Categoria: Críticas

  • Crítica | Profissão de Risco

    Crítica | Profissão de Risco

    The Bag Man

    David Grovic traz à luz o seu primeiro longa-metragem. Profissão de Risco (seu nome original é The Bag Man) é um filme baseado em um antigo roteiro do ator James Russo — que estrelou Inimigos Públicos e Donnie Brasco, escreveu A Caixa, além de ficar algum tempo na geladeira  mostrando a história de Jack, protagonizado por John Cusack, um sujeito comum que se infiltra em um trabalho sujo, o de entregar uma encomenda para o gângster Dragna, vivido por Robert DeNiro.

    Os aspectos escusos da vida de Jack são prenunciados pelos cenários por onde ele passa, sempre imundos, mal iluminados, envoltos de fornicação e de outros pecados de cunho sexual. Sua vida é uma imundície tamanha que, antes dos primeiros atos violentos que comete, prepara seu revólver com movimentos semelhantes ao ato da masturbação. Há um contraste entre o cotidiano do protagonista e do seu mandante, pois Dragna é um homem bruto, talhado pelos atos que praticou durante toda a vida. A atitude do chefão também destoa de seu cenário  uma mansão belíssima, divergente e muito da face sangrando da bela mulher que este emprega. Em comum entre os dois há a vida marginal e a selvageria dos seus modus operandi; de dissemelhante há a posição social, e, claro, a discussão sobre o que há dentro da maleta.

    No decorrer da trama, Jack acredita que seu contratante tem planos escusos para ele, e que os sujeitos que tentam matá-lo estão no encalço a mando de Dragna. O caminho do personagem é cruzado pelo da garota de programa Rivka (da brasileira Rebecca Da Costa), que pede a ajuda do homem e desperta nele a atitude do “bom anti-herói aquele que pratica o mal somente com quem o merece. Os dois tornam-se “sócios”, de certo modo, tendo suas vidas unidas por uma curiosa necessidade. Os diálogos entre os dois começam bastante tensos, mas tornam-se cada vez mais engraçados, apesar do humor não predominar na fita.

    A violência gráfica é um ponto primordial do filme. Tudo gira em torno disso, especialmente nas cenas de agressões às mulheres, o que pode gerar um sem número de críticas do espectador mais conservador à misoginia constatada nas ações dos personagens. Não há para quem torcer, o caráter de praticamente todos os personagens é presenteado por alguma corruptela.

    São discutidas, o tempo todo, as relações humanas e a necessidade da sinceridade nessas interações, e, claro, a autoconfiança quase nunca presente na vida de Jack, mesmo com seu histórico de trabalhos muitíssimos bem feitos. Seu talento é também a sua maldição, o que o faz se distanciar do oásis de tranquilidade que tanto busca para si e da paz que não consegue alcançar, apesar de todos os seus esforços. Profissão de Risco é uma fita divertida, cujo conteúdo é imerso no característico humor negro, elevando o conceito de mind game à enésima potência. Seu roteiro brinca e perverte os clichês de filmes de perseguição, de máfia e do gênero policial, tudo de uma única vez.

  • Crítica | O Grande Mestre

    Crítica | O Grande Mestre

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    Filmes de luta são bacanas. Para muitos, irresistíveis, à beira da inspiração de se matricular na escolinha de caratê perto de casa para quebrar o cotovelo no primeiro golpe decente ou queda latente. Não é fácil ser Bruce Lee; mais árdua ainda é a tarefa  de seu próprio tutor. Um universo atraente, cujas habilidades podem ser a maior maldição imposta a um ser em constante luta— literalmente ou não  para se manter humano, rumo à sobrevivência impossível de se alcançar, uma plenitude linear de uma existência tão imprevisível. O Grande Mestre, mistura de O Tigre e o Dragão e Kill Bill junto a um charmoso clima noir, não debate, mas escancara as portas da trajetória de um fantasma social — verdadeiro nômade que precisa provar seu valor a quem não ousa duvidar dele e, mesmo assim, busca o desequilíbrio do próximo para alcançar a tal plenitude pessoal. Focando esta analogia urbana, visto que nas cidades é essencial ser 100% competente o tempo todo, fica fácil — até demais — captar as intenções por trás do escopo da projeção, certeiro feito os socos e pontapés coreografados em belas danças regidas pela lendária coreógrafa de lutas Yuen Woo-ping. Odes à brutalidade humana, revestida aqui da mais bela poesia irônica entre dor e antídoto, os quais são mascarados por ritmo, planos cênicos sobrenaturais de absoluta beleza, além de sonoplastia magnífica.

    Mas a piscina é rasa, e quem quer dar um mergulho fica com metade da cabeça sem se molhar. Isso se deve à nova tendência dos filmes de ação que não justificam todo o seu apreço publicitário, que é, hoje em dia, apostar num drama no estilo “novelão mexicano”, reduzido ainda mais ao que se deve expandir, e que efeito especial algum substitui. Não que um ótimo cuidado na dramaturgia não combine com o oposto, afinal ambos se atraem, seja na arte, seja na vida. Contudo, O Grande Mestre e seu diretor Wong Kar-wai são frutos imediatos deste novo galho experimental, que ainda tem muito a se ramificar, mas que já dá sinais de que não deve ir muito longe.

    Caso o espectador já tenha dado uma espiada prévia nos grandes filmes de ação de Seijun Suzuki e Akira Kurosawa, duas lendas do cinema asiático, sabe que há razões para duvidar deste falso épico que transborda efeitos de câmera lenta, filtros de captura de imagem e diegética exagerada mesmo para espetáculos faraônicos deste calibre. Saber contar uma história em meio à ação é um dom muito respeitável. Vários são os elementos bem coordenados por Wong para orquestrar a produção, porém são emissores e derivados de um audiovisual oco e de um gosto de “quero mais” desagradável, que pode ser saciado pelo recente 13 Assassinos, de Takashi Miike, um Épico japonês da gema, com o devido É maiúsculo junto a tudo de bom que a tecnologia oferece atualmente.

    É curioso e muito mais do que isso: triste constatar a conduta dos cineastas não americanos em aceitar a “americanização”. Um palavrão feio e de consequências horríveis, como é o caso do filme de Wong, uma controvérsia nada acidental de um produto oriental que teima ser ocidental, e que perde sua identidade ao tentar se adaptar a outro DNA. Tal influência não remete ou faz bem à essência do material, que vende a alma, na vontade de reconhecimento, através da identificação com a forma frenética de se fazer o cinema típico dos Estados Unidos e do Reino Unido. Então, sem comparações e por efeito de causa, apenas: será possível imaginar um filme de Mizoguchi com uma edição ao estilo de Hitchcock? Depois de três conhaques e uma sessão dupla de O Grande Mestre, eu não duvido. É melhor nem tentar…

    Pois por tentar fazer o Yojimbo do século XXI, restou a vontade; ao tentar refilmar O Tigre e o Dragão, sobrou a ambição; de captar a genialidade de obras como A Vida de um Tatuado, ficou o ímpeto de uma criança perdida num tatame de caratê pela primeira vez, sem saber direito o que socar nem o porquê, pois cresceu vendo, por meio da televisão, filmes de luta, querendo brincar da mesma maneira. É preocupante que a crença sobre um visual arrebatador se torne motivo suficiente para um filme arrebatador, e que esta preocupação não seja mais uma exclusividade restrita à cegueira cultural promovida à exaustão por Hollywood: ela começa a se propagar, oficialmente, com O Grande Mestre, do outro lado do hemisfério. O fim está próximo ou o solstício de certas práticas centenárias apenas avança ao epitáfio em prol da soberania dos cadetes da tecnologia?

  • Crítica | Godzilla (2014)

    Crítica | Godzilla (2014)

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    Engenheiro responsável por uma usina nuclear no Japão, Joe Brody (Bryan Cranston) cria seu filho Ford sozinho após perder sua esposa, Sandra (Juliette Binoche), num acidente que leva ao fechamento do local e ao isolamento de todo o entorno. Quinze anos após o acontecimento, Joe ainda acredita que não houve um acidente e Ford (Aaron Taylor-Johnson), casado e com um filho, acha que o pai está obcecado com essa ideia por não aceitar a perda da esposa. Os eventos que se seguem demonstram que Joe não estava enganado.

    Filmes de super-heróis, monstros e catástrofes são autoexplicativos. E Godzilla cabe perfeitamente nas duas últimas categorias. Salvo detalhes que diferenciam a trama, mesmo que ligeiramente, filmes de Godzilla obrigatoriamente têm o lagarto gigante invadindo cidades e causando destruição. E este não foge à regra. Porém a história é conduzida de modo a não ofender a inteligência do espectador. Há clichês? Lógico. Aliás, como escapar deles num filme do gênero? Há justificativas científicas meio capengas, que não resistiriam a um crivo mais exigente? Sem dúvida. Mas, convenhamos, num filme de monstro, quem em sã consciência está preocupado com a legitimidade das explicações? Quem vai ao cinema para rever Gojira quer basicamente apenas duas coisas: um monstro que seja grandioso o bastante para meter muito, muito medo, mesmo que estejamos seguros na poltrona; e muita destruição causada pelo monstro. E se houver uma luta entre monstrengos, ainda melhor.

    A nova adaptação de Godzilla entrega isso e muito mais. Uma boa solução do roteiro foi não incluir um casalzinho romântico ou uma família em perigo para aumentar a carga dramática (e melosa) da trama. Os dramas humanos ocorrem, mas não são foco da história. Não há o intuito de criar tensão desnecessária a ponto de fazer o espectador chorar pelos personagens, algo que enfraqueceria a narrativa. Afinal, é um filme de monstros, oras! E não um romance água-com-açúcar que acontece enquanto uma catástrofe atinge a cidade.

    Outra boa sacada foi não apresentar o monstro no início e passar o restante do filme mostrando a humanidade – leia-se “os americanos” – perseguindo-o e tentando matá-lo. Seria um lugar-comum. Dessa vez, o objetivo do monstro não é invadir e destruir cidades. Godzilla e os outros passam pelas cidades e, consequentemente, devido ao seu tamanho,  saem pisando em veículos e pessoas, além de destruir construções. O mesmo que nós, humanos, fazemos ao passear num campo, por exemplo. Não saímos de casa com o intuito de aniquilar formigas ou amassar gramíneas. Apenas acontece enquanto andamos.

    Bebendo nitidamente da fonte de Spielberg, em Tubarão, a aparição “de corpo inteiro” de Godzilla demora a ocorrer e é precedida de várias cenas em que o vemos apenas de relance ou envolto por névoa. Quando finalmente surge a cena completa, a espera é compensada. Difícil evitar uma exclamação de admiração pela grandiosidade do monstro. Não dá para não pensar “Finalmente, um lagartão bem feito!”. Não é apenas bem composto digitalmente, mas fiel ao Gojira original japonês, sem aquele ar de T-Rex que tinha o Godzilla, de Roland Emmerich.

    Se há algo que chama atenção além do monstro (lógico) é o som do filme. Não apenas a trilha sonora de Alexandre Desplat  lembra um pouco a de John Williams em alguns momentos, mas o design de som também se destaca ao evitar pontuar todas as cenas com a trilha, fazendo ótimo uso do silêncio (recurso dramático infelizmente subutilizado, principalmente em blockbusters). Criando a tensão necessária para amplificar a aparição triunfal de Godzilla.

    Não resta dúvida de que para ser melhor do que o filme de 1998, com Matthew Broderick, não precisa muito. Mas a produção vai além: consegue fazer o público esquecer que aquela versão existiu e tornar esta o definitivo filme de Godzilla.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Godzilla (1998)

    Crítica | Godzilla (1998)

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    Após os ataques por meio de armas nucleares dos americanos ao Japão, os criadores de conteúdo do país atacado passaram a explorar um filão que levava a exposição à radiação como algo transformador e surpreendente, inclusive antes de Jack Kirby e Stan Lee. Em 1954, estreariam o filho mais ilustre desta maldição, Gojira (Godzilla no ocidente) que seria protagonista de quase 30 produções japonesas. Claro que com a popularidade e com a ganância típica do capitalista estadunidense, os yankees se ocupariam de fazer a sua própria versão do monstro.

