devaneios invadem a visão de John, dificultando a sua percepção do que é real e do que é imaginário, a natureza do seu trabalho atrapalha a visão dos fatos, fazendo-o, ironicamente, não ter clarividência sobre o que acontecia ao seu redor e sobre a arapuca que se formava acima de sua cabeça. A inversão de papéis é muitíssimo bem construída e é de uma urdição ímpar, coroada com um final que não chega a ser surpreendente, ainda que não seja completamente esperado.

    Todo o suspense e a trama só funcionam graças às atuações, não tanto a de Mark Strong, já que este serve o tempo todo de escada para a personagem título. Taissa Farmiga parece ter o mesmo talento de sua irmã, Vera Farmiga, e seu papel em Mindscape é cuidadosamente montado para intrigar e para deixar dúvida em quem o investiga, seja o detetive mental ou o público ávido por chegar a verdade, e sua persona sabe impingir todo o mistério necessário para intrigar os analistas e os investigadores citados.

  • Crítica | Violette

    Crítica | Violette

    Adentrando a intimidade feminina com uma abordagem que discute o paradigma da beleza e da exposição da mulher, Violette discorre sobre a história de Violette Leduc (Emmanuelle Devos) e sua relação com a filósofa Simone de Beauvoir (Sandrine Kiberlain). A câmera corre atrás da cabeça da personagem de maneira tão trêmula quanto a sua caminhada, passando por ambientes escuros, embrenhando pela floresta adentro, em meio a mata, simulando o andar pela escuridão de sua mente.

    Após retornar da prisão, Violette entra em sua casa, e o lugar que deveria ser o seu recôndito, o lar do sossego, é somente o local onde estão escondidos quem a oprime e pouco se importa com ela. Os homens que a cercam vivem à sombra de sua própria arrogância, covardia e do sentimento falso de autossuficiência. O desprezo que ela sofre devasta completamente a sua autoestima, especialmente a rejeição de Maurice Sachs (Olivier Py), que tem uma série de ideias confusas a respeito de sua própria sexualidade, fazendo com que a visão de Violette a respeito de si mesma como esposa torne-se algo absolutamente miserável.

    É curioso como a lente de Martin Provost segue a personagem título, acompanhando de perto cada movimento que ela faz, simulando cada uma das difíceis decisões que ela deve tomar, ao mesmo tempo em que analisa seus momentos de intimidade a partir de uma distância considerável, especialmente quando ela troca de roupa ou esboça qualquer reação sexual. O distanciamento é proposital, uma vez que ela jamais está satisfeita com o saciamento de sua voluptuosidade. A frustração que ela tem ao não alcançar o coito causa uma enorme decepção, estampada em seu rosto para que todos possam ver.

    Paralelo à crise existencial da mulher, há uma forte cobrança da editora pelo original do novo livro de Violette, uma vez que seus prazos estão se encerrando. Mesmo a aprovação de Simone de Beauvoir não é o bastante para suprir as cobranças de outra figura que oprime a protagonista, sua mãe Berthe Leduc (Catherine Hiegel). O apreço dessas figuras de autoridade não é alcançado nos dois primeiros tomos da história.

    Em pouco tempo de tela, o roteiro faz questão de mostrar os motivos da melancolia de Violette, tornando físicas as polêmicas sexuais que antes eram apenas sugeridas. A inferioridade com que Leduc se vê é muito semelhante ao comportamento de quem tem o quadro de depressão, piorado demais pela desprezo ao seu livro, que por ser escrito por uma novata, tem uma tiragem muitíssimo pequena. Mesmo a menor fagulha de desaprovação é capaz de fazê-la estourar, reagindo de modo passional a qualquer menção que arranhe a sua vaidade.

    Seu modo de viver a rotina é completamente errático. A escritora tem dificuldade para se relacionar de um jeito “normal” com aqueles que a cercam, mesmo com os que não são do ramo artístico. O modo distante com que ela se relaciona com Simone é uma das principais mostras disso, colaborando muito com a instabilidade emocional da protagonista. Explosões emocionais, acompanhadas de destemperos repletos de palavreado torpe, permeiam todo o modus operandi da protagonista, que tem na ferocidade, o seu modo de expressar, o que mais se aproxima de um comportamento confortável.

    O modo como o guião de Provost, Marc Abdelnour, René de Ceccatty lida com a liberação da homossexualidade é natural, a fluidez da fita entra em conflito até com o conservadorismo de sua época, o início dos anos 20. O método utilizado não inclui cenas de intimidade entre os pares, possivelmente para não afastar o público mais conservador, que certamente se chocaria com tais cenas, mesmo que não haja qualquer agressividade em sua essência.

    Mesmo quando atinge – por méritos próprios – o reconhecimento de crítica e público, Violette sente-se mal, com um vazio existencial em seu interior que a impede de sentir qualquer possibilidade autorreconhecimento. Não importa o quanto ela cresça ou se desenvolva, a sensação que a acomete é sempre a de ser uma bastarda, uma estranha, mesmo dentro do ambiente familiar. A dicotomia de seu comportamento remete às mesmas facetas vividas por muitos artistas, que têm de sorrir em público e se mostrar sociáveis, ainda que, em sua intimidade, eles tenham uma vida solitária, miserável e desolada.

    O intuito da película é registrar como pode ser caótica a mente feminina, desde as simples escolhas cotidianas, até as tendências sexuais e os sentimentos provindos das relações travadas por essas, englobando os parceiros, familiares e amigos que estejam inseridas na intimidade da pessoa. Violette é o símbolo do feminino, carregada de estrogênio em todas as suas ações, é o avatar do duplo cromossomo X, tanto em seus sucessos quanto em seus fracassos. O modo tocante como Violette vê a vida é claramente feminino, mas acima de tudo é humano e sensível. Mesmo as relações que a fazem sofrer e chorar são necessárias. Tanto que ela repete que sem tais aflições, seria incapaz de viver plenamente. Sofrer é parte integrante de sua vida, tão essencial quanto comer ou respirar.

