Categoria: Críticas

  • Crítica | A Grande Noite

    Crítica | A Grande Noite

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    O casal Bonzini mantém um restaurante, La Pataterie, em uma zona comercial um pouco afastada do centro da cidade. O primogênito deles, Bênoit (Benoît Delépine), que adotou o nome de Not, é o punk mais antigo da Europa e vive nas ruas com seu cachorrinho de estimação. O filho mais novo, Jean-Pierre (Albert Dupontel), é – ou pelo menos se esforça para ser – o certinho da família. É casado, tem uma filha pequena e trabalha como vendedor numa loja de colchões. Mas mesmo assim não consegue pagar todas as suas contas. A vida de Jean-Pierre começa a desandar quando seu casamento desmorona e ele perde o emprego. Ele passa a fazer companhia ao irmão e os dois juntos irão viver grandes aventuras (ou não).

    Da dupla de realizadores Kervern e Delépine espera-se sempre uma abordagem marginal – à margem, não fora-da-lei – e nonsense de assuntos do cotidiano, sempre usando o humor como veículo de crítica. No caso deste filme, parecem não ter acertado a mão já que, ao atirarem para todos os lados, ora pesando no discurso crítico social ora exagerando nas gags visuais e verbais, não conseguem dar unidade à narrativa, o que a deixa tediosa em vários momentos.

    Um olhar “interno”, de quem vive a realidade atual europeia, certamente tirará maior proveito de algumas das piadas. Contudo, este é um dos problemas, pois essas “piadas internas” constituem a maior parte do humor do filme, deixando o espectador não-europeu boiando em muitas cenas. E, considerando que várias piadas brincavam com o idioma, tive pena do espectador que é obrigado a assistir com legendas, pois mesmo compreendendo a língua, muitas delas soam repetitivas e sem graça – traduzidas, devem beirar o incompreensível.

    A premissa é muito boa: percebe-se nitidamente a intenção dos realizadores, parodiando ao mesmo tempo em que criticam o status quo. Mas a falta de homogeneidade e o último terço do filme totalmente sem ritmo comprometem o resultado final. É bastante promissor no início, tanto na caminhada de Not pela autoestrada que leva ao centro comercial quanto na “conversa” dos irmãos com o pai durante o almoço. Não há conversa. Ao mesmo tempo, cada um dos irmãos faz um monólogo sobre assuntos totalmente distintos, enquanto o pai, realizando sua contabilidade, não presta atenção a nenhum deles. Porém, à parte alguns momentos muito inspirados como esse, não há grandes inovações, seja na direção, seja na fotografia ou na atuação do elenco.

    É uma pena que a obra não tenha conseguido atingir o mesmo nível de Aaltra, em que o surreal trabalha totalmente em favor da crítica sócio-econômica, sem parecer descolado do contexto.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | O Último Concerto de Rock

    Crítica | O Último Concerto de Rock

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    Era uma noite de quinta-feira. Depois de estudar o dia todo para uma prova, só queria uma dose de Scorsese pra masturbar a mente – depois dos vinte anos, isso começa a fazer sentido. Da filmografia do filho pródigo da periferia violenta de Nova York, como ele conta em detalhes no must-read de Richard Schickel, só me faltava mesmo conferir o que já me tinham apontado como um must-see, sendo que, na verdade, é um must-listen. Todos aqueles músicos, intérpretes ou formadores de opinião, tanto faz: como o artista se atreveu, em plena falsa modéstia, a tocar seu legado, em conjunto, em bando, em pedaços imortalizados em um documental exemplo do que deveria ser todo documentário musical que se preze neste mundo, a fim de causar epifanias e alguns desbravamentos experimentais? Mundo mais de surdos do que de ouvintes… Martin Scorsese tentou retomar o frescor caseiro de intimidade e aproximação interativa, além de closes, entrevistas, quiçá do efeito de planos cênicos no palco do filme, que duram, em geral, mais de dois minutos sem um corte edital, fazendo-o tão mais recompensador – e de contemplação a mil – que o frenesi caótico e apressado de Shine a Light, de 2008.

    É cômico, e desolador saber como um filme e um concerto não podem ser cem por cento programados no impacto submetido a cercas qualitativas da porteira do tempo. Fato é que a câmera, levando cada um de nós, voa pelo palco ao lado do clássico grupo (pouco conhecido) The Band, e seus colaboradores lendários do mundo fonográfico, até, enfim, fazer-nos sentir tocando os pratos da bateria junto com Levon Helm. Não vale contar que o músico é recém-falecido desde que seu trabalho nunca será.

    O Último Concerto de Rock: The Last Waltz, no título original -, como sensação recorrente, mata a curiosidade permanente de quem divaga sobre como é se sentir um rock star sendo um rock star, no lugar onde se nasce para estar. Light é pop porque foi coreografado, foi hiper montado, foi super planejado. Waltz é rock porque é livre, é puro, é bruto. Eu tenho muita inveja dos meus pais: o que importa, afinal, ter nascido no pós-guerra, com o mundo tendo que engatinhar de novo, se na efervescência da adolescência eu poderia ligar o rádio e ouvir o novo hit de Muddy Watter, Joan Baez, Van Morrison, Joni Mitchell? Se eles tivessem sido mais precoces, pelo menos… Acontece que todo texto que se escreve no papel é mais gostoso, feito música ao vivo, que é sempre melhor que gravada, por melhor que sejam meus fones de ouvido e o teclado do meu PC – e são ótimos, de boa marca e de conservação melhor ainda! Pois The Last Waltz nos transborda adentro num caminho sem volta de efervescência cultural, que é mergulhada no suor que banha guitarras e um violino durante a projeção inteira.

    Assistir a grandes filmes e/ou manifestos no monitor de um computador se tornou um fato recorrente – cuja predominância tenta chegar a ser uma experiência – de filmes e/ou manifestos que não deveriam ter audiência senão para serem exibidos na glória de uma sala IMAX. O próximo passo será a venda de hologramas para a Rita Lee cantar nos pés da nossa cama, então. Ou quem mais nós quisermos! E será um sucesso, é claro. Um admirável mundo artístico delivery. Enquanto isso, assistir a Waltz me poupou de ter de criar uma máquina do tempo para ouvir um jovem Bob Dylan cantar Forever Young numa Nova York que não volta mais, mas, que, compreenda, vive para sempre nos acordes de Robbie Robertson, linha de frente da iniciativa de Scorsese.

    Me resta confessar que fui me emocionar com Tom Zé e Caetano Veloso, velhos guerreiros, compartilhando do mesmo palco no Ibirapuera, domingo desses. Acho que consegui sentir um átomo emocional, um reles expoente homérico e mínimo, um estalo vibracional da energia que ecoa e se propaga a partir de um palco feito local sagrado – todavia, talvez venha a fazer quem subir nele digno(a) do atributo, será? É provável que sejam ambas as coisas. Só sei que concertos têm luz própria, e de vez em quando o Cinema deixa de ser egoísta e acrescenta sua própria luz a irradiar, por anos-luz a fio, em busca de apreciação. Certamente, é algo pra se acolher.

  • Crítica | O Enigma Chinês

    Crítica | O Enigma Chinês

    o enigma chines

    Diferente do que o título nacional possa dar a entender, não se trata de um thriller ou de um policial. O título original – Quebra-Cabeças Chinês – tem muito mais a ver com a “dramédia” que é a vida do protagonista, Xavier Rousseau (Romain Duris). Estudante em Albergue Espanhol, escritor iniciante em As Bonecas Russas, Xavier, agora um autor estabelecido, beirando os 40, vê-se compelido a mudar de Paris para Nova York a fim de ficar perto dos filhos, levados pela ex-esposa, Wendy (Kelly Reilly).

    O personagem principal começa o filme lamentando que sua vida não seja mais simples, que não seja uma linha reta que o leve do ponto A ao ponto B, que tudo que lhe acontece seja mais complicado que a vida das outras pessoas. E, para exemplificar suas colocações, conta em flashback, enquanto escreve seu próximo livro, como chegou à situação atual. Como doou esperma para uma amiga lésbica – Isabelle (Cécile de France) – poder engravidar; como Wendy se envolveu com um americano durante uma estadia em Nova York; como ela se mudou para lá com os filhos; como ele a seguiu para estar com os filhos; como se casou com uma americana – Nancy (Li Jun Li) para conseguir o green card; como se envolveu com uma amiga francesa, Martine (Audrey Tatou), também com dois filhos. Enfim, como um francês recém-divorciado acabou em Nova York envolvido às voltas com quatro mulheres e cinco crianças.

    Aproveitando a trama, Klapish aborda vários temas. Fala sobre a crise dos 40; sobre a consequência dos divórcios, além da dificuldade de levá-los a termo de forma civilizada; sobre formatos diversos de famílias; sobre fertilização in vitro; sobre o apelo irresistível da vida em Nova York, apesar da falsa impressão de que tudo lá é mais organizado; sobre a condição dos imigrantes nos EUA. Tudo com muita leveza, afinal trata-se praticamente de uma comédia romântica. A maior parte das questões é abordada com bom humor, desde o advogado de divórcio que aconselha o casamento para facilitar as coisas, até o taxista que cai numa “quebrada” ao pegar uma rua fora do padrão quadradinho.

    A montagem, que no início lembra um pouco um videoclipe, com cortes rápidos e personagens reproduzidos como bonecos 2D, vai ficando mais fluida à medida que Xavier vai tomando as rédeas da história que está escrevendo. Detalhes de cenas, que são mostrados recortados durantes os créditos iniciais, vão se encaixando e fazendo sentido à medida que a trama avança. Principalmente no primeiro terço do filme, há algumas inserções surreais – imaginação de escritor, alguns dirão – como a cena visualizada por Xavier enquanto ele está na salinha de doação de esperma; ou quando ele se imagina conversando com filósofos, na tentativa de compreender sua própria vida.

    Apesar de parecer um pouco forçado em alguns momentos, perdendo a espontaneidade característica dos anteriores, O Enigma Chinês é um bom encerramento para uma trilogia envolvente, que consegue ser coerente, sentimental, estranha, carismática, elevando a máxima de “tudo ao mesmo tempo agora” a uma potência infinita.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | O Homem Duplicado

    Crítica | O Homem Duplicado

    o homem duplicado

    O filósofo Friedrich Hegel dizia que as coisas tendem a se duplicar, e Karl Marx complementaria este pensamento afirmando que a primeira vez desta duplicação é sempre uma tragédia, enquanto a segunda, uma farsa. Tais máximas são citadas no novo filme de Denis Villeneuve baseado no romance O Homem Duplicado do nobel José Saramago, reafirmando a parceria do diretor com Jake Gyllenhaal ao recorrer a um estilo com um pé no grotesco, uma temática que lhe é familiar, ainda muito na esteira do suspense Os Suspeitos.