    Mas tal versão seria diferente em sua origem, o que não é uma novidade, vide a versão de 1956, Godzilla: King of Monsters, com inúmeras cenas alteradas, que buscavam eximir os americanos da culpa pela catástrofe nuclear. Então, capitaneada pelo amante do cinema catástrofe e da canastrice, Roland Emmerich, estrearia Godzilla no ano de 1998, que emularia o visual de O Parque dos Dinossauros, mas claro, sem todo o repertório visual e abordagem única de Spielberg, tampouco sem o carisma da maioria dos arquétipos dos exploradores da ilha, em vez disso, a fita se apóia nas costas de Mathew Broderick, que faz o doutor Niko Tatopoulos, especialista em minhocas, e Jean Reno, que interpreta Phillipe Roach, um funcionário de seguradora que esconde um mistério que quase ninguém se interessa em saber – e que se revela (tristemente) com a origem do lagarto super desenvolvido!

    O grupelho de exploradores, após ver uma pegada de extensões gigantescas, resolve seguir os rastro de destruição, acompanhando a criatura pelo oceano. No entanto, mais importante que tais coisas é a necessidade que todas as mulheres do filme têm em reafirmar que Nick é um bonitão. O monstro reptiliano parece ter uma mentalidade semelhante a humana, primeiro por atacar o Japão, sua terra natal e depois viajar até outro continente para destruir outra potência mundial, os EUA, logo em Nova Iorque, a Roma moderna, e logo que o faz, interrompe um tragicômico discurso do presidente em meio a uma tempestade e aos eleitores com guarda-chuvas.

    Ao menos as cenas de destruição da metrópole são interessantes, e o CGI do réptil não é tão mal feito, ainda que sejam bastante precários, mas nada que comprometa, como as cafonas cenas de contato visual entre o dinossauro superlativo – que varia de tamanho – e Nick. As cenas após este emocionante encontro são ainda mais toscas, mostrando os embates mais esdrúxulos da história do cinema. O design do mostro causou muita chiadeira nos fãs da cine-série, críticas – estas injustas-, se levar em conta que a lógica estrategista do bicho é ainda mais desrespeitosa com o cânone. Godzilla embosca os mariners, escondendo-se atrás deles e dando o bote em helicópteros de modo sorrateiro, enquanto os líderes políticos se enrolam em meio a piadinhas infantis e inoportunas.

    Após quase uma hora decorrida, o motivo da viagem do monstro é assumida como a migração que intuía uma reprodução destes. Um sub-plot fajuto é montado, mostrando o casal Nick e Audrey Timmonds (Maria Pitillo) jamais consumado tendo uma crise, o que mudaria o status quo do explorador, fazendo-o sair das investigações americanas e introduzindo-o ao núcleo francês, capitaneado por Roaché, sendo estes, os únicos preocupados com a multiplicação dos monstros. Se esta é uma crítica à inteligência das forças armadas americanas, esta passou longe de ser interessante ou inteligente.

    A batalha pelos mares com o kaiju é entediante e fraca, carece de emoção e piora graças a total falta de conteúdo dos personagens. A trilha sonora também não ajuda, pois tenta ser edificante mas só consegue ser digna de risos, mesmo com o acréscimo de músicas do Foo Fighters e Rage Against the Machine – que são uma das poucas coisas legais da fita.

    Os bonecos mecatrônicos que fazem os filhotes são horríveis, os bichinhos nascem banguelas mas têm um instinto assassino voraz, causando muito medo nos personagens maravilhosos. Graças a facilidade de se procriarem. Após um plano super mal construído, que visava destruir as crias recém-nascidas, os “heróis” percorrem a cidade após um alívio muito breve, que logo é seguido por uma perseguição da feroz progenitora que busca vingar o assassinato dos seus rebentos. Esse clímax é tão fraco quanto o resto do filme. Certamente o maior problema do remake de Emmerich é a ausência de foco e a dificuldade em decidir qual seria a abordagem melhor, visto que nada é desenvolvido de modo satisfatório, sejam os personagens fracos, a catástrofe da cidade, que não causa qualquer trauma ou comoção na população, e até a figura do monstro, que não é amedrontadora e nem de caráter trash, como eram os primeiros gojiras, em suma, é só mais um produto sem qualquer alma, substância e conteúdo.

     

  • Crítica | A Recompensa

    Crítica | A Recompensa

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    Não é preciso ser muito observador para notar que A Recompensa tratará de um personagem vaidoso, profano, egocêntrico e muitíssimo cômico, visto que seu protagonista é mostrado, no primeiro momento, enaltecendo seu dotes  em todos os sentidos possíveis desta palavra. O Dom Hemingway de Jude Law é mostrado primeiro como um presidiário com complexo de grandeza, que não se submete sequer às ordens dos carcereiros, e que logo conquista a liberdade, não sem antes ser ovacionado pelos seus semelhantes, num episódio que pode muito bem ser apenas fruto de sua megalomaníaca imaginação.

    A paleta de cores, num primeiro momento, é composta por tons muito vivos, como o vermelho, verde fluorescente e amarelo. As matizes remetem à euforia do ânimo do personagem-título e contrastam com a violência de suas atitudes. A rotina pós-prisão do anti-herói é marcada também por outros contrastes, visto que uma de suas primeiras ações ao sair do cárcere é procurar sua antiga vida, clamando por sua perdida família. Outra demonstração de destempero e descontrole é o porre que ele impõe a si, mostrando que seu corpo ainda é refém de substâncias viciantes e que sua alma necessita de desventuras etílicas e entorpecentes para se sentir plena. As cores predominantes dos cenários mudam de tom de acordo com o estado de espírito do personagem. Assim como as curvas femininas exibidas, os corpos mudam de estilo à medida que o personagem atravessa as suas “bad trips”, cuja abordagem da beleza das musas que o inspiram variam, exibindo as “chubbys” quando o protagonista está em momentos de dúvida existencial, e “modelos magérrimas” quando se encontra no auge da euforia.

    O estilo de vida ostentativo típico dos bandidos americanos é muitíssimo parodiado pela trupe britânica. O visual faz referência a uma clara brincadeira com tal estilo. Essas alusões pioram com os diálogos, incrivelmente hilários, destacando os estereótipos presentes em filmes de assalto. Certamente a melhor construção da película é a persona de Dom, pois ele é um sujeito tão distraído que em determinados momentos sequer nota o que está bem à sua frente. Entretanto, este mesmo sujeito seria um especialista em um tipo de crime que requer muitíssima perícia e astúcia: arrombamento de cofres de alta segurança. Tudo o que envolve Hemingway, externa e internamente, é tão incrivelmente dissonante que se torna difícil acreditar em qualquer uma de suas ditas qualidades  excetuando o enorme carisma  até vê-las sendo cumpridas. Seu gênio é algo tão volátil e volúvel que ele é capaz de cometer as maiores ofensas e pachorras e ainda assim permanecer vivo e pronto para o trabalho. O embate “ideológico” que tem com seu possível empregador, Mister Fontaine (Demian Bichir), é de um tom nonsense ímpar, de cunho de baixo calão absoluto, mas surpreendentemente inofensivo. A resposta do contratante é igualmente jocosa, deixando claro ao personagem quem dá as cartas naquela situação.

    A receita que Richard Shepard usa para entreter o espectador tem em sua essência seus trabalhos antigos como realizador de seriados. As gags de comédia são muito semelhantes às de sitcom, mas ainda assim são incrivelmente condizentes com a sétima arte, compondo uma ótima surpresa quanto à qualidade dos temas propostos. Sua direção de atores e escolhas de edição e fotografia são muito competentes. O roteiro é dividido em pequenas partes, como em esquetes, ainda que isto não seja tão facilmente percebido.

    É curiosa também a desconstrução da frequente figura de galanteador exercida por Jude Law, que se entrega totalmente ao papel, sem receio de se expor fisicamente de maneira vergonhosa ou de finalmente assumir sua incômoda calvície. Sua carreira é pontuada por bons momentos, mas passa por um período de transição na qual não há mais tanto apelo de papéis que exigem a função de galã.

    Irônico o fato do ladino personagem, ao tentar adentrar um local lacrado, lançar mão das formas mais rústicas de arrombamento. Seu modo de encarar a vida é tão errático que nem mesmo o seu trabalho ele consegue exercer, e nem a recompensa, por ter se calado durante todo o tempo na prisão  doze anos —, ele consegue obter. Mesmo quando se espera uma postura de redenção da parte dele, Dom consegue ser ainda mais louco, ofensivo e politicamente incorreto na forma de abordar seus antagonistas.

    As coisas só passam a fazer sentido e voltam a dar certo na vida de Hemingway após ele ter uma epifania e perceber a mensagem moral que sempre ignorou ao longo da vida. Tal artifício poderia ter diminuído a potência do conteúdo da fita, mas não o fez, porque até a saída fácil de remição e salvação da alma é feita de modo estilizado. O roteiro do filme, que é o mais peculiar dos dirigidos por Richard Shepard, reverencia as produções de Guy Ritchie e Martin Scorsese, mas voltando as suas forças para a comicidade e nonsense.

  • Crítica | Vidas ao Vento

    Crítica | Vidas ao Vento

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    Vamos falar de amor? Pelo menos no que se difere da paixão, no limite das concepções deste mundo. Sim, l’amour, o componente imprescindível ao artista, homem de lata sem o dito, perturbado por natureza a quem, de fato, a paixão nunca engana por rimar sim com emoção, e não com a evolução para se tornar um sentimento mais que razoável: Invencível. A sede pelo fazer artístico e os desafios imediatos do mesmo. É uma questão de amor, nua e crua, pois quem não o carrega não suporta a produção de um filme por mais de duas horas; tempo suficiente à curiosidade (paixão) evaporar. Cinema não é sexo, é fazer amor sem preservativo, e das crias de Hayao Miyazaki, Vidas ao Vento não poderia faltar nos porta-retratos da estante do avô. “Eu esqueci como é o arco-íris”, desabafa um dos personagens, persona de Santos Dumont e Yasujiro Ozu (que o leitor interessado entenda o porquê da comparação), casado com sua ambição profissional pelo voo; fiel a enfrentar e interpretar as tempestades da vida, eterna criança com seus aviões de papel por aí. L’amour.

    Ar é liberdade, elemento que forja e depois liberta a alma mais densa da expressão humana, contra a derrota face ao terrível solo. É astuto manter, além de um dos pés no chão, as asas bem abertas a tecer a aquarela de Toquinho feito simbolismo que é, aqui, pincelado em extrema graciosidade em grado 2D, minucioso e rico como o ponto de assimilação entre duas cores do mesmo prisma. Cada avião contém uma tonalidade num mundo paralelo ao século XX, numa das versões ficcionais e líricas mais bem sucedidas da brutal realidade bélica entre as décadas de 1940 e 1950 no gênero de animação, se assim deve ser apontado, justamente por não fugir da atmosfera imprevisível que tomou o planeta de assalto, e inserir neste cenário uma perspectiva não apologética, pro bem e pro mal, no contexto da guerra, em especial. A guerra é de um ser humano consigo mesmo, o que não deixa de ser corrente em qualquer confronto solitário.

    As cores agitam a saliva – atiçam nossas digitais e o que habita a sagacidade do toque; dos matizes, os gostos – do peculiar, os signos e as digitais graças ao traço inconfundível das produções de um ilusionista pertencente à classe dos que servem à preservação do valor de velhos truques, mas também com a importância latente do fator visionário e o bem-estar do Cinema à frente de qualquer legado, exceto o que pode vir a ser construído nos avanços do presente e na honraria de um pretérito oxigenado; é preciso de uma história a se contar.