    Ainda que não seja fácil se identificar com a personagem – tampouco assumir a semelhança, quando ela acontece – é sempre possível identificar, na trajetória de Leduc, traços comuns à vida humana, seja nos momentos gloriosos ou nos tragicômicos. A normalidade anormal de sua persona vai de encontro à dualidade que alguns humanos têm, e que tantos outros tentam matar ou esconder, simplesmente por não compreendê-las de modo pragmático. Provost não se preocupa em esconder essa história, nem em suavizar o drama vivido por sua heroína, ao contrário, dá traços épicos à história de uma pessoa que sempre esteve à margem da felicidade e do bem estar.

  • Crítica | O Congresso Futurista

    Crítica | O Congresso Futurista

    A indefinição do futuro é analisada, distorcida e reinventada em demasia. Ultrapassa a barreira de um mero exercício imaginativo, tocando o cerne do homem moderno e sua angústia de não saber ao certo o que lhe espera em um tempo vindouro. Especulações e projeções surgem de diversas áreas e se popularizam por meio da cultura. Recentemente, a visão de um futuro pessimista tem assolado as narrativas ficcionais, de trilogias de sucesso, que repetem sua fórmula de distopia, à retomada de grandes obras que ganham nova atenção pela análise deste momento vago.

    Baseado na obra do polaco Stanisław Lem, O Congresso do Futuro, o filme propõe uma alegórica metaficção sobre os rumos da sociedade e da representação desta por meio da cultura e do entretenimento. Interpretando uma versão de si mesma, Robin Wright é uma consagrada atriz de Hollywood considerada um ponto de resistência em meio aos recursos tecnológicos disponíveis à narrativa cinematográfica, uma das últimas atrizes que ainda não cederam ao contrato de fornecer sua imagem definitiva à captação de movimentos para, depois, se aposentarem da profissão.

    A narrativa contrapõe a tecnologia e a concepção artística, ponderando-as em uma dicotomia existencial. A tecnologia evolui a favor da arte ou a arte necessita da tecnologia como forma de existir? É evidente que, desde a criação do Cinema, especificamente, os avanços caminharam simultaneamente. Porém, diante de uma gama cada vez maior de tecnologia inserida nas produções, até onde o papel do ator será importante na elaboração de uma história?

    A indústria cinematográfica é vista como um gigante inescrupuloso, impossível de ser parado pelo descontentamento de uma atriz. Muito se discute sobre a figura pública por detrás dos atores e seu papel em relação à sociedade. Aprofundando esta análise, a captura integral dos movimentos de um ator e, consequentemente, a composição de seus papéis feita inteiramente por sistemas digitais discute a questão da própria identidade. Se reconhecemos uma pessoa pela sua composição física, como reconhecer os outros sem esta forma de identificação?

    Após uma melancólica cena em que Robin Wright aceita se transformar em um personagem digital, a trama avança dois anos e modifica sua estrutura narrativa e mergulha em um universo colorido, brilhante, composto de animação gráfica. A atriz ainda é uma das estrelas do estúdio, mesmo que não esteja presente de corpo e alma nas interpretações de seus filmes. Ao contrário de uma visão depressiva e obscura de um futuro distópico dominado por máquinas tecnológicas, são os avanços da ciência que permitem a existência deste universo fictício. Uma realidade alternativa composta por uma droga que, quando consumida, libera um universo químico no cérebro de cada um, permitindo que este seja quem ele quiser. Não há mais espaço para adequar-se a um ideal imposto por uma sociedade. Dentro da própria alquimia cerebral, qualquer fantasia é aceita e incorporada. É um mundo vivido na imaginação, no onírico, onde o que é imaginado se torna real, pois, imaginado.

    A reflexão ultrapassa o Cinema e a concepção artística, focalizando o próprio humano – aproximando-se da angústia que o homem sente em relação ao futuro indefinido. Se todos são aquilo que desejam, como é possível reconhecer o próximo, se tudo é um jogo de máscaras? Questiona a personagem de Wright. Dentro deste cenário, a personagem procura seu filho, um garoto que sofre de uma doença degenerativa no ouvido, perdendo assim seu contato auditivo com o mundo. Um paralelo que demonstra que, enquanto uma maioria decide pela alienação em um mundo falso composto pela química, o filho, mesmo desejando manter contato com certa realidade, perde, pouco a pouco, esta comunicação e, contra a própria vontade, se isola. A família de Wright.

    Também neste aspecto, a produção não deixa de ser fabular ao narrar uma história que apresenta em seu interior uma moral reflexiva sobre a conduta humana e o uso da própria ciência e da tecnologia como forma de sobrevivência. Se desde tempos remotos a sociedade progrediu com tais usos, nos tornamos escravos de nossa própria evolução? A animação dirigida por Ari Folman é o meio que representa este falso mundo imagético. São cenas que abusam da qualidade técnica e das cores apuradas a favor de uma poesia visual que se justifica pelo tema abordado na produção, que produz com qualidade uma reflexão sobre a própria arte e a humanidade, fazendo de si própria uma bela peça artística.

  • Crítica | Halloween: O Início

    Crítica | Halloween: O Início

    Halloween - O Inicio - 2007

    Ao lado de Wes Craven, o diretor John Carpenter popularizou o Terror na década de 80, abusando de maníacos e personagens bizarros em histórias assustadoras. A cada geração, muitos filmes do gênero são produzidos mas poucos destacam-se no panteão do medo. A saga Jogos Mortais teve um bom início em uma trama policial dirigida por James Wan, depois exagerou na violência gore e repetiu a si mesma diversas vezes até o capítulo final. Neil Marshell foi considerado promissor com Abismo do Medo, mas ainda não realizou outra produção tão eficiente quanto sua primeira. Além destes, muitos filmes atuais são regravações do passado, repetindo as mesmas histórias, modificadas somente pelo estilo narrativo em vigor, com elementos nem sempre assustadores.

    Em meio a este marasmo, o músico Rob Zombie compôs uma duologia cruel sobre uma família de assassinos. Compondo o grotesco com naturalidade, sem poupar sangue, A Casa dos 1000 Corpos e Rejeitados pelo Demônio destacavam que o roqueiro possuía talento e estilo ao filmar, diga-se, melhores produções do que alguns diretores atuais. Sucesso que lhe garantiu a possibilidade de readaptar uma das mais famosas histórias de Carpenter: Halloween: A Noite do Terror.