    O roteiro de Javier Gullón acompanha, após uma introdução que revelaria muito do enredo, a rotina do depressivo professor de história Adam Bell (Gyllenhaal). Curioso como o personagem principal é retratado em cenas de fantasias sexuais idílicas e lembranças da quase impotência que sofre junto a sua então parceira Mary, Mélanie Laurent  o que por si só já evidencia que algo está errado, visto que a aparência de sua esposa é belíssima. Nos momentos em que sua rotina é mostrada, nenhum motivo gritante é conduzido como o catalisador desta condição depressiva. A fonte do problema parece ser o próprio conjunto de elementos que caracterizam o cotidiano do homem, relacionando-se com a inadequação de viver em um mundo distante demais dos seus ideais. No entanto, é aventada a possibilidade simples do homem só sofrer do problema unicamente por estar vivo, mostrando que esta já é uma justificativa suficiente para derrubar sua autoestima.

    Um popular – o clássico homem ordinário – avista-o, dando a ele uma dica sobre um filme (Querer é Poder) e, sem qualquer pretensão, Adam assiste à película. Assistindo-a com atenção, ele percebe que é parecido com um personagem, cujo papel no filme é bem pequeno. A concupiscência faz Adam se interessar pela vida de Anthony Claire (o ator), passando da indiferença para a leve curiosidade, evoluindo, a posteriori, para uma cinefilia seletiva através da qual assiste aos filmes do artista e depois recompõe o que seriam os seus passos fazendo deles a sua própria rotina, como, por exemplo, visitando o prédio de uma produtora. O hobby torna-se uma obsessão e Adam tenta entrar em contato com Anthony, descobrindo que este também tem a voz muito semelhante a dele.

    Decorridos mais de trinta minutos de filme, o protagonismo passa a variar caindo sob a responsabilidade do ator, o que demonstra que sua vida pessoal também é deveras complicada. Com uma carreira interrompida e uma esposa gestante  Helen (Sarah Gadon), cuja semelhança física remete a Mary —, revela-se que ambos têm muito mais em comum do que uma aparente e paranoica ligação no meio da noite poderia fazê-lo supor.

    A dualidade do ofício de Anthony faz Helen ficar em dúvida. Primeiro, por um caso de infelicidade do passado que o homem jurou não mais em incorrer, assunto inclusive evitado por ele; segundo, pelo encontro “frustrado” entre as contrapartes ao qual ela faz questão de comparecer. As dúvidas que lhe vêm são pertinentes, especialmente se analisar seu passado. Além de interrogações bem construídas para a personagem, ainda levantam-se dúvidas sobre a veracidade dos fatos ocorridos, pondo uma interrogação no que seria a realidade ou fruto da paranoia das pessoas que correm à trama.

    Os dois resolvem se pôr frente a frente em um local neutro, e a evidência da verdade abala a ambos, ainda que suas reações sejam bastante diversas. O papel de perseguidor e perseguido se inverte, assim como a fantasia de se ter outra vida que não a que ele possui. A descoberta mexe com a psiquê de Anthony, fazendo-o reviver alguns de seus fantasmas. Ele leva este problema a sua pseudoterapeuta (sua mãe), que pede para ele abstrair-se em sua própria vida e não cair na tentação de não conseguir manter-se com uma só mulher. A volúpia do aposentado artista o faz cobiçar a mulher de sua contraparte, fazendo-o até mesmo considerar tal desejo um ato normal, diferentemente de suas infidelidades anteriores. A troca de vidas acaba sendo mútua, apesar da coação de Anthony sobre Adam e de todo o planejamento do primeiro.

    As esposas reagem de forma diversa, mas têm em comum a confusão sentimental, não tendo uma certeza tão grande em relação à identidade do “cônjuge”. O final, de conteúdo quimérico, resgata o início, reforçando a ideia de que a mente de Adam sofre sérios problemas, pois, mesmo com a mudança de ares, ele permanece assombrado pelas fobias, tendo no máximo um alívio transitório em suas inseguranças.

    A metáfora, apresentada minutos antes dos créditos finais, tem um significado diferente do apresentado no romance de Saramago e, como quase tudo na mensagem do filme, possui dubiedade ímpar. Mais uma vez, Villeneuve convida o espectador a vivenciar uma experiência misteriosa, cativante e que, apesar de fazer muitas concessões à realidade e à vida mundana, prossegue em paralelos a problemas reais e comuns ao homem moderno, tais como depressão, infidelidade e a necessidade de se fugir da realidade.

  • Crítica | Memórias de Salinger

    Crítica | Memórias de Salinger

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    J. D. Salinger é considerado um dos maiores escritores da contemporaneidade, além de figura muito controversa pelos eventos de sua vida pessoal. Autor do sucesso de público e crítica O Apanhador no Campo de Centeio (que vendeu aproximadamente 60 milhões de cópias e influenciou jovens no mundo todo), além de outros contos, Salinger ganhou notoriedade após se recusar a entrar no mundo da fama que seu best-seller lhe garantiu. Desde meados da década de 60 até sua morte, o autor viveu isolado em uma pequena cidade no interior de New Hampshire, EUA, escrevendo somente para si mesmo.

    É a partir dessa figura controversa que o filme Memórias de Salinger, de Shane Salerno, baseado na biografia também escrita por Salerno e David Shields, busca mergulhar. O filme inicia-se com uma sequência interessante de um repórter contando a história de como buscou e esperou Salinger dentro da cidade para poder tirar uma foto do recluso autor. A partir daí, se sucedem pequenas inserções de depoimentos de várias personalidades a respeito de como sua obra as influenciou, com destaque para Phillip Seymour Hoffman, Martin Sheen, John Cusack e Edward Norton.

    Após traçar um breve histórico da infância do autor, é destacado o potencial que o jovem escritor possuía, e como sua obsessão por ter sido publicado pela conceituada revista New Yorker moldaria parte de sua personalidade. Salinger escreve vários contos, rejeitados pela revista-alvo, mas publicados por outras menores. Porém, quando uma de suas histórias é aceita, os EUA entram na Segunda Guerra Mundial, e as histórias sobre frivolidades cotidianas são deixadas de lado frente a toda a atenção que a guerra iria receber, o que enfurece o autor.

    Membro do numeroso grupo de soldados que desembarcou na Normandia no Dia D,  já estava com boa parte da obra O Apanhador no Campo de Centeio pronta e pisou na areia da França portando o que tinha do livro para lhe dar uma motivação maior para viver. Porém, nada de fato o preparou para vivenciar os horrores da guerra quando ele localiza, junto ao exército americano, o campo de concentração de Dachau, vendo pessoalmente as vítimas do holocausto, algo que seria outra fonte de impacto para o autor.

    Após voltar da Europa, Salinger publica seu best-seller e obtém fama imediata. Tal sucesso o eleva a um status tamanho na sociedade que acaba por assustá-lo, e por isso decide viver afastado de todas as badalações e falsidades do mundo das celebridades, um ato cuja característica marca seu principal personagem, Holden Caulfield. O filme também aponta a visão de vários amigos e conhecidos de Salinger sobre como seus personagens tinham, para o escritor, significado de pessoas reais, tão ou mais importantes do que as próximas a ele. A preferência geraria enormes conflitos em sua casa, já que Salinger dava mais importância a sua família da ficção, os Glass – tema de outras publicações subsequentes ao Apanhador -, do que a seus filhos e esposa.

    Esse foco se apresenta também como o principal problema do filme, que vai deixando de lado, aos poucos, a figura do artista para analisá-lo psicologicamente, porém flertando com uma narrativa similar a de tabloides sensacionalistas, criando muitas vezes no espectador uma certa rejeição a Salinger, algo que um documentário deveria evitar ao máximo. Essas e outras escolhas, também estéticas, deixam o filme com um tom gratuito, inclusive ao se inserir um ator no papel do protagonista em conflito com sua escrita enquanto imagens aparecem em um telão. Um reforço desnecessário para mostrar o que já está estabelecido pela narrativa.

    Várias histórias controversas sobre o escritor são revividas: sua preferência por meninas adolescentes e os casos que teve com algumas delas; além da influência de seu maior livro sobre o assassino de John Lennon e o homem que tentou matar Ronald Reagan. Porém, nada no filme é problematizado como deveria. A película enfatiza, a todo momento, que a reclusão de Salinger é mais uma jogada para chamar a atenção por tentar desviá-la do que qualquer outra coisa, fazendo nenhuma outra análise sobre o autor, que não parecia querer se isolar de todo o contato humano, mas somente de algumas pessoas, e são exatamente estas que parecem sempre voltar para atormentá-lo.

    O que sobra, então, para o filme é digladiar em cima de sua pouca substância e tentar capturar o espectador nessa aura de mistério com ar sombrio que atrai todos nós. Uma figura como Salinger merecia uma análise mais madura e melhor documentada. Apesar de seu início promissor, Memórias de Salinger acaba descambando para uma investigação sensacionalista, pautada em fotógrafos e pessoas comuns intentando obter algum contato com o escritor, além de utilizar depoimentos direcionados que não fazem jus à complexidade emocional e icônica do protagonista. Todas as histórias polêmicas em torno de Salinger são muito controversas, e por isso era necessário um rigor metodológico maior ao se escolher as fontes e entrevistados, além de seu direcionamento.

    Portanto, o que se segue é um documentário que tenta jogar luz em uma figura obscura, mas patina no senso comum da difícil análise. Após tentar manipular o espectador com depoimentos de pessoas que conviveram com Salinger, o filme tenta suavizar o toque ao mostrá-lo em seus dias finais, feliz e tranquilo, algo que a inserção de letreiros com músicas tensas – avisando que há várias obras a serem publicadas e sobre o que elas serão – termina por ir abaixo. Com tal confusão, o espectador mais atento termina de assistir ao filme sem ter informações relevantes o suficiente para formar uma opinião sólida, enquanto aquele, mais facilmente impressionável, pode ser levado a formar uma opinião negativa sobre o biografado, praticamente justificando toda a sua escolha em preferir se isolar do que lidar com o mundo.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

    Ouça nosso podcast sobre O Apanhador no Campo de Centeio.

