Categoria: Críticas

  • Crítica | Copa de Elite

    Crítica | Copa de Elite

    Copa de Elite

    Dirigido por Vítor Brandt, diretor da série Vida de Estagiário exibida pela Warner, esta comédia faz paródia com uma série de filmes nacionais, entre eles: Tropa de Elite, Bruna Surfistinha, Dois Filhos de Francisco, Se Eu Fosse Você, Nosso Lar, Minha Mãe é uma Peça De Pernas Para o Ar.

    O filme conta a história do capitão do BOPE Jorge Capitão (Marcos Veras), que passa de herói nacional a inimigo público número 1 após salvar o maior craque argentino de um sequestro às vésperas da Copa. Enquanto amarga a decepção por ter sido expulso da corporação e execrado pelo povo, fica sabendo por Bruno de Luca (ele mesmo) sobre a existência de um plano para assassinar o Papa durante a final da Copa. Para evitar o atentado, precisa reaprender a trabalhar em equipe e é auxiliado pela proprietária de um sex shop, Bia Alpinistinha (Julia Rabello); dois soldados, caricaturas de Matias e Neto de Tropa de Elite; um médium (Bento Ribeiro); além de sua mãe (Alexandre Frota).

    Impossível não pensar no personagem Frank Drebin, interpretado por Leslie Nielsen, tentando salvar a rainha da Inglaterra no primeiro Corra Que a Polícia Vem Aí. Mas a semelhança acaba aí, pois a qualidade do humor escrachado deste filme está anos-luz à frente de Copa de Elite, assim como o carisma tanto do protagonista quanto do ator que o interpreta. Os personagens secundários quase conseguem ser tão marcantes quanto o batalhão de Drebin, com destaque para Julia Rabello e Rafinha Bastos (Haters gona hate), lógico, mas se o espectador não tiver birra contra o humorista poderá se divertir bastante toda vez que seu personagem, René Rodrigues, estiver em cena.

    O roteiro nonsense consegue amarrar bem todas as referências aos filmes parodiados. Mesmo quem não assistiu a eles, entende as piadas. Logicamente que conhecê-los ou tê-los visto potencializa o efeito, apesar de não causar gargalhadas desbragadas no espectador. Em termos técnicos, a película não deixa nada a desejar para comédias americanas. Até mesmo os efeitos especiais conseguem não fazer (muito) feio.

    Talvez o filme seja um bom indício de uma aproximação entre a produção youtuber e o cinema, uma tentativa de colocar num formato mais extenso o humor rápido e conciso dos canais de esquetes, como o Porta dos Fundos. Mas ainda há muito chão pela frente até conseguir arrancar gargalhadas do público com a mesma eficiência dos vídeos da internet.

    Um parênteses: na cabine de imprensa, o único momento que fez a plateia rir para valer foi uma brincadeira com uma estatueta do Oscar “disfarçada” de Kikito. No restante do tempo, apenas uma ou outra risada esparsa.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Walt nos Bastidores de Mary Poppins

    Crítica | Walt nos Bastidores de Mary Poppins

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    Durante 20 anos, Walt Disney (Tom Hanks) tentou adquirir os direitos de Mary Poppins, da escritora australiana P.L. Travers (Emma Thompson), que sempre se recusou a vendê-los receando que Disney fizesse “um de seus desenhos bobos”. Entretanto, a crise financeira faz com que ela tenha que negociar. Desta forma, Travers viaja até os Estados Unidos e passa a trabalhar juntamente com a equipe escolhida por Walt Disney para que Mary Poppins chegue às telas. Minuciosa e com muita má vontade, ela começa a encontrar problemas de todo o tipo. Como o contrato lhe dá o direito de cancelar a cessão dos direitos caso não concorde com a adaptação, Disney e sua equipe precisam aceitar seus caprichos para que a produção saia do papel.

    O título nacional não poderia ser mais impreciso. Provavelmente no intuito de facilitar a vida da maioria dos espectadores que não faz ideia de quem seja Mr. Banks — personagem de Mary Poppins —, conseguiram errar duplamente ao rebatizar o filme. Primeiro porque Walt Disney não é o protagonista, como o título faz pensar; segundo porque não se passa nos bastidores de Mary Poppins, mas sim antes do início de sua produção, mais especificamente durante a escrita do roteiro adaptado. No entanto, esse é o menor dos problemas do filme.

    O excesso de licença poética é, sem dúvida, o maior problema. Ao contrário do que é mostrado, Disney e Travers nunca tiveram um relacionamento amigável. Na realidade se odiavam publicamente, não só antes, mas principalmente após o lançamento do filme — não, Travers não aprovou o resultado final, diferentemente do que o desfecho lacrimoso do filme quer fazer acreditar. Ela odiou o filme e se arrependeu pelo resto da vida por ter cedido os direitos a Disney.

    Tom Hanks encarna o papel de um senhor simpático porém muito diferente da realidade, já que Disney sempre foi conhecido por seu temperamento competitivo, quase hostil. Travers, reconhecidamente uma senhora de temperamento difícil, é retratada como uma solteirona ranzinza e “do contra”, bem menos amarga e intragável do que como definiam seus próprios familiares, e mais humanizada pela interpretação de Emma Thomson. Percebe-se aí o “efeito Disney” dos personagens, minimizando tanto os aspectos negativos de suas personalidades quanto o conflito entre dois temperamentos difíceis.

    As conversas entre Travers, o roteirista Don DaGradi (Bradley Whitford) e os músicos Richard e Robert Sherman (Jason Schwartzman e B.J. Novak) certamente não tiveram o mesmo tom divertido e quase gracioso mostrado no filme. Além disso, o roteiro quer induzir o espectador a acreditar que a intransigência de Travers quanto à cessão dos direitos não se devia às suas reservas quanto à padronização da indústria cinematográfica — a autora não queria que Mary Poppins fosse apenas mais um filme padrão Disney. Com uma quantidade excessiva — e irritante — de flashbacks, o roteiro insiste que sua intransigência tinha algo a ver com um trauma do passado. Os trechos da infância de Travers, que se alternam com sua estadia em Los Angeles, são por vezes confusos e comprometem a fluidez da narrativa, e parecem nitidamente escritos com a intenção de emocionar o público a cada dez minutos.

    Enfim, o filme serve mais como um lembrete de que Mary Poppins está prestes a comemorar 50 anos do que como uma obra comemorativa dessa data, já que essa nova produção não é nem marcante nem memorável.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Capitão América 2: O Soldado Invernal

    Crítica | Capitão América 2: O Soldado Invernal

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    Apreensão. Medo. Angústia. A situação não era confortável após as duas derrapadas da Marvel Studios em sua Fase 2. Thor: O Mundo Sombrio e principalmente Homem de Ferro 3 sinalizavam que o estúdio perdia a mão após todos os acertos da Fase 1, os quais conduziram ao evento chamado Os Vingadores. Para a alegria dos decenautas recalcados, que finalmente tinham certa razão em sua ladainha de que a Marvel só faz filmes medianos e/ou para crianças. Pois bem: beijinho no ombro para os invejosos de plantão, pois o segundo filme do Sentinela da Liberdade se mostrou não apenas uma volta aos trilhos, mas também uma das melhores produções do gênero.