    Utilizando o mesmo argumento do original, Zombie parte da infância do personagem para desenvolver e justificar sua crueldade. Insere a criança Michael Myers em um ambiente hostil, com uma mãe stripper, um padrasto inválido que o odeia, uma irmã adolescente que, como qualquer jovem, despreza tudo que não seja seu próprio umbigo, além de uma pequenina irmã, por quem Myers nutre um sentimento positivo. Este é primeiro ato que fundamenta as motivações do personagem.

    Em um avanço de 30 anos, o curto segundo ato apresenta Myers preso, evento já previsto por seu psicólogo infantil, Dr. Loomis (Michael McDowell), que, desde a infância do garoto, acreditava que seu paciente romperia os laços do mundo exterior ao demonstrar uma psiquê corrompida e incapaz de absorver a problemática de seus próprios atos. O terceiro ato marca a fuga do personagem do manicômio em que está preso e a procura dos sobreviventes de sua família.

    Ao introduzir o escopo psicológico da infância de Myers, Zombie produz uma temerosa figura real. Ao compreender suas motivações psicológicas, o público contempla uma sensação dúbia: reconhece a monstruosidade do personagem, mas se apieda por compreendê-lo dentro de um sistema analítico-psicológico. Uma análise que, no entanto, não retira a potência do medo causada pela figura aficionada em esconder-se atrás de máscaras, temerosa da própria aparência.

    Dando uma nova visão da história sem perder os elementos clássicos, Zombie produz uma regravação sólida, diferentemente de outras obras adaptadas, como Sexta-Feira 13, Terror em Amityville e O Massacre da Serra Elétrica; tais produções, ao serem contextualizadas no estilo narrativo contemporâneo, não necessariamente souberam adaptar-se ao novo público, que não tem mais medo de monstros rasos da década de 80.

    Atualizando o personagem, cria-se um monstro à espreita, dono de grande agressividade e um temor que parece mais sensível pela concepção da realidade. Uma versão que, ao aprofundar-se na composição humana de Myers, transforma-o em ainda mais insano.

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  • Crítica | As Tartarugas Ninja (2014)

    Crítica | As Tartarugas Ninja (2014)

    Desde que saíram as primeiras notícias sobre o reboot da franquia de As Tartarugas Ninja no cinema, muito se falou sobre as possíveis alterações que os personagens sofreriam de acordo com sua origem nos quadrinhos, em possibilidades que passaram até tratando os protagonistas como sendo alienígenas. Porém, o medo de muita gente foi simplesmente ver associado ao projeto, como produtor, o famoso e explosivo Michael Bay. Para o bem ou para o mal, características marcantes de sua criação estão nessa nova adaptação das Tartarugas para o cinema, dirigida pelo sul-africano Jonathan Liebesman (Invasão do Mundo: Batalha de Los Angeles e Fúria de Titãs 2).

    O filme começa contando a história da jovem repórter do canal 6, April O’Neil (Megan Fox) e seu companheiro de trabalho Vernon Fenwick (Will Arnett). Ela é responsável somente por reportagens fúteis sobre beleza e saúde, mas luta para ser levada a sério como jornalista, enquanto ele quer aprofundar sua relação com April, tentando fazer com que ela se sinta melhor sobre o que faz. Enquanto isso, a cidade de Nova Iorque é assolada por ataques de bandidos do chamado “Clã do Pé”, no que o megaempresário Eric Sacks (o eterno coadjuvante William Fichtner) se compromete a ajudar. April presencia um roubo do Clã que é interrompido por criaturas fortes e velozes, que se assemelham a tartarugas. Após mostrar sua teoria para a chefa do jornal (em uma interpretação de Whoopi Goldberg em piloto automático), é ridicularizada e por isso decide conseguir provas da existência dos heróis misteriosos. Para isso, vai até uma estação do metrô que está sendo atacada pelo Clã (e que estava convenientemente perto) e lá consegue registrar os heróis que se apresentam como Rafael (Alan Ritchson), Michelangelo (Noel Fisher), Leonardo (Pete Ploszek com voz de Johnny Knoxville) e Donatello (Jeremy Howard).

    Tecnicamente, a captura de movimentos aperfeiçoada pela IL&M é bastante competente em criar os movimentos das tartarugas e os fazerem parecer reais a todo o tempo, assim como suas expressões faciais. Nas cenas de ação a naturalidade dos movimentos também dá um salto em relação a outras produções semelhantes. Essa tecnologia de captura de movimento tem tudo para pautar a indústria no futuro.

    Porém, somente a competência da tecnologia não sustenta um filme. Se os movimentos das tartarugas são naturais, da trama não se pode dizer o mesmo. Um vício muito comum no cinema atualmente, em especial nas produções de Michael Bay, é, além da infinidade de cortes secos e rápidos, as várias sequências de ação, cada uma com um clímax próprio, o que tem o objetivo de mantê-lo ligado 100% no filme sem pausa para respirar, mas acaba na verdade anestesiando e tornando-o insensível a outras camadas possivelmente existentes na trama.

    Mas, se em outros filmes isso é um problema, em As Tartarugas Ninja não é, simplesmente porque não existe nenhuma outra camada além da principal, que é a mais simplificada e direta possível, na cara do espectador. Se tanto nas HQs originais quanto nos filmes antigos as mutações que deram origem aos protagonistas eram meros acidentes sem ligação entre os diferentes núcleos de personagens, na nova adaptação ela é fruto de pesquisas genéticas onde o pai de April O’Neil era um dos encarregados, e ela ganha uma importância maior, porém artificial e desnecessária, ao ser a responsável por salvar as cobaias e salvá-las… jogando-as no esgoto de Nova Iorque (!). E tudo isso é explicado em uma narração pelo Mestre Splinter (Danny Woodburn com voz de Tony Shalhoub).

    A protagonista, aliás, é um dos principais problemas do filme. Megan Fox não é uma boa atriz. Não é nem uma atriz mediana. Se em outras produções ela não comprometia por fazer o papel de “sexy”, sua atuação é deplorável e a câmera parece sempre estar mais preocupada em pegar seu melhor ângulo (em seu cabelo que nunca desarruma e maquiagem que nunca borra) do que com o filme. Dito isso, a mistura da motivação de April com a das Tartarugas, de todos terem uma origem em comum em suas infâncias ao invés de serem estranhos que se conhecem e evoluem em uma relação juntos, não garante absolutamente nada a mais na trama. Pelo contrário, exige uma crença muito grande do espectador para que todos eles se encontrassem no futuro daquela forma, quase sobrenatural.

