Categoria: Críticas

  • Crítica | Operação Sombra: Jack Ryan

    Crítica | Operação Sombra: Jack Ryan

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    O personagem Jack Ryan, criado pelo autor Tom Clancy, já esteve nas telas de cinema ao ser interpretado por vários atores: Alec Baldwin – em Caçada ao Outubro Vermelho; Harrison Ford – em Jogos Patrióticos e Perigo Real e Imediato; e Ben Affleck – em A Soma de Todos os Medos. Em todos, o intérprete sempre teve mais peso que o próprio personagem. Motivo suficiente para, que desta vez, o nome esteja no título (assim como estão Bourne e 007).

    Diferente dos demais, a trama não é adaptação de uma das obras de Clancy. Em parte prequel, em parte reboot, o roteirista David Koepp ambienta a história do jovem Ryan (Chris Pine) em tempos mais modernos, após os eventos de 11 de setembro – originalmente, o personagem nasceu nos anos 50. O espectador fica sabendo como Ryan conheceu sua esposa Cathy (Keira Knightley) e como foi o acidente que destruiu sua coluna e o deixou com a eterna dor nas costas. Após dar baixa do Exército, Ryan é abordado por Thomas Harper (Kevin Costner) que lhe faz a proposta de ajudar seu país de outra forma: ingressando na CIA como um analista. E como nos demais filmes, rapidamente ele deixa de ser apenas um analista e passa a atuar como um agente de campo, depois de descobrir os planos de Viktor Cherevin (Kenneth Branagh) de desestabilizar a economia dos EUA.

    Difícil não comparar esse Jack Ryan repaginado com Jason Bourne, principalmente nas poucas (e boas) cenas de luta – a do banheiro é de prender o fôlego – ou sequências de suspense. Não é demérito, uma vez que a fórmula usada nos filmes de Bourne funcionou bem a favor do personagem. Contudo, exceto por esses trechos mais tensos, a trama é bastante linear e poderia se enriquecer muito com subtramas que gerassem algumas reviravoltas a mais na história. Reviravoltas sim, mas não cenas tão aceleradas que são feitas desse modo apenas para encobrir imperfeições e falhas de roteiro que seriam percebidas mais facilmente se o espectador pudesse parar para refletir um pouco.

    Bem, e já que o personagem parece-se com Bourne, é justo que o ator tenha um porte físico semelhante ao dele e consiga convencer o público de sua capacidade de partir para o confronto físico quando necessário, mesmo que não seja a coisa mais agradável do mundo. E Pine é bastante competente nesse quesito. Knightley está ali basicamente como enfeite, apesar de haver um outro momento de comicidade causado pela sua ignorância a respeito do emprego real de seu marido. Branagh, que também dirige, dá credibilidade a seu vilão, inclusive disfarçando bem a dublagem de suas falas em russo.

    Enfim, um reboot de um personagem que talvez se afirme melhor nos possíveis próximos filmes. Um filme de ação divertido e nada mais.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | O Filho de Deus

    Crítica | O Filho de Deus

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    Vésperas de Páscoa e Natal, as duas ocasiões preferidas pelas distribuidoras para o lançamento de filmes com mensagens cristãs ou obras sobre o próprio Jesus. Teoricamente, é nesse período em que muitos dos que se denominam adeptos ao cristianismo, mas quase não se lembram do fato, trazem à tona a suposta admiração que nutrem por este personagem histórico e seus feitos registrados e conhecidos por meio dos evangelhos da Bíblia Sagrada.

    Na cronologia da sétima arte já tivemos boas películas sobre o ícone religioso. Nicholas Ray trouxe O Rei dos Reis em 1961. O mesmo rigor formal e habilidade técnica, testemunhados em sua obra-prima Juventude Transviada, podem ser encontrados neste relato honesto da história narrada pelo Novo Testamento. Contando com a presença de Orson Welles como produtor e narrador da obra, este é, indubitavelmente, o melhor filme sobre Cristo já lançado. Mas temos também a versão contada pelo italiano Franco Zeffirelli (A Megera Domada), que foi responsável pelo material mais extenso sobre a vida do Filho de Deus, chegando a lançá-lo como minissérie, e somente depois relançando-o numa montagem alternativa, e ainda assim enorme, como longa-metragem. Ninguém mais ninguém menos do que Martin Scorsese também debruçou-se na análise do personagem, e desta surgiu em 1988 A Última Tentação de Cristo, outra ótima obra que, se não abrange todos os períodos da vida de Jesus, esbanja elementos de seus momentos mais emblemáticos, e com toda a competência esperada do diretor de Taxi Driver e Touro Indomável. Mel Gibson, por sua vez, matou (inclusive literalmente) vovozinhas de tristeza nas salas de cinema ao registrar toda a ultraviolência (e nada mais do que realista) na abordagem do período denominado como A Paixão de Cristo, também nome do filme (que ficou mais conhecido como A Paixão de Cristo de Mel Gibson). Falada em aramaico, a película é corajosa e traz um “quê” fidedigno de um novo e eficaz olhar sobre a desgastada história adaptada tantas vezes de forma rasteira por cineastas pouco talentosos no intervalo entre A Última Tentação e A Paixão.

    E, agora, eis que surge O Filho de Deus, dirigido por Christopher Spencer. Quem é este? Famoso por seus documentários no canal National Geographic e sem nenhum longa-metragem de ficção no currículo. E é exatamente esta completa inexperiência em dirigir uma história que Spencer exala em todos os insuportáveis e intermináveis 138 minutos de projeção. Em tela, o que parece é que o cineasta reuniu manuais e manuais dos mais batidos recursos cinematográficos e decidiu utilizar todos de uma vez. Então não falta nenhum dos inúmeros clichês que já não funcionam recorrentemente e soam piores ainda na readaptação de uma história tantas vezes já contada. Temos narração em off mal utilizada, que serve apenas para costurar os buracos do péssimo roteiro; flashbacks (apenas um dos elementos da terrível montagem do filme); diálogos expositivos; panorâmicas e mais panorâmicas que enfatizam os absurdos cenários digitais desenvolvidos para a obra; trilha sonora que pontua cada nova palavra dos personagens –  e quase ordena: “emocione-se com Jesus”, “tenha raiva dos Romanos”, “atente-se para as atitudes de Judas, ele é o traidor” –; cenas em slow com o acompanhamento da edição de som para causar “maiores” e previsibilíssimos impactos – a pedra que cai no chão e é acompanhada por um som de canhão disparando, a cruz que é derrubada enquanto Jesus cai lentamente e novamente ouvimos um estrondo grave. E, realço, tudo isso acontecendo diversas vezes em um filme com mais de duas horas de duração.

    E o que mais assombra na longa obra do Spencer é que não existe NADA de novo, a não ser o fato de Maria Madalena também ser mostrada, desde o início, como uma seguidora de Jesus, algo que o cinema, por vezes, não quis mostrar. A não ser por esse fato, O Filho de Deus é um mais do mesmo piorado à milésima potência. Jesus aparece como um Rockstar da Galiléia, bonitão, com um sorriso no rosto, realizando mágicas – que é como soam os milagres nas mãos do péssimo diretor – e com as criancinhas correndo atrás dele, gritando seu nome e pedindo autógrafos (ok… esse último eu inventei, mas não me surpreenderia caso acontecesse). Baixo orçamento ou não – e não acredito que os 22 milhões de dólares gastos na produção sejam baixo orçamento – nada, e faço questão de repetir, NADA justifica o desleixo com os efeitos especiais e com a direção de arte do longa. A introdução do filme, com cenas que vão desde a criação do mundo ao nascimento de Cristo, já mostra a baixa qualidade do que será visto a posteriori. A estrela de Belém… o figurino dos Reis Magos… A tomada panorâmica de Jerusalém… O interior dos templos judaicos… Tudo artificial e completamente “incrível”. Parece que alguém brincou de ser supervisor e designer de efeitos especiais e chamou um amigo para a brincadeira pra se fazer de diretor de arte.

    Como dito anteriormente, o roteiro é péssimo, forçando o espectador a manter uma empatia com o protagonista, interpretado pelo fraco ator português Diogo Morgado, e seus discípulos, que alternam atuações risíveis a vergonhosas. Os diálogos abusam da obviedade e acompanham o completo desinteresse das cenas cada vez mais insuportáveis da projeção. O diretor da obra não consegue concluir uma cena sem que seus cortes transmitam a enorme sensação de que estamos vendo uma obra displicente, sem nenhum apuro técnico, nem ao menos uma revisão do material final. Será que ninguém da produção notou os drásticos erros de continuidade nas cenas da multiplicação dos pães e peixes, ou até mesmo no momento em que o povo escolhe Barrabás a Jesus. Inconcebível.

    E o mínimo esperado, o sofrimento do Filho de Deus nos transmitindo algum tipo de emoção, não acontece. Talvez por A Paixão de Cristo de Mel Gibson ter retirado de nós quase todo arroio sentimental que teríamos em relação às chicotadas ou às marteladas imputadas ao personagem, ou talvez por nova incompetência da obra (que é, na realidade, a tese mais provável), as cenas “de sofrimento” são apenas isso: sofríveis; assim como o resto do filme, que se encerra numa tentativa de transmitir esperança, mas faz o contrário: nos assusta quanto à qualidade das próximas adaptações de conteúdo religioso que estão para estrear neste e no próximo ano. Que ao menos não contem com a direção de Christopher Spencer, verdadeira mostra de como não realizar um longa-metragem.

    Texto de autoria de Rodrigo Rigaud.

  • Crítica | X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido

    Crítica | X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido

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    A carreira de Bryan Singer se aproximava perigosamente da de seu contemporâneo Peter Jackson. Ambos tiveram um começo bom, com primeiros filmes de sucesso relativo, e que depois encabeçaram franquias de milhares de fãs, ainda que em X-Men, Singer dispusesse-se de muito (mas MUITO) menos orçamento do que Jackson angariou na trilogia O Senhor dos Anéis. Após ambos saírem de sua zona de conforto, insucessos vieram, já que King Kong, Um Olhar no Paraíso, Operação Valquíria e Jack, o Caçador de Gigantes não foram produções ruins necessariamente, mas ficaram muito aquém das expectativas dos estúdios. Em comum entre os dois estaria o retorno às franquias que os projetaram ao estrelato, mas diferentemente de seu igual, Singer logrou êxito ao falar dos seus conhecidos personagens, até porque sua vida pessoal o credencia a falar de excluídos. A segregação que sofreu por ser judeu e homossexual certamente é semelhante ao sofrimento mostrado em tela com a raça de homo superior caçada em 2023.

    O núcleo dos personagens “veteranos” é secundário, ainda que seja esta realidade a que origina o plot principal, pois como visto na publicação de Claremont e Byrne, o futuro dos mutantes e de seus simpatizantes é sombrio, com muitas referências visuais a Exterminador do Futuro de James Cameron  que por sua vez jamais assumiu a influência da história em sua obra. Kitty Pryde, personagem de Ellen Page, lidera um dos poucos grupos de resistência, e, por meio de uma mutação secundária (estigma adotado nas revistas X nos idos dos anos 2000), consegue transportar para um passado recente a consciência dos outros mutantes ao seu corpo. A Ninfa (ou Lince Negra), Robert Drake, o Homem de Gelo (Shawn Ashmore), e outros mutantes, vivem a fugir dos Sentinelas, até que recebem uma visita do que sobrou dos X-Men, Xavier, Magneto, Tempestade (Halle Berry) e, claro, Wolverine, interpretado por Hugh Jackman. O plano em conjunto é retornar ao passado através de Xavier para que este impeça Mística (Jennifer Lawrence) de assassinar Bolívar Trask, criador dos robôs caçadores. A saída do roteiro foi deveras inteligente, uma vez que a trama de Robert Kelly já havia sido descartada pelo próprio diretor, em 2000.