    Não havia espaço em Os Vingadores para focar o desenvolvimento da luta de Steve Rogers para adaptar-se ao mundo atual. Desta vez, naturalmente, sua jornada pessoal assume o centro da trama. Ele está vivendo em Washington e estudando incansavelmente para situar-se na História e cultura mundiais das últimas décadas. Mas como herói não tem vida mansa, o Capitão está trabalhando para a SHIELD, em missões secretas ao lado da Viúva Negra e de uma equipe especial chamada S.T.R.I.K.E.R. Porém, para um cara que lutava por uma idealizada liberdade, não é fácil aceitar nossos cínicos tempos de vigilância massiva e ataques preventivos, o que o leva a alguns atritos com Nick Fury. E as coisas se complicam de vez quando uma gigantesca conspiração dentro da agência é revelada, e mais de um elemento do passado de Steve voltam à tona.

    O Capitão América é um super-herói com um leve diferencial. Idealizado como um soldado, não faria sentido vê-lo, hoje em dia, simplesmente patrulhando um cenário urbano, como Batman ou Homem-Aranha. E pegaria muito mal colocá-lo na linha de frente do Iraque ou Afeganistão — até porque, convenhamos, lá não há tanta ação que justifique a presença de um supersoldado. A abordagem mais coerente para o personagem é aquela trabalhada com maestria pelo roteirista Ed Brubaker numa fase recente dos quadrinhos: espionagem, black ops, terrorismo. A partir dela, o filme não adapta uma história específica, mas transpõe todo o clima, ambientação e estilo narrativo. O próprio Soldado Invernal — com visual emocionalmente idêntico ao das hqs —, ao contrário do que o título do filme faz pensar, não é o coração da trama, mas sim uma peça de uma engrenagem muito maior. O que funciona muito bem, aliás.

    O roteiro é muito equilibrado, alterna de forma bastante orgânica os momentos calmos e expositivos e aqueles mais movimentados e frenéticos. Mas o que chama realmente a atenção é o bom uso dos vários personagens, em suas diferentes escalas de importância, mesmo os que aparecem bem pouco, como Batroc, Agente 13 e Maria Hill. Para os fãs, é ótimo ver nomes conhecidos dos quadrinhos em vez de figuras genéricas. Ajuda na sensação de que o universo do herói, e não apenas ele próprio, está sendo transposto. Ainda nesse campo, o filme destroça aquele velho e simplório argumento de que vários inimigos numa mesma história nunca dá certo. O problema é querer criar um arco individual para todos — abraço para Homem-Aranha 3. Sabendo dosar a importância e o espaço de cada um, Capitão América 2 emprega nada menos do que cinco vilões.

    Sempre massacrado, Chris Evans mostrou de novo que quase toda a implicância pra cima dele é injusta. Sua performance pode não emocionar ou ser tão marcante quanto a do colega Robert “Tony Stark” Downey Jr, mas o cara está inegavelmente mais maduro e confortável no papel. É possível, sim, enxergar Steve Rogers nele. Quem é limitado de fato é Sebastian Stan — isso é spoiler? sinto muito —, o que não atrapalha a construção do Soldado Invernal como figura ameaçadora. Mesmo quando a máscara cai, o ar de drogado cansado, que Stan já tem por natureza, ironicamente se encaixa no personagem. Como dito antes, ele acaba tendo uma participação pequena, mas sua introdução para uso futuro foi bem realizada. E o nome Soldado Invernal é legal sim, muito mais estiloso que “do inverno”, parem de reclamar.

    Os aliados do herói também receberam merecida atenção; todos têm seu lugar ao sol. Nick Fury é uma espécie de gatilho para movimentar a trama, e em relação a ele — e à própria SHIELD — o filme empresta argumentos de outra hq recente, Guerreiros Secretos, escrita por Jonathan Hickman. E falar qualquer coisa de Samuel L. Jackson seria chover no molhado: ele É o personagem e pronto. Scarlett Johansson não consegue ser menos que maravilhosa, e surpresa nenhuma, mantém muito bem o posto de co-protagonista. Interessante ver um lado mais humano e espirituoso da Viúva Negra, além de aparecerem mais migalhas sobre seu passado. Ela menciona ter desertado da KGB, o que por consequência confirma que é também mais velha do que aparenta. Mas o filme não se importa em explicar isso — filme solo da Viúva, quando quiserem, viu.

    O Falcão vivido por Anthony Mackie é um ótimo coadjuvante e responsável por boa parte do humor do filme sem ser um alívio cômico — aliás, a comédia está presente mas bem dosada, voltando ao velho estilo da Marvel e corrigindo a principal falha da Fase 2, ALELUIA SENHOR. Nos quadrinhos, Sam Wilson é um dos melhores amigos do Capitão, e isso ficou bem retratado. A rápida e total fidelidade dele para com Steve, quase um bromance, pode parecer meio exagerada. Mas isso é perdoável, pois Sam é um militar, e se o Capitão é um ídolo geral da nação, imagine para essa classe. Alexander Pierce, vivido com elegância por Robert Redford, tem um papel importantíssimo, mas nesse caso é melhor evitar spoilers. Só vale dizer que faltou coragem: seria épico e coerente se certo boato tivesse se confirmado e outro conceito de Brubaker fosse aproveitado.

    Em relação a aspectos visuais, o longa merece todos os elogios e mais alguns. Não quanto aos efeitos, isso já é o básico do básico que se espera de grandes produções. Também não necessariamente às cenas de ação, que são maravilhosas. Chega a emocionar as perseguições no trânsito nas quais é possível VER com clareza os carros batendo e se destruindo, fugindo da maldita estética Bourne de câmera fechada e tremida. Não: o ponto mais satisfatório de Capitão América 2 são as lutas. Os realizadores normalmente esquecem que em filmes de super-heróis a “ação” não pode ser resumida apenas em correria, tiroteio, explosões. Tem que ter o combate. O mano-a-mano. PORRADA. Nele esse elemento foi trabalhado com perfeição, coreografias dignas de filmes orientais de artes marciais. O Capitão está mais ágil e fodão do que nunca. A luta contra Batroc é qualquer coisa de sensacional, e sempre que o Soldado Invernal aparece, dá vontade de mandar o projetor repetir a cena.

    Esse nível elevado acaba conduzindo a um dos pontos fracos do filme, que é a sequência final. Após tanta criatividade, decepciona um pouco a resolução genérica de “apertar um botão”, com explosões e destruições que já viraram carne de vaca no cinema blockbuster. Fica também um sentimento de que a Viúva e o vilão principal poderiam ter um papel mais grandioso no final. Finalizando o trabalho ingrato de apontar os defeitos, fica muito vago o que será a SHIELD daqui pra frente. Esse ponto acabou sendo explicado na série Agents of Shield, num episódio altamente conectado com Capitão América 2. Em termos de universo expandido, a conexão entre as mídias e valorização do seriado dão nota 10. Mas não deixa de ser uma falha do filme.