    A ameaça principal, o Clã do Pé, possui em seu líder, Destruidor (Tohoru Masamune), seu principal agente. Em uma virada nada surpreendente, ficamos sabendo que Sacks na verdade é discípulo do Destruidor, que quer espalhar pela cidade um composto em forma de gás que irá causar doenças em toda a cidade, e eles precisam do sangue das tartarugas ninja para sintetizar o antídoto, e assim vender a cura para a doença e se tornarem líderes mundiais.

    Mas, para dois terroristas que agem nas sombras, a escolha da antena do próprio prédio dos laboratórios Sacks para dispersar o composto químico parece no mínimo estranha (além de lembrar muito a trama de O Espetacular Homem-Aranha). A caracterização da armadura do Destruidor (que também lembra demais o Samurai de Prata de Wolverine: Imortal) o torna uma ameaça robótica um tanto quanto artificial, que enfraquece o fato de o Destruidor ser o mestre de artes marciais estabelecido em uma cena anterior. Somente um ser humano usando uma vestimenta caracterizada talvez funcionasse melhor. Essa e outras falhas do roteiro (April só consegue tirar uma foto das Tartarugas enquanto fogem porque elas devolvem seu celular e apagam todas as fotos que tinham tirado antes, tendo assim “resolvido o problema”…) acabam sendo irritantes para qualquer pessoa que preste atenção e se importe com a história.

    Mas, por se direcionar a um público infanto-juvenil, As Tartarugas Ninja decide focar mais nas piadas e referências à cultura pop, o que garante risadas em diversas situações, o que sempre foi uma característica marcante dos personagens. Porém, dificilmente uma criança ou adolescente irá conhecer coisas citadas, como Lost. Outro fator que interfere na própria proposta humorística do filme é a inserção de uma temática “dark” e realista na hora de expor alguns elementos da história, tornando o ritmo do filme confuso.

    As Tartarugas Ninja funciona muito bem para um determinado tipo de público, pois oferece duas horas de diversão literalmente explosiva e simples (para não dizer simplista). Não ofende a memória dos personagens e cumpre o que se propõe, especialmente no quesito “ganhar dinheiro”, mas todas as suas qualidades acabam ficando por aí. Uma pena, pois Donatello, Leonardo, Rafael e Michelangelo mereciam coisa melhor.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Coração Satânico

    Crítica | Coração Satânico

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    A música de Trevor Jones, aliada ao clima esfumaçado, dá à cidade um tom gótico não condizente com a sua temporalidade, mas muito ligado à trama espiritual narrada na Nova York de 1955. A neblina causada pelo cigarro de Harry Angel, um detetive interpretado pelo ainda jovem Mickey Rourke, combinada à lembrança do brutal assassinato que ocorre no início da trama, faz da história uma reimaginação dos conceitos vistos em filmes noir, com hediondos homicídios, personagens decadentes no papel de avatares da justiça e claro, com alcunhas repletas de trocadilhos.

    A escolha de filmar a obra em cores é justificada pelo desejo de destacar o sangue, condição que atravessa o gênero, fazendo ligação com a temática sobrenatural abordada pelo filme. A dualidade de Louis Cyphre (Robert De Niro) começa pela escolha da alocação: seu quartel general é acima de igreja protestante frequentada por negros, e é lá que ele recebe o investigador, que deveria ir atrás de um sujeito, Johnny Favorite. A inserção do ator no papel do cliente misterioso é curiosa, pois em sua volta há uma aura diferente, como se ele vivesse acima das preocupações comuns aos homens daquele tempo, embora ainda mantivesse um pé neste mundo.

    É curioso que, nesse quesito, ele se assemelha ao personagem de Al Pacino em O Advogado do Diabo, John Milton, que viria à tela do cinema uma década depois. No entanto, Louis é mais discreto em sua relação com o anti-herói da vez, não se envolvendo com ele de maneira estreita, somente por meio de pistas pouco evidentes, que exigem um bocado de atenção e perícia.

    A rotina de Angel varia entre seus cigarros Camel e a apuração das pistas. Por onde ele passa há um rastro de sangue, na verdade, dois, um por vias de morte, e outro, mais estranho, passando por lugares sagrados, como parte de um sacrifício ainda pagão, mas dentro da realidade católica. Esse detalhe se torna algo muito curioso, uma vez que nas religiões de matrizes cristãs não se executa mais animais em seus ritos. Quanto mais mergulha dentro da trama, o detetive encontra mais e mais elementos de ocultismo que remetem visualmente às tribos caribenhas, que aos olhos dos colonizadores, tinham contato direto com Satã.

    A volúpia, o crime, a morte e a religião convivem dentro da rotina do detetive, mas sem uma divisão clara ou interseção entre um assunto e outro. Todos os pares convivem harmoniosamente naquele micro-universo, e se tornam ainda mais homogêneos quando o desespero leva Harry até as paragens de Louisiana. O horizonte lodorento e pantanoso é o cenário perfeito para toda a sorte de indiscrições morais de seus personagens, assim como os pecados de morte que ele averigua.

    Como um jornalista gonzo, Harry se infiltra em meio à rotina daquela cidade, e passa a agir, falar e se vestir como um local, até para ajudar em seu raciocínio dedutivo. Em meio a tais emoções e sensações, ele ouve um comentário sobre Favorite, mas que se encaixa no modo de agir da maioria dos personagens da trama: “A crueldade é algo bem simples para algumas pessoas”. Angel só se mostra legitimamente assustado ao ver uma roda sacrificial, onde negros fazem o seu culto, liderados por Epiphany Proudfoot, uma moça negra, de boa aparência, que já exercia a função de sacerdotisa desde os 13 anos. A personagem de Lisa Bonet vive nas fantasias de Harry e permeia até os seus sonhos de conteúdo violento e excessivamente sangrento ao estilo gore.