    Uma grande fonte de reclamações dos fãs relaciona-se à cronologia da franquia nos cinemas. Para todos os efeitos, o trabalho feito por Mathew Vaughn é sim um reboot que obviamente leva em consideração alguns pontos da história dos filmes de Singer. A Casa das Ideias sempre menciona que os quadrinhos Dias de Um Futuro Esquecido faz parte de uma realidade alternativa. Tais elementos podem ser encarados como problemas, mas para quem está acostumado a consumir quadrinhos mensais e tem de engolir novos recomeços a cada cinco anos, e claro, com conteúdos muito mais incongruentes, as concepções dentro do filme são de fácil digestão, até porque o foco maior é a continuação da trama inciada nos anos 60. Os dois grupos de mutantes liderados por Charles Xavier (James McAvoy) e Erik Lensher (Michael Fassbender) foram dissolvidos, e as causas dos eventos, muito ligadas ao aparentemente contido Bolívar Trask, são aos poucos mostradas em tela. Protagonizado pelo ótimo Peter Dinklage, Trask é um cientista que aparentemente busca a sobrevivência dos humanos, mas que impinge a muitos mutantes experimentos semelhantes aos que os nazistas realizavam com judeus. Obviamente, as experiências genéticas feitas por Trask causam ódio em Mística, que via seus iguais serem exterminados, o que a faz se transformar em uma autêntica máquina de matar suas cenas de ação são de um primor visual ímpar.

    O foco emocional é todo voltado à crise existencial de Xavier nos anos 70. O Professor X volta a andar graças a uma droga criada por seu então lacaio Hank McCoy (Nicholas Hoult), substância essa que reprime os poderes do Doutor, assim como seu ideal de querer mudar o status quo por meio do pacifismo. Ele é mostrado como um homem deprimido, resignado e desesperançoso, uma nuance pouco explorada nos quadrinhos, mas plenamente condizente com a época, visto que os anos 70 foram de muita decepção para os americanos, basta lembrarmos do Vietnã. Xavier quer interromper seus poderes por não aguentar mais ouvir em sua mente as vozes e as lamúrias das pessoas, além, é claro, de viver da culpa por ter perdido seus alunos e companheiros em lutas anteriores.

    Já Magneto também estava de mãos atadas, encarcerado, metros abaixo do Pentágono, acusado de um crime terrorista que não havia cometido. Sua fúria aumentou mais, a despeito até de sua postura mais calma quando reintroduzido. A ideologia presente nos primeiros discursos de Malcolm X torna-se ainda mais flagrante quando são analisadas as ações de seu passado em comparação com as de sua contraparte do futuro. Mas ambas as encarnações de Erik demonstram um poder magnânimo, algo que Singer ainda não podia mostrar antes nos filmes anteriores, talvez pela falta de verbas.

    Mesmo com tudo isso, os melhores momentos de Magneto são as discussões que envolvem Raven, Charles e ele, formando um triângulo amoroso/ideológico de cunho emocional e tocante, visto que todos se sentem traídos, até havendo razão em se sentirem assim. Dos embates o mais emocionante certamente é o primeiro encontro dos dois antigos amigos, precedendo uma sequência de ação das mais engraçadas, que, mesmo com o alívio cômico de Mercúrio (Evan Peters) — uma participação ótima —, consegue manter o tom emotivo e simbólico do que seria aquela amizade milenar e do quão ambos valorizariam um ao outro pela causa mutante.

    Pela primeira vez, em todos os filmes dos mutantes, Wolverine não é o protagonista. Porém, sua importância é obviamente gigante, fazendo a ponte para o encontro dos protagonistas, uma escada na maior parte de sua inclusões como personagem. Tal escolha não impediu que Singer registrasse o Carcaju expondo suas nádegas, dando vazão a (mais) fantasias de leitores talvez a questão esteja no contrato de Jackman com a Fox. Iniciada em X-Men – Primeira Classe, a pecha de transformar os filmes da franquia X-Men em películas em que se divide o protagonismo é cada vez mais solidificada, assim como o enfoque da questão social, deixada de lado em X-3 e nos spin-offs. Os assuntos mais interessantes retratados nas grandes histórias de mutantes são estes, o paralelo com as ideologias, a discussão a respeito do preconceito e até aonde esta guerra pode ir.

  • Crítica | Malévola

    Crítica | Malévola

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    Originários da tradição oral, os contos de fadas caracterizam-se um dos gêneros mais antigos da literatura. Histórias consideradas, hoje, como infantis foram, em séculos passados, carregadas de violência e eram transmitidas culturalmente como parte do folclore local, motivo que justifica diversas versões para uma mesma narrativa. Durante os séculos, escritores como Charles Perrault, Jean de La Fontaine e os Irmãos Grimm foram responsáveis por documentar a tradição popular da época em que viveram, modificando as histórias conforme suas particularidades regionais ou alterando suas estruturas, deixando-as mais amenas e familiares.

    Nas telas, o estúdio de Walt Disney produziu diversos clássicos animados com base nestas histórias, originando novas versões narrativas – que muitos consideram definitivas – de contos como Branca de Neve e os Sete AnõesA Pequena Sereia, Cinderela e A Bela Adormecida. Filmes que trouxeram prestígio à empresa e formaram as modelares princesas Disney.

    Seguindo o sucesso de Alice No País das Maravilhas, cuja adaptação cinematográfica em live-action trouxe à produtora um retorno financeiro alto em 2010, a obra A Bela Adormecida, de 1959, ganha uma nova versão. Dessa vez, a história foca o lado da fada Malévola, que amaldiçoa a princesa Aurora.

    A história de Malévola utiliza a base do clássico citado, pervertendo-o ao mostrar a visão da antagonista. Malévola é uma pequena fada poderosa que vive em uma floresta encantada situada ao lado de um reino. Em sua infância, conhece o garoto Stefan, com quem mantém a amizade até a adolescência, quando se afastam um do outro.

    Malévola torna-se uma das fadas mais poderosas do reino e guardiã da floresta dos ataques humanos que desejam destruir o local, tido como ameaçador. Após uma dessas batalhas, o Rei, ferido e prestes a morrer, exige o aniquilamento da fada e coloca o trono à disposição de quem matá-la. Almejando o cargo de rei, o outrora menino Stefan reencontra-se com sua antiga amiga e usurpa-lhe as asas.

    Como uma costumeira produção Disney, faltam elementos que explorem a transformação da personagem de maneira adequada. Ao ser traída pelo amigo memorial da infância, não há nenhuma personagem em cena que produza um diálogo com a futura vilã. Ao público, cabe inferir sua transformação na estranha cena em que, caminhando pelo reino outrora brilhante, o local começa a se tornar lúgubre e ameaçador. Até a transformação que alinha a personagem com a história oficial, o roteiro de Linda Woolverton  que também roteirizou a recente adaptação de Alice no País das Maravilhas, e as animações O Rei Leão, A Bela e a Fera, entre outras  parece apressado, apresentando um apanhado ocasional de cenas que não justifica o porquê Malévola foi uma fada injustiçada.

    A personagem acrescenta tonalidades ao costumeiro preto e branco do estúdio. Uma constatação de que os tempos de outrora  com o costumeiro maniqueísmo Bem versus Mal   estão extintos, o que prova que o público não deseja mais ver uma tradicional fábula sobre a princesa que espera o amor perfeito. Sob este aspecto, a Disney luta para evidenciar que reconhece as mudanças da sociedade, modificando o paradigma narrativo e rindo de si mesma  como Encantada —, tornando-se capaz de produzir histórias de princesas que atendam às novas exigências dos espectadores.

    O sentimento de traição que se manifesta em Malévola é o elemento que causa a maldição  sono eterno até que um amor verdadeiro a desperte — à recém-nascida Aurora. Uma das mais grandiosas cenas das animações Disney que a nova versão honra com pompa e mantém a mesma dimensão épica, fato que comprova que Angelina Jolie é a parte mais consistente da produção.

    Ainda que o roteiro seja mediano, sua interpretação passa  nuances necessárias de uma transitória personagem dúbia. Sem exagerar nos trejeitos de vilões  que os deixam caricatos —, a atriz demonstra que entrou em cena para se tornar uma bela encarnação da antagonista.

    Se a fotografia e o ambiente à meia-luz são esteticamente belos a cada fotograma, o contrato feito com o público, em relação à veracidade narrativa, falha na maior parte do roteiro. Tentando enfocar em demasia o lado sombrio de Malévola, outras personagens importantes à trama se tornam simplistas. As três fadas-madrinhas, que criam Aurora até os 16 anos da princesa, parecem despropositadas tanto como personagens quanto com importância à história. O exagero dos efeitos especiais fazem as fadas  vistas na maioria das vezes em tamanho diminuto — parecerem pequenas bonecas voadoras e não seres de um mundo maravilhoso. Um desequilíbrio que lembra o excesso estético e agoniante da Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton.

    Quando a personagem Aurora encontra-se com Malévola, não há nenhuma empatia pela mocinha. Em parte porque Ellen Fanning não tem a  mesma presença cênica de Jolie, e também porque nem em cenas solo consegue roubar um pouco de atenção para si.

    A própria carência narrativa revela uma questão maior que equipara o desfecho dessa produção com o de Frozen – Uma Aventura Congelante. Tal semelhança faz questionar até onde a Disney estaria disposta a modificar sua estrutura narrativa, visto que, em menos de um ano, entregou duas produções com a mesma lição moral que substitui o suposto amor entre príncipe e princesa e faz do sentimento fraternal ou maternal o gatilho que quebra a maldição. Mesmo ciente de que o público atual exige um novo conceito nos filmes de princesas e reinos encantados, a empresa não parece desejar o desenvolvimento de novas saídas que não uma outra fórmula a ser repetida mais de uma vez.

    Com um roteiro fraco diante de um rico material, não há consistência na história que produza um ótimo filme familiar. Pena para Jolie, que entra em cena com vontade de fazer um grande desempenho, mas não encontra o ambiente necessário ao desejo de ser a Malévola definitiva.

  • Crítica | Confissões de Adolescente: O Filme

    Crítica | Confissões de Adolescente: O Filme

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    Travessia obrigatória do mundo adulto, a adolescência é a fase transitória com maiores lembranças nostálgicas futuras. Diante das transformações do mundo interno em contraste com as obrigações que começam a surgir, além de uma nova compreensão sobre o que o cerca, o jovem representa essa revolução indecisa e confusa por natureza.

    Baseado na obra de Maria Mariana e na série homônima da TV Cultura, Confissões de Adolescente, filme dirigido por Daniel Filho – que também produziu a série –, apresenta o universo conhecido das quatro irmãs, situadas em uma versão mais contemporânea. Foca tanto o público-alvo jovem quanto os adultos nostálgicos, apelo que se funda na história e na própria adolescência.

    O filme inicia-se simulando o estilo documental, presente na série televisiva, em que jovens apresentam depoimentos diretamente para a câmera. A diferença é que, pontuando a história nos dias de hoje, a montagem das cenas emula as janelas do sistema operacional da Microsoft. Mesmo modificando o modo como as personagens são apresentadas, suas angústias continuam as mesmas. A família das quatro irmãs entra em cena novamente mas com novos nomes diferentes do seriado. Diante da idade do grupo, que abrange dos 14 aos 20 e poucos anos, o roteiro de Matheus Souza tenta manter uma coerência entre as situações vividas por cada idade, e, quando possível, destacar outras histórias das personagens que circundam as principais.

    A paleta de personagens apresentados em cena produz reconhecimento imediato no público. São adolescentes típicos representando seus papéis entre amigos inseparáveis, paixões platônicas e os primeiros namoros que começam a surgir, emergindo maiores experiências nesta fase. Pela dimensão ampliada de estilos em cena, a história desenvolve-se regularmente quando deseja ser mais profunda nos dramas adolescentes. As cenas se enchem de melodrama dentro de um roteiro que deveria discutir tais aspectos com maior naturalidade.