    Fugindo desse mundo mesquinho onde tudo funciona na base da comparação, cabe dizer apenas que Capitão América 2: O Soldado Invernal não deve nada aos melhores exemplares do gênero. Muitíssimo bem executado, é o filme que a Marvel e os fãs precisavam nesse momento. Os diretores Joe e Anthony Russo já estão confirmados na terceira parte aguardada para 2016, o que só comprova a confiança e satisfação com esse projeto. Antes, porém, como a ótima cena pós-créditos nos faz lembrar, o Capitão marca presença num tal de Vingadores: A Era de Ultron.

    Texto de autoria de Jackson Good.

  • Crítica | Punhos de Aço: Um Lutador de Rua

    Crítica | Punhos de Aço: Um Lutador de Rua

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    A possante continuação de Doido Para Brigar… Louco para Amar, dessa vez capitaneada por Buddy Van Horn, começa semelhante à anterior, com uma trilha incidental tão baseada na música country e folk quanto no primeiro episódio. Mais uma vez, a caminhonete de Phillo e Clyde está na estrada para mais desventuras em cenários repletos de areia e personagens bidimensionais. O grupo de heróis procura mais porradaria.

    Logo se nota a diferença nas duas versões, pois nesse Punhos de Aço: Um Lutador de Rua as lutas são estilisticamente mais bem filmadas, com maiores variações de ângulos e planos filmados, além de um belo enfoque nas gostosas genéricas — algo que fez muita falta no primeiro filme. Com um espaço de apenas dois anos, a estética mudou, e Punhos de Aço mostra no primeiro ano da década como seria a tônica das comédias dos anos oitenta.

    Após sua primeira luta, Phillo demonstra enfado e cansaço, já não quer mais lutar. A maturidade o atingiu em cheio, e seu desejo de aposentar veio à tona. Ganhar o pão com o suor e sangue das lutas de rua é cada vez menos atrativo. O grande motivo disso ainda era o chute que Phillo tomara. O brucutu valente acusou o golpe, mas não deixa de frequentar os lugares onde Lynn (Sondra Locke mais uma vez) possivelmente poderia cantar. Apesar da aproximação da cantora, ele ainda se mostra ressentido pelo término.

    Os opositores dessa vez têm questões um pouco mais sérias, ainda que a abordagem seja leve e caricata ao extremo, mostrando grandes empresários engravatados que se entretêm com rinhas de animais silvestres. Os embates clandestinos são cruéis e desiguais, além de muito toscos, dado o seu caráter completamente irreal. Até a gangue das Viúvas Negras é repaginada, ainda sendo um dos alívios cômicos, mas bem menos risível que antes. Clyde tornara-se mais ativo na comédia, protagonizando cenas muito espirituosas, especialmente para um ator que não é humano. Mais do que isso, sua irmandade com Phillo é ainda mais forte que antes, com o auxilio… do símio até em questões amorosas.

    Phillo recebe uma proposta de milhares de dólares para retornar às brigas de rua. Ele reage recusando a proposta, mas mostra uma ponta de reticência na recusa. A prova da mudança de tempos é a mentalidade libertária de todos. Lynn invade o celeiro dos Beddoe e flagra Clyde e Phillo dormindo de conchinha, e como uma autêntica mulher pra frentex, não titubeia com a cena homo-besti-afetiva que assiste, e tem com o protagonista ali mesmo, diante do macaco e em meio a um ambiente sujo, com o terceiro elemento da equação claramente no cio. Sua volúpia o faz ficar mais forte, e suas exibições aumentam, tendo uma especialização em desmonte de veículos em questão de segundos. O orangotango apresenta uma força descomunal quando é ordenado pelo seu dono. As contravenções de Phillo, que visam ajudar seu parceiro animal, incluem dopagem, insinuação de estupro, rapto de animais silvestres, tudo isso para prosseguir até um swing-inter-espécies.

    Uma terrível trama envolvendo os vilões que tentaram contratar Phillo no começo do filme é desenvolvida, com o sequestro da mocinha. Apesar da execução geral ser melhor que a do primeiro filme, o desfecho é muito fraco, contendo uma mensagem agridoce demais. Outro problema é a longa duração, acumulados 113 minutos de uma comédia que carece muito de ritmo.

  • Crítica | Marighella (2012)

    Crítica | Marighella (2012)

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    O documentário capitaneado por Isa Grinspum Ferraz visa mostrar várias facetas de Carlos Marighella como o de um sujeito pacato e ligado a família, longe demais da imagem pintada pelos mandantes do regime que o pintavam como o pior dos terroristas subversivos e inimigo número um do Estado. A narração da sobrinha de Carlos revela que o filme começou a ser feito de fato após a morte do líder revolucionário.

    No início da fita, são lidas cartas do próprio punho do “anarquista da Sicília”, provindo de uma miscigenada herança entre o italiano Augusto Marighella e da negra Maria Rita, criado em uma casa onde tinha spaghetti e caruru, não havia como crescer sem ser questionador, desde a infância ele não entendia porque o pobre precisava se matar de trabalhar para chegar ao final da vida sem ter absolutamente nada.

    Já muito novo ele se engajaria ao comunismo autodeclarado, levando à Bahia, sua terra, o discurso contra a oligarquia, incitando o povo à revolução. O comunismo baiano dos anos 1930 era contra o integralismo principalmente, e não era alinhado a Karl Marx, até pela dificuldade do acesso, era feitos de mulatos, como Jorge Amado, Edson CarneiroCouto Ferraz, um grupo que vivia a utopia, mas não se desgarravam da realidade marginal baiana. Os intelectuais precisavam sair da neutralidade e se declarar fascistas, comunistas ou liberais, graças ao novo quadro político mundial, aos poucos “os pingos eram postos nos is”. A ida de Marighella ao Rio de Janeiro já culminara numa prisão, acusado pela imprensa à época, de perturbar a paz e não colaborar com a boa ordem do Estado.

    A escolha pelas imagens das paisagens e belezas naturais contrastam com os recortes de jornais, quase sempre explicitando uma luta e perseguição muito violenta ao “cavalheiro Marighella”, que variam entre prisões e comícios. Carlos e outros militantes de bigodes grossos se associavam a Luis Carlos Prestes, sua dificuldade nas manifestações era o de parar de falar e terminar seus discursos. Graças ao Presidente Dutra, o Partido Comunista Brasileiro foi tornado ilegal e Carlos Marighella passou a viver na clandestinidade, seu primeiro filho só viria a conhecê-lo aos sete anos de idade. Em meio a paranoia mundial, eram veiculados comerciais estadunidenses muito engraçados, com “animações desanimadas” mostrando o poderio soviético, explodindo símbolos do capital, como A Estátua da Liberdade.