  • Crítica | Star Crash: Choque de Galáxias

    Crítica | Star Crash: Choque de Galáxias

    Starcrash-DVD

    Roger Corman é um dos pilares do cinema americano, tendo uma importância monstra para a indústria, seja lançando cineastas que viriam a fazer muito sucesso – exemplos de Eli Roth e James Cameron – como ditador de moda também, mas acima de tudo, ele era um produtor que sabia fazer dinheiro. Foi essa motivação e claro, um orçamento paupérrimo, que o fez distribuir o filme do italiano Luigi Cozzi (ou Lewis Coates) na direção de Star Crash, uma “imitação” do sucesso de George Lucas, Star Wars – Episódio IV: Uma Nova Esperança, ainda que as influências visuais sejam muito mais pautadas em Bucky Rogers e Flash Gordon

    O início apresenta a visão de baixo de uma nave de brinquedo, com nenhum disfarce para a fajutice de sua fabricação, aparentando ser esta uma filmagem de uma aventura Playmobil, capitaneada por crianças retardadas que brincam após sofrerem pancadas sucessivas na cabeça, que pioram muito as suas já conturbadas mentes. A história acompanha o produto original, mostrando uma batalha de marginalizados representados pela voluptuosa e decotada Stella Star (Caroline Munro) e por seu amigo Akton (Marjoe Gortner) que são incumbidos pelo Império (que na verdade é bonzinho) de deter o Conde Zarth Arn, um malfeitor que vem ganhando cada vez mais espaço pelo universo afora.

    Claro que toda essa trama complicada é apenas uma desculpa para exibir corpos femininos com pouca roupa, maquetes de plástico das mais maltrapilhas, disparos de armas a laser fabricados com papel celofane e claro, as belas curvas de Caroline Munro, que tinha grande popularidade graças ao recente 007 – O Espião que me Amava.

    Logo os dois bandidos, mais Elle – um robô que diz que não pode enlouquecer por não ter os circuitos certos, mas que é capaz de ser um grande covarde – exploram um planeta, atrás do malvado Conde, onde enfrentam Corelia (Nadia Cassini), a rainha das amazonas, que possui um exército de gostosas com trajes de banho e um gigante indiano de stop-motion com dificuldade de locomoção, que não consegue deter os bravos heróis. Curioso que tais acontecimentos não têm qualquer consequência no produto, a não ser estreitar os laços entre Stella e o robô.

    Como toda boa ação tem sua recompensa má, o alienígena esverdeado e careca Thor (Robert Tessler) trai os outros tripulantes, dando cabo de Akton e deixando Stella e Elle para morrer na neve. Mas a justiça prevalece e o cacheado anti-herói ressurge para uma batalha tosquíssima com o seu vilão particular. Akton subitamente descobre-se um ser poderosíssimo, capaz de se defender com as mãos nuas e ressuscitar a bela protagonista, que estava congelada e lotada de esmegma pela superfície de sua pele, levantando linda e bela logo após a sessão impingida por seu parceiro.

    Após quase perecerem a um ataque lisérgico feito de uma névoa cor de rosa das mais mal feitas, e sem qualquer justificativa para a sua origem, os ex-bandidos entendem que aquilo é um dos maiores ataques galáticos existentes, e descem até um planeta em busca do malfadado Conde. Na superfície dele, encontram Simon, o galã em começo de carreira, David Hasselhoff, mais de dez anos antes de Baywatch ir ao ar, e claro, acompanhado de sua cabeleira permanente.

    No entanto, antes de se deparar com o vilão, eles têm de travar uma batalha com mais robôs stop-motion, bem melhores executados que o primeiro. Finalmente o embate final se aproxima, e o entrave é feito em duas frentes, como no final de Star Wars – Episódio VI: O Retorno de Jedi, o que levanta muitas dúvidas a respeito da honestidade de George Lucas. Apesar das cenas serem tão toscas quanto o resto do filme, a edição até que é bem feita para os padrões orçamentários e para a qualidade da obra. O roteiro contém uma virada, com o Imperador (Christopher Plummer) tendo de se sacrificar para que Stella e Simon escapem para a Cidade das Nuvens. O curioso é que não havia qualquer motivo para poupá-los, a não ser o fato deles serem os mais bonitos do elenco.

    As maquetes vão ficando cada vez melhores, e uma linda mensagem de alinhamento da justiça é apresentada no final com uma carga de esperança ainda mais forte que a presente em Star Wars. Star Crash foi um dos muitos produtos de Luigi Cozzi, acostumado a realizar fitas como Cozzilla (uma versão dublada em italiano de Gojira e pintada quadro a quadro) e proporcionou a este, oportunidade de rodar clássicos como Alien, O Monstro Assassino (que se passa em um barco), Drácula em Veneza, e a duologia Hercules 87 e As Aventuras de Hércules, Lou Ferrigno. Starcrash é ainda muito inspirado no clássico Barbarella, estrelado pela bela (e nua) Jane Fonda, com um caráter muito mais trash e de conteúdo podre, sendo um chorume entusiástico de uma equipe que certamente era muito fã do gênero Space Opera, mas que não dispunha de muito dinheiro ou talento, que ainda assim, é um produto muito divertido e engraçado, claro, de modo inconsciente.

  • Crítica | Thanatomorphose

    Crítica | Thanatomorphose

    thanatomorphose

    Ofegante, exibindo imagens cuidadosamente erráticas, com a câmera tremendo e emulando os movimentos típicos da transa e enquadrando as faces corporais íntimas de modo peculiar, sob ângulos onde não se vê qualquer outra coisa. Thanatomorphose de Éric Falardeau mostra logo no início um dos seus dois temas, para explicitar o segundo logo após a intro citada, exibindo o casal após o sexo, interagindo enquanto o homem se fere com um prego no chão, passando a gritar loucamente, exibindo seu escasso traquejo para a atuação dramatúrgica minimamente aceitável.

    A câmera de Falardeau não tem qualquer pudor em mostrar nudez, ao contrário, ela parece caçá-la, vista a naturalidade como tal estado é retratado. Sua abordagem remete também ao bondage, uma vez que se preocupa em enquadrar tanto a naturalidade do sexo quanto a existência da dor, mesclando e tornando-as parte de um todo, de uma simbiose onde não mais consegue distinguir uma da outra. O nível desta “obsessão” é ainda mais elevado com o decorrer da trama. A personagem de Émile Beaudry começa a ver suas unhas descolarem e sangrarem levemente – o processo que correra toda a história vai ganhando seus estágios iniciais.

    Filmado sempre em ambientes fechados, a intenção do diretor é remeter a claustrofobia, sensação que se daria a um ser vivo caso fosse enclausurado dentro de um caixão, mas a protagonista não tem consciência do que ocorre consigo e com o seu corpo. Tais sensações ficariam mais evidentes caso o elenco fosse melhor, mas a vontade do realizador parece ser a de usar seus personagens como telas em branco, caricatos, para grafar a decomposição que se mostraria a posteriori. As relações, as brigas, os diálogos, tudo é muito mecânico e frio, como um pretexto para revelar a verdadeira faceta da história.

    Na sinopse oficial do filme há a definição a respeito do curioso título da obra: Thanatomorphose é um substantivo francês que significa sinais visíveis da decomposição de um organismo, causada pela morte. O modo de viver da protagonista, sem qualquer anseio ou perspectiva, remete a isso. À medida que o roteiro avança, os sinais vão ficando visíveis na folha em branco que é o seu corpo, um lugar onde é facilmente distinguível qualquer hematoma ou ferimento.

    Após o começo da transmutação, a personagem prossegue ávida por sexo, se obrigando mesmo sem condições físicas minimamente aceitáveis a se envolver em relações não degradantes. Seu apelo é tão forte que seus parceiros passam por cima da aparência nada agradável dela, ignorando até o seu estado de saúde, debilitado a olhos vistos. Com o agravar da condição, ela começa a sentir pena de si, numa autocomiseração enorme, que a faz chorar e sentir-se infame.

    Logo a sensação de mal-estar dá lugar ao desespero total, uma vez que sua pele entra em decomposição. Mesmo as manifestações sexuais mais leves como a masturbação causam em si um dano enorme, com a câmera registrando o seu sangue escorrendo pelo lençol branco, em mais uma travessura com as cores que Falardeau faz com sua fita. O asco predominante apavora muito mais do que qualquer propensão ao susto, a ojeriza é maximizada pela maquiagem que de tão singular, torna-se não catalogável e impossível de ser associada a algo caricato, visto o quase ineditismo com que é feito em seres “vivos”.

    Na meia-hora final a putrefação é tanta que as tomadas evitam ser dadas de corpo inteiro, a lente registra o corpo desnudo da protagonista em doses homeopáticas, focando em parcelas muito pequenas do corpo da moça. Mesmo quase não tendo mais vida ou feições humanas, ela ainda busca o prazer carnal, unindo a volúpia ao grotesco, passando a mensagem de que ambos estão inexoravelmente ligados, ainda que sua realização seja tão grotesca quanto o goire das cenas de auto-mutilação. Assim como a degradação de seu corpo, sua moral também se deteriora, e mesmo crimes homicidas deixam de ser um tabu, a única coisa que segue intocável é a sua ninfomania e a luxúria, cada vez mais difíceis de lidar graças a sua compleição cada vez mais degradante. A vontade maior presente na obra é chocar por meio do grotesco, resgatando o exploitation em uma amálgama entre pornografia e decomposição acelerada, em que a utilização de elementos sonoros serve tão bem a trama quanto suas tomadas de impressionante esplendedor visual. Thanatomorphose é um filme forte, imprescindível para o fã ávido pelo cinema extremo e contém em si uma forte mensagem, que a despeito das péssimas atuações, é passada pela linguagem cinematográfica universal, embalada pela sinistra trilha de violino que corta toda a película.

  • Crítica | O Médico Alemão

    Crítica | O Médico Alemão

    wakolda

    Apesar de não conter em si um caráter tão explícito, logo no início de O Médico Alemão (Wakolda) a diretora argentina Lucia Puenzo utiliza os olhares sutis dos personagens para demonstrar que algo não está de acordo com a regra e a ordem. O cenário árido é incômodo às vistas dos personagens, tal como o calor que insiste em queimar a epiderme dos viajantes que cortam a estrada da Patagônia.

    A trama acompanha a verídica história da família que atravessou o caminho de Josef Mengele (Àlex Brendemühl), conhecido como Todesengel, “O Anjo da Morte“, médico responsável pela área de Auschwitz-Birkenau e que fazia terríveis experimentos com crianças judias durante a Segunda Guerra Mundial. A lenda sobre ele reza que seu fim de vida foi peregrinando pela América do Sul. A trajetória do clã acaba tendo a verossimilhança aplacada graças à iluminação chapada, ao estilo de folhetins televisivos. Os tons de cor clara passam a ser um incômodo. A tentativa de guardar o mistério para a parcela do público que não conhece a história poderia ser um artifício melhor construído, e não o é graças a um descuido excessivo por parte da realizadora.