    Tanto no excesso dramático quanto no cômico, há momentos que soam inverossímeis até mesmo para uma trama juvenil, ainda que, em certas situações, ela saiba dialogar de maneira crítica com outras histórias. Como nas cenas em que um garoto apaixonado aceita o estranho conselho do amigo de tentar parecer misterioso como o vampiro da saga Crepúsculo para conquistar a garota. Apesar do exagero, o recurso se torna sátira da série adolescente, demonstrando o quanto, em um conceito mais realista, é patético um personagem plano que, envolto em mistério e purpurina, tenta seduzir uma mortal.

    Diante de muitas referências voltadas ao riso, quando o assunto da gravidez indesejada vem à tona não há dimensão dramática que se sustente, ainda que a interpretação do excelente Cássio Gabus Mendes  sobrinho de Luis Gustavo, o mesmo que defendeu o papel na série  como o pai das irmãs passe a credibilidade e o stress de ser progenitor de quatro adolescentes em uma efervescente Rio de Janeiro. Além de sua participação pontual em cena, há um monólogo dedicado a sua infância que mostra as praias e as mudanças da cidade. Porém, as belas cenas parecem deslocadas do roteiro, parecendo mais um cartão postal vendendo o município do que um elemento propriamente importante à trama. Faz-nos relembrar que não é a primeira vez que uma produção de Daniel Filho abusou do senso de propaganda  lembrem-se do dirigível de A Partilha.

    Sem estrutura para assuntos de maior densidade, a trama funciona quando na leveza, no reflexo da sensação pueril e inconsequente permitida pela adolescência. Além de brindar o público com doses de nostalgia através da presença de Maria Mariana, Deborah Secco, Georgiana Góes e Daniele Valente — quarteto central da série televisiva —, no filme, há um pequeno sarau musical que surge após o desfecho da obra: chamando os créditos, a canção dadaísta de Djavan, Sina, conta com a participação de todo o elenco no recital compartilhado.

  • Crítica | O Palácio Francês

    Crítica | O Palácio Francês

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    A trajetória de um homem comum que acaba caindo de paraquedas em um cenário político caótico: esta seria uma boa definição para o mote principal de O Palácio Francês, novo filme de Bertrand Tavernier. O começo da fita mostra a rotina de Arthur Vlaminck (Raphael Personnaz), um dia antes de ele ser admitido no Ministério de Relações Exteriores. O curioso é que o personagem é mostrado como um intruso, um sujeito inseguro e inadequado onde quer que esteja. Em casa tem dificuldades em se vestir, e já no primeiro contato com seu empregador, o ministro Alexandre Taillard de Vorms (protagonizado por Thierry Lhermitte), nota-se que seu ofício não será fácil, dada a excentricidade da figura e a natureza do trabalho.

    Os esforços de Arthur são os de confeccionar o discurso que o ministro fará em Berlim, mas atingir o ápice disso se mostra uma tarefa hercúlea, uma vez que o texto nunca está bom o suficiente. O ministro recusa o primeiro tratamento logo de início sem sequer ler o conteúdo, depois sua rotina passa por submeter as cópias aos conselheiros regionais, que reafirmam  cada um à sua maneira  que o ofício de Arthur será muito difícil.

    Os belos cenários do interior do palácio contrastam com a iluminação chapada, que ajuda a representar o já citado deslocamento de Vlaminck, exibindo-o no limbo entre a vida normal e as sandices do ministro Vorms. As cores também têm um papel preponderante na trama, mostrando algumas das diferenças básicas entre os homens comuns e os membros dos ministérios. Ambientes acinzentados não têm qualquer cor dissonante, exceto as cadeiras com cores vivas (vermelhas) dos “escolhidos”, diferindo visualmente do restante do ambiente, o que mostra que eles estão em outro nível de relevância.

    A capacidade humorística da película é muito diversa da que o público médio brasileiro espera, uma vez que ela se utiliza de uma sutileza atroz que varia facilmente entre a suposta monotonia do serviço e a grosseria e sociopatia de quase todos os membros do gabinete. Mesmo estes comportamentos pouco usuais são discutidos ou explorados, é como se toda a estranheza fosse natural a todos, menos ao público.

    A hostilidade, a misantropia e o desprezo ao próximo são questões abordadas pelo roteiro de Christopher Blain e Abel Lanzac. É curioso que alguém, principal responsável pelas boas relações de sua pátria com as outras, seja tão pitoresco e maravilhosamente egoísta e individualista, além de ser tão capaz de angariar o ódio de quem ainda não conhece o seu modus operandi. O modo como o ministério é tratado assemelha-se demais a um teatro do absurdo.

    A definição do discurso é levada até os minutos finais, o que mostra a clara intenção de gerar um suspense, ao menos no drama do herói da jornada. Em uma análise atenta, nota-se que a imprevisibilidade do ministro funciona como paralelo com as dificuldades das relações entre as nações, ainda mais em tempos modernos como os atuais. O disparate das opiniões de Vorms é uma alegoria à grande Babel caracterizando as conversas entre os líderes do cenário político mundial. Não há muito espaço para gargalhadas na comédia, mas há um cuidado enorme em manter uma fina camada de ironia, especialmente nos closes rápidos dos rostos dos principais atores, ressaltando a falta de normalidade destes. Até as piadas repetidas causam risos, ainda que alguns sejam muito constrangedores. Por mais inesperado que pareça, ao final tudo dá certo, e a fala do ministro é muito politicamente correta, funcionando muito bem na reunião de cônsules. O riso contido estoura no anúncio dos créditos ao mostrar os inúmeros erros de gravação, e claro, brincando com a dicotomia entre as versões do misantrópico tratamento do ministro aos seus e da sua oração em público.

  • Crítica | No Limite do Amanhã

    Crítica | No Limite do Amanhã

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    A Terra foi invadida por alienígenas, os Mimics, que até o momento estão levando a melhor. O Tenente-coronel Bill Cage (Tom Cruise), assessor de imprensa do Exército, vê-se obrigado a juntar-se às Forças Armadas e ir para o front às vésperas de uma batalha decisiva. Sem saber o motivo, fica preso no tempo, acordando no quartel a cada vez que é morto em combate. Num de seus replays, conhece Rita Vrataski (Emily Blunt), agente das Forças Especiais famosa por sua participação decisiva na batalha anterior ao exterminar uma grande quantidade de aliens. E, a cada reboot, Cage acumula mais informações que o auxiliam a entender o que está acontecendo.

    O roteiro foi baseado no livro All you need is kill, de Hiroshi Sakurazaka, ainda sem tradução no Brasil. Apesar disso, é impossível não pensar em outras produções em que o protagonista revive o mesmo dia ou algo semelhante. Feitiço do Tempo é a lembrança mais óbvia, onde Phil (Bill Murray) acorda todos os dias no Dia da Marmota. Outra lembrança mais recente – e também mais similar em termos narrativos – é Contra o Tempo, em que Colter Stevens (Jack Gyllenhaal), acorda no corpo de um desconhecido e é obrigado a reviver os minutos que antecedem um acidente de trem causado por uma explosão, até que consiga localizar o autor do atentado.

    Enquanto em Feitiço do Tempo a repetição apenas acontece, sem qualquer preocupação em elucidar como ocorre e com uma motivação que pende para o aspecto sentimental, em Contra o Tempo a motivação é explicitada logo nos primeiros minutos, e ao final é explicado como isso ocorre. Sob esse aspecto, No Limite do Amanhã, dirigido por Doug Liman, é muito semelhante. Em outras perspectivas também, como não poderia deixar de ser, já que o fio condutor é similar. A cada restart, Cage aprende mais detalhes, consegue ir mais longe em suas incursões no campo de batalha, até que numa delas, ao contar a Rita sobre sua situação, ela lhe diz: “Venha me procurar quando acordar!”. E assim, ao encontrar Rita e Dr. Carter (Noah Taylor) pela manhã, finalmente descobre como e por que o dia reboota a cada vez que ele morre.

    Apesar da ideia já batida, o roteiro consegue segurar a onda e manter o ritmo do filme. Quando começa a ficar repetitiva e o público começa a achar que vai ser apenas mais do mesmo, um novo elemento é adicionado à trama, ou momentos de humor inevitáveis, causados pela repetição dos dias, dão aquele “respiro” merecido ao espectador. Felizmente, os roteiristas não erraram a mão e dosaram bem essas intervenções cômicas em que o principal alvo é o superior de Cage, Sargento Farell (Bill Paxton). O ritmo da narrativa se mantém, apesar de uma ou outra “barriga”, e consegue, auxiliado por uma boa montagem, manter a atenção do espectador do início ao fim.

    O elenco está ok, sem nenhuma performance extraordinária, mas todos estão bem entrosados e bem convincentes. Cruise sempre encarnando o bom-moço, desta vez possui alguns mínimos deslizes de caráter, coerentes com um militar acomodado em sua posição longe do front e capacidade nula de combate. Blunt se esforça como a agente motherfucker, já que seu porte físico é pouco condizente com sua fama – o exoesqueleto utilizado pelos soldados justifica, em parte, suas habilidades, mas não o suficiente. Os demais não se sobressaem, mas também não fazem feio.

    Boa fotografia, bons efeitos especiais, 3D dispensável. Enfim, diversão garantida, apesar do final meio Disney demais. Mas depois de aceitar o modo como o tempo estava sendo rebootado, acatar o happy end não demanda tanto esforço assim.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | O Passado

    Crítica | O Passado

    O-Passado

    O Passado, no Brasil  inicia-se mostrando, através de imagens e da ausência de vozes, o distanciamento entre duas pessoas, antes mesmo de explicitar o nível de relacionamento de ambos. Marie (Bérénice Bejo) busca no aeroporto o ex-marido, Ahmad (Ali Mosaffa), que volta do Teerã após longos quatro anos que o distanciaram da mulher. O tema, controverso demais na cultura muçulmana, é novamente abordado por Asghar Farhadi, realizador do recente contestador e vencedor do Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira, A Separação.

    Ao chegar à casa que deveria ser sua, Ahmad parece um espécime de outro planeta. Aqueles que deveriam saudar a sua chegada o veem com ressalvas, e ele percebe que a rotina da família segue muito diferente daquela que ele conhecia. Mesmo já sabendo o motivo que fez com que sua esposa o chamasse de volta a França, ouvir a sentença dos seus desejos em uma frase previamente formada dói bastante, o que faz com que olhe internamente para si, possivelmente para realizar uma análise sobre como tal situação se desenhou. Os detalhes nos cômodos vazios e em reforma explicitam a tentativa de construção (ou reconstrução), que visam um novo lar, uma nova vida para Marie e sua família, obviamente sem a presença de Ahmad.

    Mas a trajetória do homem resoluto inclui situações de difícil resolução, especialmente quando ele encara Lucie (Pauline Burlet), a filha adolescente de Marie, que se mostra muito decepcionada com a passividade dele em ceder o divórcio, da mesma forma com que demonstra repúdio pelo novo chefe da família. Ahmad tem de viver sob o mesmo teto com Samir (Tahar Rahim) por alguns dias, onde até afazeres domésticos, como o conserto de canos, são disputados, e realizados não por meio de ações enérgicas, mas por olhares de reprovação que não causam mal a priori, mas geram um mal-estar visível.

    A perene chuva, que cai perto de Ahmad após ele saber as “novidades”, simboliza o seu estado de espírito diante do novo paradigma familiar imposto e de sua impossibilidade de mudar o quadro que, aos poucos, ganha contornos definitivos. Este incômodo é igualmente presente, pois devasta sua autoimagem e finalmente explicita a sua incapacidade de mudar o desenrolar dos acontecimentos, pois as capacidades de Ahmad estão aquém de realizar as mudanças que deseja para si. O tema apresentado no filme anterior de Farhadi é reiterado neste, mas por meio de detalhes mais diferenciados e ramificações ainda mais sérias, ainda que as consequências da quebra da moralidade sejam igualmente superlativas.