    A decadência humana é vista até nos elementos fora do escopo assassino. A arquitetura interna dos prédios, com suas paredes descascando, o ranger das escadas antigas, tudo remete ao fim e à morte que ocorre entre todos os envolvidos no estratagema da investigação. As sutilezas do roteiro são ainda mais flagrantes que os óbvios elementos de terror, como as mortes e órgãos dilacerados habitando os cenários e os ventiladores que rilham em um som incômodo demais e não produzem quase vento nenhum. Não há qualquer possibilidade de alívio na existência típica daquele lugar, nem espaço para redenção ou epifania.

    Em uma conversa entre o detetive e seu contratante, Angel assume que detesta o ambiente das igrejas porque o ar gótico do local o deixa apreensivo e ansioso. Sempre que é tomado por qualquer questão religiosa, o personagem reafirma sua origem do Brooklyn, uma zona urbana demasiado castigada e mazelada. Segundo ele, o ambiente onde cresceu não o permitiria vislumbrar o mundo por um viés tão otimista quanto o pensamento religioso normativo exige e, por isso, sua incredulidade estaria justificada, ainda que, em sua intimidade, sejam observados inúmeros símbolos iconoclasticamente canônicos, como a vontade de fazer justiça e a moralidade disfarçada de cinismo, mais uma vez copiada das películas quarentistas em preto e branco. O modo como Alan Parker conduz sua fita é excelente, pois toma emprestado a experiência que teve em drama, notável em Asas de Liberdade e a viagem ácida de The Wall para montar os elementos de thriller psicológico vistos em Angel Heart.

    As relações carnais do detetive têm ligação direta com o mar de sangue em que a história estaciona. Na primeira cena em que o sexo é finalmente consumado, e não mais sugerido, há uma viagem recordatória que mostra os pecados de luxúria lado a lado com o montante de óbitos que ocorreram frente à câmera. A magia negra parece ser algo flagrantemente de péssima influência para todos os personagens entrevistados, menos para aquele a quem o drama de Favorite interessa.

    Os momentos finais são cortados por um som semelhante a um grito de desespero, que imediatamente entrega ao expectador a peça que faltava naquele estranho ardil. O mistério pelo qual Angel foi contratado para investigar nunca esteve longe de ser resolvido, na verdade só fora negligenciado o tempo inteiro. Mesmo ante a verdade sobre seu passado e sobre seus pecados, Johnny/Harold nega o óbvio e recusa a percepção de que fora instrumento daquilo que sempre declarou não crer, o que piora com as lembranças de quando cometia os seus delitos e com seu consequente salário, a danação eterna.

    O estado físico em que Angel se apresenta no final demonstra cansaço, estafa por ter de lutar contra a sua própria natureza, contra a condição que fez dele um sujeito ainda vivo, porém triste, consequência de toda a sua jornada de sexo, morte, misantropia e egoísmo. A cena em que, simbolicamente, ele desce em um elevador antigo, representa o final do personagem e onde ele passaria o pós-vida, um lugar que ele sempre evitou, rejeitou e que, por breves instantes, até evitou ir, mas que, inexoravelmente, deveria ser sua última paragem, seu destino final.

  • Crítica | Omar

    Crítica | Omar

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    Toda forma de arte é, antes de tudo, uma expressão política. O cinema talvez seja atualmente o maior desses veículos para se propagar uma mensagem, e muitas regiões do planeta acabam sendo colocadas em evidência no mapa por conta de cineastas que conseguem traduzir de forma simples um conflito muito maior. O diretor palestino Hany Abu-Assad já havia causado furor no cinema internacional com seu excelente filme anterior, Paradise Now, ao adotar uma visão intimista sobre o terrorismo no oriente médio. Agora, com sua nova produção indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro, Omar, retoma os holofotes do cinema palestino em época de intensificação da ocupação israelense e escalada da violência na região.

    O filme conta a história do jovem Omar (Adam Bakri) e seus dois amigos Amjad (Samer Bisharat) e Tarek (Iyad Hoorani). Funcionário de uma padaria e sonhando em casar com Nadia (Leem Lubany), irmã de Tarek, ele pula o extenso muro que separa a região todos os dias, apenas para vê-la. Porém, é influenciado por Tarek a participar de ações contra soldados da ocupação israelense na Palestina. Após elaborarem juntos um plano de alvejarem um destes soldados, toda a força do estado policial de Israel irá cair sobre ele, desmoronando seu mundo.

    Omar mantém a visão intimista de Abu-Assad sobre conflitos políticos impactando a vida de pessoas comuns, visão que normalmente perdemos dentro do debate político. Todos os personagens possuem vida e estão fazendo o que podem para tentar sobreviver à dura realidade. Porém, tudo tende a piorar quando o jovem sonhador Omar cai nas mãos da inteligência israelense, que o tortura e tenta torná-lo um agente duplo, utilizando métodos psicológicos altamente questionáveis sob o ponto de vista humanitário.

    A força de Israel é personificada na figura do Agente Rami (Waleed Zuaiter), que se disfarça de muçulmano na prisão e obtém de Omar uma simples frase que dá início a seu inferno pessoal. Eles sabem de tudo sobre sua vida e sabem que Tarek é o cérebro por trás da operação, e se Omar de primeira não o entrega e tenta enganar os israelenses, seus amigos não agem da mesma forma, tornando cada vez mais difícil saber quem são seus reais inimigos.

    Apesar de o filme se utilizar de algumas escolhas frágeis de roteiro para forçar o drama de Omar, como a subtrama onde Nadia se casa com um de seus amigos – que era o delator, mas que todos suspeitavam que fosse Omar – a força principal da trama está em mostrar o dia-a-dia de uma região tão complicada, e nos fazer entender que além de soldados e grupos terroristas, também vivem pessoas comuns, com famílias, traumas, erros e acertos, que podem levar a consequências trágicas como em qualquer lugar do mundo. A cena onde Rami atende o celular e briga com sua esposa (em hebraico) em frente a Omar é emblemática neste sentido.