    A posição de Marighella era diferente da de Brizola, Goulart e outros tantos pensadores. Ele viajou para a China, para a União Soviética a fim de conseguir instrução sobre o estado totalitário socialista. Um momento emocionante é quando sua esposa Clara Charf, declara que ele não sabia falar chinês e que ele havia feito um dicionário desenhado do idioma, mas que o livro foi tomado pelas autoridades, numa das invasões da polícia a sua residência. O “mulatão” cada vez se precavia mais e alertava seus colegas de que eles não resistiriam a caça após o Golpe Militar. Seu argumento era de fuga, mesmo após as falas de Jango de que o vice, uma vez empossado presidente, teria uma resposta rápida a ação dos militares. Ele era muitíssimo bem informado, parecia prever as artimanhas e a movimentação dos homens de farda.

    Sua postura se tornaria ainda mais extremista, rompendo com o partido após a sua prisão e a ida a Cuba, em uma viagem clandestina. Se declarara um revolucionário, ligado às massas e inconforme à maneira cordata com que a esquerda se portava de forma muito inocente e submissa aos caprichos militares, e até essas reprimendas são publicadas carregadas de um conteúdo poetizado. Para ele, o revide devia ser na mesma força e medida, era inspirador, de confiança e admiração, e sobretudo era uma figura simples, ao mesmo tempo que estudiosa e muito inteligente.

    Apesar de sua afeição ao modo de revolução chinês, Marighella queria um comunismo genuinamente nacional, com samba, futebol e cores tão caracteristicamente brasileiros. Ele não era um teórico, participava dos assaltos de forma ativa e veemente. Suas ações não eram freadas pela possibilidade de perecer ou do sacrifício de vidas alheias, das dos seus, em ações de guerrilha que os adeptos já tinham conhecimento e claro, dos seus opositores.

    O modo como a realizadora apresenta a morte do guerrilheiro é sem muito apuro do modo como ocorreu o assassinato, tal artifício emula tanto a forma sem respostas do Regime ao assassinar o seu opositor e também a não necessidade de ser lógico, e claro que o próprio Marighella usava em seus poemas, ainda que nestes escritos ele não retire os seus pés do chão. Carlos Marighella era o libertário utópico, munido da informação, mas que prestou a sua imagem para inspirar o ideal da liberdade do país, o que Isa Grinspum Ferraz fez é uma homenagem muito competente a sua figura, sem ser chapa branca, destacando até seus erros, mas focando a aura do contestador imberbe que ele era, dando à revolução um nome estrangeiro, de difícil dicção e de fácil identificação.

  • Crítica | Brizola: Tempos de Luta

    Crítica | Brizola: Tempos de Luta

    brizola

    Tabajara Ruas é o responsável por contar o relato biográfico do político e ativista gaúcho Leonel Brizola. Desde a infância muito humilde, passando pela obsessão de sua mãe pela educação e instrução do filho, e também grafando o passado de lutas do povo gaúcho, Leonel também levantou-se como ativista. Sempre esteve muito presente em eventos de contestação, mas sem se descuidar do trabalho, visto que precisava dele para garantir o seu sustento. A narrativa é linear e muito parecida com a estética do cinema clássico americano, reunindo muitos depoimento do próprio Brizola e de muitos de seus colegas, como Antônio de Pádua, Flávio Tavares, Vieira de Cunha, etc.

    A reunião com estudantes interessados em política, já no Rio de Janeiro, mostrava o biografado como um dos mais atuantes nos grupos de discussão, além da fundação do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Ele foi eleito deputado estadual com quase quatro mil votos. Nesses grupos ativistas conheceu Neusa Duarte, a Dona Neusa, sua companheira para toda a vida e amada esposa e namorada, que segundo o próprio, apesar da aparente fraqueza, sempre foi muito forte.

    O viés político que influenciou Brizola era ligado a Vargas, com quem teve estreitas relações e dividia ideologias: o trabalhismo. Após a morte de Getúlio Vargas, haveria dois ilustres herdeiros, o próprio Leonel, que seria consagrado prefeito de Porto Alegre e conhecido por fortes investimentos em educação, e claro, João Goulart, vice-presidente dos tempos de Juscelino Kubitschek. Entre os feitos mais notáveis de Brizola era a apropriação e nacionalização da empresa de telefonia do Rio Grande do Sul, ação dita como de vanguarda contra o monopólio americano no Brasil pela ainda não presidente Dilma Rousseff.

    O debate político aumentou devido a Guerra Fria, a ocupação cubana de Fidel Castro e a corrida espacial. Mesmo que Brizola dissesse que entendia que a propriedade privada era importante para a nação, seu discurso era acusado de ser associado aos ideais de Karl Marx, muito graças ao seu alinhamento com o argentino Ernesto Che Guevara. A proximidade de Che com Jango traria consequências graves em um futuro próximo.

    A renúncia de Jânio Quadros surpreendeu o político gaúcho, por Jânio ser um presidente proativo e rápido. A possibilidade de João Goulart assumir causou o furdunço que se concretizou no maior exemplo de paranoia militar. O estado de perplexidade tomou o país e Leonel declarou que ficaria no país para lutar. Uma república parlamentarista seria articulada sem a presunção de ter Goulart dentro do país. Brizola queria o retorno de Jango ao poder, mas era uma voz solitária na resistência. A subida dos militares para o poder marcou o político gaúcho, que até tentou ficar no país, variando de lugar a lugar por um mês e meio, até que teve de ir em definitivo para o Uruguai. O exílio deixou-o muito triste, mas sua postura ainda era a de resistir, apoiando os ativistas para treinar os militantes no esquema de guerrilhas.

    Aos poucos, o nacionalismo do político seria acompanhado pelo socialismo. O retorno de Brizola ao país calharia com o rompimento com o PTB e fundação do PDT (Partido Democrático Trabalhista), além de sua reinvenção na política, candidatando-se a governador do estado do Rio de Janeiro e vencendo uma tentativa de fraude e manipulação de votos. Construiu os Cieps, que teria o intuito de alocar as crianças oito horas por dia na escola, focando a educação e fazendo essas obras sem o apoio financeiro e político do governo federal. Outro episódio interessante foi a construção do sambódromo e o imbróglio com a Rede Globo, que se recusou a transmitir o carnaval. A manobra do governador foi a de entrar em contato com Arnaldo Bloch, presidente da Manchete, que ultrapassou a Globo em audiência no período. A campanha de Diretas Já foi muito motivada por ele, assim como a primeira eleição direta, em 1989, na qual se candidatava ao cargo máximo do executivo, com discursos inflamados e muito bem construídos. Por muito pouco ele não passou para o segundo turno, mas manifestaria seu apoio a Lula no segundo, obviamente tendo perdido. No ano seguinte, seria reeleito governador do Rio, mostrando sua inabalável força política.

    Os entraves entre o político e a Rede Globo ganharam capítulos de intensa batalha, difamações e toda sorte de troca de farpas, inclusive ganhando um direito de resposta em rede nacional, no horário nobre, com narração de Cid Moreira no Jornal Nacional. O conteúdo do manifesto é deveras corajoso e não poupa seus declarados inimigos.