    É curioso como os infantes conseguem proferir sentenças muito mais sóbrias do que os seus ancestrais, vendo de forma sincera o pesar da morte e a crueldade inerente à vida. Eles são livres das amarras do conservadorismo e da preservação ordeira, são quase puro instinto e dão vazão aos sentimentos de modo humano e natural, preocupando-se com o que realmente vale. Mas esse instinto não é sinônimo de inocência ou de remição de culpa; não há personagens perfeitos, tampouco alguém pelo qual o espectador torça sem qualquer ressalva. As pessoas envolvidas neste emaranhado emocional são propensas a erros e fazem questão de demonstrá-los em muitas oportunidades.

    A reticência de Ahmad, presente em seu olhar desde o início da película, justifica-se quando ele percebe que sua interferência fez muito mais mal a sua antiga família do que ele jamais poderia imaginar. Cada boa ação do personagem tem um castigo específico e uma consequência pesada e de proporções distintas para cada um dos indivíduos envolvidos nesse arranjo confuso. Seu discurso é ouvido por todos, já que a maioria dos personagens o vê como um homem sábio, mas ainda assim ele é somente um teórico que conjetura hipóteses sobre a saúde familiar padrão sem jamais ter sido um pai biológico. O protagonista se vê convidado a interferir na vida daqueles que já não são mais seus próximos, ainda que tal apelo seja movido pelo revanchismo de Marie  segundo a conclusão a que o homem chega.

    O protagonismo da história é dividido entre alguns dos personagens, cujas trajetórias possuem equivalência em importância dramática. Apesar de não terem o mesmo espaço em tela,  inclusive aqueles que não estão presentes para se defender, partilham os pecados da negligência e do egoísmo. Algumas das discussões mais constantes são quais os limites em que a dor justifica um ato passional e quais são as consequências éticas destes atos, uma vez que eles interferem diretamente na existência e nos sentimentos humanos. Mais uma vez a sensibilidade é algo preponderante na obra de Asghar Farhadi, que consegue equilibrar emoção e a discussão da hipocrisia intrínseca à sociedade.

  • Crítica | Bullet

    Crítica | Bullet

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    Ainda na esteira do já clássico filme B Machete, Danny Trejo usa seu recém adquirido “arquétipo” para estrelar algumas fitas de ação de baixo custo. O preço estimado de Bullet, de Nick Lyon, diretor acostumado com tais produções, é de apenas 3 milhões de dólares, o que logo faz com que o nível de exigência com a película não seja muito alto.

    Trejo vive Frank Bullet Marasco, um mal encarado mexicano que aparece em um primeiro momento negociando cocaína e assassinando policiais sem qualquer receio, e logo depois é introduzido no mundo das lutas clandestinas, onde dois homens se enfrentam dentro de uma jaula e a multidão em polvorosa assiste ao massacre, cuspindo, extrapolando os níveis de testosterona e apostando no lendário combatente. Não há muito o que pensar, não há muito espaço para nuances na trama, aparentemente, até que após a malfadada luta, a lente flagra um distintivo policial, que seria a justificativa para total falta de medo mexicano. A versatilidade do policial é surpreendente, pois além de ser um ameaçador tira latino, ainda é um excelente interrogador, que busca resolver a questão de uma trama complicada, envolvendo um facínora, filho do dono de cartel, Manuel Kane (Eric Estabari), cuja execução é retardada em virtude de um rapto da filha do governador.

    A trama pode parecer pueril, e ela é. O roteiro de Lyon, Ron Peer, Byron Lester e Mathew Joynes parece ser retirado dos melhores filmes de Steven Seagal ou Jean-Claude Van Damme dos anos 90, mas com as arestas aparadas e sem toda a gordura de pieguice típica das fitas antigas, acrescido é claro de uma edição moderna e muito mais bem elaborada. Os vilões são caricatos, especialmente Carlito Kane (Jonathan Banks, em nada parecido fisicamente com seu filho), pois é o mais estiloso e espirituoso destes, até a escolha do seu figurino é pontual e acertada, ele sequer precisa de uma maior construção de caráter para ser carismático, a essência do tosco está inserida em si. A trilha sonora não é algo extraordinário, mas encaixa perfeitamente nas cenas de perseguição – o único pecado neste quesito é total falta de suspense quanto a vulnerabilidade de Bullet, pois como John Matrix e Mario Cobretti, ele permanece indestrutível.

    Como não poderia deixar de ser, a vida de Bullet não é perfeita e ele parece ter sido um viciado em determinado momento da vida, além de um pai ausente para Vanessa (Tinsel Korey), e tenta corrigir isso, cuidando de seu pequeno neto, Mario. Ele cai em uma armadilha das mais mal urdidas e tem o menino raptado, forçando-o a se lançar em uma caçada frenética aos Kane, tendo que lidar com a recaída de sua filha nesse ínterim, e também, com a desconfiança de seus superiores, que buscam a sua prisão, ordenada pelo governador, chantageado pelos bandidos, obviamente.

    A questão torna-se pessoal para Marasco, e piora quando ele é encarcerado e tem sua honra manchada, ao ser injustamente acusado de ser um matador de tiras, e decide pôr fim a burocracia do sistema, tencionando fazer justiça com as próprias mãos, sem esperar a autorização dos chefes. Ele consegue a liberdade, em troca de seu distintivo, e parte para a sua jornada.

    O já violento método de Frank piora, ele mergulha mais fundo na inconsequência de seus atos, constituindo em si um Dirty Harry ainda mais implacável na perseguição de seus alvos. Sua condição de brucutu é afirmada verbalmente, quando ele nega a ajuda de um amigo, dizendo que este é trabalho de um homem só – uma máxima do subgênero. O embate final é como os clássicos duelos de filmes western, aliado a uma fechadura sentimental, executada com música edificante. Não há nada demais na feitura do filme, e é óbvio que ele busca pegar carona em outras produções mais caras, mas dos produtos caça-níqueis, lançados direto para o mercado de home vídeo, Bullet é bem competente em sua proposta de ser um action movie descerebrado, ainda que se saturar de gordura ao vê-lo seja algo desaconselhável.

  • Crítica | Spawn: O Soldado do Inferno

    Crítica | Spawn: O Soldado do Inferno

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    No auge da popularidade do personagem, pelos idos de 1997, quando a Image já se fortaleceu o suficiente para bater de frente com a DC e Marvel, seria exibido nos cinemas do mundo inteiro a adaptação do personagem ícone da editora de Todd McFarlane. A abertura pobre já prenunciava o que seria a toada de todo o conteúdo de Spawn: O Soldado do Inferno, onde seria entregue o passado do personagem, ainda que neste “recordatório” não haja qualquer aprofundamento.

    O diretor, Mark A.Z. Dippé, tem o background de ser especialista em efeitos especiais, e seu foco narrativo é nesse quesito, mostrando um sem número de arrombos experimentais com um CGI dos mais vergonhosos – mesmo levando em conta a questão da precariedade de recursos da época. Há muitos fatos curiosos sobre o filme, entre eles um pôster, no lançamento em laser disc, com os dizeres: “The special effects movie event of the year!” – os tempos eram difíceis. O “melhor” deste quesito é o chefe do inferno, Malebolgia, que é o capeta no formato de um cachorro pequinês gigante de moicano grisalho.

    O roteiro também é de um primor inigualável, mostrando Al Simmons (Michael Jai White) como um chefe de família sentimental, que contradiz essa máxima sendo um soldado anti-terroristas, que se encarrega de assassinar muçulmanos malvados – nada muito diferente do que era retratado nos quadrinhos, mas nada que justifique uma exploração tão porca. Outro fato curioso é que, nos primeiros arcos do personagem, haviam escritores laureados, como Moore, Gaiman e Miller, mas a escolha do enredo não passou por estas fases, que se não eram o melhor momento destes escritores, certamente garantiriam melhores situações que as apresentadas em tela.

    O elenco era bom, e tinha tudo para segurar a impossibilidade da trama, mas nem isso o fez. O primeiro nome destacado é o de John Leguizamo, o terceiro é o de Martin Sheen (que deve sentir mais vergonha neste do que em toda sua filmografia junto aos filhos, em paródias acéfalas), o casting é anunciado em meio a créditos em CGI, novamente uma demonstração tosca de efeitos visuais, imitando um vórtex de fogo. Os personagens são tão bem construídos quanto seu protagonista. Jason Wyyn (Sheen) é um chefe do crime dos mais canastras, a gostosa que o acompanha (a ainda muita jovem Melinda Clarke) é a autêntica mulher genérica que aprecia o perigo e brinca com tarântulas. Mas a cereja do bolo certamente é o vilão, que rouba a cena. O Violador de Leguizamo é a pior/melhor coisa do filme. Suas flatulências são compostas de fogo verde, ele profere piadinhas com sonhos (doce da padaria) cheios de esperma. Pouca coisa se salva, mas por incrível que pareça, a sua transformação nem é tão mal feita se comparada com o resto, o CGI quase se encaixa.

    O motivo da morte de Simmons é completamente jogado e a lógica é totalmente inexistente, numa emboscada sem pé e nem cabeça. Um outro momento clássico, é a transformação que Michael Jai White tem no comportamento de sua personagem, mudando do vinho para água assim que se deforma, mostrando que os deformados são necessariamente pessoas bobas e feias. Ele se torna um cara mal caráter de marca maior, que transformação. Interessante é a escolha do ator com nenhum talento dramatúrgico e incapaz de passar qualquer nuance de comportamento para a tela, seus dotes são unicamente ligados aos feitos físicos. Não é compreensível o diminuto volume de cenas com a máscara, até porque o rosto de White não é tão famoso – ainda mais quando o rosto está desfigurado graças às queimaduras.

    O guião é pavoroso principalmente por mostrar o capeta não sabendo desenvolver um plano decente para derrotar o exército divino, o filme eleva a máxima “Deus é Mais” a uma condição mais que sagrada e intransponível. As cenas de ação são muito ruins, com direito a show-off de arminhas infernais. O mentor é misterioso e é envolvido por uma luzinha verde que se destaca no escuro, além é claro de ser um servo infernal arrependido que mostra o bom caminho a Spawn. O ato final sinaliza para uma possível continuação, que felizmente não foi para frente. Spawn: o Soldado do Inferno é um legítimo filho do meio, produto condizente com a qualidade da produção da Image à época.

  • Crítica | X-Men: Dias de um Futuro Esquecido

    Crítica | X-Men: Dias de um Futuro Esquecido

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    Cronologia é algo divertido, mas complicado. Acompanhar os mesmos personagens ao longo de várias histórias e ver acontecimentos com consequências futuras são muito legais, mas os problemas não demoram a surgir. Além da necessidade de tudo estar amarrado e fazer sentido, o vício dos autores em revisitar o passado, recontar origens, adicionar mais detalhes ao background, invariavelmente leva aos famigerados furos da história. Nesse sentido, os X-Men são a franquia cinematográfica que melhor representa a mídia original, os quadrinhos. O mais recente longa dos mutantes chegou com a ambiciosa proposta de conectar a trilogia original, os filmes solo de Wolverine e o reboot não assumido X-Men: Primeira Classe. Se teve sucesso ou não, depende de como se avalia.

    A história não pode ser chamada de adaptação, pois é apenas inspirada livremente na célebre hq oitentista Dias de um Futuro Esquecido, de Chris Claremont e John Byrne. Num futuro próximo, o mundo foi devastado pelos Sentinelas, robôs criados para caçar mutantes mas que acabaram se voltando contra toda a humanidade. Revemos algumas figuras da trilogia num grupo comandado por Xavier e Magneto que basicamente foge e se esconde para sobreviver. A última tentativa desesperada é um plano de enviar a consciência de  para o corpo dele em 1973, data em que Mística assassinou Bolívar Trask, o criador dos Sentinelas, e foi capturada. O DNA da mutante foi a chave para os robôs se tornarem invencíveis. Logan precisará reunir as versões mais jovens de Erik e Charles (X-Men – Primeira Classe) para ter alguma chance de mudar o passado e salvar o futuro.