    Pela natureza do seu trabalho de geneticista, Josef se vê na obrigação de indagar a mãe da família, Eva (Natalia Oreiro), sobre a condição da falta de crescimento da pequena Lilith (Florencia Bado). Além de ser o elemento catalisador da discussão dentro do filme, a garota também é a figura de mais fácil identificação com o público, por ser uma menina indefesa, injustamente presa a um estado de saúde precário. As figuras responsáveis por Lilith são reticentes quanto ao estudo de sua condição, não tendo qualquer receio de declarar isto ao médico – mesmo sem saber de sua história pregressa. Quando dá-se início aos exames, a desconfiança fica estampada no rosto dos membros do clã.

    O vislumbre para a possível solução da crônica deficiência da menina não ilude muito os seus pais, mas faz a menina sonhar, de modo intenso, o desenvolvimento de seu corpo. A fabricação de bonecas pelo patriarca serve de paralelo para a construção de membros que são postos em seu lugar de modo mecânico, remetendo à artificialidade com que se “constrói” o novo corpo de Lilith. As cenas no interior dos armazéns, com mulheres montando os brinquedos de modo industrial, têm um tom um pouco macabro se comparado com o modo deveras otimista que a moça enxerga o mundo ao seu redor.

    Apesar da premissa interessante, o roteiro de Puenzo pouco envolve o público, até por não haver crença de que Mengele pudesse ser um alguém livre de suspeitas ou um benfeitor. As atitudes da família em deixá-lo tratar a caçula são estranhas, considerando a paranoia do pai. O modo como tais questões são conduzidas tornam-se incoerentes, dado que a atitude e a postura do personagem não coincidem. Nem mesmo a justificativa de um possível desespero, que faria a família procurar soluções drásticas, torna a história mais palatável.

    Nos instantes finais, Lilith é quem percebe que algo está enormemente errado consigo. Há mais atitude nela do que em seus predecessores familiares, mas sua reação é tardia. O médico prossegue seus experimentos e, ao final do filme, foge, tendo apenas uma mensagem pré-créditos que discorre um pouco sobre como Mengele prosseguiu usando crianças como cobaias de seus temíveis testes genéticos, cujos boatos apontam uma praia brasileira como última passagem do assassino incógnito. O filme falha em propor um caráter conspiratório ao público e tampouco comove, graças à fraca composição de background dos protagonistas. O Médico Alemão torna-se algo descartável principalmente quando comparado com o que poderia ter sido.

  • Crítica | Amor Sem Fim

    Crítica | Amor Sem Fim

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    Após a morte de um membro da família, vítima de câncer, a família Butterfield permanece em luto eterno. A jovem Jade (Gabriella Wilde), protegida pelo pai, não possui nenhum amigo e, em sua formatura do colégio, permanece isolada. Sem espaço para improvisos, o patriarca deseja um futuro brilhante para a filha, acompanhando sua carreira médica de sucesso. David Elliot (Alex Pettyfer) é um tímido garoto que, durante anos, estudou com Jade sem que ambos conversassem um com o outro diretamente. Após a formatura, a garota vai ao mesmo restaurante em que David trabalha como vallet e, assim, surge a fagulha do amor.

    Amor Sem Fim reconta a história da produção oitentista estrelada por Brooke Shields. Porém, nesta nova versão, a trama parece fora de sincronia com o presente. A princípio, as personagens de Jade e David se diferenciam pelo histórico familiar, estabelecido de maneira evidente pelo pai da garota, educado formalmente e abastado, em contraposição ao do garoto, dono de uma oficina mecânica e formado no estilo trabalhador braçal. Porém, em nenhum momento as realidades são um empecilho para a relação do casal.

    A ausência de um conflito inicial no roteiro, que se apoia em demasia em uma história desenvolvida em época diferente da atual, faz da trama inverossímil. Em trinta anos que separam as versões, a concepção de família foi modificada, e os pais, embora desejassem um futuro brilhante a seus filhos, não são capazes de segurá-los com rédeas castradoras. Além deste pequeno imbróglio temporal, a personagem de Hugh (Bruce Greenwood), pai de Jade, o suposto antagonista do romance, parece um homem duplo que inicialmente aceita o garoto, perguntando-lhe seus planos sobre o futuro, e somente em um segundo momento age para evitar que a história aconteça. Mas até o impasse, a relação – e o amor consequente – estão fundamentados.

    Sem o conflito composto de maneira adequada em um roteiro incapaz de adequar-se às mudanças naturais da sociedade, o romance perde a força e não consegue se destacar também fora das telas, quando outras produções de maior apelo – como A Culpa é Das Estrelas, cuja estreia foi realizada no país uma semana antes – estão em concorrência direta com a obra.

  • Crítica | A Face Do Mal

    Crítica | A Face Do Mal

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    O subgênero de terror sobre casas mal-assombradas é um filão que já trouxe filmes pródigos e clássicos, como Terror em Amityville, sendo bem explorado até os dias atuais, vide o sucesso da saga Sobrenatural. A Face do Mal (Haunt), de Mac Carter, embarca nessa toada utilizando elementos de exploração da paranormalidade e contato com manifestações de “outro mundo”. Já no prólogo é mostrada uma história pregressa do plot principal, em que os clichês de histórias de fantasmas são explicados, primeiro por meio de imagens, depois por um recordatório macabro. Carter faz às vezes de James Wan, procurando reverenciar visualmente William Friedkin e seu O Exorcista, começando bem a carreira de diretor com seu primeiro longa.

    Na introdução, a decisão do roteiro é de mostrar que o lugar explorado é amaldiçoado. Mesmo que o espectador entre na sala de cinema após a introdução, a trilha sonora característica não deixará dúvidas de que há algo de poltergeist. Os Asher, família que comprou a residência, têm consciência do que ocorreu no passado da casa, mostrando que não há desavisados – o que se retifica com a visita da Dra. Janet Morello (Jacki Weaver), antiga dona da propriedade. Seu retorno se dá pela busca do retrato de seu falecido filho, e sua figura, apesar de simpática e amável, é atrelada ao bizarro e ao terror.

    Os olhos do público no filme são de Evan Asher (Harrison Gilbertson, um Dane Dehaan genérico), o fugaz adolescente, primogênito dos Asher, que em uma de suas andanças pela floresta à procura do sentido da vida encontra Sam (a deliciosa Liana Liberato), uma moça com problemas muito mais flagrantes do que os seus. Ela, mais uma vez, lembra a sina que a casa carrega. As condições naturais fazem com que os dois jovens se aproximem, pulando qualquer etapa de empatia ou convivência, colocando-os numa relação precoce que só não chega às vias de fato graças à inoperância do rapaz.

    A palavra em português mais próxima da tradução de Haunt seria covil. No início do filme há uma referência a esse elemento em letras escarlates que dizem: “Haunt – Substantivo; Lugar de alimentação para animais”. A máxima faria ainda mais sentido com o passar do tempo e com os passeios que o fantasma faz pela casa. Como o temor é explícito, quase não há presença de sustos. Os mistérios estão na história dos Morellos e com o que fez seu patriarca enlouquecer. Sam se sente atraída pelo local, como se a aflição de sua alma a levasse a um lugar inseguro, mais pacífico que o seu lar.

    A busca de Samantha por um paraíso a faz cavar fundo demais, pondo ela e seu novo par em perigo. As vias de fantasmas passam a ser de sua possessão também, além da velha busca por sangue daqueles que vivem em mundos paralelos, que por si só não têm mais direito à vida. A busca revela uma trama de infidelidade, assassinato e vingança, que não tem em si nada de reprovável na premissa, mas que é apressada, corrida demais para o que deveria ser melhor desenvolvido.

    O desfecho da história é igualmente efêmero, demasiado encurtado e não dá margem ao público digerir as ideias propostas no texto de Andrew Barrer, o que é uma pena, visto que A Face do Mal tinha grande potencial para ser uma boa fita de terror. Apesar dos pesares, ela está um pouco acima da mediocridade generalizada em se estacionou o gênero fílmico de terror.

  • Crítica | Antes do Inverno

    Crítica | Antes do Inverno

    antes do invernoO inverno como metáfora é um símbolo do final da vida. Um senso de derrocada que, se não representa a própria morte, é um anúncio de algo significando um novo estágio.

    Evocando tal imagem simbólica, Antes do Inverno situa-se em um momento anterior ao da terceira idade como instante de decadência. Foca a estabilidade tranquila e tediosa de Paul (Daniel Auteuil), um neurocirurgião de 60 anos, bem-sucedido, casado, residente em uma bonita casa luxuosa. A realidade costumeira é quebrada quando flores começam a ser entregues no hospital em que trabalha e, posteriormente, em seu consultório particular e na sua própria casa.

    Através da presença de um elemento carregado de novidade e mistério, o personagem coloca-se em alerta, com medo de uma ameaça, mas curioso em saber quem é o remetente das flores. No café onde é freguês, descobre que a garçonete, Lou (Leïla Bekhti), foi operada por ele quando criança. Assim, começam um diálogo e estabelecem uma relação.

    A garçonete e as flores representam o elemento de renovação que corrompe seu cotidiano estável. Aos poucos, Paul se envolve na procura de descobrir se a garota é a remetente das flores, ao mesmo tempo em que se sente atraído pelo novo.

    O roteiro evita cair no abismo da atração sensual em que uma garota jovem se apaixona por um personagem mais velho. Mesmo que o elemento seja sugerido em cena, o neurocirurgião reconhece a própria velhice e o senso de completude da vida, demonstrando que o que sente em relação ao desconhecido não é uma atração explícita, mas um tipo de curiosidade em conhecer a garçonete com mais profundidade.

    A realidade plástica e estável de Paul entra em choque com a vida de Lou, marcada por uma espécie de sobrevivência diária. Cada movimento que o médico faz para descobri-la acaba por afastá-lo da esposa (Kristin Scott Thomas), que nota a mudança de atitude dele e do único companheiro que restou, um psicólogo (Richard Berry) apaixonado pela mulher do amigo.

    De maneira lenta, o drama é conduzido por cada investida do personagem rumo ao desconhecido, como últimos impulsos de descoberta e curiosidade antes de assumir a derrocada da velhice. Em nenhum momento o médico aparenta buscar uma aventura. Pelo contrário, mais parece à procura de um acontecimento que lhe retire da repetição diária da rotina. Atos que demonstram uma personagem resignada, mas não necessariamente almejando uma nova vida que modifique suas estruturas.