    Pouco antes do fim de sua vida, ele se lançou em mais uma eleição, como vice-presidente da chapa de Lula, muito mais como figura simbólica do que como candidato de fato. Sua despedida teve muito apelo popular e a presença maciça do povo. Brizola se despediria da vida ovacionado pelo eleitorado e pelo homem comum, e até por alguns de seus antigos rivais políticos. Seu discurso poderia não ser completamente compreendido pelo povo, mas seu trabalho foi reconhecido por seus iguais, pela população. O trabalho de Ruas e Sergio Gonzalez em homenagear o político é muito belo e afetuoso, e apesar de deixar de lado muitos dos defeitos do biografado, ainda é um bom retrato da figura do velho e sempre inconformado caudilho.

  • Crítica | A Opinião Pública

    Crítica | A Opinião Pública

    A Opinião Pública

    Logo nos primeiros minutos de tela, são mostrados letreiros que indicavam quais apoios foram utilizados para a realização da fita. Os agradecimentos vão para órgãos de imprensa, como o Jornal do Brasil (com a adjetivação de grande amigo do Cinema Novo) utilizando muitas cenas de Maioria Absoluta, de Leon Hirszman. A ideia de Arnaldo Jabor era refletir o típico, fugindo do pitoresco, e explicitar quais seriam as esperanças da juventude carioca e qual a perspectiva dos professores sobre como seria o futuro destes jovens — torcendo para que estes fiquem longe do estereótipo da Juventude Transviada.

    Segundo a narração, há um abismo enorme entre a realidade de adultos e dos jovens, como se estes vivessem em mundos distintos. O discurso dos homens novos é descompromissado e não é ligado a qualquer ideologia que não tenha a ver com preocupações banais, como ter dinheiro para o “mocinho poder sair com um broto”. Enquanto a fala dos pais preocupados preconiza a necessidade de achar a mulher certa, trabalhar para se sustentar e, claro, casar e valorizar a tradição, família e propriedade. Mais uma vez as realidades são muito díspares.

    As entrevistas com os indivíduos do sexo feminino têm em seu conteúdo alguns pontos muito curiosos, mostrando algumas meninas muito crentes na possibilidade de encontrar sua alma gêmea e nas vicissitudes dos sentimentos, das paixões e no acaso do casamento. Um ótimo argumento é o de uma das pessoas perguntadas sobre a carnalidade do sentimento da paixão, discutindo o quanto é importante dar vazão ao coração e ao romantismo, e o quanto pensar em um futuro relativo ao sustento e a infraestrutura de uma vida saudável, levantando a rivalidade entre a “malandragem” e o trabalhador que exerce seu ofício arduamente.

    Os baluartes da juventude direita são louvados como exemplos para os seus iguais em idade, fugindo do estereótipo da rebeldia contestadora e ligada às drogas. Os debates eram tratados como algo ruim, fétido e inconveniente, longe dos ideais de uma boa pessoa. O discurso se caracterizava como forma de enaltecer o apogeu econômico e a ascensão de classe, num pensamento tipicamente capitalista com ideário voltado a “subir na vida” e “tornar-se alguém”. O objetivo era mudar de classe e evoluir: a felicidade é uma forma de poder e não um prêmio para as virtudes.

    A ideia do diretor é reproduzir como é o pensamento do brasileiro médio, demonstrando o quão alienada pode ser a opinião pública, característica fomentada pelo alto nível de desinformação e pela influência das autoridades dentro das redações dos jornais. Porém, não ignora que a relação entre sociedade e governo é simbiótica, e que a multidão tem sim sua parcela de culpa no estado em que o país se encontrava. A narração mais uma vez inclui um argumento baseado na burguesia: “O homem da classe média sempre é propriedade de alguém” — enquanto isto é falado, são mostrados jovens se alistando no serviço militar, com a orgulhosa pecha de lutar pela pátria, reforçando a ideia de que quem está fora desse molde de contestação zero está errado e sem possibilidade de obter sequer algo tão lúdico e intangível quanto a felicidade. O objeto de análise passa por um viés até filosófico. As pessoas ligadas à classe média se vitimizam, pedindo compreensão por parte da população por sentirem-se as mais afetadas pelo atual momento do país, sempre temendo pelo seu sustento.

    Para os patrões, o brilhantismo intelectual é reservado às pessoas que ocupavam os altos cargos no empresariado. Os chefes sempre seriam os mais inteligentes e melhores preparados, enquanto aos operários sobrariam o voluntariado e a indispensável capacidade de se propor a quaisquer atividades que demandassem esforço físico e submissão absoluta. O cargo era o auge da vida do trabalhador: o povo teria de ser levado ao “pensamento de cordeiro”; a honradez era parte da uniformização populacional que obviamente escondia algo. Para o espectador com um pouco de discernimento, o conteúdo das falas dos “normativos” é muitíssimo mais subversivo que qualquer possibilidade (irreal e fantasiosa, evidentemente) de desapropriação de domicílio, e mesmo para os indivíduos mais conservadores, ao menos em uma pequena parcela, talvez cause a reflexão sobre o cunho de seu estilo de vida. A modernidade é vista como algo pejorativo e as outras corruptelas dão à película um ar de apologia à misantropia graças às mensagens nas entrelinhas das falas do sujeito comum. Claro, focando nos seus anseios fúteis e despreocupados com o contexto social, dando um significado especial à expressão “massa de manobra”.

    Para o narrador, a classe média é produto do meio, sem origem definida por suas próprias mãos e sem nada a perder, mesmo que pense em ter alguma propriedade. A negação da miséria que assola o país é notória e conveniente. Sua movimentação política só é realizada quando há alguma mudança que possa interferir nos seus interesses. A iniciativa jamais parte dela; seu papel é a de vanguarda inocente da sociedade moderna, defensora de valores que lhe foram passados e inculcados sem muita motivação lógica ou racional, manipulados para movimentar-se até contra si mesma. Até por parte das lideranças deste contingente populacional, não há uniformidade no discurso. Jabor escolhe criticar a conivência do povo com o Regime, usando uma ironia fina, mas bastante explícita, apelando para aqueles que queriam ouvir e estavam ávidos pela discussão, disfarçando essa contestação com uma capa de propaganda do modo moral e correto de vivência. A essência do combalido Cinema Novo estava em seu filme e em sua mensagem.

  • Crítica | Cidadão Boilesen

    Crítica | Cidadão Boilesen

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    O documentário começa usando a característica trilha de A Hora do Brasil, com imagens em preto e branco, que obviamente remetem ao passado, aos anos da época da “revolução” militar. O título do filme brinca com o clássico óbvio de Orson Welles, focando na persona do dinamarquês naturalizado brasileiro Henning Albert Boilesen. O início de sua trajetória é mostrado de forma lúdica, focando seus impressionantes feitos ainda na infância como ótimo aluno, esportista e futuro administrador. Ele veio morar no Brasil aos 22 anos, primeiro em São Paulo, depois no Rio de Janeiro.

    Boilesen era conhecido por apreciar a miscigenação e o estilo de vida do brasileiro. Sua adaptação ao país não foi difícil, pois ele sentia prazer em estar no Brasil e viver como um legítimo nativo. Era um homem do povo, apaixonado pela nação que adotou e gostava de caipirinha, futebol, ouvia Chico Buarque. Sua afeição pela população era muito grande.