    Havia a expectativa de que Dias de um Futuro Esquecido consertasse ou ao menos tentasse explicar as discrepâncias entre os capítulos anteriores. Nesse aspecto, não se pode negar que o filme falhou miseravelmente: não só deixou de explicar os furos, como ainda adicionou mais alguns. Kitty Pride (Ellen Page) surge com outro poder além de se tornar intangível: mandar a consciência dos outros de volta no tempo (como raios alguém descobre ter um poder desses?). Muito melhor seria apresentar isso como uma evolução dos poderes do próprio Xavier, ou usar o personagem Forge construindo uma máquina. Charles recuperou seu corpo explodido em X-Men – O Confronto Final, Logan recuperou as garras de adamantium perdidas em Wolverine – Imortal, e sem nenhuma menção a esse respeito. A impressão é de que o cenário apresentado era um futuro da linha temporal de Primeira Classe, que POR ACASO continha elementos que lembravam a trilogia original, confirmando assim duas realidades distintas – algo que os produtores nunca admitiram.

    Superada essa falha, o núcleo futurista funciona muito bem. O peso dramático de um mundo pós-apocalítico é sentido perfeitamente. Estes X-Men agem como uma experiente unidade paramilitar acostumada a táticas de guerrilha. As cenas de combate contra os Sentinelas são ótimas, violentas e fazem bom uso dos poderes de todos os mutantes envolvidos. Além dos velhos conhecidos Kitty, Tempestade, Homem de Gelo e Colossus (pra variar, mudo como uma estátua), vemos pela primeira vez no cinema Bishop, Apache, Blink e o brasileiro com cara de mexicano Mancha Solar. Além disso, é sempre ótimo ver atores do calibre de Ian McKellen e Patrick Stewart, ainda que rapidamente.

    Pois a maior parte do história se desenrola no passado, confirmando que o filme é, acima de tudo, uma continuação de Primeira Classe. E o salto de 10 anos se mostra brutal: Xavier caiu numa depressão extrema, fechou a escola e debandou os X-Men, dos quais vários morreram, vítimas das experiências de Trask (Peter Dinklage, discreto e eficiente). Apenas o Fera permanece ao seu lado. Magneto foi aprisionado após seu envolvimento na morte de JFK. Mística atua como uma terrorista solitária lutando pela causa mutante. Logan cai no meio disso, e, com toda a sua finesse, terá que reuni-los. Aqui entra o gancho para a divertida e pontual participação de Mercúrio, com Evan Peters carismático como o herói nunca conseguiu ser nas hqs. Nada de muito original e revolucionário ao retratar a supervelocidade, mas as duas percepções (a do próprio velocista e a dos outros) foram mostradas de forma muito interessante.

    Numa história com tantos personagens, era fundamental ter foco em alguns e (infelizmente) sacrificar outros. Uma pena que o Fera (Nicholas Hoult) seja apenas um assistente/guarda-costas/capanga do bem de Charles, mas o roteiro de Simon Kinberg, Jane Goldman e Matthew Vaughn alcança um louvável equilíbrio ao centralizar as atenções em quatro mutantes. Hugh Jackman naturalmente tem destaque como o fio condutor da trama, mas não é nem de longe um protagonista absoluto – o que não deixa de ser uma surpresa; Jennifer Lawrence tem a chance de aparecer bastante de cara limpa (o que não é surpresa nenhuma) numa sólida atuação, aproveitando a importância colocada em sua personagem; Michael Fassbender tem uma participação sensivelmente diminuída em relação ao filme anterior, que era quase um “Origens: Magneto”. Mas o cara é tão bom que não precisaria nem de cinco minutos para mostrar isso. Sempre na linha entre vilão e anti-herói, Erik é aquele que não faz concessões, segue firme em sua convicção e mantém alianças de acordo com a conveniência.

    Mas o coração da história é inegavelmente Charles Xavier. Pela primeira vez na franquia, os holofotes se concentram nele, e o resultado é sensacional. Quase sempre retratado como uma rocha inabalável, dessa vez ele atravessa uma crise de fé, e temos a noção do quanto isso afeta os mutantes e por consequência o mundo inteiro. Não é fácil ser bom, honesto, herói e líder, e acreditar na proposta otimista (e ingênua) da coexistência pacífica entre humanos e mutantes e ainda assim continuar lutando por ela, especialmente num mundo onde isso parece impossível. Outro ponto a ser aplaudido é a ausência de maniqueísmo no filme: as retaliações de lado a lado parecem inevitáveis e justificáveis; todos estão errados. E cabe a Charles manter o fardo de ser o certo, redimir Mística, perdoar Magneto e salvar os humanos que querem aniquilar sua raça. James McAvoy faz um trabalho espetacular.

    Os méritos desse acerto devem ser dados também a Bryan Singer. Ele mostra mais uma vez o quanto entende desse universo, e consegue enxergar aquilo que realmente importa nos X-Men. Não uma fidelidade total a uniformes ou a altura de personagens (inacreditável a essa altura do campeonato ainda existir quem questione o Wolverine de Jackman), mas conteúdo moral, social e filosófico que sempre foram o cerne das melhores histórias dos mutantes. Dias de um Futuro Esquecido é o tipo de filme imperfeito, mas com acertos tão gratificantes que os erros merecem ser perdoados. Como o próprio final indica, a postura do espectador deve ser curtir a homenagem à trilogia original, mas esquecê-la. Apreciar as próximas aventuras sem esquentar tanto a cabeça com a cronologia, algo que os leitores de quadrinhos já aprenderam (ou deveriam ter aprendido) há tempos.

    Texto de autoria de Jackson Good.

  • Crítica | De Repente Pai

    Crítica | De Repente Pai

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    Refazendo o mesmo filme que lançou em 2011, até então chamado de Starbuck (versão esta feita pelo ator pouco conhecido Patrick Huard), Ken Scott agora leva seu filme a um patamar diferente, de comédia independente, tendo como protagonistas a dupla Vince Vaughn e Cobie Smulders – em alta, graças ao hype de How I Met Your Mother – e claro, com um orçamento muito mais amplo que Starbuck. De Repente Pai conta a trôpega trajetória de David Wozniak (Vaughn), em sua vida medíocre, quando este vê dois desafios à sua frente: o fato de sua namorada Emma (Smulders) estar grávida e um retorno a um ato do passado, em que descobre ser pai de 533 filhos de proveta, via doação de esperma.

    Não há muito aprofundamento prévio no drama dos personagens, David é logo mostrado como um sujeito derrotado, sem grandes feitos, a ausência de desenvolvimento não é um erro do roteiro, mas sim um artifício deste, que visa demonstrar a falta de ambição e de motivo para lutar do protagonista, seu background é ausente de substância porque o seu viver é vazio.

    Todo o incidente que muda a visão de Wozniak acontece por uma indiscrição da agência que guardava o sêmen dele. Tudo que envolve esta questão é tragicômico, é absurdo para flagrar que as vicissitudes da vida também o são, e a circunstância o faz finalmente tomar uma atitude – ainda que a eficácia desta seja deveras discutível. Ele decide visitar secretamente alguns dos seus herdeiros, e em dado momento este se vê realizado pelas realizações dos filhos, vivendo algumas das suas dificuldades, não só com a extensão de sua vida, mas tentando compensar a sua ausência.

    Há um sub-plot também pouco explicado, de uma dívida que David teria com agiotas, onde se até aventa algumas possibilidade para a origem do défice, mas nada confirmado. As consequências deste passivo é violenta, entretanto não se altera o estado de leveza da história. A dívida é um paralelo claro com a responsabilidade quimérica que ele tinha com os filhos de proveta.

    O desfecho envolve um problema jurídico onde o entregador (Delivery Man) tem de escolher entre processar a agência que quase revelou sua identidade e assumir sua alcunha de Starbuck. Esse dilema acaba tendo uma solução fácil, onde o herói da jornada consegue tudo o que quer sem muito esforço, somente com uma mudança de pensamento moral. A redenção em si é fraca, especialmente por ter uma solução Deus Ex Machina em sua construção, mas não invalida a construção do guião. A vida de David passa longe da normalidade, por ele ser um sujeito estúpido ao extremo e incapaz de acertar suas atitudes. Em contrapartida, é um sujeito que sempre consegue angariar amor para a sua figura. Apesar do esforço dos produtores em tornar o final em algo piegas e um produto feito para “toda a família”, o misto de drama com comédia funciona muito bem, tornando a experiência de ver o filme em algo divertido e prazeroso.

  • Crítica | Pergunte Ao Pó

    Crítica | Pergunte Ao Pó

    pergunte ao po

    Após realizar roteiros de filmes clássicos, como Uma Rajada de Balas e Chinatown, Robert Towne ganhou notoriedade e passou a dirigir filmes sem o mesmo sucesso que tinha como escritor, evidentemente. Após uma parceria com Tom Cruise em três obras  A Firma, Missão: Impossível e Missão: Impossível 2 ­ , o ator o ajudou como produtor executivo do longa metragem, capitaneado por Towne e baseado no laureado romance Pergunte ao Pó, de John Fante.

    A direção de arte e a fotografia fazem da película uma fita demasiadamente leve, muito diferente do clima arenoso e enevoado do texto original. A iluminação chapada não ajuda a captar as variações das ações individualistas de Arturo Bandini, que pioram de situação graças à atuação de seus intérpretes. No auge da canastrice, Colin Farrel faz o escritor/narrador da história, e desde o início parece um pastiche, um deboche do alterego de Fante. Nem mesmo as suas interações com o seu oikos são interessantes, uma vez que são todas mecânicas.

    Camilla Lopez é feita pela voluptuosa Salma Hayek, que seria uma boa escolha para o papel se não atraísse os olhos dos homens ávidos de modo tão óbvio e latente. A beleza que era anunciada no livro como exótica, em tela é exuberante e nada sutil, o que claramente fere a essência da personagem. Tal conjectura não seria um grave problema de adaptação caso o entorno da personagem compensasse, especialmente pelo ambiente meio depressivo, mas isto não ocorre. Nem a nudez da atriz é valorizada de maneira plena, uma vez que ela é feita em meio à neblina. Um desperdício lastimável.

    Não há muito espaço para nuances ou foco necessário para explicitar a degradação do ethos do escritor vaidoso. O roteiro e as ações prescritas nele foram mal trabalhadas e executadas de modo sistemático e rotineiro, parecendo algo genérico, tão vazio e sem substância quantos os piores produtos para os cinemas dos anos 50.

    A duração de sua exibição é deveras prolongada, as tomadas se repetem uma a uma, e a sensação de quem vê o filme é de que há absoluta redundância nos dramas tratados em tela. Ao menos as divagações de Bandini, ao felicitar a si mesmo por seus feitos, chega perto do pedantismo típico do personagem, sendo este o ponto mais próximo do espírito da obra original. Farrell é um ator limitado, de trabalhos irregulares, que até consegue impor alguns poucos arquétipos em seu trabalho de atuação, mas tem dificuldades sérias em representar pessoas com interesses conflitantes, quanto mais um sujeito que tem claras dificuldades em manter a psiquê saudável, caso de Arturo Bandini. A inabilidade de Towne em conduzir a película também não coopera para que o ator mostre-se à vontade no papel.

    Os últimos 40 minutos contém uma virada de cunho açucarado na história, com Bandini finalmente tomando coragem e levando sua amada para morar com ele. No entanto, ao invés de dar vazão aos conflitos presentes em seu espírito arredio, ele pratica ações melodramáticas, como em uma autêntica comédia romântica, onde o “felizes para sempre” predomina, ainda que de modo efêmero, mostrando que a eternidade da máxima não é real. As falhas de Arturo que eram um dos pontos bons da história  são deixadas de lado para mostrar um romance insípido e de tom sentimental, nada condizente com o resto da história.