    Com um final um pouco previsível, mas bem construído, o filme não se propõe a um debate maior sobre terrorismo ou a situação em si da região, tampouco se preocupa em amenizar o tom. Mas é justamente em sua honestidade e simplicidade que reside sua força. Em tempos de tamanha violência e extremismo, é sempre bom lembrar que todos nós nascemos humanos, e que o ódio é construído lentamente e vai nos penetrando enquanto pessoas e enquanto sociedade até sobrar pouco espaço para o resto. E é para isso que devemos ficar atentos.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Cutie and the Boxer

    Crítica | Cutie and the Boxer

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    A água que vaza do andar acima é a energia que é extravasada pela pintura de um octogenário. Ushio Shinohara, pintor independente, vive uma vida de exposição, e se orgulha disso. Expõe a si através de seus traços e compassos, que o conduziram até os 80 anos, celebrados logo na abertura de um filme desbravador, de alma e arte que pontua a primeira, feita com os cuidados, detalhes e impaciências típicos de um jovem de 20 e poucos anos.

    Não há tempo a perder, revela desde a poesia das imagens, a arte gráfica dos efeitos especiais que edificam a essência da experiência explícita e inclusiva deste existencial documentário artístico, no qual a forma e estrutura narrativa lembram, de longe, os efeitos do recente A Imagem que Falta. Contudo, se o filme do Camboja evoca um registro histórico do país, Cutie and the Boxer é o registro de um homem, sua esposa e iniciativas mútuas; antes e durante uma exposição em Nova York. “Eu nunca conheci ninguém de coração tão aberto”, revela Noriko, a Sra. Shinohara, em certo ponto, dona de uma arte mais sensível de vínculos mais ligados ao que aprecia e reproduz, talvez, nas mais belas imagens do filme. Os bastidores são, quase sempre, mais interessantes que o palco, e aqui isso não é uma exceção.

    Não poderia deixar de ser, aliás. Adentrar a vida que afeta a arte, a intimidade de quem molda a realidade física na textura da tinta, de timbres ou verbetes é algo irresistível, integração que pode remeter ao instinto humano de desejo ao proibido, ou ensejo ao oculto, trancado a oito chaves. Graças a isso, quando o cineasta Zachary Heinzerling expõe a arte através da relação do casal japonês, ao invés do contrário, o filme ganha enorme profundidade arranhada por uma intervenção óbvia e previsível, que some no clímax e, sobretudo, aumenta a potência das esculturas surreais, dos coloridos socos de Ushio, um Pokémon idoso quando pintado corpo afora, nas telas que avançaram pelo Oriente rumo à consagração ocidental de mais um talento nipônico, muito além de fronteiras nacionais e recantos domésticos. O que sobra da ovação unânime do público norte-americano, enfim, não deixa de ser a história de um casal devotado ao mundo pictórico que só compartilharam, na verdade, entre si.

    Como Picasso ou Van Gogh se comportavam, longe dos pincéis, é a pergunta que nasce do inconsciente de quem assiste essa realização. Ou, em cenário brasileiro e literário, havia vida fora da poesia para Quintana ou Hilst? Sim? Então, qual seria a intensidade das imagens reveladoras dessa intimidade invadida? Alta, com certeza, dessa espécie de metalinguagem indireta que chega a unir o ofício e a rotina, juntos, na interação entre cotidianos de quem se mostra assim, e na verdade é assado, ou cozido em vidas tão normais como as de quem se diz fã. É muito bacana como o documentário não é baseado na vida de ninguém, mas é e respira a vida dupla e às vezes única de dois ‘alguéns’ ligados não apenas pelo trabalho.

    De volta a questão narrativa, o acervo particular de Noriko e Ushio consta de imagens amadoras que trazem outras pinceladas de fidelidade verídica ao resultado já satisfatório que a película evoca, no entorno de opiniões despretensiosas a partir de um registro semi-pessoal – diz-se ‘semi’ devido a variância entre a consolidação do evento novaiorquino inicial e a curadoria crítica em voga, paralelamente, com extrema tenacidade de intenção, através de uma edição cinematográfica que conserva certo humor em si. Elemento satírico muito bem-vindo, neste caso.

    Acima de tudo, é notável como Zachary e seu filme só atestam o que deve ser mostrado, e isso é raro em documentários fora de temas grandiosos como especulação financeira, guerras ou outros episódios sociais importantes. É incrível ouvir Noriko dizer com segurança e liberdade que não gostou de uma obra que seu marido, pela dificuldade da feitura, se emociona ao contemplá-la ainda incompleta. Um grande close em Ushio, num filme que se resume em várias cenas-síntese. Cutie and the Boxer não é uma aula de educação artística, mas dá vez ao essencial, ao enxuto, e a favor de interpretações mais soltas e ricas, a um sentido pouco mais que básico na carreira e nos passos de um casal artístico, completo e seguro o suficiente para, após uma vida inteira de mãos dadas e sujas de tinta, serem totalmente transparentes num futuro e irrepreensível legado de socos e sensibilidade.

  • Crítica | Resident Evil: O Hóspede Maldito

    Crítica | Resident Evil: O Hóspede Maldito

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    O primeiro filme baseado na franquia de jogos Resident Evil, revela a boa intenção de uma tentativa de releitura bem elaborada. Desde o início, o espectador é levado a crer que o roteiro será fiel ao jogo. Os créditos de abertura, a explicação do Incidente Umbrella e a trilha sonora são recursos bem executados, que colaboram com a ambientação do filme. A demonstração da ação do T-Vírus em um clima claustrofóbico de perigo iminente e a marcante cena em que Alice (Milla Jovovich) acorda desmemoriada, e com seu estilo único e um olhar cruel, desembaça o espelho, são realizadas com a edição de vídeo de Paul W. S. Anderson, tão criticado por sua tendência ao estilo de videoclipe.

    A iconografia do jogo é reconstruída no filme restringindo-se somente ao sistema de câmeras, às armas escondidas e guardadas com segredo e às portas que abrem sozinhas. Para o desapontamento do game-maníaco, as ações que acontecem após a entrada das forças especiais na Colmeia, base de estudos da Umbrella, em Racoon City, é uma sucessão de erros grosseiros. Todo o clima de filme de terror cai por terra, e se transforma em um frenesi de ação, frases feitas e combates grotescos, provando que essa mudança brusca de gênero é o maior equívoco do filme.

    Os monstros de Resident Evil não convencem quem assiste, os zumbis são light e não dilaceram ninguém, só arranham e mordem. Os membros do esquadrão de elite entram displicentemente pelos becos, a ponto de deixarem seu líder tático passar por um corredor cheio de armadilhas em uma cena com inúmeros erros de continuidade, como o sumiço de cadáveres.