    O filme se desenvolve destacando o medo que a população geral tinha de que João Goulart realizasse uma cubanização no Brasil, argumentado que é refutado por muitos dos entrevistados, entre eles o ex-presidente da república Fernando Henrique Cardoso. No entanto, a desinformação causava medo nos donos de grandes empresas, entre eles Boilesen. O maior medo do estrangeiro era de que o socialismo se instaurasse no país e atrapalhasse o seu próprio desenvolvimento, retirando o seu ganha pão. O episódio é pródigo em mostrar a ação civil na instauração do regime e as articulações desenvolvidas para as ações ditatoriais. Henning frequentava sessões de tortura e tinha cadeira cativa, como em um camarote de um espetáculo cênico, e ajudava a articular o grupo Ultra, o qual prestou muitos serviços ao governo autoritário.

    Há um esmero notório no roteiro que retrata a pessoa analisada, primeiro como uma figura simpática, para depois revelar toda sua participação dentro do órgão repressor. Um tempo demasiado é dedicado a explicar como o AI-5 mudou o cenário político, aumentando ainda mais a perseguição aos ditos subversivos, com destaque à criação da Operação Bandeirante (ou OBAN), que teria a função de ser o braço civil do exército brasileiro e operar como um centro de tortura. Para o jornalista Heitor Contreiras, a OBAN foi “a mais radical e mais cruel operação de repressão do regime militar brasileiro”. Seu poder incluía a possibilidade de prender, matar e torturar quem quisesse, e era composta por policiais militares e civis. Uma das lideranças do esquadrão era o Sargento Sergio Arantes Fleury, amigo pessoal de Boilesen. O modus operandi de Fleury incluía a caça de marginais e vagabundos, e ele levou tal modo de agir para a OBAN.

    Era preciso o apoio de pessoas importantes na vida pública brasileira, e alguns dos empresário se tornaram chamarizes para outros investidores, sendo a figura mais notória e que mantinha relações diretas com os mandantes da Operação Bandeirantes Henning Boilesen. O cabeça pensante dentro do DOI-CODI é muitíssimo discutido e controverso. Por parte dos ex-militantes, o discurso predominante era de que ele fez parte de inúmeras sessões de tortura, e seria criador de uma máquina de choque chamada Pianola Boliesen; a questão era de que ele tinha prazer de ver os comunistas sendo punidos, sua figura era demonizada. Já nos registros oficiais, foi negada toda a associação dele com o DOI-CODI, e afirmavam que o seu assassinato teria sido encabeçado por Carlos Lamarca. O assassinato em questão é descrito como algo brutal e realizado com muita satisfação por parte dos militantes que executaram o presidente da Ultra. O termo utilizado pelos grupos MRT e ALN para o assassinato de Boilesen era “justiçamento”, que remete ao óbvio sentimento de findar a sua vida.

    A impressão dos defensores do empresário era a de que ele foi um bode expiatório, segundo Henning Albert Júnior, filho do empresário. Ele sequer tinha ideologia o suficiente para exercer tal influência dentro da ditadura. A sensação que fica a posteriori é de predominância de figura nefasta de ajudante do regime. Em uma época em que os ânimos estavam tão aflorados, não havia como garantir neutralidade. A participação ou não de Henning não foi investigada a fundo, até porque a sua história contada poderia revelar o nome de tantos outros poderosos barões.

    O trabalho de Chaim Litewski escolhe um lado, mas não ignora os argumentos contrários. O intuito é tentar tirar tal história do esquecimento, não ignorando as duas vertentes de pensamento. O filme ajuda a fomentar a discussão e sua importância varia tanto como algo de caráter curioso/informativo quanto como fonte de esclarecimento de uma das importantes figuras históricas do Brasil.

  • Crítica | O Ato de Matar

    Crítica | O Ato de Matar

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    Nos últimos anos, a produção de documentários sobre a 2ª Guerra Mundial mostrando os horrores do nazismo se multiplicaram na TV. Alguns tentando fazer uma análise séria sobre a psicologia do fascismo alemão, como Arquitetura da Destruição, até produções genéricas do History Channel que fazem análises sobre os tipos de metal usados na solda dos tanques de guerra.

    No entanto, o que une todos esses documentários é a distância fria com que somos seguramente apresentados aos protagonistas de tamanho horror, o que de certa forma desumaniza todo o período, transformando-o em um ato de “loucos” que nada teriam a ver com a gente ou com a nossa organização social.

    Nesse sentido, o maior mérito do documentário de Joshua Oppenheimer (com produção de Werner Herzog e Errol Morris) é justamente o de tirar essa distância entre os acontecimentos e o espectador, colocando-os em contato direto com alguns dos responsáveis pela sanguinária perseguição a acusados de “comunismo” no regime de Suharto na Indonésia da década de 1960 em plena Guerra Fria, e como o filme diz claramente, sob a velada aprovação do Ocidente. “Eu me senti como se estivesse na Alemanha 40 anos após o Holocausto e os nazistas ainda estivessem no poder”, afirmou o diretor em uma entrevista, o que resume bem o sentimento do filme.

    Ao mesmo tempo em que entrevistava os autores de um genocídio, calculado entre 500 mil e 2 milhões de mortes, Oppenheimer mostrava uma reencenação dos métodos de assassinato daquela época sendo feitos como filmes pelos próprios autores de forma despreocupada com o conteúdo, tentando copiar o estilo dos filmes de ação americanos. E em momento algum mostra remorso ou mesmo vergonha pelos atos cometidos, agora detalhadamente narrados e filmados através de histórias tradicionais ou mesmo imitando estética de videoclipes musicais com cachoeiras ao fundo.

    Contando até hoje com o apoio dos EUA, o governo indonésio não fez nenhum tipo de retratação, e as famílias das vítimas, além da população comum, ainda vivem sob temor de que aquela época volte. Tanto que é difícil para os personagens principais arrumarem atores para serem “extras” e atuarem como os tais “comunistas”, com medo de serem confundidos realmente com eles.

    Todo o terror dos brutais métodos de execução são mostrados passo a passo em meio a piadas e risadas sobre a situação. Comentários anedóticos são misturados a um sentimento de orgulho por ter servido à pátria, e a doutrinação da juventude sob a mesma ideologia de combate a esse suposto inimigo externo se mantém viva como nunca. Todos, sem exceção, acreditam que salvaram o país.

    No entanto, apesar de toda a brutalidade, um dos personagens do documentário, Anwar Congo, mostra que toda violência contra o outro é uma violência também contra si próprio, e essa conta um dia chega. Após ele fazer o papel de vítima em uma sequência de tortura ridiculamente encenada no estilo dos filmes de máfia dos anos 40, Congo desaba emocionalmente e não consegue mais se recompor, questionando se era daquele jeito que as vítimas se sentiam. Quando confrontado com a informação de que elas se sentiam pior porque sabiam que iriam morrer, ele ainda demora a processar toda essa variedade de sentimentos, e grande parte da culpa aflora, até mesmo fisicamente, em cenas angustiantes de se ver.