    Não bastando a intensidade do drama interior, há uma pequena reviravolta que faz com que o personagem encontre o elemento de reflexão. Um impacto agressivo revelando-se além do conflito interno. Afora o envelhecimento cotidiano, o inverno futuro é mais agressivo e cru do que o provável entardecer bem-sucedido e estável.

  • Crítica | O Dia que Durou 21 Anos

    Crítica | O Dia que Durou 21 Anos

    O Dia que Durou 21 Anos

    Atualmente o tema da ditadura civil-militar brasileira está sendo explorado por meios como cinema, especialmente em documentários, para se contar sobre este período sombrio da nossa história, em especial por causa das investigações da Comissão da Verdade, remexendo ainda em feridas que doem em muita gente, e também em interesses de quem que preferiria deixar esse passado para sempre quieto e intocado.

    Em meio a tudo isso, o cineasta Camilo Tavares decidiu contar a história de seu pai, o jornalista Flávio Tavares, que foi preso pelo regime e, posteriormente, trocado pelo embaixador americano Charles Elbrick, em 1969. Porém, ao se deparar com uma vasta documentação liberada por arquivos nos EUA, Tavares muda o foco de seu filme para a participação dos EUA no preparo e efetivação do golpe de 1964.

    Começando com a renúncia de Jânio Quadros em 1961, o filme mostra como os EUA já participavam da política brasileira, porém, sem ainda a devida organização necessária para efetivar um golpe e impedir a posse do então vice João Goulart, também defendida por Leonel Brizola e sua rede da legalidade. Jango aceita a imposição do parlamentarismo, mas logo o país retorna ao presidencialismo e, com um discurso considerado radical de esquerda no auge da guerra fria, Jango assusta os setores mais conservadores do país e dos EUA, com medo de que uma nova China (por causa das dimensões continentais do Brasil) acontecesse.

    Um dos aspectos mais interessantes do filme é tirar do bom moço John Kennedy a imagem de democrata-quase-santo, pois é ele quem inicia os planos de remoção de Jango do poder, considerando inclinação do presidente em não se subordinar aos interesses americanos. Vários arquivos em áudio registram esse fato, com falas fortes de Kennedy “pedindo a cabeça” de Jango e dando o aval ao embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, para continuar com os planos conspiratórios, o que o vice-presidente Lyndon Johnson  mantém após o assassinato de Kennedy.

    Através da CIA e de organizações de fachada, como o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), os EUA jorraram dinheiro dentro da política nacional, patrocinando políticos e veículos de imprensa contrários a Jango em uma enorme campanha de difamação, associando-o ao comunismo internacional, para criar um clima de medo na população. Tal tática também seria usada com sucesso para desestabilizar o governo de Salvador Allende, no Chile. Também fartamente documentada e mostrada no filme está a operação “Brother Sam”, na qual os EUA enviaram ajuda militar com navio de guerra, arma e munição para ajudar os golpistas no caso de uma resistência armada.

    Dessa forma, se mostra impossível negar a participação dos EUA no golpe brasileiro, o que já era consenso dentre os historiadores. Mas o que não havia sido divulgado até então era a extensão da influência americana na política brasileira, a ponto de o primeiro presidente militar, Castelo Branco, ter sido praticamente escolhido pelos norte-americanos por sua postura fiel aos “valores democráticos dos EUA”.

    Como retrato histórico o documentário é extremamente importante para desvendar e aprofundar esse período da história do Brasil. Porém, o lado negativo são algumas escolhas estéticas de Camilo Tavares, em especial no uso de trilhas sonoras desconexas com os momentos exibidos na tela. As montagens de Kennedy assistindo discursos de Jango também são de um didatismo exagerado, pois já sabemos daquelas informações. Com pouco tempo de duração (apenas 77 minutos), faltou também ao documentário encerrar melhor o filme, que acaba de forma abrupta, sem desenvolver muito bem a parte final, após a posse de Castelo Branco, a ascensão de Costa e Silva e o AI-5.

    Porém, mesmo esses problemas não tornam o filme menos importante. Suas informações são essenciais mesmo para os especialistas da área, devido às novidades trazidas por ele, graças ao acesso às fontes primárias, o que garante um frescor na análise histórica. Para os leigos, fica o impacto de até onde os EUA foram para manter seus interesses no Brasil, removendo do poder presidentes democraticamente eleitos em nome da democracia, mostrando sinais claros de que a tal democracia norte-americana já então sinalizava que o único modelo aceito era aquele que eles permitissem.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Sem Escalas

    Crítica | Sem Escalas

    sem escalas

    Liam Neeson é um caso curioso em Hollywood. Ele tornou-se um rosto conhecido ao construir sua carreira em papéis coadjuvantes, geralmente como um sábio mentor. Somente já beirando os sessenta anos ele encontrou seu espaço como protagonista, e vem meio que reprisando sempre o mesmo papel: o durão veterano, um tanto atormentado, mas chutador de bundas. Foi assim em Busca Implacável, Busca Implacável 2, Desconhecido, e A Perseguição. A prova de que a fórmula funciona – e que Neeson é muito bom em interpretar a si mesmo – é o mais recente item a ser adicionado a essa lista, o competente Sem Escalas.

    Repetindo a parceria de Neeson com o diretor de Desconhecido, o espanhol Jaume Collet-Serra, Sem Escalas traz o clássico plot do “dia de trabalho no qual as coisas deram errado”. A bola da vez é o agente federal Bill Marks, especializado em embarcar disfarçado em voos e ficar de olho em potenciais problemas. Num belo dia ele começa a receber mensagens de texto de um incógnito criminoso, que exige 150 milhões de dólares a serem depositados numa conta específica, ou um passageiro morrerá a cada vinte minutos. Conforme as complicações vão aumentando, todos a bordo passam a ser suspeitos – inclusive o próprio Marks.

    Quem teima em buscar originalidade em tudo que vê provavelmente deve passar longe de Sem Escalas. Clichês são a palavra de ordem aqui, começando pela própria ambientação. Como na maioria dos “filmes de avião”, não há tanta ação no sentido de movimento, adrenalina. As emoções vêm do suspense e da tensão, alimentados pelo cenário claustrofóbico. A sequência de assassinatos cometidos por uma figura oculta também segue a clássica cartilha de histórias detetivescas: por mais que o prazo seja anunciado, o modo como as mortes ocorrem leva o espectador a visualizar um gênio do crime por trás de tudo. Até mesmo o protagonista se encaixa num padrão, no caso o do herói cansado, desacreditado e falho (fumante e quase alcoólatra), mas que não se deixa abalar na hora de fazer o necessário para salvar o dia.

    Os méritos do filme vêm da habilidade por parte dos envolvidos em fazer bom uso de todos os clichês, e da mistura deles retirar um honesto entretenimento. O clima de paranoia típico do pós-11 de setembro é bem construído por uma direção segura e um roteiro ágil e sem firulas. Collet-Serra trabalha com inquietos ângulos e movimentos de câmera, que “flagram” os passageiros em olhares e posturas duvidosos – ou apenas compreensivelmente preocupados, impossível de se ter certeza. Nessa linha, há uma mordaz ironia no fato do médico árabe parecer suspeito muito mais por conta do NOSSO olhar preconceituoso do que por qualquer coisa do filme em si.

    Os personagens se tornam rasos, uma vez que a necessidade de se instalar a desconfiança geral demandou que pouco fosse revelado sobre eles. A definição de cada um se dá pela camada mais superficial: temos “o piloto”, “a aeromoça”, “o policial”, “o medroso”, “a garotinha”, “o babaca” e por aí vai. Outro grande nome do elenco, Julianne Moore vive a “desconhecida amigável” e, pouco exigida, faz um bom trabalho. Fãs de séries vão reconhecer Anson Mount (Hell on Wheels) e Shea Whigham (Boardwalk Empire). Além deles, a recém-oscarizada Lupita Nyong’o faz uma discretíssima ponta.

    Se aproximando do final, o filme fraqueja é dá suas derrapadas. A revelação do vilão acontece de forma um tanto forçada, o que só piora quando ele faz um monólogo explicando suas verdadeiras razões. Além de simplistas e pouco críveis, os motivos alegados simplesmente não fazem o menor sentido, ao se analisar no mundo real tudo o que o governo americano fez e vem fazendo em nome da segurança contra o terrorismo. O filme foi fundamentado nesse contexto e soube usá-lo muito bem durante a maior parte do tempo, deixando a falha ainda mais inexplicável.

    De qualquer forma, Sem Escalas cumpre o que promete e entrega um bom suspense de ação. Mantendo-se as expectativas baixas, a diversão está garantida, nem que seja somente para prestigiar o parça Lionélson.

    Texto de autoria de Jackson Good.

  • Crítica | Queime Depois de Ler

    Crítica | Queime Depois de Ler

    queime depois de ler

    Após o estrondoso sucesso de uma produção de tom sério como Onde os Fracos Não Têm Vez, a expectativa em relação ao novo filme de Joel e Ethan Coen era grande. Porém, Queime Depois de Ler explora outro universo, mas no mesmo espírito do estilo de comédia de erros e humor negro que consagrou a dupla anteriormente.

    A história começa com o analista Osborne Cox (John Malkovich) sendo demitido da CIA por supostamente abusar do consumo de bebidas alcoólicas. Em uma explosão de raiva, decide utilizar seu profundo conhecimento sobre espionagem para escrever um livro de memórias. No entanto, não contava que sua mulher Katie Cox (Tilda Swinton) fizesse uma cópia de seus arquivos para usá-la contra ele em um processo de divórcio. Katie é amante de Harry Pfarrer (George Clooney), um conhecido da família e agente de segurança, mas mulherengo inveterado. A situação se complica quando o CD com os dados de Cox cai nas mãos da dupla de funcionários atrapalhados de uma academia de ginástica local. Chad (Brad Pitt) e Linda (Frances McDormand) decidem chantagear Cox para ganhar dinheiro em troca das informações, pois Linda está desesperada para pagar por cirurgias plásticas que, segundo ela, definirão sua reinvenção como pessoa.

    A partir desta intrincada rede de pessoas totalmente diferentes, os Coen vão construindo aos poucos o universo de suas relações. Com elementos clássicos dos filmes de espionagem, como a câmera imitando um satélite, ou mesmo em terceira pessoa com cenas de perseguição, o filme também desconstrói os mitos ao redor desse mundo, onde os espiões são geralmente retratados como super-heróis. Em Queime Depois de Ler os agentes são pessoas normais, com casas e famílias, cometem erros enormes e sofrem as consequências.