    Os cenários, que pareciam bem elaborados no começo do filme, ganham um estilo de muito mau gosto e parecem construídos com cartolina e papelão. A maquiagem é tão horrenda que alguns mortos-vivos lembram o Kiko (Carlos Villagran) com hepatite. E os efeitos em computação gráfica são tão sofríveis, que os monstros parecem retirados dos cd-roms que vinham com revistas de informática nos idos dos anos 90.

    Os personagens são mal construídos e não ganham a empatia do público, até porque são descuidados e não fazem o mínimo de vigilância. Em uma das cenas, Alice vai sozinha e desarmada numa ala deserta, chacina dobermans ensanguentados ao maior estilo “extrato de tomate”, distribuindo voadoras nos focinhos e matando sem dó. A personagem, que só poderia ter sido preparada para a guerra, seria o maior potencial a ser explorado no filme, mas sua redenção moral e sua mudança de ethos justificada por uma surpreendente amnésia, transforma a situação em algo estúpido e pueril, subestimando a inteligência do espectador.

    O vilão também é totalmente questionável, a Rainha da Colmeia é uma máquina que tem crises de piedade, que servem unicamente pra explorar escolhas entre a vida e a morte de alguns infectados. Personagens que são dados como mortos voltam, só para morrerem segundos depois, em uma sequência de cenas incoerentes que tira a paciência até do espectador mais descompromissado.

    O desfecho deixa algumas perguntas em aberto, mas em momento nenhum isso suplanta as fragilidades da trama, fazendo com que a dúvida torne-se banal. Nem mesmo a cena final, com Alice retomando seu papel em O Quinto Elemento e segurando um trabuco na cidade devastada, salva o espetáculo, que ainda se seguiria por uma interminável franquia.

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  • Crítica | As Tartarugas Ninja (2014)

    Crítica | As Tartarugas Ninja (2014)

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    As Tartarugas Ninja fazem parte da cultura pop há, pelo menos, 20 anos. Criadas nos quadrinhos em 1984 por Kevin Eastman e Peter Laird, as quatro simpáticas tartarugas ganharam mais notoriedade no final dos anos 80 com um desenho animado que perdurou por nove anos, só perdendo em longevidade para Os Simpsons. O sucesso cartunesco rendeu três adaptações para o cinema, sendo que o primeiro filme de 1990 foi a película independente de maior sucesso na história, na época. Também foram responsáveis não só pelo sucesso na tela, mas também em outros segmentos, como o de brinquedos e o de jogos de videogame. Quem não se lembra do clássico jogo de fliperama?

    Após o sucesso na década de 90 e com o encerramento do desenho animado, a franquia nunca saiu dos holofotes e mesmo após o fracasso do seriado em live action, que buscava emular o ambiente apresentado nos filmes, ainda buscou fôlego num novo desenho animado que foi ao ar por mais seis anos. Mas as tartarugas só voltaram ao mainstream em 2012, quando a rede Nickelodeon investiu pesado na franquia com uma nova animação, buscando o sucesso do desenho da década de 90.

    Se aproveitando disso e explorando a fase de remakes e reboots no cinema, o diretor Michael Bay, por meio de sua produtora Platinum Dunes, em parceria com a própria Nickelodeon, decidiu trazer As Tartarugas Ninja mais uma vez ao cinema. De início, foi uma notícia que agradou a todos os fãs da franquia. “De início”, porque, durante a produção do filme, percebia-se que Bay tinha sua própria visão a respeito de como seriam as tartarugas, cometendo a heresia de anunciar que elas, na verdade, seriam alienígenas em vez de mutantes. Tal notícia causou tanta histeria na internet que houve ameaças de morte e petições.

    Bay é um dos poucos diretores que mantêm contato direto com seus fãs e também é um dos poucos que ouvem as reclamações. Mas sem deixar o orgulho de lado, optou por se afastar da direção e trazer um diretor de sua confiança, Jonathan Liebesman, que entregou um filme que os fãs queriam, ou quase isso. Pelo menos chegou perto disso, ou não. Talvez…

    O motivo de tanta confusão (proposital) ao final do parágrafo acima é que As Tartarugas Ninja consegue ser um ótimo filme em certos quesitos e um péssimo filme em outros. Os pontos negativos são sempre os mesmos: o péssimo hábito que Hollywood adquiriu em explicar suas tramas detalhe por detalhe, além de atribuir conexões ridículas aos personagens.

    Dito isso, o filme é sobre a história da jovem repórter do Canal 6, April O’Neil (Megan Fox, de jaqueta amarela), que tem a ambição de se tornar uma repórter investigativa  em vez de ficar fazendo insignificantes matérias de fitness , juntamente com seu câmera, Vernon Fenwick, vivido por Will Arnet, um dos destaques do filme. April é uma jovem xereta que busca a todo custo descobrir quem está por trás do combate ao Clã do Pé, uma organização criminosa que assola os nova-iorquinos e que é comandada pelo Destruidor (Tohoru Masamune). O objetivo da moça é provar à sua chefe, Bernadette Thompson (participação especialíssima de Whoopi Goldberg), que um vigilante está atuando na cidade e combatendo o Clã do Pé sozinho.

    Uma dessas investigações de April a coloca frente a frente com Leonardo (Pete Ploszek, dublado por Johnny Knoxville), Raphael (Alan Ritchson), Michelangelo (Noel Fischer) e Donatello (Jeremy Howard), numa cena muito divertida. Porém, ninguém acredita que o combatente do Clã do Pé é, na verdade, quatro tartarugas que são adolescentes, mutantes e ninjas. Tamanho absurdo resulta na demissão de April, que acredita que os mutantes são resultado do Projeto Renascença, algo que seu pai – que está morto – desenvolvia juntamente com Eric Sacks (William Fichtner). A demissão da jovem repórter faz com que a personagem vá atrás atrás de Sacks para revelar que o projeto, de alguma forma, deu certo.

    O problema é que, quando as tartarugas não estão em cena, o filme não rende nem um pouco. Não há nenhum atrativo, nada que prenda o espectador, e você chega até a rezar pra que elas apareçam.