    A ideia de Towne de impor uma tentativa de alívio na existência sofrida de Camilla e Bandini seria interessante se o roteiro desse continuidade a ela, mas isto não ocorre. A tentativa de redenção do protagonista é falha e tão tosca que em certos momentos ela parece ter sido realizada por outra pessoa. Até a narração é interrompida de modo esquizofrênico: a história é contada sem ela durante grande parte da fita, para, enfim, voltar próximo do anúncio dos créditos.

    O filme não funciona, não sabe escolher um lado, também não é uma adaptação boa e tampouco atinge o objetivo de ser um romance água com açúcar; pelo contrário, é penoso e pesaroso de assistir a ele, mesmo para as duas parcelas do público que tenta alcançar. A separação do casal acontece de modo diferente do original, menos simbólico e mais literal, quase que explicando para o incauto espectador o que ele precisa entender: que as almas aflitas dos dois amantes não podem ficar juntas graças ao destino.

    Mais uma vez Towne cai no erro de mudar o foco de um modo que não combina com a proposta que ele mesmo impôs, uma vez que o cerne de Bandini parece completamente modificado, não só em relação à essência do romance, como também à lógica proposta no roteiro. John Fante merecia melhor sorte na adaptação de sua obra, algo minimamente condizente com a qualidade de seu texto, mas este Pergunte Ao Pó não apresenta aspectos necessários para tanto, sendo fraco e  vazio em todos os pontos que procura abordar.

  • Crítica | A Imagem Que Falta

    Crítica | A Imagem Que Falta

    a imagem que falta

    Khmer Vermelho era o nome dado aos seguidores do Partido Comunista do Kampuchea, que foi soberano no Camboja, de 1975 a 1979. Há poucos registros sobre está época e o intuito de Rithy Pahn é resgatar um pouco desta história. O cunho emocional da obra logo é explicitado, focando uma narração do passado através de simpáticos bonecos, lembranças de tempos mais simples, mas nem isso era sagrado, visto que às vezes, subvertiam os brinquedos, mostrando-os pegando em armas, se alistando meio que a força. Os bonecos servem para preencher as lacunas cuja história oficial não conta, segundo é claro as memórias de Panh e de outros homens do povo.

    O intimismo faz parte da narrativa, assim como a pessoalidade. O narrador tinha apenas 13 anos no começo da narrativa, e até por isso a memória é muito viva e o sofrimento ainda aparenta ser fresco em sua vivência. O desenrolar dos fatos mostra um povo sofrido, escravo dos interesses de seu governo ditatorial. O contador da história afirma que para a identidade do povo sobreviver, é preciso esconder uma imagem de cores diferentes daquelas vestes pretas padrão, impingidas pelos mandantes de Kampuchea, uma imagem internalizada, pois se estivesse exposta, esta seria morta.

    As rachaduras nos rostos dos bonequinhos servem para mostrar o quão arranhada estava a percepção da própria figura do povo, eles se sentiam derrotados, porque eram humilhados e punidos; caso não se sentissem humilhados, às vezes pela restrição de bens que em momento nenhum representavam luxo, como a proibição de ter-se panelas. Os cidadãos só tinham colheres, sua comida era racionada, enquanto os vigias tinham fartura, e não escondiam isto, nas palavras de Pahn, para reeducar tinha que se começar por destruir.

    A dor e o desprezo mantinham o povo unido, nem tanto por um ideal, uma vez que a aflição de suas almas não permitia pensar tais coisas, e o não acesso a informação também impelia-os a sofrer calados e sem perspectivas de melhora. A cooperação entre eles acontecia pela falta dos bens básicos, o intuito era a subsistência. Em alguns momentos, o diretor mostra as partes agridoces de sua vida, acompanhando os sets de filmagem que passavam por sua estalagem, e que não por acaso, traziam cor e canto à sua vida, além de uma ponta de vislumbre a esperança de conseguir sonhar, e talvez até realizar tais desejos.

    Mas o foco é mesmo na privação, privação de alimento, cerceamento da vida e completa inexistência de direitos. As imagens que o governo fez questão de manter vivas, são as dos acordos políticos, dos líderes ditatoriais se reunindo e celebrando, brindando com champanhe a boa colheita que vinha, às custas da população escravizada, que quando conseguia sobreviver, tinham uma sub-vida. A manipulação de imagens é flagrada, como demonstrada pelos únicos vts que sobreviveram, numa colcha de retalhos feita por Pol Pot, que registra somente o que ele quer, numa realidade inventada, muito distante do verossimilhante sofrimento de sua população. Tal ignorância é ofensiva e desrespeitosa com quem morria trabalhando na floresta.

    O autor declara algumas vezes, na duração da fita, que ele é uma criança. A afirmativa serve para este não se distanciar do sofrimento alheio, relembrando que o padecimento da “gente” é o seu, mas revela algo ainda mais pessoal, o de que seu sentimento e sua alma ainda está um pouco presa àquela época tão difícil, e que os ecos do flagelo e da desgraça ainda o abalam demasiado, e influenciam a sua arte – por isso a feitura deste A Imagem Que Falta, que é tocante, não apelativo e toma muito cuidado ao explicitar o infortúnio do povo e a desgraçada atitude dos poderosos. O luto é difícil, o funeral interminável, a poesia de Panh tenta aplacar um pouco da árida vivência das pessoas que não estavam na montagem videoclíptica feita pelo regime, e explicita o real cenário político de Kampuchea.

  • Crítica | O Que Os Homens Falam

    Crítica | O Que Os Homens Falam

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    A sutileza narrativa presente em diversas produções de língua espanhola sempre produz dúvida quanto ao gênero pertencente ao filme. Se a história de O Que Os Homens Falam fosse produzida por um grande estúdio americano, com elenco de estrelas e de estética perfeita, haveria a possibilidade da trama reduzir-se a uma série de cenas cômicas, entrecortadas por um roteiro que não alcança o drama desejado.

    A linha cômica que atravessa a produção dirigida por Cesc Gay não produz o riso fácil, mas corrói pela ironia que desperta no desencontro do homem adulto e contemporâneo, através de seis pequenas histórias que recortam as mesma metrópoles.

    No filme, homens na casa dos 40 anos que há muito perderam o viço da juventude e a credulidade de uma vida madura mantida com estabilidade. Vivem a crise do homem da meia-idade que se descobre imaturo e sozinho. Os diálogos travados em cena são francos. Amigos que se encontram por acaso e que, em razão da antiga intimidade, abrem seu coração. Desaguam mágoas contidas por esposas que foram embora, por traições, e, pouco a pouco, destroem a imagem viril do homem contemporâneo capaz de dominar a própria vida.

    Sem nomes estabelecidos na película, os personagens se despem emocionalmente sem vergonha de suas próprias desgraças. Nas primeira cenas, o personagem vivido por Leonardo Sbaraglia sai da terapia às lágrimas e encontra-se com um antigo colega (Eduard Fernández). Os amigos demonstram um carinho afetuoso um pelo outro mas, com o passar de suas histórias de vida, parecem desencantar-se com a própria trajetória. São homens que tiveram planos e falharam. Retornam a um momento anterior em que tentam se reconstruir, mesmo que de volta à casa da mãe. Unidos por um passado em comum, tentam resgatar a amizade, mesmo sem revelar explicitamente que ela está morta.

    A sinceridade em cena espanta por sua naturalidade. Javier Cámara interpreta um ex-marido que, ao levar o filho para a casa da antiga esposa, deseja reatar com ela. Através da porta de um banheiro, declara seu amor. Assume os erros pela traição mas, ainda assim, sente que uma chama permanece. Pouco se sabe sobre a relação do casal, exceto o término e a sensação de um homem ainda entorpecido pelo erro. Desesperado para reconstruir a própria história.

    A traição é vista sob a ótica, oposta na história, do personagem de Ricardo Darín, obcecado em frente a um apartamento que sabe ser o do amante da esposa. “Ela nunca soube mentir”, diz para um amigo que ele reconhece na praça onde está situado. De maneira franca, sem o julgamento violento de um homem traído, procura compreender a esposa, suas razões para traí-lo, e se a conduta dela foi errônea.

    Em outra trama, focando o ambiente de trabalho, Eduardo Noriega é um homem interessado em uma colega. Após anos trabalhando juntos sem trocarem uma palavra, estão preparados para um diálogo afiado entre atração física e sexual. São histórias de indivíduos à margem de si mesmos, ainda que sem o próprio reconhecimento. Possuem uma vida a qual não imaginaram no passado. O desgaste do papel masculino revela toda a fragilidade do homem contemporâneo.

    A última história reúne quatro personagens em dois diálogos que se espelham. Há uma simbólica troca de casais em cena. Enquanto A. e Maria se encontram ao acaso e decidem ir juntos de carro a uma festa, seus respectivos cônjuges, Sara e M., estão em um mercado comprando bebidas para a festa em questão.

    A intimidade demonstra o desgaste das relações e o desconforto de ambas as esposas com a falsa virilidade criada por seus maridos, e a dificuldade de fazerem-nos aceitar os próprios problemas para modificá-los. São homens vivendo a negação consigo mesmos mas ainda dispostos a dar conselhos e ajudar o próximo, como se fossem invencíveis.

    O título brasileiro da produção apoia-se na frase do pôster original: o que pensam os homens quando não estão conosco? Uma frase que parece aproximar-se de uma comédia machista cujo enfoque seria o homem em seu estado mais bruto. Porém, resulta em uma sensível narrativa onde o cômico é patético, centrando em homens que perderam as próprias amarras e estão à deriva.

    O excelente elenco sustenta cada uma das seis histórias de maneira talentosa. O onipresente Ricardo Darín tem destaque maior tanto no cartaz brasileiro quanto no espanhol. Porém, sua presença em cena é a mesma de outras personagens, ainda que sua figura como ator seja sempre um atrativo aos olhos do público, o que explica sua projeção um pouco mais acima nas imagens de divulgação.

    Um drama irônico sobre a imagem do homem viril em contraposição ao seu frágil interior. O Que Os Homens Falam é uma dessas pequenas histórias cotidianas que conquistam pelo bom elenco e pela relação sincrônica com o contemporâneo.

  • Crítica | Heli

    Crítica | Heli

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    O cinema político do mexicano Amat Escalante  que também realizou Os Bastardos e Sangre  ganha uma nova faceta, pois em Heli o diretor trata de uma comunidade mexicana assolada pela ação do crime organizado, usando uma família de pessoas comuns para demonstrar como é o modus operandi dos “marginalizados” e como é o status quo daquela parcela da população.

    Logo no início, o caráter da fita é explicitado, mostrando um veículo truck se movimentando pela estrada, com o foco da caçamba, onde observam-se dois corpos ensanguentados e caídos, sendo levados a algum lugar ainda não definido. A violência parece ser a linguagem universal, ligada (e muito) à humilhação, uma vez que o rapaz que está derribado tem a cabeça pisoteada pela bota de alguém.

    A câmera acompanha as atividades de uma família, mas isso é meramente ilustrativo, uma vez que tudo o que ocorre com estas pessoas é puramente genérico. As pesquisas demográficas são feitas com o intuito de “catalogar” a população, demonstrando a ausência de representatividade das pessoas que habitam o vilarejo mexicano e que buscam a ainda não encontrada identidade pessoal.

    As cenas mais mundanas, que mostram as interações entre os personagens, quase nunca são apresentadas com trilhas sonoras, sendo o seu registro realizado somente com som ambiente, que, aliado às cenas em handycam, faz com que tais sessões se assemelhem demais às imagens de um documentário. A influência estadunidense no arraial é explicitada nas cenas de treinamento dos jovens que servem as forças armadas. Os rituais da farda variam com as fases da puberdade de um dos cadetes, que gradativamente vai descobrindo as suas vontades, contrastando a volúpia sexual com o esforço pueril e juvenil de procurar alcançar as metas, o que denota uma nova faceta da possível sedução do inocente, completamente diversa da ideia de Fredric Wertham.