    Tudo isso é retratado em meio a situações separadas que, ao longo da narrativa, vão se convergindo. Usando a comédia de erros, a estrutura clássica da dupla em que cada dificuldade gera uma outra ainda maior, contribui-se para a catarse final, onde pouco faz sentido para cada personagem separadamente. Junto a isso, são inseridos vários toques de humor negro de forma a ridicularizar ainda mais a situação absurda de cada personagem, todos geralmente aparentando seriedade e profissionalismo, mas escondendo problemas reais. Esse fato é demonstrado claramente através do personagem de McDormand: Linda Litzke, tão preocupada com suas cirurgias e como elas irão salvar sua autoestima, chega ao ponto de tentar vender segredos de Estado para a Embaixada Russa.

    O elenco é também outro ponto forte do filme. As atuações exageradas de personagens à beira de um ataque de nervos garantem situações hilárias. Brad Pitt, em uma de suas melhores interpretações como Chad, segura grande parte desse humor ao retratar algo como um personal trainer inconsequente e que se acha genial. Malkovich também interpreta de forma excelente a figura do cada vez mais neurótico Cox, assim como Clooney, que começa se passando pelo sempre profissional e seguro de si Harry Pfarrer, mas que, aos poucos, revela-se exatamente o contrário.

    Apesar de todos os elementos positivos, falta a Queime Depois de Ler uma certa empatia que engaje o espectador a acompanhar a trama de uma forma menos cínica, pois o cinismo e sarcasmo exagerados dos personagens e da história acabam por contaminar de forma negativa o filme, deixando-o muito plano. Isso, apesar de estar totalmente de acordo com a proposta, gera falta de conexão com a história e seus personagens. Se em Fargo a tonalidade monocromática da neve ajuda na composição da película, aqui, a mesma escolha atrapalha.

    Como resultado final, Queime Depois de Ler garante risadas pelas situações absurdas geradas. A forma com que os acontecimentos são resolvidos pelos personagens é milimetricamente calculada e estilizada com o humor característico dos Coen. No entanto, falta o gancho emocional que liga o espectador ao filme, tornando o trabalho quase que dispensável perto de outros da dupla, como Fargo e Onde os Fracos Não Têm Vez. O tom sério da obra impede que a interpretemos como pura comédia nonsense, algo que funciona em O Grande Lebowski, garantindo a sua qualidade. E a comédia está sempre no mesmo tom, raramente saindo da linha a ponto de causar o impacto necessário no espectador, que apesar de se divertir, sairá do filme praticamente da mesma maneira que entrou.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Um Conto do Destino

    Crítica | Um Conto do Destino

    um conto do destino

    Nova Iorque, 1895. Nesta época e local ambienta-se a história rememorada pela narradora, que a inicia com uma releitura do mito de Moisés, usando a cidade americana como o oásis da perfeição, o lugar onde o rebento do casal de protagonistas poderia viver a despeito de tudo: da deportação de seus pais imigrantes (motivada pela tuberculose) e da irrealidade dos fatos e acasos, que influi diretamente no destino da criança, solta em alto mar e sobrevivendo à tragédia. Há um tanto de fantasia em Um Conto do Destino, de Akiva Goldsman.

    As salas palaciais, grandiosas e suntuosas guardam espaço espiritual para que a luz mágica atravesse-as e faça delas cenários semelhantes aos dos clássicos da Disney. Até os personagens são simples, mas não necessariamente vazios, lembrando os arquétipos presentes nos contos infantis. A fotografia de Gary Capo — acostumado a filmes grandiosos, como O Último Samurai, Missão: Impossível 2, Além da Linha Vermelha  flagra ainda mais o caráter de conto de fadas da história amplificado pelos cenários da neve, com cores frias, em contraste com os corpos dos personagens, de cores quentes. A direção de arte de Peter Rogness também é competentíssima, sua experiência em dramas que equilibram emoção e beleza exuberante (Tão Forte e Tão Perto) certamente pesaram na escolha deste para trabalhar no filme.

    Peter Lake (Colin Farrell) é o filho da promessa, mas, por ser descapitalizado, tem de roubar para conseguir seu sustento. No entanto, ele em momento algum é retratado com a máscara da vilania, pelo contrário, salienta-se sua necessidade de fazer os crimes ao mostrar a miséria que vivencia e os milagres que o mantiveram vivo. A honra do personagem é tamanha que um alazão branco de capacidades homéricas aceita ajudá-lo em sua jornada — argumento semelhante aos presentes que Perseu recebeu de Atena —, referência  que se torna óbvia no decorrer da película. Russel Crowe faz o maligno “deformado” Pearly Soames, o vilão de intenções escusas que busca a morte do injustiçado herói, guardando um poder enorme e uma fúria sanguinária, a qual nem sempre é vista em histórias de princesas. A mocinha é Beverley Penn, feita pela bela ruiva Jessica Brown Findlay (de Downton Abbey), que não parece ter ligação com a nobreza mas cujos desejos e desígnios são ligados à honra e dedicação ao sonho, ao infinito e a um mundo ideal. Mesmo que, a priori, o repertório visual e o roteiro lembrem uma história infantil, a trama não poderia ser mais voltada para o público juvenil e adulto, não por tratar temas espinhosos, mas sim por subverter os clichês de fairy tales e associá-los a questões mundanas, como a guerra de classes.

    No pôster do filme, em tradução livre, diz-se que “esta não é uma história de verdade, esta é uma história de um amor de verdade“, como se em nome de mostrar tal sentimento ganhando a vida todo o restante fosse perdoado, até  mesmo a filmagem do impossível e a transposição do realismo, pois a poesia do amor é maior que a frágil barreira da verossimilhança. A realidade pode ser enfadonha e desinteressante quando comparada ao incomensurável tamanho do apego ligado ao sentimento eterno. Os exageros dramáticos do casting não são capazes de destoar do espírito da obra, nem mesmo o over-acting de Will Smith que faz o aprisionado Lúcifer, o qual, demonstrando que o mal é reduzido ao menor denominador comum, é levado à fácil associação ao mito maniqueísta cristão.

    O desenvolvimento da narrativa é tão articulado aos conceitos básicos da moral contidos nos contos de fadas que seu cunho moralista faz a mocinha sucumbir após entregar-se de corpo inteiro ao amor de sua vida, ato de consequências definitivas. A época pedia um findar trágico que abalou a percepção de Peter Lake sobre a vida, jogando-o num limbo desmemoriado e fazendo de sua imortalidade uma vivência de sofrimento na busca de uma musa que não mais existe.

    A trama é levada à contemporaneidade, e a magia do não envelhecimento de Lake só é questionada por uma das filhas dos novos tempos, Virginia — feita por Jennifer Connelly, estonteante como sempre —, a qual não compreende toda a consentaneidade que acometeu a época do início da película, não sabendo como as coisas eram mais simples e menos “discutíveis”. A modernidade destruiu um pouco a percepção do que é possível e do que não é, da possibilidade de milagres acontecerem, mas o encontro entre Lake e ela é o primeiro indício de que tal máxima pode mudar. A tangível condição médica de Abby (Ripley Sobo), a pequena menina cancerosa, também ajuda a derribar a fé de Virginia, mas é este o gatilho que faz Peter Lake retornar às suas atividades como o herói da jornada, levando-o, inclusive, a reencontrar os seus antigos aliados mesmo na urbana Nova Iorque.

    A cavalaria de Soames mudou: ele está fortemente armado e paramentado com as tecnologias contemporâneas, e sua obsessão como guardião de limiar, por fazer o destino do herói encantado algo trágico, prossegue. Em determinado momento, parece que o intuito do mal ganharia mais uma vez a batalha, ampliando a aflição e a dor do mágico protagonista, mas, como na maioria dos contos que inspiraram Um Conto do Destino, o final reúne uma mensagem edificante, igualitária e otimista, de amor correspondido e de encontro dos amantes.

    A estreia de Akiva Goldsman no cinema é emotiva, mas equilibrada, não caindo no pecado do pieguismo e evidenciando uma história que contém muito das suas influências, enquanto artista, de forma reverencial e enxuta.

  • Crítica | A Vida Secreta de Walter Mitty

    Crítica | A Vida Secreta de Walter Mitty

    a vida secreta de walter mitty

    Após sentar-se na cadeira de diretor, 6 anos atrás, em Trovão Tropical, Ben Stiller volta comandando a história de Walter Mitty. Interpretado pelo próprio ator, Walter é um funcionário da Revista Life que, com a reestruturação da  empresa, está prestes a perder o emprego.  Há 16 anos responsável por revelar os negativos do aventureiro fotógrafo Sean O’Connell (Sean Penn), agora Walter terá de sair de sua vida monótona e sem grandes realizações para ir ao encontro do velho parceiro de trabalho; a incumbência é a de garantir o que supostamente será a última capa da revista, que deixará de existir em sua forma física permanecendo apenas no formato Life Online (desde já, uma boa piada).

    Diferente das outras obras que dirigiu, aqui Stiller decide rumar em um caminho mais dramático. Para isso conta com ninguém mais ninguém menos do que Steve Conrad (À Procura da Felicidade) como roteirista. E, se mais simples, talvez a película convencesse. A direção presunçosa consegue diminuir o que de humano e sensível os 114 minutos de projeção têm a oferecer.

    Já estamos acostumados a ver histórias de pessoas superando os seus limites, principalmente em se tratando de grandes telas. O próprio Conrad fez isso magistralmente na consagrada obra com Will Smith. Mas, para que a narrativa funcione, é necessário que haja naturalidade, uma sensação de que os indivíduos se encaixem de forma orgânica em tais situações, ou então que sejam movidos a elas de forma lógica, racional. O que temos em A Vida Secreta de Walter Mitty é uma confusão de estilos, ou até mesmo de Stiller’s. De um lado, o diretor paródico que se sai bem na crítica do gosto pop ou dos estereótipos cinematográficos. De outro, o cineasta que punge falar sobre a quebra da inércia e a busca pelo verdadeiro propósito da vida, nem que para isso seja necessário bater de frente com tubarões, vulcões, montanhas congeladas, medos vencidos sob a motivação das canções que compõem a trilha sonora, aliás muito boa, com David Bowie, Arcade Fire, Of Monsters and Men, Junip, entre outros artistas. Há diferentes tons no longa. O personagem, que às vezes foge da realidade ainda acordado e devaneia situações cômicas, flutua entre o pastiche de cenas como a que remete a O Curioso Caso de Benjamin Button, e o realismo da realização naturalista, estilo Na Natureza Selvagem; ou quando realmente explora recônditos do universo, como a Groenlândia ou o Himalaia. Esses diferentes tons fazem com que até o objetivo da narrativa seja questionado, pois se há um “quê” de paródia nesse próprio fazer dramalhesco de Stiller, este se desfaz quando ocorre a constatação de que o roteiro se leva muito a sério, vide cenas como a que Mitty foge em disparada (algo que faz dezenas de vezes no filme) quando acredita que sua parceira de trabalho, Cheryl Melhoff (Kristen Wiig), voltou para o ex-marido, ou o próprio final da obra.