    Vidas ao Vento é a assembleia pública e o manifesto social de um artista solitário em seu ponto de vista único, e que trabalha em grupo, para com um público global mais e mais deficiente de honestidade cinematográfica, e uma brisa, em meio à aridez da maioria das obras pós-modernas, é bom ressaltar: Miragens, inofensivas como um sopro. Não é este o caso de Miyazaki.

    O relógio bate em duas horas ao passo do criador de Meu AmigoTotoro (1988) e A Viagem de Chihiro (2001) bater o martelo na concepção sensorial proposta, de leves furos de roteiros e digressões de consciência dramática, quase imperceptíveis quando o foco aponta no modo de narração da trama e levanta voos mais altos tanto na elaboração referencial a alguns expoentes de sua própria filmografia, desde o must-see obrigatório e três vezes decenário Nausicaä do Vale do Vento (1984), até na certeza irreversível, a partir de um ponto da carreira, de haver sim um sentido não mais oculto para que aviões de papel não sejam mais o bastante. Não mais.

    Ao infinito e além, é claro, porém, ainda a respeito do passado e suas implicações estáveis, Miyazaki é o único diretor de animação vivo que, agora, com a desculpa de usar um viés leve, humanitário e poético nas invenções da 2° Guerra Mundial, junto das próprias em forma de personagens que não existem sem suas invenções, revive e mantém, de forma que nenhum estúdio de animação francês ou americano consegue, o conceito atemporal da “moral da história”, aquela dos idos de Walt Disney e outros contadores de arranjos, de outras mídias e olimpos, como se o cineasta e seu lendário estúdio Ghibli ordenassem uma reverência ao que já foi conjurado até aqui. Talvez porque a paixão do vovô pelos seus netos já tenha virado amor há muito. Não há mais volta, aliás.

  • Crítica | Os Filhos do Padre

    Crítica | Os Filhos do Padre

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    Os Filhos do Padre (Svecenikova Djeca, Croácia, 2013, Dir: Vinko Bresan) é baseado na peça de teatro homônima de sucesso de Mate Matisic, que também escreveu o filme junto com o diretor Vinko Bresan. O filme chama a atenção pela situação inusitada apresentada em forma de humor negro.

    O padre Fabijan chega à uma ilha e se depara com o dado alarmante de envelhecimento do local, mais pessoas estão morrendo do que nascendo. Com a ajuda do atendente do quiosque e do dono da farmácia, ele resolve reverter a situação, e, em nome de deus, usa métodos não usuais como furar secretamente todos os preservativos e trocar a pílula feminina por um placebo, causando algumas confusões.

    O roteiro do filme se estrutura na sátira de humor negro e critica a igreja católica e a sociedade croata seguindo os clichês do gênero ao mostrar em forma escalonada as várias situações absurdas que a situação gerada pelo padre vai criando, os personagens caricatos do local, as reações peculiares de todos até o seu desfecho que se liga ao início do filme. Sempre que pode o roteiro tenta criticar o catolicismo, sem muito sucesso por causa da falta de tom no excesso de humor negro. Acaba parecendo infantil, uma esquete mal-feita, soa falso.

    Kresimir Milkic interpreta o protagonista padre Fabijan e até consegue jogar alguma luz no meio das atuações caricatas, mas acaba ficando preso no próprio personagem. Não há outra atuação digna de nota dentro do mar de clichês dos demais personagens, que lembram algumas vezes uma peça encenada.

    Quando a direção de Vinko Bresan se atém as locações, ele consegue atingir o objetivo na maioria das vezes, mas o problema vem no momento em que ele tenta flertar com o cinema indie e coloca o protagonista conversando com o espectador quebrando a diegese, ou nas várias situações em que recorre ao estúdio com os atores em fundo branco para mostrar o que se passa dentro da cabeça do padre. Talvez funcionasse se essas tentativas fossem melhor dirigidas, mas acabam destoando do restante do filme. O mérito da direção é que consegue fazer com que o filme não se perca nisso tudo.

    A fotografia e a edição acabam passando batidas, pois fazem o que se exige delas. Não há uma iluminação ou construção de cena notável, pois acabam ficando em função do roteiro e da direção.

    Os Filhos do Padre merece ser visto por quem anseia dar uma olhada em um cinema com pouca tradição como o croata. Infelizmente, nada mais do que isso.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | O Lobo Atrás da Porta

    Crítica | O Lobo Atrás da Porta

    O Lobo Atrás da Porta

    Sylvia (Fabíula Nascimento) chega à escolinha para buscar a filha, Clara (Isabelle Ribas), e, após ser avisada pela professora de que alguém já havia levado a menina, chega à conclusão de que a menina foi sequestrada. Na delegacia, tanto Sylvia quanto a professora prestam depoimento, enquanto aguardam a chegada de Bernardo (Milhem Cortaz), marido de Sylvia. Ao chegar, Bernardo inclui mais um elemento na história, Rosa (Leandra Leal), uma “conhecida” que supostamente estaria fazendo uma brincadeira com ele ao sequestrar sua filha.

    E o que inicialmente parece ser um filme policial torna-se um drama com nuances rodriguianos. Os esqueletos vão, aos poucos, sendo retirados do armário à medida que tomamos conhecimento do triângulo amoroso envolvendo Sylvia, Bernardo e Rosa. Ao espectador, revela-se apenas a versão dada pelos personagens, a cada conversa com o delegado (Juliano Cazarré). E a cada conversa, mais detalhes são adicionados. E, à exemplo da Igreja da Sagrada Família, de Gaudí, o panorama completo é construído aos poucos, à medida que a trama avança. Como uma casa à qual se adicionam vários “puxadinhos” de acordo com a necessidade.

    Interessante notar que a fotografia do filme reflete essa compartimentalização. O uso frequente de planos-detalhe faz lembrar que o que é visto é apenas parte do todo e, sendo assim, pode não refletir totalmente a realidade. Assim como reafirma a importância de se dar atenção aos detalhes, às sutilezas, às entrelinhas. Instiga o espectador a se questionar sobre o que está acontecendo no espaço fora de quadro de forma bastante inteligente. Os enquadramentos fechados, tanto os planos-detalhe quanto os closes, são claustrofóbicos, dão uma sensação de confinamento que reflete o estado de espírito dos personagens enquanto depõem. É curioso reparar como em alguns momentos a câmera parece esperar que os personagens se movam para dentro do quadro.

    Acompanhando os depoimentos de cada um dos personagens, a linha temporal vai se alternando, entre flashbacks, o que está sendo contado e o presente. E os flashbacks, assim como os depoimentos, ficam mais longos e mais detalhados, revelando a complexidade tanto dos personagens quanto do relacionamento entre eles. Os três envolvidos deixam de ser estereótipos dum triângulo “clássico” e começam a exibir outras facetas, passando da bi para a tridimensionalidade com bastante fluidez. E a cada novo evento adicionado, a cada traço de caráter que se descobre, o espectador é obrigado a repensar sua opinião a respeito de toda a situação. Os personagens vão de ‘mocinho’ a ‘bandido’ e de volta a ‘mocinho’ à medida que os conhecemos melhor. Ninguém é 100% inocente ou 100% culpado. E não se pode confiar totalmente no que dizem.

    O roteiro eficiente não conseguiria ser tão impactante não fosse o elenco em plena sintonia. Fabíula Nascimento e Milhem Cortaz estão muito bem, com atuações na medida para seus personagens. Mas o destaque mesmo é Leandra Leal, que conseguiu fazer Rosa oscilar entre ingenuidade e sensualidade, entre olhares enigmáticos e suplicantes, entre doçura e ressentimento, com uma sutileza que não deixa espaço para o espectador duvidar de suas ações  mesmo as mais extremas.

    Considerando que este é o primeiro filme de Fernando Coimbra, resta ao público torcer para que o diretor não perca a mão e continue levando às telas tramas com a mesma qualidade de sua estreia.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Getúlio

    Crítica | Getúlio

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    Getúlio Vargas foi um dos maiores nomes da política brasileira e um dos comandantes mais importantes da história do Brasil. O período de quase 20 anos do político no poder transformou radicalmente a face da República brasileira, o que levantou paixões a seu favor e contra, especialmente ao final de sua administração.

    O filme de João Jardim (do excelente Lixo Extraordinário), com roteiro de George Moura, retrata os últimos 19 dias da vida do ex-presidente, quando o governo é acometido por um turbilhão de críticas após o principal rival político de Vargas, o ferrenho anticomunista Carlos Lacerda, sofrer um atentado, descobrindo-se, logo depois, que os mentores do ato eram pessoas intimamente ligadas a Getúlio.

    Contando com fotografia e design de produção excelentes, o filme consegue reproduzir toda a ambientação da época e fazer o espectador se sentir naquela primeira metade da década de 1950. O Palácio do Catete também contribui enormemente nesse sentido, tendo em vista que o local se manteve praticamente inalterado desde os eventos retratados.

    Optando por uma ótica mais intimista e com toques de thriller psicológico, o diretor tenta mostrar o lado humano do presidente, já idoso, sofrendo todas as pressões políticas em um momento diferente do país, pois se na década de 30 Getúlio conseguiu impor seu modelo, já na democracia, durante a ascensão da Guerra Fria e da influência dos EUA  na América Latina, Vargas sofre a oposição dos setores da sociedade alinhados aos interesses americanos, enquanto sua postura nacionalista, outrora tão eficaz, agora atrai cada vez menos adeptos. O enfoque intimista e pessoal por vezes se torna desnecessariamente lento, e o uso da metalinguagem para explicar os pesadelos do personagem também se mostra repetitivo, dando ao filme um certo tom novelístico característico da TV brasileira.

    Essa pressão se manifestava na figura de Carlos Lacerda (Alexandre Borges), governador da Guanabara e principal porta-voz do udenismo. Suas ferozes críticas ao presidente iam desde o moralismo simplista de acusá-lo de causar todos os problemas do país, até o de culpá-lo pela degeneração da democracia e pela explosão endêmica da corrupção, discurso este muito usado até hoje pelos setores herdeiros do udenismo contra governos que não conseguem vencer no jogo democrático.

    A figura de Carlos Lacerda no filme é mostrada de forma distante, com discursos inflamados, transmitidos na televisão, exigindo a renúncia de Vargas  uma escolha estranha, pois naquela época a TV não era utilizada como meio de comunicação em massa, pois havia poucos aparelhos no país. Esse papel era desempenhado pelo rádio. No entanto, uma construção maior desse personagem poderia tornar a trama menos maniqueísta.

    Maniqueísmo este que se manifesta o tempo todo ao focar a figura de Vargas de forma uníssona, em dúvida apenas quanto ao que mostrar em relação a sua honestidade em lidar com o problema. O presidente é retratado como uma pessoa íntegra que desconhecia absolutamente tudo o que se passava com sua guarda pessoal. Ainda que não soubesse sobre o atentado propriamente dito, para alguém tão centralizador como ele, torna-se um fato que, se não impossível, bastante improvável. No final, tendemos a nos simpatizar com Vargas e antagonizar Lacerda de maneira simplista em razão dessa abordagem.

    O que é muito bem retratado é a relação ambígua com os militares, que já se mostravam descontentes com a democracia e ávidos por terem uma participação maior no poder desde a Era Vargas. Enquanto alguns militares lutavam para manter o legalismo, grande parte se organizava para exigir a renúncia do presidente e preparar o terreno para um golpe militar, o que não seria novidade nem no Brasil, nem na América Latina no período.

    Também merece destaque a atuação de Tony Ramos no papel do presidente. Apesar do exagero do tamanho da barriga e do pouco trabalho com o sotaque gaúcho, o ator transmite ao personagem todo o peso dramático que os eventos narrados impuseram a Vargas.