    E quando elas aparecem, dão show. Muito show. Não há uma cena chata sequer. O bacana é que, como dito no início do texto, elas fizeram e ainda fazem parte da cultura pop e, no filme, elas vivem isso. Michelangelo ama os virais da internet, indo à loucura ao ver o vídeo daquele gato tocando piano. Raphael, ao abordar April pela primeira vez, busca imitar o Batman de Christian Bale e é zoado pelos outros.

    Pouco foi mexido no intelecto das tartarugas, mas muito foi mexido no visual, que é espetacular. Créditos pela captura de movimentos desenvolvida em Avatar. Leonardo continua sendo o líder sereno que sempre foi. Raphael é o esquentado da turma, não gosta da liderança de Leonardo e de longe é o maior e mais forte do bando. Donatello, possivelmente, é o que sofreu mais alterações. Sendo o nerd/geek da turma, ele usa óculos de grau e uma mochila, parecida com a dos Caça-Fantasmas, com alguns aparatos tecnológicos. Além de conhecimentos de informática, ele também entende bastante de Medicina. Contrastando com os outros, ele é o mais magro. Já Michelangelo é aquele brincalhão que todos nós conhecemos. Não se leva a sério, é apaixonado por April e se acha lindo. E o último, não menos importante, é lindamente asqueroso. O Mestre Splinter é feio, mas tão feio que provavelmente alguma criança terá pesadelos na hora de dormir. Com a captura de movimentos feita por Danny Woodburn, Splinter – dublado por Tony Shalhoub, o Monk , apesar de já possuir certa idade, é muito habilidoso e talvez lute até melhor que seus discípulos. Sim, no filme ele vai pra guerra quando necessário e não tem como não lembrarmos do Mestre Yoda.

    Uma pena o Destruidor ser mal trabalhado. Sua única ameaça é a armadura que usa, a qual pode colocá-lo facilmente como um vilão do Homem de Ferro. Contudo, faz sentido, porque as tartarugas são muito fortes, sendo necessário um vilão que demonstre certa imponência, e a armadura causa esse efeito.

    Enfim, é um filme que possui erros preguiçosos (o que é comum), mas não decepciona nas piadas e nas cenas de ação. De qualquer forma, prepara terreno para uma continuação que poderá ser mais completa e elaborada, já que não vimos nenhum personagem secundário e querido pelos fãs, como é o caso de Casey Jones.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Flores Raras

    Crítica | Flores Raras

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    “Poucas mulheres escrevem boa poesia. Somente quatro delas se equiparam aos nossos melhores homens. Emily Dickinson, Marianne Moore, Elizabeth Bishop e Sylvia Plath.”
    Robert Lowell

    Baseado no livro Flores Raras e Banalíssimas, de Carmen Lucia de Oliveira, o filme dirigido por Bruno Barreto aborda o relacionamento entre a ganhadora do prêmio Pulitzer de 1956, Elizabeth Bishop (Miranda Otto), e a “arquiteta” carioca responsável pela idealização e construção do Parque do Flamengo, Lota de Macedo Soares (Glória Pires).

    Inicialmente, o roteiro parece focado no relacionamento entre as duas e até começa bem, enfatizando suas personalidades opostas: Lota, extrovertida, segura de si e confiante; Elizabeth, introvertida, retraída e tímida. Enquanto a primeira mostra orgulhosamente sua casa recém-construída, gabando-se de ter idealizado tudo sozinha; a segunda sente-se quase envergonhada quando um dos convidados, Carlos Lacerda (Marcelo Airoldi), declama um dos poemas que ela recusa terminar, na tentativa frustrada de fazê-la sentir-se mais à vontade.

    Antes da chegada de Elizabeth, Lota vivia com Mary Morse (Tracy Middendorf) e com a mesma rapidez que o roteiro apresenta esse relacionamento, forma-se o triângulo amoroso entre elas. Com essa mesma rapidez ele é desfeito – ou quase desfeito – pela pragmática Lota. A superficialidade dessa abordagem tira a credibilidade dessas relações. É difícil para o espectador comprar a ideia de que o grau de envolvimento entre Lota e Elizabeth justificaria sua separação de Mary. Aliás, essa veracidade é comprometida também pela forma com que o amor entre mulheres é tratado. Com exceção do sarcasmo com que o pai de Lota se refere a ela, o excesso de naturalidade com que se encara a homossexualidade é pouco verossímil.

    Já que o relacionamento não é bem explorado, seria de se esperar que o roteiro se aprofundasse mais no momento político do Brasil na época. Porém isso também não acontece. A amizade de Lota com Carlos Lacerda e seus correligionários e seu apoio ao golpe não passam de pano de fundo. Acompanhamos Lota dando vida a sua empreitada de construir o Parque do Flamengo, enquanto o país é abalado pelo golpe e enquanto seu relacionamento com Elizabeth começa a se deteriorar, tudo en passant, sem aprofundamentos.

    Apesar de as atrizes personificarem muito bem as diferenças de personalidade entre as personagens, falta paixão no relacionamento entre elas. Vale notar que Glória Pires conseguiu se mostrar à vontade num papel difícil, tanto pela necessidade de atuar em inglês e ainda assim parecer natural, quanto pelas cenas de teor homossexual. Mas, mesmo estando muito bem, é Miranda Otto que domina a tela sempre que contracenam. A atriz encontrou a medida certa entre a genialidade e a sensibilidade da poeta sem cair no clichê e sem ser caricata

    A fotografia é beneficiada pela natureza exuberante de Petrópolis e os enquadramentos enfatizam as divisões e oposições que ocorrem na história: o contraste entre a cidade e a serra, a separação gerada pelo idioma – inglês versus português -, a oposição entre política e arte, a divisão de Lota entre a paixão por Bishop e a segurança da amizade de Mary.

    Infelizmente, o roteiro não se sustenta e os pontos positivos não bastam para fazer de Flores Raras um filme memorável. Vale por apresentar ao público duas personalidades interessantes, apesar de retratadas superficialmente, e por incutir no espectador a vontade de mergulhar na leitura tanto do livro de Carmen Oliveira, para saber mais a respeito do romance, quanto dos livros de Bishop, principalmente o que foi escrito durante sua estadia aqui, North and South.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.