    O filme não é cansativo. O roteiro consegue guardar e espalhar surpresas interessantes e que trazem, de volta, o espectador de uma provável distração. Uma das melhores é a presença de Penn, quase nos instantes finais da película, soando até como uma possível piada, já que o próprio dirigiu o, já citado, Na Natureza Selvagem. Mas o problema é que, se por um lado vemos uma atualização da clássica obra protagonizada por Peter Sellers, Muito Além do Jardim, por outro vemos um esforço colossal de direção em explicar ou dizer, a partir de frases de efeito escritas no cenário ou outras inserções, tudo o que, na verdade, era para que víssemos em tela, de forma fluída e sem máculas. Soma-se a isso o excesso de cenas em slow-motion e o grande número de publicidades na produção e chega-se ao resultado de um filme que poderá até arrancar sorrisos marotos do espectador, mas no fim deixará uma sensação de discurso dito, redito e não dito ao mesmo tempo.

    Em seu cerne, porém, mesmo que frouxamente, A Vida Secreta de Walter Mitty nos faz voltar a tocar num calo social pós-moderno: a ausência de vida. Talvez o personagem mais cômico do filme seja o carinha da rede social que sazonalmente questiona Walter acerca de suas realizações, o que tem feito da vida, a que locais ele tem ido. É uma voz que, enquanto onisciente e onipresente, pode representar a nossa própria consciência nos questionando sobre o que temos feito com a nossa própria vida. Sério que realmente queremos passar anos e anos atrás de um balcão de escritório sem ao menos experimentar um décimo de por cento do que o mundo nos oferece lá fora? Sério que nossa atitude mais radical, em séculos, será cutucar alguém no Facebook? Sério que viveremos, para sempre, sérios e reclusos a tudo o que nós mesmos pedimos desesperadamente, dentro de nossa cabeça, e simplesmente optar por nos silenciar? Indiretamente, ou não, a obra de Stiller nos faz pensar em nós, pena que não seja tão eficaz como cinema quanto talvez o seja como palestra psicossocial.

    Texto de autoria de Rodrigo Rigaud.

  • Crítica | Gloria

    Crítica | Gloria

    gloria-poster

    O término de um casamento ainda é visto como um declínio perante a sociedade. A imagem, imposta durante séculos, da família como realização do eterno final feliz ainda comove e vende histórias e publicidade, mas não é um reflexo coerente da desintegração natural das relações. Diante do declínio e da devastação da perda, as unidades quebradas do casal permanecem em um mundo à parte, como párias de uma civilização que faz da felicidade um objeto de venda.

    Indo além da história de uma mulher na crise da meia-idade, a personagem central de Gloria vive de silêncios e de vontades presas na garganta. Após dedicar-se ao casamento e aos filhos, a mulher reconhece o momento inerte de sua vida e tenta adaptar-se à nova realidade indo para bailinhos de terceira idade, onde encontra outros seres de corações solitários. Porém, as tentativas de mudança não aquecem sua realidade silenciosa.

    A produção dirigida por Sebastián Lelio não julga os esforços anteriores da vida da personagem, mas ao debruçar-se sobre a crise da meia-idade, diante do vazio existencial, explora a difícil adaptação a uma nova consciência após a queda de uma união que, se não eterna, ao menos, duradoura. Gloria vive um momento de intensa invisibilidade em que nem os filhos crescidos não procuram mais a mãe para pedir conselhos sobre como lidar com as crises diárias. O vazio da personagem vem da falta de um local sagrado onde possa se reconhecer. Sem marido, sem a presença dos filhos, ela transita entre o trabalho e a vida cotidiana, sem uma motivação que a impeça de permanecer deitada no sofá durante noites ouvindo o barulho dos vizinhos.

    A análise da meia-idade como crise não é um conceito novo. A produção italiana A Grande Beleza fez desse tema um de seus movimentos, embora a personagem do filme, Jep Gambardella, pareça mais acomodada do que em conflito direto com a velhice. O Que Falam Os Homens, do espanhol Cesc Gay, também aborda e analisa a ideia de um futuro após o fim do conceito de final feliz. Um senso de realidade que rompe com os desfechos tradicionais, focando a imobilidade humana diante de grandes perdas ou mudanças bruscas.

    Há poesia nas cenas de Gloria. O roteiro escrito pelo diretor em parceria com Gonzalo Maza se vale de imagens envoltas em silêncio para reproduzir o distanciamento solitário da personagem. Insone, ela ouve as brigas do vizinho. Em uma visita ao shopping, ao parecer reconhecer-se na marionete de uma caveira que dança nas mãos de um títere, como se visse seu próprio crepúsculo, calmamente deposita uma moeda no chapéu do mestre dos bonecos.

    A sensibilidade melancólica é equilibrada pela verossímil interpretação de Paulina García, o que lhe proporcionou o Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim de 2013. Mesmo diante de qualquer situação, a personagem é sempre capaz de rir de si mesma. Canta enquanto trafega no trânsito, ri de suas desavenças e desventuras sem parecer uma figura afetada e abalada pela própria condição de solidão.

    Em cena, não há insinuação fatalista que faça da idade ou da perda um fardo inominável, mas mostra que acúmulos de sabedoria e emoções, em um dito momento, não preenchem mais a lacuna do ser humano. Dentro deste conceito, como tão bem explica um dos pôsteres da produção, Gloria parece reconhecer que, embora se sinta paralisada, ainda é uma força significativa e, à sua maneira, pode dançar sobre o próprio universo. Não transformando sua história em uma carregada ilusão amorosa que transforma sua crise em um elefante branco que se destrói aos poucos.

    Gloria é um personagem denso que em silêncio e nuances evidencia que o momento vazio sentido é apenas a transição natural de uma história a outra. De um fim inevitável, posto que tudo termina, mas ciente de que o caminho, mesmo que árduo, foi percorrido de maneira bela e memorial.

  • Crítica | Tatuagem

    Crítica | Tatuagem

    tatuagem

    Após uma série de (bons) curtas-metragens, como Simião Martiniano: O Camelô do Cinema e Mata Adentro – e uma leva de colaborações como roteirista, entre eles Árido Movie, Baixio das Bestas e Amarelo Manga, Hilton Lacerda retorna com a realização de longas-metragens – o que não ocorria desde Baile Perfumado, de 1977 – com o polêmico drama Tatuagem, cuja temática e o viés contestatório são muitíssimos atuais.

    Na primeira fala de Clécio Wanderley, personagem de Irandhir dos Santos, está presente o que seria a tônica do filme. Seu grito é um brado que preconiza uma das poucas armas dos marginalizados personagens, que infelizmente têm muitos iguais a si na realidade contemporânea. O deboche constitui uma das poucas armas cabíveis aos sempre “caçados” homens que amam outros homens. O bom humor consegue cooptar até alguns dos pensamentos mais conservadores. A despeito disso, a iconografia visual escolhida por Lacerda usa alguns signos fálicos que remetem à “preferência” de seus heróis, sem qualquer receio ou rastro de pudor. O roteiro é usado livremente e sem medo de chocar, ao contrário da atitude subserviente e condizente com o discurso conservador e moralista.

    O grupo Chão de Estrelas reúne os mais diversos artistas, de diferentes grupos sociais e orientações sexuais. A ambição é grande, a despeito da época da produção – 1978, com a Ditadura ainda em voga – e também do pouco orçamento com que dispunha. Mesmo com tudo isso, o conteúdo de seus shows – largamente expostos em tela – tem conteúdo político e econômico bastante crítico e conteste.

    A sintonia entre a arte e libertação sexual é mostrada de modo sensível, leve – essa tônica é um dos melhores pontos da obra, é emotivo sem perder o tom. Mesmo nos momentos onde a nudez é explícita, esta é feita de modo natural, passando longe de ser panfletário ou gratuitamente expositivo. Quando Fininha (Jesuíta Barbosa), um jovem militar, aquartelado, com um background confuso, como mostrado em cena anteriormente, adentra o ambiente do grupo artístico, há um pequeno confronto entre dois mundos, duas ideologias que aos poucos vão se dobrando, uma a uma. O que antes era uma dúvida torna-se uma certeza, e Fininha, enfim, se entrega ao torpe prazer que tanto negava a si mesmo, sem culpa, longe de olhares inquisitivos, em um mundo completamente invertido do que lhe era comum. Após as cenas singelas, ele volta ao seu quartel, passa por um corredor polonês – a punição não tardaria, a fantasia para si ainda era algo temporário, distante de sua rotina.

    Aos poucos, o tecido da realidade é arranhado, o preconceito e a diferenciação de tratamento são expostos de ao menos duas formas: uma com o filho de Clécio, que sofre problemas na escola, e com Fininha, que é encarado por alguns dos integrantes da trupe como a presença do Regime, a repressão, o cumprimento das ordens do Exército, o que o faz ser tachado até de infiltrado. Após ter de ouvir tudo isso, Fininha vai a uma reunião familiar, cercado de senhoras que falam sobre pecado, castigo divino e moléstia, funcionando como abutres, que voam sobre a carne pútrida, valorizando conceitos retrógrados, requentando questões constrangedoras, moralistas e medievais.

    Como era de se esperar, a censura enquadrou o espetáculo do Chão de Estrelas, mas o grupo tenta lutar. De modo bravo, ostenta as suas apresentações inclusive com o acréscimo de Fininha. Mas uma das noites é interrompida pela ação da polícia, o que obviamente acaba com a carreira militar do enclausurado moço. Ele migra para São Paulo e até tenta manter contato com sua família, mas deles recebe reprimendas, faces descontentes e decepcionadas pelo flagrante desejo que incorria em seu coração.