    O suicídio do ex-presidente no filme também possui parte de seu impacto retirado por não ter sido bem construída a cadeia de eventos que levou a esse fato. Quando a situação se torna insustentável, após Vargas ter abdicado de tomar qualquer posição ofensiva em sua defesa, a única saída possível ao presidente parece ter sido o suicídio, sozinho em seu quarto com seu revólver. O ato, mostrado de forma engrandecedora, oculta os relatos de que, após o tiro, Getúlio sobreviveu ainda por algumas horas. Também oculta, dentre a comoção popular por sua morte, a ira de parte da população que depredou sedes e carros de jornais opositores, caso de O Globo, que teve papel chave na oposição ao governante, ausência essa convenientemente deixada de lado no filme.

    Dessa forma, Getúlio opta conscientemente por construir um personagem que é fruto de escolhas da direção, excluindo algumas informações e exaltando outras. Apesar de ter sucesso em compor um personagem forte mostrando seus dilemas internos e pesadelos, falha em dar a profundidade necessária a seus algozes e aos eventos que levaram a escolha pelo seu suicídio. Talvez por isso, o filme se mostre interessante somente a quem já conheça os fatos e pessoas ali descritos, se mostrando uma experiência não muito agradável ao espectador tradicional.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Divergente

    Crítica | Divergente

    divergente

    Que o cinema é uma arte, institucionalizada como tal, todos sabemos. Mas nenhuma falácia nos ocorre em considerá-lo uma indústria, principalmente depois da vinda de Tubarão às grandes telas, com o desenvolvimento do conceito de blockbuster e a ganância crescente de produtores e produtoras hollywoodianas que se agarram a ideias com maior possibilidade de lucro imediato e duradouro, ou seja, que gerem remessas agora e possam continuar gerando, sejam em sequências e mais sequências, remakes ou reboots. O que esse Fordismo cinematográfico tem nos trazido é uma homogeneização do que é visto em tela. E isso já aconteceu com o gênero do horror e seus grupos de jovens sendo atacados por assassinos ou forças sobrenaturais; na comédia, com a padronização das paródias e, depois, por meio dos filmes discípulos de Se Beber, Não Case!; entre tantos outros gêneros.

    Mas agora o que temos é uma pujança de abarcar todos esses “estilos” de forma pasteurizada, e de modo a atingir o público que mais vai aos cinemas na atualidade: o infanto-juvenil. O filão das adaptações de sucessos literários, dentre esses novos consumidores da sétima arte, surgiu como uma Estrela de Belém para Hollywood. Harry Potter foi o grande carro-chefe em anos, mas o público “teen”, leitores cada vez mais assíduos de obras voltadas à sua faixa etária e que exalavam seus conflitos e olhares sobre um amanhã deturpado, implorou por mais. E foi assim que Stephenie Meyer surgiu no mundo literário, preenchendo as livrarias com quatro obras (e depois mais e mais…) que seriam levadas às telas em cinco filmes, todos sucessos de público, mas nem um pouco de crítica.

    Mais competente e complexa em sua literatura, Suzanne Collins apresenta a distopia de Jogos Vorazes ao mundo e, após o sino de “sucesso estrondoso” ecoar em todos os continentes, a obra foi também levada aos cinemas, sendo recebida com certo louvor, tanto por parte de público quanto por parte de crítica. Daí para frente, a Unilever imaginária dos estúdios adquiriu o direito de todas as obras voltadas para adolescentes e pré-jovens, e passou a saltear, trimestralmente, novas tentativas de fidelização deste público com mais marcas que, no fim, representam o mesmo elemento das anteriores, e por vezes são até de mesma origem. Dove, Seda, Palmolive? A Hospedeira, Instrumentos Mortais: Cidade dos OssosDezesseis Luas e afins? É possível até ver os diretores de todas elas fazendo download da fórmula Meyer-Collins e dando seus sutis “toques de originalidade” em busca de alcançar a mesma popularidade dos produtos padrão. Bem… Mas como nos exemplos citados, nem sempre isso é possível.

    Veronica Roth é a autora de mais uma história embasada em distopias, dando origem a Divergente. Na narrativa, uma guerra devastou o mundo que conhecemos. Em tela vemos Chicago com visual pós-apocalíptico e a tradicional fotografia acinzentada e suja que realça a degradação de várias paisagens, como prédios e antigos estabelecimentos comerciais. Alwin H. Küchler traz também as cores terrosas de seu trabalho em Hanna, contrastando com um branco intenso que emana em momentos específicos do início do filme, para a ambientação da cidade de Divergente. É nela onde vemos a sociedade dividida em cinco facções, nomeadas de acordo com virtudes e representando funções sociais diferentes: Abnegação, Amizade, Audácia, Erudição e Franqueza. Aos 16 anos, os adolescentes nascidos em cada uma dessas macro associações devem escolher continuar em suas comunidades ou migrarem para outras facções. Tris (Shailene Woodley, indicada ao Globo de Ouro por Os Descendentes), de uma das famílias mais tradicionais de Abnegação, descobre em um teste que possui as características de todas as facções, sendo assim apontada como uma Divergente, espécie rara e perseguida pelas demais. Mesmo assim, decide alistar-se a Audácia, facção responsável pela defesa da cidade. É no doloroso processo de deixar seu corpo fraco (abnegado) e desenvolver sua práxis ativa (audaciosa) para fazer parte de sua nova facção, e esconder as perigosas virtudes de ser uma divergente, que o filme se desenrola, até o último fator se tornar impossível.

    O roteiro não traz surpresas para quem já está calejado neste tipo de adaptação, ou ao menos assistiu a Jogos Vorazes. O desenvolvimento da protagonista obedece a uma gradação claramente perceptível e deveras previsível. Mas é o fato de Shailene Woodley (aliás, uma ótima e promissora atriz) ir tão bem no papel de uma adolescente que sempre quis se libertar das amarras de sua sociedade apática e viver na correria dos “malucos” da Audácia, que faz com que o filme segure a atenção de seu público até o final. A jovem parece entender que seu papel não representa apenas uma, mas milhões de adolescentes de 16 anos inconformadas com sua realidade e sedentas por aventura, ação e… um romance aparentemente impossível.

    Nossa… o romance. Saindo das flores e começando a nos ferir com os espinhos da obra, a construção do roteiro para nos conduzir à fatídica relação entre o “malhadão” Quatro (Theo James), um dos líderes da Audácia, e Tris acontece de forma boba e pueril, partindo de diálogos sofríveis do tipo “Cuidado comigo mocinha…”, sob olhares opostos ao que a ideia transmite, à completa desconstrução em minutos de um personagem anteriormente estereotipado com características sólidas de sisudez e apelo à violência. Sabe aquele ditado “para bom entendedor, meia palavra basta”? Pois bem, essa previsibilidade dos rumos do roteiro, disfarçada por diálogos forçados, ainda é completada pela insólita sensibilidade de Neil Burger (O Ilusionista e Sem limites), diretor que acerta pouco em toda obra e que recorre aos recursos fáceis de montagem para mostrar a “evolução” de sua protagonista e ainda usa-os, aliados a repetidos closes, em momentos específicos, para que os fã boys and girls não tenham medo dos rumos da história. Pois tudo simplesmente se realiza como aparenta ser, seguindo novamente a obediência à fórmula consagrada que nos faz experimentar o gosto amargo do plot já previsto, da pseudo-coragem disfarçada do roteiro em se desfazer abruptamente de alguns personagens (oi, Jogos Vorazes?) e em testemunhar superações e mais superações da protagonista e tudo mais que “um filme desses” tem a oferecer.

    Mas talvez uma das coisas que mais irritam em Divergente é sua longuíssima duração. Nada justifica os 140 MINUTOS DE PROJEÇÃO, nem mesmo o doce de coco da Shailene Woodley faz com que alcancemos rapidamente os esperados créditos finais da obra. São exatas duas horas e vinte minutos de uma produção que se estende muito em momentos que não adicionam nada à narrativa, como nas várias comemorações e alegrias da protagonista por suas evoluções ou vitórias. Me remeteu ao insuflado Bling Ring: A Gangue de Hollywood de Sofia Coppola. Cenas como a da personagem sobrevoando por dentre os prédios da cidade de Chicago, sentindo-se finalmente livre de seus antigos grilhões, funcionam muito mais por suas metáforas “sonrisal” altamente didáticas (a felicidade, a superação, o soerguimento) unicamente do que pelo que mostram em seus cansativos minutos de computação gráfica e fotografia de noite azulada.

    Voltando às lentes de Küchler, porém, vemos que na medida em que os 140 minutos de Divergente transcorrem, o que emanava da cor branca (da inocência e abnegação) vai se tornando prata, ganhando densidade, corpo, assim como a crescente (e, aliás, belíssima) trilha sonora de Junkie XL, supervisionada por Hans Zimmer, que, ainda que usada em excesso várias vezes, em outras consegue trazer, de forma simples e suave, sentimentos como melancolia, decepção e medo, complementando a construção imagética Shailene/direção de arte.

    A composição do abrigo de Audácia é interessante. Vezes parecendo um extenso ringue de UFC, vezes um colégio interno “barra pesada”, contando com os tradicionais grupinhos estereotipados (os brigões, o piadista do bullying, o nerd, a tímida e etc), o lugar incorpora bem o momento de ruptura ao qual os adolescentes estão sendo expostos. Em relação às cenas de ação, com ressalvas às lutas que acontecem durante o treinamento (e que novamente remetem a Jogos Vorazes até em seu grau de ousadia contida), Neil aposta mais em cenas sem violência, ou que se deem de forma “limpa”, sem culpas (em simulações de embate ou em sonhos, por exemplo), do que nas que envolvem o conflito em si, o qual tem por base um plano encabeçado por Jeanine (Kate Winslet, é… ela tá no filme), a líder da Erudição que, tal a insipidez na narrativa, mais parece uma mistura do Presidente Snow com a Jessica Delacourt de Elysium. A sub-trama (que depois de revelada se torna trama principal do filme e surge como mote para mais minutos de projeção), apesar de surgir de forma megalomaníaca, fazendo vários movimentos de personagens, trazendo alguns de volta, executando outros, aprofundando o romance, apelando para dramas familiares, prometendo mudar a estrutura de tudo o que vimos até então, faz realmente apenas isso: promete. Algum motor liga, mas o avião de Divergente não decola e voltamos a dormir pois o filme parece não acabar. E o pior? Segundo o E = MC² das adaptações de obras infanto-juvenis, era basicamente isso que esperávamos desde o início.

    Shailene. O mergulho na psiquê de sua personagem, Tris, é o que há de melhor em Divergente. Seu Corra, Lola, Corra onírico é algo que, quando surge, traz esperança. Melhor explorado, mais paciente e frequente, certamente essa particularidade conduziria a obra a um patamar, se não superior, mas singular em relação às outras adaptações. A distopia high school, infantil e genérica da obra, no entanto, faz com que A Hospedeira venha à cabeça. Mesmo que os dois produtos tenham enredos completamente distintos, surgem, porém, da mesma fonte: a Unilever cinematográfica.

    Texto de autoria de Rodrigo Rigaud, do Zona Crítica.

  • Crítica | Confia em Mim

    Crítica | Confia em Mim

    confia em mim

    Confia em Mim é um dos raros casos de filmes nacionais de gênero que funcionam, seja pelo talento de Fernanda Machado, o carisma do (agora famoso) Mateus Solano, e principalmente pelo roteiro de Fabio Danesi, que forneceu a Michel Tikhomiroff um bom material para a direção do filme.

    A assistente de cozinha Mari sonha em abrir o seu próprio restaurante, e, ao se envolver com o misterioso Caio e aceitar a sua ajuda para abrir o seu próprio negócio, acaba sendo vítima de um golpe. Resignada em contar a família o que aconteceu, ela vai na polícia, mas talvez seja tarde demais.

    O roteiro não se assume como original e logo de cara opta por seguir os clichês do gênero romance/suspense, o que demostra a sua honestidade na falta de pretensão da história que está sendo contada. A estrutura sólida se cria desde o início com a protagonismo absoluto de Mari desde a sua frustração como assistente de cozinha, o envolvimento com Caio, o golpe, a investigação da polícia e o desfecho.