    A agressividade das imagens registradas chega a impessoalizar as “vítimas” daquela truculência, fomentando a discussão sobre até que ponto as pessoas que sofrem as violências mostradas são realmente “presas”, e o quanto o comportamento de cordeiro delas ajuda a aumentar o poder dos criminosos. Os personagens não são chamados por seus nomes quase nunca, como se suas personificações fossem uma tela em branco com espaço para encaixar-se em qualquer contexto social em que o receptor esteja. A intenção é gerar empatia; mostra-se gente comum como exemplo de que qualquer pessoa poderia sofrer aquilo.

    As atividades triviais são filmadas em planos muito fechados e detalhados, de modo quase claustrofóbico para quem está vendo — sensação maximizada ainda mais graças à grande tela do cinema. A rotina do personagem-título varia entre seus afazeres domésticos banais, seu cuidado com as mulheres da sua família  quase sempre de super-proteção , e sua dúvida em usufruir do comércio de bens ilegais. Este último visa mostrar a tentativa do protagonista de tirar os seus entes deste incômodo modo de vida, ainda que a origem do artefato ilegal não seja explicitada. Mesmo sem certeza, ele tenta se ver livre, mas tal investida de fuga falha miseravelmente e Heli é pego, sua casa é destruída, e a família, dilacerada.

    A ação dos mascarados em busca dos narcóticos é truculenta, e sua fúria é assassina e inconsequente, não tendo piores conclusões pelo acaso de não estarem todos os membros da família na residência. O modo como os facínoras se vestem faz lembrar a polícia, demonstrando em imagens qual é a real autoridade do lugar. A tortura que se segue é feita pelos criminosos desmascarados, sem qualquer medo de identificação, e mesmo os atos mais cruéis são encarados com naturalidade pelas crianças que fazem parte do bando.

    O desespero que acomete Heli não se caracteriza somente pelo medo da morte, mas também pela responsabilidade de ser, em determinado momento, o único homem da casa, papel este que ele deveria ter exercido desde que se tornou pai, mas que não o fez até então por acomodação. A responsabilidade batia à sua porta, na verdade a arrombava, como os bandidos fizeram, e ele não poderia mais negar tais deveres. Até as cenas de cunho sexual e expositivas remetem às suas necessidades infantis. A irascibilidade que predomina no lugarejo pede ações mais firmes do jovem pai de família. A visceralidade da obra relembra que os fatos mostrados em tela não são tão diferentes da realidade, e que em casos retratados como este a violência prevalece até sobre as pessoas, desumanizando-as através da banalidade de atos coléricos.

  • Crítica | A Balada de Narayama (1958)

    Crítica | A Balada de Narayama (1958)

    “Os olhos são cegos: É preciso buscar com o coração.” – O Pequeno Príncipe.

    O Cinema quis ser pintor a partir de O Gabinete do Dr. Caligari, mas não se achou bom o bastante. Voltou correndo para casa, para o quarto, e lá se trancou até a realização de um de seus melhores ensejos: A Balada de Narayama. Já não era mais um desejo, mas uma necessidade. A retina dos que veem o mundo das cores e enxerga as cores do mundo agradece o esforço, ímpeto dos inconformados com o poder do preto e branco incomparável no ilimitado sensorial além-tela, palco, picadeiro ou vibração; no caso, moldura. Narayama é a paleta do Éden. No filme, apenas uma montanha é imprescindível para a história e a trama coexistirem em paz rumo ao clímax. Uma das poucas obras que é inerente à peneira dos valores qualitativos conjugados ao tempo, cuja saturação visual é a mesma que garante o espetáculo a olhos nus e extasiados em absoluto. Sobretudo, promove a garantia do que lhe é antônimo, ou seja, a rigidez da narrativa e a confiança que essa nos transmite, tamanho é o caráter irrevogável da alegoria apresentada. Torna-nos reféns da estética-da-ética ímpar da produção; de seus personagens complexos enquanto seres humanos normais; dos cenários externos, filmados como internos tal é a precisão cirúrgica dos planos cênicos. A intimidade obrigatória do olhar com as províncias japonesas caracteriza-se pela profundidade do foco imagético. Van Gogh gostaria de estar vivo para conferir esse filme – Yimou Zhang teve essa sorte.

    O filme foi realizado por Keisuke Kinoshita, mestre de poucas incursões, contudo, suficientes. Pelo visto, o menos ainda era mais em 1958, quando o artista deixou de ser um ensaísta empolgado, não pela alma ou sequer pela mente humana, mas pelos impulsos e instintos que fazem a comunicação entre os dois polos, passando da maestria mencionada para a sabedoria e a segurança dignas das vidas que tratou de eternizar. É possível se pegar divagando o porquê, na mais pura filosofia de bar ou acadêmica. Não importa: ama-se e odeia a outra no limite da razão.

    Pois há, lá fora, cérebros bem ordenados que se confundem nas vias do coração, e vice-versa. Na arte, no que pode ser chamado disso, é quase sempre memorável tal desequilíbrio de intenções, espécie de transa sem compasso. Tais como a Literatura tingida de Bosch; os sonetos Musicais contemporâneos de Bob Dylan; a interação total da Escultura corporal dos artistas de rua, as artes cooperam entre si em prol de um bem maior. Notável em Narayama é a simbiose delirante entre o Cinema e o Teatro.

    Uma aliança acima do bem e do mal, do belo e do feio, do devido e do evitável, tal o perfeito casamento das forças de ambas as artes, tão opostas que sempre se atraem em vários alcances, mas raramente com os adjetivos “perfeito” e “duradouro” para consumar a união. Em A Balada de Narayama vidas são eternizadas, uma glória perpétua numa trama acerca da aceitação da morte, graças ao gatilho que dispara o mais nobre fazer artístico. Pleno, sóbrio e seguro.
    Filmes que dispõem de singularidade própria são um fenômeno curioso, escasso no quarteirão do que é produzido ao longo do caminho, e principalmente, são um adendo de qualidade no cinema em geral e na filmografia (pouco conhecida) de Kinoshita, cineasta cuja estética de uso único da cor em seus filmes sofreu batalhas e redenções no decorrer de seu legado crítico. E então, quando as tonalidades das explosões dramáticas não mais fazem justiça, nem servem tampouco para conter a potência utópica que A Balada de Narayama merece ostentar, o poder policromático da obra audiovisual alcança uma atmosfera sobrenatural. No instante que voa além do cênico, do visual, do audível, do uso quase excessivo, extra diegético, de conteúdo emocional, ou de qualquer outra tentativa complementar, a obra se completa em si. Afinal, é uma obra de arte.

  • Crítica | Fruitvale Station: A Última Parada

    Crítica | Fruitvale Station: A Última Parada

    Fruitvale Station

    Ambientado na primeira década do novo milênio – em 2007, como os modelos antigos de celulares demonstram – Fruitvale Station: A Última Parada começa com uma filmagem amadora, prenunciando o principal ponto da trama e tentando emular visualmente a mensagem escrita antes dos créditos iniciais de que aquele é um filme baseado em uma história real. Oscar Grant (Michael B. Jordan) é um jovem pai de família que não consegue transmitir a mínima segurança para os seus. Sua esposa, Sophina (Melone Diaz) não confia nele por suas infidelidades conjugais – e tem razão nisto, visto que busca reincidir no erro, o sustento da casa também é comprometido, uma vez que ele foi mandado embora do emprego precário que ele tinha, e que se via impelido a vender drogas para sobreviver.

    A comunicação de Oscar é feita quase sempre por telefonia, através de ligações em meio ao translado de suas viagens e das mensagens de texto que troca com seus conhecidos. A tecnologia é muito presente em seu cotidiano e é um signo bastante reprisado pela lente. É como se este fosse incapaz de falar por si só, de usar a própria voz e identidade para se comunicar, o tempo inteiro ele precisa terceirizar o seu discurso, não se permitindo envolver com nada e ninguém, mesmo quando a proximidade se mostra necessária.

    Assim que tal condição de distanciamento é confrontada, é mostrada uma cena do seu passado, revelando que ele foi um ex-presidiário, e que essa vivência o marcou, não só pela óbvia experiência de se viver enjaulado, mas pela ausência física dos momentos especiais no crescimento de sua filha Tatiana. Sua relação com a sua mãe Wanda (Octavia Spencer) também não é das melhores, seus primeiros diálogos são por telefones, um meio frio, ele tem dificuldade em conversar com ela olho no olho, talvez temendo ter a sua verdade finalmente explicitada.

    A câmera segue o protagonista, num ritmo quase documental, usando Oscar como avatar de uma condição deveras comum nas comunidades carentes americanas. A realidade do negro e pobre é explicitada, tudo para eles é mais difícil, desde a simples admissão empregatícia, até a missão de se manter livre de problemas com a lei. Oscar é um menino com idade adulta, sem freios de maturidade típicos de sua idade, mas mesmo em meio a sua falta de senso, ele consegue ver que sua tentativa de mudar de vida é frustrada graças aos seus próprios erros. Ainda assim, ele não consegue ser completamente sincero com ela, mesmo que através de olhares, ele demonstre querer sê-lo.

    Apesar de muita reticência, o casal decide passar a virada de ano na cidade, em São Francisco, e partem para a sua diversão, em uma noite que prometeria uma farra, ainda que moderada, visto que seria feita pelo par de casados. Tatiana tenta impedir seus pais de irem, por ter ouvido tiros no lado externo da casa, a realidade dos infantes incluía a violência e temeridade de perder os entes queridos a qualquer momento graças a voraz fúria das ruas. Oscar não parece se assustar com tais coisas, pois ele é parte – ou já foi, de acordo com a imagem que tenta impor – desse universo.

    A curva dramática para o evento fatídico só seria mostrada decorridos dois terços do filme. Após se meterem em uma briga num vagão de trem, Oscar e seus amigos são levados para fora do carro, onde sofrem uma coerção dos profissionais de segurança que em seu despreparo, os tratam como criminosos, aos olhos dos passageiros “brancos”, não acostumados a toda a truculência retratada em tela. O protagonista é alvejado, e ao se dar conta disto, ele só consegue proferir que é pai de uma menininha.

    O que acontece após estes fatos é uma série de eventos, em que os médicos tentam salvar a vida do ex-presidiário. A câmera passa por toda a fiação dos aparelhos que tentam mantê-lo vivo, grifando mais uma vez o quanto a mecânica é presente na subsistência de Oscar Grant, também determinando que estar por si só não garante que ele se salve, uma vez visto seu crítico estado de saúde.

    O retrato pintado ao final é triste por ser real, e não é complacente com o público, mostrando a reação emocionada daqueles que queriam bem o personagem central da história, que não por acaso foi executada pela atriz com maior poder dramatúrgico. O desfecho é pródigo em demonstrar o quão devastadora pode ser a perda, mesmo para quem convive com casos semelhantes todo os dias, sem tentar isentar o indivíduo alvejado, mostrando-o cruamente, como uma pessoa que falha e erra, mas sem muita perspectiva ou possibilidade real de mudança. Em seu primeiro longa-metragem, Ryan Coogler consegue trazer uma trama que é muito equilibrada em pintar um quadro realista e passar uma sensação de emoção conflituosa, sem cair no clichê de transformar a vítima do mau trato em um inocente, e vítima também das circunstâncias e da sociedade.

  • Crítica | Versos de Um Crime

    Crítica | Versos de Um Crime

    Versos de Um Crime

    Presente desde eras anteriores à palavra, a angústia foi definida e analisada como conceito somente nos últimos séculos. Atribui-se à modernidade a culpa pela sensação de urgência em que o indivíduo, diante de um mundo plural, torna-se incapaz de identificar-se com o exterior e compreender seu valor em sociedade. Um mundo novo que negava as tradições anteriores e fazia da razão um dos papéis centrais. Neste espaço de avanços filosóficos, científicos e tecnológicos, além das grandes guerras que assolaram o começo do século, nasce o homem fragmentado.