    O Ato de Matar é brutal na medida certa ao mostrar que a humanidade está longe de atingir qualquer status de civilização, como o Ocidente propaga que atingiu. Na Indonésia do filme, ONU, Convenção de Genebra e o Tribunal de Haia são ridicularizados, como se não tivessem a menor importância, e toda a ideologia moderna dos direitos humanos ali naquele universo, simplesmente não existe. Não é ignorada ou descumprida, não existe a compreensão de que o outro ser humano possui o mesmo valor e direito de viver que o seu, independentemente das crenças que professa. Em uma sociedade em que até hoje os executores de tamanhos crimes contra a humanidade gozam de privilégios econômicos e sociais perante o caos de uma sociedade desajustada, que louva seu passado violento, o filme torna-se necessário para nos fazer refletir como o mundo é maior, e pior, do que pensamos ou gostaríamos de acreditar.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Noé

    Crítica | Noé

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    Darren Aronofsky é um cineasta jovem, conhecido por sua maneira peculiar de filmar, a de utilizar edição videoclíptica e roteiros densos com mensagens vistas tanto pela superfície da história quanto pelas camadas interiores. Outro fato notável de sua filmografia é o enorme apreço que dá ao visual, utilizando-se da acuidade das imagens para demonstrar sua visão de mundo, e, por meio desse arroubo, abre algumas dubiedades e duplicidades de interpretações. Em Cisne Negro, Requiém Para um Sonho e O Lutador ele tratava de determinados tipos de perversões, todas ligadas à obsessão. Em seu mais recente filme, de altíssimo custo, a obsessão está presente não só no roteiro, mas também concerne ao pensamento de teólogos e religiosos ao retratar a história de um personagem tão canônico quanto o capitão do Senhor.

    O título da obra é Noah — Noé no Brasil, um dos poucos nomes traduzidos com a grafia que Joaquim Ferreira de Almeida amputou na versão da Bíblia Sagrada — por capricho e distinção de gênero, pois a intenção do diretor era realizar um filme épico, que, por tradição e convenção, leva em si o nome do protagonista, acima de qualquer dado técnico. Mesmo que os assuntos discutidos sejam até maiores que a trajetória pessoal de qualquer personagem, como a questão da escravidão em Spartacus, e a trinca injustiça social, engano e vingança em Ben Hur. Talvez aí resida a maior polêmica entre os fiéis que esperavam uma história literal das “escrituras sagradas”, ainda que a história seja menos “deturpada” que muitas interpretações de sacerdotes atuais.

    O cinema de Aronofsky não é conhecido pela obviedade em relação à interpretação de suas histórias, o que abre um precedente para um sem número de discussões. Uma das possibilidades dentro do roteiro de John Logan e do próprio diretor é a preocupação não só em contar a história de Noé, mas também em resumir em uma amálgama o Gênesis — primeiro livro dos pentateucos que conta a origem da humanidade e do mundo segundo essas crenças particulares. Há uma preocupação legítima com a nomenclatura das criaturas canônicas, e termos como anjo e Deus são evitados, exceto pelo diálogo entre a parentela de Noé no qual se ressalta que ela não ouviu diretamente a voz do Criador.

    Outra questão espinhosa é a dos ditos Guardiões, comumente associados a “anjos caídos” (em outras palavras, o exército de Lúcifer) que seriam seres de luz enviados ao Éden para vigiar Adão. A associação é totalmente errônea até pela ordem dos fatos, visto que os seres não resistem e interferem na criação e, por isso, são castigados por quem antes lhe tinha dado todos os poderes — assim como aconteceu com o homem, o que mostra uma uniformidade no modus operandi do Criador.

    No decorrer da trama a imagem de “supremo punidor” do Criador é desconstruída por meio do perdão, lembrando-se, claro, que toda a maldição sobre eles e os homens é consequência do pecado de Adão: os homens foram obrigados a trabalhar para ganhar o seu sustento, consequência da perda da inocência. Quanto aos Guardiões, perderiam seus aspectos de luz e seriam compostos de terra e pedra. Eles retornam pela benevolência de Deus, o que definitivamente descaracteriza a ideia de eles serem criaturas diabólicas, até porque a raiz do mal não é determinada por um único avatar e sequer isenta o homem de tê-la; o mal é algo inerente ao homem, o que o difere dos outros animais, e como nos dizeres bíblicos, cabe ao homem dominá-lo.

    A serpente é parte do homem e simboliza a selvageria inerente ao humano, por isso Noé titubeia. O melhor aspecto da história certamente é a criação do ideário do herói e a fidelidade e corrupção humanas. O Noé de Russell Crowe e Aronofsky reúne arquétipos dos principais heróis do Gênesis. Ele tem em si o óbvio pioneirismo do primeiro homem de Adão, tem o bom sacrifício de Abel, invejado pelos seus iguais, numa também óbvia referência à Caim. Talvez a figura mais inspiradora para o perfil do personagem seja a do Pai da nação semita, Abraão. As referências vão desde a culpa por não conseguir salvar os outros homens da destruição e, claro, ao sacrifício de sua descendência, com um fim parecido com o do conto bíblico, mas diferente quanto ao meio. Noé corre até a aldeia dos povos que descendem de Caim, com quem ele travava uma eterna rivalidade, e lá vê o modo como os homens vivem, onde a ganância supera até o instinto de família. Tal corrupção faz com que Noé questione a sua missão e entenda que o que corrompeu a vida na Terra foi a interferência humana. Se os filhos de Caim pecavam daquela forma, ele talvez fosse capaz de fazer aquilo, e a conclusão de que essa não deveria ser uma questão incontestada é um dos momentos mais emotivos da fita.

    Outro elemento positivo, certamente o ponto máximo do roteiro, fez com que o aspecto mais impressionante da película fosse tão valorizado. A forma como Noé se comunica com o Criador não é didática, mas feita por meio de sonhos e visões — o que gera ainda mais comparações com heróis bíblicos, como o profeta Daniel. A inundação que aparece nos sonhos é belíssima, especialmente quando dela surgem os animais que são depois embarcados. Os efeitos especiais compõem um belo recurso narrativo e  um deslumbre visual singular, com 3D comparável aos mais esperados nesse aspecto, como A Invenção de Hugo Cabret e As Aventuras de Pi, superando até os dois primeiros.

    O final é esperançoso e rearranja de forma atual os argumentos bíblicos, reapresentando seus preceitos de forma bastante fiel. Claro, tomando as necessárias liberdades e salientando aspectos comuns ao espectador comumente consumidor dos filmes de Guillermo Del Toro e Peter Jackson, sem ignorar o background antropológico dos produtos anteriores de Aronofsky.

  • Crítica | Era Uma Vez na América

    Crítica | Era Uma Vez na América

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    Sergio Leone teria recusado dirigir a versão cinematográfica do best-seller de Mario Puzo, entre outros motivos, para fazer o seu próprio filme de gangsters americanos. Era Uma Vez na América não poderia começar de forma melhor – violentíssimo, mostrando uma perseguição implacável a David Noodles, personagem de Robert De Niro. Os temas de Ennio Morricone casam perfeitamente com a ambientação – e é impossível não comparar seu trabalho com o de Nino Rota em O Poderoso Chefão, tão competente quanto – sua trilha concorreu ao Globo de Ouro de 1985 e ganhou o Bafta do mesmo ano. A música preenche os vazios de diálogo e eleva a aura do filme, tornando-o edificante e nostálgico em questão de segundos.