    As participações pontuais dos coadjuvantes são importantes não só para a construção tridimensional da protagonista, mas também a do antagonista. O que poderia ter sido um desfecho coerente se tornou um bom final pela atenção com que Fabio Danesi teve com o roteiro. Os fatos finais da história acabam se revelando surpreendentes quando a história antes havia puxando o espectador para um aparente beco sem saída.

    A direção de Michel Tikhomiroff, filho de João Paulo Tikhomiroff que dirigiu o frustrante Besouro (Idem, Brasil, 2009), não compromete o bom roteiro e consegue deixar os atores a vontade, mas ainda presos a alguma atuação teatral ao longo da história. As escolhas de decupagem e movimento de câmera são padronizadas e acabam não criando o melhor clima que o roteiro pedia, tornando-as satisfatórias, deixando o filme em um nível mediano que não merecia, se a direção fosse outra.

    As atuações são medianas, mas, mesmo contida, Fernanda Machado consegue protagonizar de forma satisfatória e revelar os dramas que ao ter a confiança quebrada e seus sonhos despedaçados. A atriz também consegue transpor para as telas o ímpeto e a determinação quando Mari resolve ir na polícia e participar da investigação. Mateus Solano, por sua vez, nas vezes em que aparece domina a cena de uma forma que incorpora um personagem sem vícios.

    A fotografia de Rodrigo Monte é televisiva e algumas vezes não teve o tom naturalista que algumas cenas pediam, como no Jockei por ex, mas nas cenas da casa de campo com a mãe e irmã da protagonista elas elevaram o tom das cenas. No geral, o que poderia ter sido uma ótima fotografia acaba não comprometendo a obra.

    A edição de Gustavo Giani consegue dar ritmo quando o filme necessita, mas o clímax podia ter sido melhor construído se o material em mãos fosse mais bem trabalhado. Ele segue o roteiro e a direção criando o que se espera de um bom editor, não passando muito disso.

    Confia Em Mim merece ser visto principalmente por seguir uma linha diferente dos cinema brasileiro dos últimos tempos: optar por um gênero que destoasse das comédias da Globo Filmes, dos filmes de favela, ou dos dramas de classe média. Desde 2 Coelhos (Afonso Poyart, 2012) não se via um filme diferente no grande circuito brasileiro.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Refém da Paixão

    Crítica | Refém da Paixão

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    O quinto longa-metragem de Jason Reitman tem uma temática um bocado diferente da sua filmografia. Juno, Amor Sem Escalas, Jovens Adultos e Obrigado por Fumar, apesar de não serem comédias, têm fortes pitadas de humor dentro de sua abordagem, mesmo quando é o drama que predomina. A tônica de Refém da Paixão é um pouco diferente, um pouco por este ser baseado no romance de Joyce Maynard (Labor Day, como o título original do filme). Henry Wheeler, é interpretado de início por Gattlin Griffith e “narrado” por Tobey Maguire.

    A postura de Henry envolve proteger sua mãe, Adele (Kate Winslet), já que ele e toda a comunidade a enxerga como uma pessoa frágil após o recém-consumado divórcio, não tão comum à época, vide que a história se passa em 1987. Ao contrário dos outros, Henry a vê como uma mulher forte, mas que passa por uma crise, e tenta a seu modo infantil, suprir as necessidade maritais, mesmo sem ter consciência de como funciona um matrimônio. O menino busca suas soluções, mas tem sua trajetória interrompida de forma deveras entrópica pelo fugitivo Frank Chambers (Josh Brolin), que pede auxílio a ele, e que tem o clamor aceito por ele, a priori.

    O desenrolar dos fatos a partir daí é pontuado pelas sensações dos personagens. O suor no rosto de Adele não demonstra só calor, mas também a dúvida e o incômodo que a situação de abrigar um foragido da justiça causa em sua (já antes) confusa e abalada mente. Até mais do que os sentimentos já citados, o suor faz referência a tensão sexual entre os envolvidos, motivada por sua vez pela postura do “sequestrador”, atencioso e atento a fome que Adele sofre. A sensação que ele supre dela é dita pela própria, em um diálogo reflexivo, entre mãe e filho. O sexo não se trata só de secreções, e sim do toque entre os humanos e da necessidade de saciar esta vontade.

    Apesar de ligado a marginalidade, a constituição do passado de Frank segue um mistério, em princípio, primeiro pela suas palavras de que corre na imprensa não é verdade e segundo por suas atitudes subservientes. Em poucos momentos isso é um problema, os únicos pontos inconvenientes são os que envolvem a possibilidade de Frank ser pego. A atitude de rato acuado fica mais evidente quando isto acontece. Ele é um homem bruto, mesmo quando não se mostra um sujeito insensível. A violência de sua alma é velada, escondida sobre uma capa de normalidade, não muito diferente do homem simples, claro, guardadas as devidas proporções, que utiliza a civilização para domar seu instinto de selvageria.

    Aos poucos, Frank ganha o respeito e o espaço dentro da casa dos Wheeler. Os problemas de infraestrutura da casa são resolvidos um a um, e ele ainda mostra uma ótima capacidade de adaptação, quando adversidades chegam ao seu leito. Aos poucos, os pecados passados do homem são mostrados, longe é claro da narração de Henry, tais cenas remetem às conversas particulares do inusitado casal, e são aceitas por Adele como parte de uma atitude impensada, juvenil e passional. Após Henry tomar consciência do que sua mãe faz com Frank, a dupla é quase sempre flagrada em momentos de pós-intimidade, em que a mãe usa trajes curtos, mostrando-se muito mais a vontade.

    A cor que predomina na casa dos Wheeler é o marrom e diversas outras tonalidades átonas, que remetem à melancolia e tristeza da vida da família, comumente resignada, a começar pela figura da matriarca. A insegurança de Adele é ligada a um terrível trauma do passado – que é paralelamente cortado pela possibilidade de trauma do menino, impingido pela misteriosa personagem que lhe presenteia com o primeiro beijo. A diferença entre a motivação dos personagens é que, no caso da mãe,  o temor é justificado por um fato vivido que a marcou, enquanto ao filho, resta apenas a triste sensação de ter dado cabo a possibilidade deles retornarem ao estágio de uma família comum.

    Frank muda. Ele retorna a si, ao seu estado e ao visual que tinha antes do crime que teria cometido. Com o seu conjunto de planos ele ratifica a ideia de que a família era para si algo sagrado, acima de qualquer outra ação mundana. Todo o seu conjunto de ações visava proteger Adele e Henry, assim como ele tencionava fazer com a sua outra família.

    Mesmo próximo ao final, quando a família está em processo de fuga, Adele ainda se sente presa ao seu passada e a antiga posição de refém de seus traumas e de suas inseguranças. Os zumbidos, característicos dos momentos de tensão ocorridos no começo do filme voltam à tona, quando ela se vê pressionada e temerária novamente.

    Após a prisão de Frank, a primeira saída de Henry de seu lar e da confissão da figura paterna, arrependida por ter insistido pouco na própria felicidade, o rapaz finalmente retorna à ideia que sempre declarara ser importante, desde o início do filme. Seu futuro e seu ofício foram muito influenciados pela figura de Frank, que ele ajudou a manter longe de sua mãe. Afastar a única pessoa que a impedia de se isolar deixou ele culpado, ainda mais, devido a ingerência que este teve em seu caráter. A marca que o homem deixou em sua alma era indelével e inegável, e mesmo com toda a tragédia e tristeza, o perdão acabou por prevalecer, mesmo sobre as atitudes que fizeram com que todos fossem menos felizes, nos vinte e cinco anos que seguiram após o acontecido em 1987.

  • Crítica | Need for Speed: O Filme

    Crítica | Need for Speed: O Filme

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    Uma série de fatores já denunciavam que esta seria uma produção complicada. O primeiro e mais óbvio: o timing, que resultou numa aparente falta de originalidade. Impossível olhar para este filme e não encará-lo como um Velozes e Furiosos genérico. Ironicamente, a franquia de games Need For Speed serviu como inspiração para a saga de Toretto e sua turma. No cinema a relação fica invertida  um tanto injusto, mas a vida é assim. John Carter que o diga.

    Mas quem dera se a sensação de algo já visto antes fosse o único problema de Need For Speed – O Filme. Adaptações de games para as telonas sempre encaram um monstro chamado “perda da interatividade”, restando apenas a história. O que fazer em casos de filmes cujos roteiros não são exatamente o forte do jogo? E ainda: como se diferenciar daquela outra franquia que envolve carros velozes? Enquanto Velozes e Furiosos abraçou a zoeira sem limites e encontrou seu nicho na diversão descerebrada, Need For Speed tenta se levar a sério, investir numa histórica dramática entre as corridas. Mas aí parece se lembrar de que “precisa” fazer algumas referências aos games e embarca em situações altamente inverossímeis que não se encaixam no realismo trabalhado até então.

    Dirigido por Scott Waugh e roteirizado por George e John Gatins, o longa conta a história de Tobey Marshall (Aaron Paul). Dono de uma oficina e talentoso piloto de rachas, Tobey é incriminado por seu arqui-inimigo Dino Brewster (Dominic Cooper) e acaba preso. Anos depois, ele parte em busca de justiça e vingança, naturalmente sobre quatro rodas e em alta velocidade. E aí o roteiro começa a derrapar. Obstáculos e elementos complicadores são sugeridos, mas tudo se resolve rapidamente, com muita facilidade.

    Tobey e seus amigos (todos absurdamente fiéis) trabalham em uma oficina prestes a falir, mas possuem carros e equipamentos de ponta. Uma corrida ilegal, supostamente secreta e exclusiva para poucos, mas que é amplamente anunciada na Internet por um famoso radialista amador. O protagonista, recém-saído da prisão, consegue convencer o ricaço a “emprestar” seu carro de três milhões de dólares para usá-lo numa atividade ilegal, cujo prêmio para o vencedor seria apenas levar pra casa todos os outros carros  supondo que estes não acabem destruídos ou apreendidos. E, evitando entrar em spoilers, a forma infantil e simplória com que um caso judicial é resolvido dois anos depois do ocorrido é uma agressão à inteligência do espectador.

    O roteiro também não acerta a mão ao estabelecer o desenvolvimento dos personagens e as relações entre eles. Falta carisma a Aaron Paul; ele repete todos os trejeitos do seu Jesse Pinkman da reta final de Breaking Bad, e simplesmente não convence como protagonista/herói de ação. Não há química alguma entre ele e o interesse romântico vivido pela absurdamente linda Imogen Poots, também porque esta personagem não diz a que veio, parece estar ali simplesmente por obrigação. Dominic Cooper é prejudicado por ter pego o papel de um vilãozinho quase mexicano de tão caricato. Michael Keaton pouco acrescenta, pois só faz monólogos (e parece interpretar o mesmo personagem de Robocop). Ah, e um destaque negativo para Scott Mescudi, que vive um dos amigos de Tobey. Espécie de Jamie Foxx genérico, ele tentar ser cool, engraçado e falastrão, mas fica tão forçado e estereotipado que se torna o personagem mais chato do filme.

    Com relação aos aspectos visuais, o filme merece crédito. O diretor entende a proposta de espetáculo e emprega bem recursos como zoom, câmera lenta, e ângulos que favorecem a beleza das máquinas e dos cenários. Os efeitos especiais acompanham a qualidade, sendo dignos do que se espera de um blockbuster. Mas é pouco, não há como negar. Need For Speed – O Filme é razoável e esquecível mesmo se encarado como simples entretenimento. Ainda que a arrecadação fora dos EUA tenha evitado o fracasso (domesticamente, o filme sequer se pagou), é difícil enxergar uma franquia nascendo aqui. Velozes e Furiosos, indo para o sétimo filme, não enxergou nem mesmo uma distante poeirinha pelo retrovisor.

    Texto de autoria de Jackson Good.