    Em detrimento das tradicionais biografias cinematográficas que apresentam as personagens em sua totalidade, Versos de um Crime, de John Krokidas, traça a história de uma geração de jovens que viveu sob a incerteza e a angústia da guerra, reconhecendo-se na figura de homens fragmentados.

    Centrado no escritor Allen Ginsberg, a trama acompanha o autor em sua jornada pela faculdade, inicialmente vista como um local primordial de aprendizado mas que, aos poucos, torna-se um espaço formulaico onde o conhecimento não busca a iluminação. Negando seus estudos, Ginsberg encontra um grupo de escritores com o qual pode dividir sua angústia e a urgência em fazer arte numa época em que o conceito artístico parecia desgastado.

    Grande parte da jornada de um escritor divide-se na dúvida primordial de seguir a tradição que lhe é imposta ou rompê-la. Ginsberg e os não menos notáveis William Burroughs e Jack Kerouac, ao lado do amigo Lucien Carr, são jovens de família bem-sucedidas que, embora aceitem a condição em que vivem, sentem-se entediados pelo ambiente ao redor e buscam romper na literatura as amarras de seu tempo.

    Em companhia de seus pares, os escritores retomam grandes poetas transgressores do passado à procura de uma própria forma de romper as estruturas vigentes. Recorrem ao poeta W. B. Yeats, utilizando-o como fruto de inspiração para fundar a própria história, e criam um manifesto que ia contra o conceito literário da época. Um passo importante para demostrar que as regras seriam pervertidas e quebradas.

    A angústia sentida pelas personagens está atrelada à sua própria arte. É necessário entender o deslocamento que vivem para ter a experiência que dará densidade à escrita. Um senso que compreende o passado para também aceitá-lo ou quebrá-lo. Elementos primordiais que definem a própria modernidade, fazendo desta produção uma narrativa metaficcional sobre a própria literatura.

    Reforçando a sensação de ruptura, diversas cenas simbolizam esta metáfora de maneira poética. Vemos escritores bêbados ou afetados por alguma droga à procura de uma nova consciência, rasgando livros clássicos como uma fogueira que pulveriza as tradições. Nada mais justo do que uma história que apresenta grandes poetas da geração beatnik, movimento que fundariam.

    No interior dessas curvas, entre autoconhecimento e negação, um dos personagens assassina um homem mais velho tido como mentor. A morte real de David Kammerer causa naturais cisões no grupo, mas é também o caminho para que Kerouac, Ginsberg e Burroughs encontrem o melhor de seu estilo literário.

    Ainda que a morte tenha sido baseada em fatos reais, ela não deixa de ser funcional como uma metáfora da citada ruptura entre o novo e o velho. Na figura de Kammerer, Michael C. Hall interpreta um homem apaixonado pelo efebo Lucien Carr, e, diante de um amor não correspondido, a personagem se torna obcecada pelo jovem, um caso que ganha trágico desfecho.

    O desejo também é parte da questão de identidade que atravessa as personagens; Ginsberg também sente-se atraído pelo garoto, dando indícios de que este seria um dos primeiros traços de sua homossexualidade. Mais um elemento que seria definidor na carreira do poeta.

    A produção de Versos de um Crime – com péssima tradução do título Kill Your Darlings, parecendo um título de Terror B – demorou cerca de dois anos para ser finalizada. A princípio, por falta de verbas; depois, pela perda de seu ator principal, Daniel Radcliffe que, além de interpretar um dos bruxos mais famosos da nova literatura, sustenta bem o difícil papel do poeta. Demonstrando a dúbia maturidade da personagem, observamos o tédio em que as personagens viviam para, enfim, compreendermos a criação do movimento beat.

    Ao fazer um pequeno recorte histórico que se finda na morte de Kammerer, a produção foge da situação de perfeição de seus biografados e amplia a densidade da angústia que ainda reside no homem contemporâneo, que, após tantas margens e tabus aniquilados, encontra-se à margem de um vazio sem saber sua motivação. Assim como no poema de Yeats no qual os poetas se baseiam para fundar seu manifesto, muitas vezes o tempo é circular. Parte da compreensão do mundo atual deve ser feita retornando ao passado. A vida como meta ficção.

  • Crítica | Operação Sombra: Jack Ryan

    Crítica | Operação Sombra: Jack Ryan

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    Kenneth Branagh fez sua carreira como diretor muito calcada em adaptações shakesperianas, como Hamlet, Henrique V, Muito Barulho por Nada. Sua última produção foi o marvel movie Thor, onde seus préstimos foram provados e até aplaudidos, dado o nível de qualidade do produto. O próximo passo do artista, seria adaptar uma história de Jack Ryan, protagonista de dezenas de thrillers de espionagem do autor Tom Clancy, e já levado ao cinema em algumas oportunidades. O ator escolhido seria Chris Pine, amparado por um elenco estrelado, com Kevin Costner, Keira Knightley e o próprio diretor. O roteiro foi produzido especialmente para o filme, somente tomando emprestado elementos dos livros, mas com o mote inédito.

    A maturidade da lente de Branagh é logo notada, pela fotografia competente, remetendo a abordagens de conterrâneos seus, como Christopher Nolan e Paul Greengrass. A influência deste último também é facilmente notada nas cenas de tensão, com câmera mais móvel e trêmula, mas Jack é claramente muito menos preparado e seguro que Jason Bourne, ele é passível de erros, é falho e mais condizente com a realidade.

    Mesmo não sendo tão perito quanto outros superespiões, sua maior prova de humanidade não é a inabilidade ou inexperiência no campo, mas sim a dificuldade em levar uma dupla identidade e conciliar sua vida pessoal, tendo o receio constante de decepcionar sua parceira e cônjuge, Cathy (Knightley), não podendo estar presente na maioria dos encontros típicos de um casal graças a natureza de seu trabalho, e claro, a sensação de paranoia que envolve toda a sua rotina, mesmo quando ele está (supostamente) fora de ação. Seu ofício não permite folgas, ele sempre tem que estar alerta e ele ainda demora um pouco para se convencer de que dividir o foco de sua atenção é demasiado difícil.

    As discussões entre o casal pareciam ser levadas para um lado mais sério e trágico, mas ganham contornos agridoces e até bem humorados, visto o alívio de Cathy ao descobrir que seu par não a traía. O senso de proteção dele faz com que eles se afastem, e a desconfiança da moça aumenta ao perceber que ele não confia nela, não por esta não ser digna, obviamente. A união entre os dois só é estabelecida através de um objeto simbólico – uma aliança de noivado.

    Os raptos e subterfúgios comuns a filmes de espionagem são construídos de modo que o espectador realmente teme pela vida dos personagens, no entanto este é um dos poucos pontos positivos deste quesito, uma vez que falta um suspense maior e a sensação de frio na barriga não é tão intensa. Há demasiadas cenas de Ryan auxiliando as investigações, e elas pouco acrescentam a trama principal, as gorduras da edição são facilmente notadas, o que é um erro cabal para um realizador experiente. Tais momentos buscam enfatizar a reticência e o método do investigador, mas acabam caindo na redundância.

    O final se conecta ao começo, valorizando a paranoia ligada ao terrorismo, presente no ideário do cidadão estadunidense há muito e piorado com o episódio de 11 de Setembro, o alvo coincide inclusive com o local que seria atingido, tornando a questão ainda mais pessoal para o herói da jornada. A falta de ação nas cenas de perseguição das partes médias do filme são compensados com o ritmo frenético da tentativa de atentado à “Grande Maçã”. Os signos visuais mostram a derrota do personagem de Branagh – Viktor Cherevin – antes mesmo dele ter a confirmação de seu fracasso, a escolha por deixar as partes inteligentes para seu personagem demonstram um pouco de vaidade e preciosismo do diretor, mas não chegam a atrapalhar tanto quanto as suas inserções em meio a trama de sequestros e rivalidades com o protagonista.

    O desfecho mostra o agente sendo chamado a uma sala privativa, supostamente na Casa Branca, aludindo a clara intenção de não só ter a continuação da franquia, como a subida de nível que Jack fez por merecer. Há referências a Cassino Royale de Martin Campbell por também rebootar uma saga, ainda que haja uma maior preocupação neste de preservar o máximo de realismo mais palpável do que seus primos mais tradicionais.

  • Crítica | O Aborto dos Outros

    Crítica | O Aborto dos Outros

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    Talvez poucos temas atuais sejam mais polêmicos no Brasil do que o aborto. Principal debate das eleições de 2010 – fato que deve se repetir em 2014 , o assunto divide opiniões de especialistas em saúde pública, defensores do direito das mulheres e religiosos, cada um defendendo seus argumentos à sua maneira.

    Carla Gallo, em sua estreia como diretora, traz uma nova perspectiva para o debate com o documentário O Aborto dos Outros, lançado em 2008. O trabalho deixa um pouco de lado a panfletagem política e aborda uma visão mais intimista, com mulheres prestes a fazer um aborto e compartilhando anonimamente a dor da violência sofrida que resultou em uma gravidez, e como agora deverão enfrentar outra violência, a de lutar para não carregar uma criança indesejada para o resto da vida.

    Essa perspectiva se mostra acertada conforme os depoimentos vão mudando, pois cada mulher está ali realizando um aborto por uma razão específica. Desde um estupro na rua até casos de violência doméstica, ou mesmo gestando fetos com má-formação, as grávidas permitem em seus depoimentos, cada qual com entonação diferenciada, fazer perceber a dúvida em algumas e a certeza em outras. Também nos fazem sentir pequenos frente ao turbilhão de pensamentos que ocorre na mente dessas mulheres. Cada caso se torna tão específico que, como espectadores, ficamos com vergonha ao ponto de pensarmos bem antes de emitir uma opinião.

    A escolha da diretora em não apresentar um narrador contribui para aumentar o impacto de cada depoimento, pois em momento algum as mulheres são direcionadas a responder perguntas prévias, pelo contrário, expressam o que estão sentindo. Cada lágrima é real. Cada ferimento é real. Tudo é real. E a atmosfera lúgubre, branca e sem música nos passa uma sensação de frieza nos corredores hospitalares, mostrados em alguns casos, colocando-nos ao lado daquelas vítimas, fazendo-nos presenciar uma pequena parcela daquele vazio. Naquele ambiente de sofrimento, não importam os políticos homens que nunca vão engravidar, ou os pastores e padres que se importam com vidas apenas enquanto elas estão dentro de úteros. Naquele momento, a mulher carrega para si todo o fardo de abrir mão de um filho. E o filme mostra claramente o quanto é insensível quem acredita que esse processo é simples.

    O longa, além da abordagem intimista, por vezes também adota um tom político, porém focando o principal argumento, que é a mulher e seu corpo. No último depoimento, proferido por uma mulher pobre e negra, que faz um aborto e o explica com uma eloquência e firmeza surpreendentes, o racismo e machismo da sociedade brasileira ficam escancarados, principalmente quando ela diz que, ao ser denunciada, fica algemada no hospital por uma semana e depois presa por mais uma.

    Ao final, os únicos momentos claramente políticos são os de depoimentos de médicos e juristas apontando que a descriminalização do aborto é a única forma de garantir melhores condições de saúde para as mulheres do país, ao citar uma estatística que diz que entre 70 e 80 mil mulheres morrem todos os anos devido à realização de abortos sem segurança  — sendo que 95% das mortes acontecem em nações em desenvolvimento, caso do Brasil. Ou seja, milhares de mulheres morrem de uma forma trágica que poderia ser evitada. E com essas vidas ninguém se importa. Estamos vivendo ondas de linchamento e justiçamentos populares nas ruas do país, mas não podemos nos enganar ao achar que isso é algo novo. A violência, aqui, existe desde sempre. Está em nosso DNA social. E a proibição do aborto é mais um desses linchamentos silenciosos aos quais submetemos as mulheres, em especial as pobres.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.