    O final, mostrando a feitoria de um filme, serve como recurso metalinguístico da própria realização de Hilton Lacerda, responsável pela direção, roteiro e argumento. Tatuagem é uma ode à libertação, não somente da sexualidade, mas também da alma, do espírito e do sentimento, que por vezes é enclausurado pelo social. Lacerda faz tudo isso de modo sentimental, sem descuidar da verossimilhança e da triste realidade repleta de preconceitos. É uma das demonstrações do que o cinema brasileiro é capaz de alcançar.

  • Crítica | Old Boy: Dias de Vingança

    Crítica | Old Boy: Dias de Vingança

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    Não importa quão bem sucedida e elogiada seja uma produção estrangeira; a indústria cinematográfica americana sempre procurará compor uma nova versão para chamar de sua. Se dentro do sistema muitas histórias são atualizadas por meio de refilmagens desnecessárias, produzidas em razão do provável retorno financeiro, um bem-sucedido filme estrangeiro parece significar um elemento prejudicial à supremacia hollywoodiana, que inevitavelmente compra os direitos e reconta a história à sua maneira.

    Não faltam argumentos a favor ou contra na inflamada discussão sobre refilmagens. Se argumentos teóricos tentam convencer opiniões específicas, a prática consolida que uma história contada pela segunda vez nem sempre é tão prazerosa como se espera.

    O remake do coreano Old Boy (2003) foi recebido, desde o princípio, com rejeição. Nem mesmo o nome de Spike Lee na direção foi suficiente para atrair parte dos espectadores, o que resultou em criticadas exibições prévias e um lançamento morno que se refletiu na estreia tardia em diversos outros países.

    Sempre relacionado a narrativas de crítica social, parece incompreensível o envolvimento de Lee, exceto por um alto incentivo financeiro. Não há em nenhum momento cenas que demonstrem visivelmente seu talento. Tão enfraquecida como a direção está a escolha de Josh Brolin no papel central.

    Brolin não está à vontade desempenhando a personagem que passa vinte anos presa em um quarto sem saber a razão. Demonstrando apatia, o ator diminui potencial dramático destruindo parte do drama que se desenrola através da vingança.

    O argumento é uma versão mais plástica da versão coreana, sem as tênues composições do original, que davam maior dimensão ao personagem de Choi Min-sik, e sem o misto de injustiça e esperança que fez o público desejar a vingança de Oh Dae-su. A versão americana, explorada de maneira plana, resulta no desenvolvimento de uma personagem que não gera piedade no público. As cenas de ação mostrando a  brutalidade crua continuam presentes, bem desenvolvidas, como vistas em uma grande produção. Mas o impacto diante da gama costumeira de violência plástica é risível.

    Ao parecer excessivamente uma cópia da produção coreana, Old Boy – Dias de Vingança não se sustenta nem mesmo como uma pasteurizada versão americana. Motivo pelo qual sua recepção tem sido negativa, suscitando uma das questões primordiais do cinema: os limites que existem entre roteiros originais e adaptações.

  • Crítica | Uma Vida Simples

    Crítica | Uma Vida Simples

    still life

    Em um tour pelos enterros esvaziados, nota-se o emprego curioso do senhor John May. Um inventariante de pessoas que morreram sozinhas, à procura dos parentes próximos daqueles que tiveram um fim solitário. A impressão de que a tônica é agridoce se conclui em menos de dez minutos de cena. A rotina pessoal do personagem de Eddie Marsan é tão insossa e meticulosa quanto o modus operandi de seu trabalho. Tudo em sua vida é milimetricamente calculado e ele tem métodos normativos até para o estresse diário.

    Apesar de May cuidar de pessoas e da solidão todos os dias, ele permanece austero, distante, como se inserido em uma redoma que visa impedi-lo de sentir qualquer emoção pela comiseração alheia. Enquanto apela aos que podem auxiliá-lo, John é convincente, sanguíneo e se envolve na história à qual está encarregado. Ainda assim, se lacra em roupas que o impedem de se contaminar com a vida alheia. Seu esmero é algo único e o modo de operar o faz muito singular. Tudo vai bem, até que seus superiores mudam e May é considerado demasiado lento e, apesar de ser meticuloso, é mandado embora.

    A nova rotina do protagonista é em um serviço comum, em um estabelecimento comercial. Porém, sua mente ainda o obriga a agir lentamente até na hora de se vestir. Com um serviço generalizado e padrão, acha que suas funções serão poucas, ao contrário do faz tudo que usualmente se exerce nestes lugares. A oportunidade de mergulhar na rotina de um sujeito ordinário passa por John, mas ele permanece distanciado, agarrando a primeira oportunidade de voltar ao trabalho anterior, mesmo que sem receber por isso.

    A introspecção esconde uma empatia imensa, além de um interesse genuíno em exercer seu trabalho. Talvez seja pela crença em um destino ou qualquer designação prévia, ou só porque May não sabe fazer outra coisa. Movido pela saída forçada, a atitude de manter-se distante é quebrada. A nostalgia o faz presenciar sensações ainda mais catastróficas dos que as vividas. Mesmo não demonstrando, seu drama pessoal é real e notam-se pequenas mudanças que expressam desagrado, ainda que tais impulsos não sejam óbvios.

    A história de vida de John muda quando se envolve com a filha de seu último cliente. Ao pesquisar o drama do pai da moça, finalmente sente algo e, sem o costume de tais sensações, transita de um polo a outro do sentimento humano: sente vontade de dar fim a própria vida para, logo depois, abrir mão das vestes pretas, típicas dos momentos fúnebres, e finalmente ter sentimentos por alguém ainda em vida.

    Sua existência é interrompida por um fatídico acontecimento e, em seu enterro, não há a presença de nenhuma alma viva, a despeito de todo esforço em trazer conforto a família dos que se foram. Quem presencia o seu funeral são seus iguais, aqueles a quem dedicou os seus 44 anos de vida e que saíram de seu descanso eterno a fim de homenagear quem tanto se importou com suas causas. Apesar de um final sem uma redenção concluída – por falta de tempo ou talvez omissão, isso é discutível – a carga emocional do filme de Uberto Pasolini é altíssima, e a abordagem é tocante em todos os sentidos.

  • Crítica | Onde os Fracos Não Têm Vez

    Crítica | Onde os Fracos Não Têm Vez

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    Onde os Fracos Não Têm Vez, ganhador de 4 Oscars e já cultuado filme dos irmãos Coen, ganhou tantas críticas e interpretações que soa difícil analisa-lo depois de tantos anos de seu lançamento. Mas sua qualidade é tão grande que, igual ocorre com todo grande filme, ele será sempre revisitado, pois enquanto a sociedade muda, e com ela as percepções das pessoas sobre ela e si próprios, novas camadas sobre ele vão sendo descobertas.

    O filme é uma adaptação do livro de Cormac McCarthy, e se passa no ambiente já conhecido e preferido dos Coen, o sul dos EUA e suas características, que compõem um personagem a parte. Em 1980, com o crescimento do tráfico de drogas na fronteira com o México e também o crescimento da violência urbana e da degradação social e moral que o mundo começou a ver com maior frequência, Llewelyn Moss (Josh Brolin) encontra uma mala com dois milhões de dólares em meio a cadáveres de traficantes. Enquanto isso, Anton Chigurh (Javier Bardem) é colocado em seu encalço para tentar recuperar o dinheiro, deixando uma trilha de corpos e destruição pelo caminho. Seguindo essa trilha está o xerife quase aposentado Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones), que cada vez mais fica surpreso e desiludido com a brutal realidade desse mundo novo, até então praticamente desconhecido para ele.

    O sotaque sulista, característica marcante do cinema dos Coen, soa como música aos ouvidos, onde cada palavra é pronunciada de forma elegante, e as frases montadas com uma certa erudição e um toque leve de comédia garantem uma diversão a parte e um deleite ao espectador atento. Porém, ao contrário das outras produções como E aí meu irmão, cadê você?, dessa vez a música não ganha o destaque principal, e é substituída por sons diegéticos que contribuem para o suspense das cenas de perseguição entre os personagens.

    O trio de personagens principais forma uma síntese da sociedade. Moss representa o selvagem do oeste clássico lutando pela sobrevivência. Chigurh representa a pura maldade e a psicopatia quase inexplicável que vemos ser cada vez mais comum, enquanto Ed Tom é o homem bom, civilizado, que luta para se manter equilibrado em meio ao turbilhão de eventos que está fora de seu controle, e que só resta a ele assistir a tudo impassível.

    A composição de Bardem em seu personagem merece um destaque a parte, pois desde o início somos apresentados a ele de forma crua e direta, sem origem e sem explicação, pois ele não necessita disso. Sua expressão corporal, rosto imóvel e olhar frio conseguem gelar qualquer ser humano ao menor contato, e a cena onde ele, algemado, mata um policial, com um close em seu rosto transfigurado pelo seu ódio impessoal, já diz tudo o que precisamos saber sobre sua violência. Porém, como é lembrado várias vezes durante o filme, Chigurh também parece operar sob um código próprio, distorcido de acordo com sua distorcida visão da sociedade. Quando ele é incomodado por uma simples pergunta de um dono de posto de gasolina a ponto de jogar uma moeda para decidir a sua vida, conseguimos acompanhar a crescente tensão da cena ao mesmo tempo que incomodamente conseguimos entender parte do funcionamento doentio de sua lógica.

    Enquanto avança o jogo de gato e rato entre Moss e Chigurh, fica cada vez mais claro que o primeiro não terá muitas chances contra o segundo. Tampouco conseguimos ter esperanças que Ed Tom conseguirá pegar algum dos dois. Dessa forma, o filme em seu ato final abdica de contar a história de perseguição e passa a refletir sobre o papel de cada um desses homens dentro da sociedade contra seus males, e mesmo a origem desses males. Ed Tom conversa com seu antigo parceiro, que sabiamente diz que nada daquilo é pessoal. Achar que o mundo está pior para nos punir por algo é pura vaidade. A complexidade das relações sociais que leva a isso vai além da cor de cabelo ou piercings, como outro personagem afirma, da forma que todos estamos habituados a ouvir.

    O espetáculo visual proporcionado pelos Coen garante um realismo e uma solidez aos ambientes dos personagens. A sisudez de ambos nos incomoda, ao mesmo tempo em que nos deixa com os olhos grudados na tela, querendo saber mais sobre aquele mundo, cujas portas sabemos que deveriam permanecer fechadas. Onde os Fracos Não Têm Vez mergulha no profundo abismo que a humanidade possui, e retorna de lá com essa mensagem incômoda e complexa de entender. Cabe a nós tirarmos conclusões sobre esse abismo e o seu reflexo em cada um de nós, ao mesmo tempo em que nos digladiamos para manter a nossa humanidade frente a tamanha escuridão.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.