  • Crítica | Rio 2

    Crítica | Rio 2

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    Um deslumbre visual em 3D! Isso é o que se pode resumir da nova empreitada do diretor Carlos Saldanha e sua produtora Blue Sky, a continuação das aventuras de Blu, a ararinha azul criada em Minnesota. Com muita música e visual fantástico, Rio 2 prende a atenção do espectador por ser divertido e nada mais. O roteiro, assinado por Saldanha e Don Rhymer, não é uma obra-prima e peca pelo excesso de clichês, mas isso não é um impedimento para a plateia mais jovem da sala  decididamente, o público-alvo que vai comprar os bonequinhos e outras peças de merchandising.

    O filme começa no ano-novo do Rio de Janeiro com uma linda sequência musical, mostrando pessoas vestidas de branco na praia, fazendo oferendas a Iemanjá, tendo o Cristo Redentor ao fundo, além de muitos fogos de artifício. A música, parte em inglês, parte em português, é bastante chamativa, e as coreografias dos pássaros são belíssimas. Essa cena de abertura dá o tom do resto do filme. Para quem não gosta do gênero musical, isso incomoda bastante. Cada momento de drama, ação ou desenvolvimento de roteiro são intercalados por sequências musicais.

    Blu vive em um santuário para pássaros criado por Túlio e Linda no final do primeiro filme e localizado na Floresta da Tijuca. Leva uma vida confortável com sua esposa Jade e seus filhos Tiago, Bia e Carla, adaptando o american way of life ao “jeitinho brasileiro”. Blu não quer nada além da boa vida nos trópicos e das comodidades que a tecnologia moderna pode oferecer. Mas tudo muda quando Jade descobre através do noticiário que existem evidências de que uma família de ararinhas azuis vive na Amazônia. Como acreditavam ser os últimos representantes de sua espécie, essa informação vem como um golpe na vida das aves. Jade fica extremamente animada para conhecer outros membros de sua espécie, esperando talvez encontrar algum familiar perdido. Blu, por sua vez, não quer deixar a comodidade de seu lar para se arriscar numa viagem tão longa e perigosa.

    E então esse conflito se resolve de forma tão rápida que acabamos esquecendo dele. Blu concorda em viajar, mas tem que convencer seus filhos e… Opa, já conseguiu também! A viagem até a Amazônia se resolve com mais um número musical e, de repente, opa de novo! Nossos heróis encontram a família de Jade! Tudo muito rápido, muitas coincidências e, claro, com muita música! Falando em coincidência, adivinha quem avista o grupo de pássaros assim que eles chegam a Manaus? Nigel, vilão do filme anterior, que quer se vingar de Blu por não poder mais voar.

    A partir desse ponto, temos mais e mais clichês saltando da tela: madeireiros explorando a floresta ilegalmente, ecologistas que querem salvar a floresta, a capanga que se apaixona pelo vilão, e Blu entrando numa fria maior ainda com a família (trocadilho intencional). O pai da garota que é um ótimo avô mas não vai com a cara do genro. O amigo de infância bem-sucedido que desperta ciúme no marido. A gangue rival. O concurso de talentos. O conflito resolvido com um tipo de esporte. Rivais percebendo que têm algo em comum. A batalha campal para derrotar os vilões. Piadinhas infames. Está tudo lá, numa salada de clichês envolvida em muito samba e maracatu. Tem até um desfecho shakespeariano para o casal de vilões!

    Ao fim, parece que nos são apresentados personagens demais, tramas demais e resoluções fáceis demais para os conflitos. Mas o deslumbre visual  e por que não dizer, também, musical?  consegue prender nossa atenção sem tornar o filme enfadonho. Pode ser uma propaganda do Brasil para o ano da Copa, uma máquina caça-níquel de produtos relacionados ou uma opção para pais que querem algo leve para seus filhos pequenos assistirem. Mas Rio 2 parece conseguir se firmar como uma franquia de sucesso, e não nos surpreenderia se mais uma sequência for lançada nos próximos anos.

  • Crítica | 7 Caixas

    Crítica | 7 Caixas

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    Com roteiro de Tana Schembori, direção de Tito Chamorro e Juan Carlos Maneglia, o filme conta a história de Vítor (Celso Franco), um adolescente com 16 ou 17 anos, carreteiro no centro de Assunção (Paraguay), no Mercado 4 – um meio-termo, ou melhor, uma mistura entre Mercado Municipal e rua 25 de Março (via de comércio popular em São Paulo) – onde a concorrência é grande e os carreteiros disputam os clientes quase a tapa. Ele recebe uma proposta incomum: carregar sete caixas de conteúdo desconhecido, em troca de uma nota de 100 dólares, isto é, de meia nota, já que só receberá a outra metade quando completar o serviço. Óbvio que a tarefa acaba se tornando cada vez mais difícil de cumprir à medida que a trama avança.

    Um detalhe que deixa a trama interessante é a “rede” de personagens. Inicialmente, conhecemos Vítor, sua irmã Tamara (Nelly Davalos) e sua amiga Liz (Lali Gonzalez). À medida que a narrativa se desenvolve, novos personagens são agregados – Don Dario (Paletita) e os funcionários do açougue; as colegas de trabalho e os chefes de Tamara; o carreteiro que seria inicialmente contratado, seus colegas, sua irmã e o policial que a paquera. E todos estão interligados de alguma forma, sem que isso pareça forçado ou artificial – um uso bastante criativo do conceito de “Seis graus de separação”.

    E do mesmo modo como é intrincada a rede que envolve os personagens, assim é o cenário. Praticamente toda a história se passa nos meandros do mercado, com seus corredores labirínticos e aparentemente indistinguíveis, ao menos aos nossos olhos “estrangeiros”. E, pela estreiteza das passagens, as perseguições não são feitas em carros possantes – que serão destruídos em algum momento do trajeto – mas sim a pé, empurrando os carretos. E se aproveitando disso, o recurso “câmera na mão” – no caso, câmera no carrinho ou câmera no peito – é usado com bastante frequência, mas não chega a ser excessivo. Agrega tensão ao mesmo tempo em que garante alguns enquadramentos bem interessantes.

    Vale reparar que boa parte dos problemas – inclusive o problema inicial, temporariamente resolvido com a entrega das caixas à Vítor – é causada por mal-entendidos, por conversas mal interpretadas ou ouvidas parcialmente. E essas conversas truncadas têm seu entendimento ainda mais dificultado pela mistura de idiomas. Boa parte dos personagens, principalmente do núcleo do mercado, conversam misturando espanhol e guarani. Foi bem estranho no início do filme, pois eu lia a legenda tendo uma certa ideia de como a frase soaria em espanhol, mas a fala dos atores era algo totalmente diferente, até que me lembrei do guarani. Para aumentar ainda mais o imbróglio linguístico, os proprietários do restaurante em que Tamara trabalha são coreanos, o que gera boas sacadas de humor.

    Esta versão paraguaia de filme de perseguição hollywoodiano não tem nada de paraguaia, não no tom pejorativo que comumente o termo assume aqui no Brasil. O filme é sim carregado de clichês, mas roteirista e diretor souberam usá-los a favor, tanto para fazer o espectador rir como para satirizar o próprio clichê e a indústria cinematográfica que lhe deu origem. E é por isso que, apesar de identificarmos um sem número de elementos narrativos bastante conhecidos, o filme consegue entreter e envolver o expectador – e por vezes até surpreendê-lo.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | O Espetacular Homem-Aranha 2: A Ameaça de Electro

    Crítica | O Espetacular Homem-Aranha 2: A Ameaça de Electro

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    Imagine uma casa muito bem projetada. Quartos, sala, cozinha, banheiros, todos no lugar certo e com tamanho ideal. Mas na hora da decoração, algo sai errado. Alguns cômodos ficam bonitos e funcionais, outros parecem bregas e de mau gosto. Ou simplesmente horríveis mesmo. Agora substitua “casa” por “filme” e aplique o mesmo raciocínio. O resultado será a definição precisa desta segunda aventura do Homem-Aranha da nova geração. Aguardado com desconfiança devido à controvérsia que marcou seu antecessor, O Espetacular Homem-Aranha 2: A Ameaça de Electro consegue a proeza de acertar nos aspectos mais difíceis e falhar infantilmente nos mais fáceis.

    A narrativa é situada logo após os eventos de O Espetacular Homem-Aranha. A personagem está estabelecida como um herói já mais experiente e adorado pela maioria dos nova-iorquinos. Peter Parker já está ganhando uns trocados vendendo fotos para o Clarim Diário (que aparece só através de menções, assim como J. Jonah Jameson) e segue namorando Gwen, ainda que assombrado pelas últimas palavras do capitão Stacy. Outra herança do primeiro capítulo é o misterioso passado do pai do herói, ligado a Oscorp, empresa que se revela cada vez mais como o centro dessa nova franquia. Dão as caras Norman e Harry Osborn, com uma dinâmica bem diferente da esperada  e muito interessante. E, da mesma forma que o Lagarto na aventura anterior, o(s) inimigo(s) da vez também surge(m) da Oscorp.

    O filme consegue combinar várias linhas narrativas e amarrá-las de forma satisfatória. O ritmo é acelerado, mas funcional, praticamente não há sensação de elementos corridos ou mal explorados. Tecnicamente ele também é acima da média, não só os efeitos visuais como também os sonoros chamam a atenção positivamente. As cenas de ação são bem empolgantes, ainda que seja incômodo o exagero em enfatizarem o espetáculo e a louvação ao herói. Duro de engolir as grades de isolamento e plateia quase sempre presente, como se as ações do Homem-Aranha fossem algo planejado, uma parada ou desfile.

    Andrew Garfield é um bom Homem-Aranha e um fraco Peter Parker. Explicando: o herói está mais espirituoso e brincalhão, o verdadeiro Amigão da Vizinhança dos quadrinhos. Mas sem a máscara, ele parece ser indeciso entre ser o hipster descoladão do primeiro filme e o Peter de verdade. Não um nerd CDF babão, mas um cara um tanto atrapalhado, que os outros não levam muito a sério. Isso é importante, pois faz parte da identidade secreta. Garfield parece ter sido informado disso e melhorou em relação ao capítulo anterior. Mas se mostra um ator limitado e limita-se a gaguejar ocasionalmente. Sorte dele que em vários momentos a ótima Emma Stone está em cena para salvá-lo. Há um inegável carisma entre os dois, e o romance vai-e-volta é bastante convincente, típico de jovens/pós-adolescentes, como são os personagens.

    A apreensão maior era, sem dúvida, referente à presença de três vilões na mesma história. A lembrança de Homem-Aranha 3 criou o dogma de que isso não funciona. Mas como Capitão América 2 acabou de mostrar, isso é bobagem. Aqui, Electro, Duende Verde e Rino dão as caras em diferentes momentos, e cada um tem sua função bem definida na trama, sem atropelos. Por outro lado, se na organização do tempo de cada um não há problemas, o desenvolvimento individual tem suas falhas. E a maior delas, ironicamente, está no inimigo que dá o subtítulo ao filme.

    Max Dillon, o Electro, tem a motivação mais fraca, simplória e imbecil já vista em filmes de super-herói. Ele é movido por inveja, birra e desejo de ser notado e fazer amigos. Mas tudo tratado de um jeito lamentável, vergonha alheia. Não há timidez, solidão ou inadequação social que justifiquem a mentalidade de uma criança de 5 anos que ele apresenta. Jamie Foxx está propositalmente caricato, não há mérito nem culpa dele. Por conta disso, é difícil apontá-lo como “vilão principal”, apesar de seu altíssimo nível de poder (lembrando muito a versão Ultimate, na qual ele peita até o Thor). Electro é, ao longo do filme, vítima, ferramenta e ameça, mas lhe falta personalidade pra ser um verdadeiro antagonista. Esse papel acaba pertencendo a Harry Osborn.

    A amizade de Peter e Harry é introduzida de forma retroativa, o que não prejudica em nada. Dane DeHaan mais uma vez provou ser um grande ator, vivendo seu papel com tanta intensidade que chega a ofuscar o protagonista. Harry tem suas motivações bem desenvolvidas, e sua “queda para o lado negro” é orgânica e convincente. Até os 40 minutos do segundo tempo, pelo menos. O roteiro se apressa e força a barra na hora em que Harry assume sua segunda identidade. Não há grandes justificativas para ele usar aquele traje e equipamentos, a impressão foi que alguém se lembrou que isso era OBRIGATÓRIO e não se incomodou em embasar.

    Aliás, faltou também uma explicação sobre por que a Oscorp possui diferentes projetos de armamentos. Nos quadrinhos do Universo Ultimate a empresa está inserida numa corrida armamentista, mas no filme isso não é mencionado explicitamente. Nessa linha, o Rino, em sua curtíssima participação, serve apenas como prelúdio para os futuros planos do estúdio. E para mostrar que o universo do Homem-Aranha é isso, novas ameaças surgem a todo instante, reforçando a importância e a necessidade do herói. O senso de responsabilidade de Peter Parker é testado e redimido neste filme, após ter sido incrivelmente mal apresentado no primeiro. Pena que, para isso, uma tragédia fosse necessária.

    Pra quem conhece um mínimo dos quadrinhos, era um evento esperado. Mas para o público infantil, aquele que Garfield declarou ser o foco da produção, deve ter sido um baque e tanto, uma violenta quebra no tom leve e bem humorado da produção. Essa vontade de atingir todas as faixas etárias naturalmente é algo nocivo ao filme, mas há que se louvar a coragem dos realizadores. Um dos momentos mais marcantes e pesados da vida do herói, fundamental na sua formação de caráter, ganhou uma ótima representação. Resta saber se, nos próximos filmes, existirá coerência em adotar um clima menos infantil. O Espetacular Homem-Aranha 2 ainda não foi o grande filme que o herói merece, mas mostrou potencial e disposição em explorar seu universo. Não custa ter boa vontade e torcer pra evolução continuar.

    Texto de autoria de Jackson Good.

  • Crítica | Até o Fim

    Crítica | Até o Fim

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    A sensação desesperadora de que tudo se findou, especialmente a esperança, é deveras desalentadora. O monólogo de Robert Redford dá vida ao solitário sujeito, que enfrenta a duras penas o isolamento em alto mar e que aos poucos, desconstrói a imagem de macho alfa que a própria carreira deste como ator, aos poucos construiu. O segundo filme de J. C. Chandor é bem mais intimista que o seu anterior (o “drama econômico” Margin Call: O Dia Antes do Fim), e com diversos signos visuais discute a resolução do homem e sua autossuficiência.

    Após um contêiner bater em sua embarcação, o homem tenta remediar o rombo que ficou em seu veículo, uma vez que era o único tripulante em sua embarcação. Nem as rugas, que evidenciam uma longa jornada já vivida e nem a perda de alguns dos possíveis contatos seus com o mundo civilizado – computadores, celulares, etc – fazem o sujeito parar ou esmorecer em sua busca por conserto, afinal, sua subsistência dependeria naturalmente disto. O modo com que ele se movimenta prioriza as ações comuns e subterfúgios mais fáceis, só que até esse planejamento se mostra falho.

    Em poucos momentos o silêncio é cortado, são passados quase vinte minutos entre a primeira fala – uma confissão do Homem a qualquer alguém que ele perdeu ou perderá – e a segunda – uma transmissão de rádio não concluída por ele. O navegador em questão não é tão habilidoso, visto que diante de uma dificuldade ele lança mão de um manual de instruções para conseguir manejar a situação difícil que tem em mãos, ele representa o homem comum, que em busca de sobreviver às agruras da vida, acaba se alimentando de fórmulas mil e de listas que a priori o ajudariam a enfrentar com mais facilidade seus problemas cotidianos, mas que na prática, constituem-se máximas inúteis e que funcionam apenas no discurso. Não existem soluções fáceis, e nenhum manual para superar a vivência e a experiência adquirida depois de tais fatos ocorridos.

    A lente de Chandor flagra todo o desespero do rosto presente nas expressões impingidas pelo veterano ator. O naufrágio iminente pode ser usado como alegoria para inúmeras questões comuns a vida do homem: velhice, condições de saúde precárias, morte anunciada. A fotografia de Frank G. DeMarco e Peter Zuccarini ajuda muito a aumentar a expectativa do público em saber qual será o destino do seu herói. A câmera é trôpega e periquitante, como toda a trajetória do personagem retratado em tela, ela emula toda a dificuldade que o sujeito tem em manter-se vivo.

    O mesmo mar revolto, antagonista da jornada do Homem, pode ser palco de exibições sublimes, de pequenas e inofensivas criaturas marinhas, incapazes de fazer qualquer coisa que não embelezar a paisagem.

    A experiência de Até o Fim é muito melhor vivenciada quando se faz no ambiente do espaço cinema, onde a ausência de luz e de ações externas permitem ao espectador mergulhar fundo na história contada. Desse modo a empatia pelos dramas vividos pelo personagem de Redford tornam-se mais profundas e a identificação torna-se maior. A possibilidade de escapar através da intervenção de uma outra embarcação, maior e mais carregada de significados é frustrada, mas, uma vez se refutando as respostas usadas pelo senso comum, o homem está inexoravelmente só.

    O homem, ao tentar atingir os seus iguais, que estão em melhores condições, se farta da insistência e decide despedir-se daquela situação. A carta redigida representa o adeus resignado, a antiga fome pela vida dá lugar a irremediável conformidade, ainda que ainda lhe sobre um pouco de esperança, lá no fundo. A sua última tentativa de chamar a atenção dos “grandes” acaba por dar muito errado. Subjugado por dois elementos básicos da natureza, o Homem sucumbe, graças ao seu isolamento, só conseguindo emergir de volta à vida depois de angariar o auxílio de outros. Até o Fim é um estudo sobre o presente, sobre o quão cega pode ser a percepção de quem está em uma posição privilegiada a respeito dos que estão necessitados e sobre o quão devastadora pode ser a presença da soledade na vida do homem. O esforço e esmero de Redford e Chandor é muitíssimo recompensado, trazendo à luz um filme reflexivo e profundo, sem abrir mão da simplicidade.

  • Crítica | O Massacre da Serra Elétrica 3D: A Lenda Continua

    Crítica | O Massacre da Serra Elétrica 3D: A Lenda Continua

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    Dez anos após a controversa refilmagem de Marcus Nispel, foi lançado mais um reboot da saga iniciada em 1974 pelo mestre do terror Tobe Hooper. O novo episódio da franquia é tão reverencial ao filme clássico que começa com uma sequência de três minutos relembrando os fatos do episódio primordial, e pretensamente seguiria os fatos ocorridos após os eventos que envolveram Sally Hardest e seu grupo de amigos.

    A ideia parece estúpida por muitos motivos, entre eles a distância de quase 40 anos entre uma versão e outra. Outro possível problema é a audácia de tentar retomar algo do ponto em que um grande realizador parou. O maior dos riscos não era fazer um filme sem competência, até porque o próprio criador da franquia tratou de fazer isso ao realizar uma continuação, em 1986, com tons de comédia. O perigo real e imediato é que a fita seguiria mais uma falha tentativa de rever o conceito já tão saturado e laureado. O perigo se mostrou real, e a retomada veio de forma risível, fazendo referência às múltiplas versões realizadas, resgatando, inclusive, conceitos do filme de 2003.

    O baixo orçamento é notado já no início, com os tosquíssimos efeitos especiais em CGI, constituindo uma cena de incêndio de maior humor involuntário da história do cinema, digna das produções de Asylum e do canal Syfy. O elenco é liderado pela belíssima Alexandra Daddario (True Detective). Ela faz Heather Miller, uma adolescente que só descobre ser filha adotada após receber uma misteriosa correspondência afirmando que a vó, que sequer conhecia, faleceu.

    Após uma briga com seus pais, ela e um grupo de adolescentes resolve viajar pela bela paisagem texana em uma van, até que atropelam um viajante, dão carona a ele e repetem toda a jornada do roteiro manjado. Dona Verna Sawyer Carson deixa para sua amada e incógnita neta uma enorme propriedade, com uma gigantesca casa e um jardim de proporções dantescas. A mansão, localizada na extremidade do terreno, é repleta de passagens secretas, um campo inexplorado repleto de oportunidades para o caroneiro executar alguns furtos e ser castigado por seus maus atos. A primeira morte ocorre após mais de meia hora de exibição e a cena não exibe nenhum grafismo especial ou aura de suspense. Leatherface surge de forma previsível e não causa susto algum no espectador.

    A repaginação das cenas canônicas é feita de forma tosca, com bonecos ridículos e assassinatos sem o menor apelo visual. A direção de John Luessenhop é muito errática,  falha e relapsa. Seus planos de filmagem não são bem pensados e poderiam ser executados de inúmeras maneiras melhores. Nem mesmo as perseguições garantem um pouco de alento. As soluções encontradas pelo grupinho de heróis são estúpidas e sem lógica alguma. As mortes não são sequer lamentadas, visto o vazio completo que é o background dos protagonistas.

    No segundo terço do filme é mostrada uma sequência de perseguição no interior de um parque de diversões repleto de gente. Falar isto não faz jus ao absurdo e à pachorra da execução da cena. A situação só não é mais esdrúxula do que a investigação transmitida ao vivo via celular por um único policial, que sequer espera o reforço de seus colegas. O festival de bonecos mutilados no porão faz com que o 3D da fita torne-se ainda mais degradante e asqueroso, e esse aspecto não é graças ao gore, mas sim ao estilo paupérrimo de filmagem e ao registro pífio das ações.

    Leatherface é reduzido a um tacanho caipira, um imbecil de marca maior com a alcunha de Jebediah Sawyer. Deixa de lado a faceta de misterioso canibal, matricida e necrófilo para ser um mongol gigante, carente, sustentado pela tia idosa e que nas horas vagas pratica alguns assassinato para usar a pele de suas vítimas como peças do guarda-roupa.

    A situação fica ainda mais feia e calamitosa quando o remate se aproxima, com uma virada de roteiro que coloca os personagens numa rivalidade entre famílias. As ações decorridas apresentam referências a diversas franquias de terror, como Jogos Mortais, Halloween, Sexta-Feira 13. Se a ideia dos roteiristas era a de prestar homenagem a elas, a tentativa falhou miseravelmente.

    Os fatos que ocorrem nos últimos 15 minutos são tão mal arquitetados que parecem ter sido escolhidos por sorteio após sugestões dos piores contadores de história de todos os tempos. O vilão, construído para ser o diabo encarnado, é transformado em um zero à esquerda, tão digno de pena que faz com que a louca heroína se alie a ele, tudo em nome da sobrevivência e dos laços sanguíneos. Heather Miller se une ao mesmo sujeito que matou o seu namorado e seus amigos momentos antes. A condução que John Luessenhop dá ao seu filme faz com que a saudade de Marcus Nispel seja sentida, mesmo que sua versão do clássico tenha dividido opiniões. A incapacidade do cineasta responsável por esta versão de 2013 não conhece limites.

    O roteiro conseguiu o praticamente impossível feito de reunir a família Saywer em um doce e terno momento, seguido de uma bela mensagem vazia na qual é explicitado o legado da protagonista. Os fatos decorridos neste período conseguem ser mais absurdos que todo o conjunto de sandices anteriormente mostrado, pervertendo a máxima de que a ideia de realizar este filme era estúpida. Nada no filme se salva. As atuações são as piores possíveis. As gostosas atrizes miguelam até a semi-nudez. Todos os clichês possíveis de um filme de terror são executados e ainda se consegue a façanha de cometer gafes inéditas, como as mostradas nas cenas derradeiras. O débil roteiro ainda guarda uma cena pós-crédito inútil e dispensável. O Massacre da Serra Elétrica 3D está entre os já execráveis remakes de filmes de terror, o mais escuso da lista entre os mais recentes realizados, conseguindo superar e muitos os seus combalidos e abomináveis coirmãos.

  • Crítica | Free to Play

    Crítica | Free to Play

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    Free to Play tem como pano de fundo um grande campeonato do jogo Dota 2, onde o time campeão ganharia um singelo prêmio de um milhão de dólares, além de outros 600 mil dólares a outras colocações. Para quem não levava o e-Sport a sério, esse campeonato chamou a atenção. “Um milhão de dólares pra um bando de nerds jogadores de videogame? Que absurdo é esse?”

    O nome deste filme é bem interessante, pois traz uma ambiguidade de significado: “free to play” é a denominação que o Steam atribuiu a seus jogos gratuitos, cujo catálogo se estende cada vez mais (Team Fortress 2, Alien Swarm, War Thunder e o próprio Dota 2, só para citar alguns exemplos). Por outro lado, seria possível interpretar ao pé-da-letra, “livre para jogar”, que define muito bem o espírito dos jogadores mostrados no documentário.

    É importante dizer o e-Sport não se resume ao Dota 2. Há diversos gêneros nas competições, desde o jogo de luta Street Fighter IV até o estratégico Starcraft. Quem assiste às competições já conhece diversos nomes, tal como os fãs de futebol conhecem a escalação completa dos times. Este é mais um elemento semelhante aos esportes “comuns”.

    À primeira vista, Free to Play parece simplesmente uma grande propaganda do Dota 2, ou mesmo um documentário voltado aos jogadores deste MOBA. Eis aí o grande trunfo do filme: não há um grande foco do jogo. O ponto central é mostrar a trajetória daqueles jovens adultos rumo ao grande prêmio. Considerando o valor da premiação, qual o nível esperado dos competidores?

    Sim, os melhores do mundo.

    Para quem jogou qualquer coisa online, com certeza já sentiu um gostinho do nível de habilidade de algumas pessoas. Você já deve ter sido espancado no Street Fighter, humilhado no Call of Duty ou pulverizado no Warcraft. Agora, pense numa galera que se dedica REALMENTE ao jogo, que treina madrugada adentro, todos os dias, inúmeras horas por semana. O nível é profissional, tal como um atleta de MMA que sofre em treinamentos pesados e dietas rigorosas. Apesar de parecer uma mera diversão hardcore, não é bem assim. A pressão é enorme, e por diversas vezes os competidores beiram o desespero, vendo todo seu esforço caindo por terra. É isso que o filme consegue mostrar tão bem, de uma forma compreensível mesmo àqueles que não são gamers ou sequer jogaram Dota 2.

    O grande mérito do filme é conseguir mostrar que os profissionais do e-Sport também se dedicam e passam por dificuldades. Pouquíssimos conseguem viver apenas disso, precisando manter um trabalho paralelo ou, dependendo do caso, sustentados pelos pais. De qualquer forma, é um documentário recomendado para todos os públicos, mais até que o Indie Game: The Movie. Se você é gamer, vai gostar. Se você joga Dota 2, assista imediatamente.

    Você poderá baixar o filme gratuitamente no Steam (com direito a extras), ou assistir no YouTube, sendo que ambas as opções possuem legendas em português. Os respectivos links estão no site oficial do filme.

  • Crítica | Tudo Por Justiça

    Crítica | Tudo Por Justiça

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    O silencioso início do filme tem a função de anestesiar o espectador antes de introduzi-lo ao caótico e violento cotidiano de Harlan DeGroat, personagem interpretado por Woody Harrelson. No entanto, o estado de paz é cortado pelas atitudes nada amistosas do truculento homem, tanto com a mulher com quem se encontra quanto com o pobre sujeito que decide interferir na briga “conjugal”. Tudo Por Justiça é apenas o segundo filme em que jovem ator Scott Cooper dirige, precedido pelo bem-sucedido Coração Louco, filme que rendeu a Jeff Bridges seu primeiro Oscar. Cooper mais uma vez se mostra um bom realizador, especialmente em relação ao trabalho com seu elenco.

    Apesar de sua história ser mostrada aos poucos, em breves momentos nota-se que Russell Baze (interpretado por Christian Bale) é um personagem que busca adaptação a algo que não lhe é natural  no caso, um novo estilo de vida, dentro dos conformes da lei. Já de início é mostrado trabalhando exaustivamente para findar seus débitos com John Petty (Willem Dafoe). Sua busca por um modo mais tranquilo de viver é atravessado por um triste evento no qual, por um descuido imperdoável, se envolve num acidente de carro em que uma criança falece. Ele tenta socorrê-la, mas o esforço é em vão e acaba por ser preso. Sua rotina muda radicalmente, mas seu ethos permanece inabalável. Ele demonstra ser um homem de passado sombrio, mas com uma tentativa de manter seu caráter intacto, mesmo com os pecados cometidos. Seu alívio ao se ver livre das barras de metal da penitenciária é carregado de simbolismo, retratando a dupla liberdade do indivíduo, tanto a física quanto a da alma.

    Os primeiros passos, já liberto, vão de encontro a recuperar o tempo perdido, mas suas ações envolvem somente a observação da rotina, tanto a de sua ex, Lena Warren (Zoë Saldana), quanto a triste sina que seu irmão Rodney (Casey Affleck) impôs a si mesmo. Na sua primeira atitude de confronto, ele vê o caçula explicitar seu trauma por ter lutado no Iraque e ter visto muitos horrores, o que de certa forma explica o modo de conseguir o próprio sustento, ainda que seja feito por meio da destruição de seu corpo. A auto-combustão parece ser parte dos destinos os quais os Baze não conseguem fugir. Mesmo diante da mais triste das rejeições, Russell se mostra carinhoso com sua alma gêmea, o que ressalta toda a qualidade de sua moral.

    Resignado, Russell recebe de modo tranquilo as péssimas notícias de que o atentado que cerceou a vida de John Petty, e possivelmente a de Rodney, não pode ser investigado a fundo pelos policiais, graças à falta de cooperação dos populares. Os motivos dessa falta de elucidação são confusos na cabeça de Russell, já que o responsável pela investigação é o novo par de Lena. Muito mais do que isto, a teimosia do ex-presidiário é movida pela esperança de encontrar seu jovem irmão ainda vivo, mesmo que as chances de isso acontecer sejam mínimas.

    O exercício de contenção de Russell torna-se ainda maior quando ele vem a saber do consumado falecimento de Rodney. Assim que ele ouve as palavras definitivas, sua audição é interrompida por um zumbido intermitente e se recolhe, agindo naturalmente, em nada diferente do que vinha fazendo antes, ainda que um leve mudança em seu semblante possa ser percebida. O desejo incontido de finalmente dar vazão ao seu desejo se torna cada vez maior à medida que isto lhe é negado. Ele põe em prática um plano de vingança, engendrado de forma engenhosa mas ainda assim errático, o que torna o ato ainda mais verossímil por conter falhas de concepção e por caracterizar a frieza e crueldade do homem mau. O processo é lento e doloroso, em alguns momentos se assemelha a uma tortura e é curioso o cenário onde tudo ocorre, uma paisagem verde com predominância da luz do dia, contrastando com as trevas da alma de Russell.

    A coragem do personagem  e do roteiro de Cooper e Brad Ingelsky  em dar números finais à vingança é muito grande, visto que o risco de cair no pecado da redenção é muito grande, plausível dado o andar da trama. Outra interessante leitura do filme caracteriza-se pela análise da trajetória sob os olhos de Harlan, visto que ele é, inclusive, o primeiro personagem apresentado, trocando o ponto de vista do herói falido pelo de um anti-heróis que usa a máscara de vilão eventualmente. Dada a multiplicidade de interpretações e de temáticas, a execução de Tudo Por Justiça é assaz competente e rara. Possui narrativa simples mas que em momento algum é descartável ou libertina, ao contrário, apresenta uma história cativante e com personagens reais, como o homem comum.

  • Crítica | Hoje Eu Quero Voltar Sozinho

    Crítica | Hoje Eu Quero Voltar Sozinho

    hoje eu quero voltar sozinho

    O cinema brasileiro respira um frescor jovem, assim como os jovens deste filme. Suas rugas de produção rejuvenescem na era em que a arte vive acompanhada da publicidade na casa das fórmulas comerciais, e tal efeito Benjamin Button não é em vão; é fogo de palha tanto quanto a certeza em dizer que só existe um único cinema do Oiapoque ao Chuí. Mas é claro, tudo é possível na complexa nudez das consequências, resultados de certas mentes que conseguem reunir num produto só, vulgo filho exclusivo do cenário atual, o espírito nacional de diversidade cultural e homogênea, em prol de um abraço apertado nas antíteses a uma recorrente simbiose de pretensões artísticas que tanto assombram a produção fílmica nas quatro vértices da globalização pós-moderna. Hoje Eu Quero Voltar Sozinho afirma o que é desde o título: está sozinho no pódio do que conseguiu provar, com a ajuda do público, e sem precisar morar na “irresistível” casa das fórmulas.

    O filme tem algo a dizer e evita a simplicidade tradutória da carga de conteúdos a favor de algo ainda maior a resgatar. Readquire uma honestidade que não se impõe, brilhante e tenaz como a lua, cuja clareza (não confundir com lucidez) ideológica “apenas” se apresenta como identificável à população de um país inteiro, e a novas mentalidades – vide o fenômeno inesperado que o curta-metragem, fonte do longa em questão, tornou-se. Agora sua abrangência está desnudada, mais séria, competente e responsável por um público maior, sem mais os 12 minutos que nunca foram reduzidos à ideia primordial do cineasta Daniel Ribeiro (de Café com Leite), ciente da nova responsabilidade de retratar um pedaço de uma nova geração que raramente se vê, nua e crua, no retângulo do cinema, quiçá na telinha do youtube.

    Do famoso curta que propagou a própria qualidade no velho esquema “boca a boca” (ou será o contrário?), sobrou a visão de mundo pessoal do autor e o contexto agridoce entre humor e drama. Mas o maior feito do filme de 2014, em âmbito geral, é estabelecer de vez, sem maiores provas daqui pra frente, que o povo brasileiro ainda tem razão em confiar no material que nós mesmos gestamos e agregamos ao folclore de nossos mosaicos coloridos. E no exercício de demonstrar a diferença nos vieses comuns da convivência, Ribeiro volta a usar a cegueira como metáfora da atração sexual pelo mesmo sexo, e faz a liberdade sexual interpretar a autonomia que todo adolescente quer dos pais com quem convive. É chegada a hora da independência para o garoto Leonardo (Guilherme Lobo, pequeno grande ator), mesmo que ainda seja preciso, como o filme mostra, de uma mãozinha do pai na hora de fazer a barba quase inexistente num rosto cheio de espinhas. De metáforas e analogias caindo pelas mangas, o cineasta se apoia, às vezes, em territórios de comodismo, no público que já conquistou antes, e mais: na parcela do auditório que desconhecia suas recentes investidas atrás das câmeras, mas tem sede de novas óticas originais, de quem se habilita a reproduzir traços do mundo onde vivemos.

    Todavia, por buscar ser tão lenitivo senão aos prós e contras do nosso invólucro social de todo dia, Hoje Eu Quero Voltar Sozinho vale mais em seu catálogo de valores pelo que representa para com o público do que pelo conjunto de méritos que compõe sua estrutura de produção, já debatida antes nos tempos de Glauber Rocha e Cia.

    Uma realização humilde e impecável no que se propõe a discursar, jamais debater, impondo limites para si mesma e respeitando-os até o fim da projeção, equívoco ora justificável, ora não. Até aí, essa pode ser uma questão irrevogável. Contudo, será que esses limites deveriam existir no debate que o Cinema, agora com letra maiúscula, pode vir a ser no que diz respeito às relações humanas, principalmente nos parâmetros da comunidade LGBT e de outras que também buscam igualdade social? Talvez a resposta esteja garantida na provável continuação.