    A história segue uma linha do tempo pouco linear, e transita por três épocas: anos 20, na tenra infância da “gangue”, anos 30 com o auge de suas ações e anos 60 com a velhice e amargura de David, único sobrevivente da época marginal. A reconstituição de Nova Iorque beira a perfeição, com um trabalho primoroso da direção de arte – que também venceu o Bafta.

    Não é só a violência exposta em tela que trata de temas espinhosos, o texto também. Ainda adolescente, o personagem principal suborna um policial, acusando-o de forma justa, de cometer pedofilia. A marginalidade torna-se algo comum para ele e seus amigos, que logo sofrem um enorme baque ainda neste primeiro momento, fato que mudaria principalmente a vida de David – que viria a ser preso e só retornaria já adulto.

    O foco do filme são as relações, seja a amizade entre o protagonista e Max, um James Woods perfeito no papel, que passa por percalços e vai da rejeição no início, passa pela empatia e fraternidade e desemboca no remorso inevitável, após uma enorme divergência quanto as áreas de atuação, em especial no fim da Lei Seca.

    Outro vínculo explorado é o amor nunca concluído de Noodles com Deborah – a razão aparente para ambos não ficarem juntos é vida de “rufião” do protagonista, além claro da possessividade dele – “Você me trancaria e jogaria a chave fora!”, e ele responde positivamente, e ambos percebem o inevitável, mas antes que pudessem se despedir, um ato põe números finais a união que jamais existiu, deixando Deborah magoada e afastando de vez os dois apaixonados.

    O protagonista havia mudado de vida após um assalto que tomou a vida de seus três parceiros do crime, trocou sua identidade e se isolou, até receber um convite a uma festa. Remexer no seu passado o machuca e o faz viajar pelos bons e maus momentos que vivera, mas o que o manteve na cidade foi principalmente a curiosidade. Relembrou do plano megalomaníaco de Max, e descobre que tal artimanha era uma forma sofisticada de suicídio, pois seu amigo se via em um beco sem saída, mas não teria coragem o suficiente para fazer o que tinha que ser feito. Voltar a essas lembranças é torturante para ele, a culpa e o remorso o corroem.

    O motivo do convite se revela, o Senhor Bailey, político casado com o antigo amor de Noodles, o chama para que ele faça um último favor e possa assim enfim fazer justiça. Mesmo após perceber que grande parte da culpa que viveu foi em vão, o herói falido não cede aos seus instintos básicos e a chance da desforra, na verdade recusa o pedido de uma das pessoas que este sempre amou – os papéis se invertem, pois é Bailey que se ressente no final e tal rejeição é para ele um enorme golpe. “Meu amigo morreu num assalto, e eu o entreguei!”.

    O final é melancólico e até depressivo. O rancor de Noodles feriu sua amada, e o rancor de Deborah a impediu de ser feliz em sua velhice, aliando-se aos adversários de quem ela amava. A últimas cenas amarram as pontas soltas desde começo. O roteiro serve como uma crítica ao American Dream, principalmente quanto à gana por alcançá-lo, aliado a ganância e cobiça, suplantam as necessidades e sentimentos humanos. As cortinas se fecham, mostrando David Noodles jovem, ébrio, anestesiado, apático e a espera da tristeza que ocupará sua vida até a velhice.

  • Crítica | Doido para Brigar… Louco para Amar

    Crítica | Doido para Brigar… Louco para Amar

    Doido para Brigar... Louco para Amar

    Hollywood sempre foi louca por fórmulas, e uma das mais largamente usadas era a junção de heróis com parceiros símios. Macacos, que geravam uma interessante interação com as figuras fortes e incorruptíveis do cinema, antes eram tidos como vilões e figuras de terror — vide King Kong de 1933 — mas aos poucos ganharam a simpatia do público e dos produtores de cinema.

    James Fargo, de Sem Medo da Morte e Golpe Mortal, dirige a comédia de valentões estúpidos protagonizada por Clint Eastwood 14 anos após a sua primeira parceria com Sergio Leone. Phillo Boddoe é um típico americano do sudoeste afeito a brigas descerebradas e desafios sem uma motivação maior que a pura demonstração de testosterona, e parceiro de Clyde, orangotango de estimação criado numa casinha no quintal de sua residência. A selvageria não é particularidade de Clyde, pois sua contraparte humana vive de forma quase tão silvestre quanto o animal, arrecadando dinheiro em lutas clandestinas por meio de apostas.

    Mesmo ainda jovem, Clint Eastwood, quando mostrado sem camisa, mais lembra um tiozão do que um legítimo lutador. O primeiro embate carece de maior apreço e grafismo visual, e é até porco na maior parte das filmagens, fazendo da fita um protótipo do que seria os filmes-pipoca dos anos 80. E, claro, a multiplicidade de desventuras que os brucutus da próxima geração fariam entre um filme de ação arrasa-quarteirão e outro.

    Eastwood já tinha uma carreira consideravelmente extensa: já havia dirigido meia dúzia de filmes até 1978, mas tal currículo não o impediu de assumir o protagonismo da comédia. O clima de filme totalmente descompromissado com a seriedade ganha contornos realistas após uma perseguição à dupla de motoqueiros escrotos que decidem ferir a honra do carismático orangotango, xingado com os nomes mais impróprios possíveis. Toda a infraestrutura montada para dar prosseguimento à vingança é atroz e totalmente impensável e faz de Clyde uma figura inteligente, dócil e até genial para os padrões de um animal… irracional. Isso se deve à sua capacidade de dirigir até um mini trator, inclusive com uma carteira de motorista de categoria E. Antes dos 30 primeiros minutos, Phillo acompanha uma dupla de motoqueiros até o lado externo de uma lanchonete e distribui sopapos, que são ouvidos dentro do estabelecimento pelos seus amigos.

    Tudo transpira humor e dos mais constrangedores. A matriarca Beddoe é mostrada como uma mulher ranzinza com início de calvície na sua fronte e com o resto dos cabelos desgrenhados. Os opositores, pretensos criminosos nazistas, são uma gangue de motociclistas dos mais imbecis, numa versão estúpida dos Hells Angels. As brigas de bares têm um show de barulhos quase onomatopeicos, onde até o vocalista da banda, que se apresenta no local, bate nos clientes, claro, sem interrupção da música tocada.

    O personagem mais bem desenvolvido da história é o macaco de doze costelas, que, graças à ossada semelhante à humana, consegue desenvolver capacidades enormes de raciocínio, como senso de humor apurado e ironia, algo que depois seria horrorosamente copiado em Planeta dos Macacos: A Origem. Uma das lutas, filmada junto ao rosto de um dos agressores, garante até mesmo um dos mais curiosos momentos narrativos do filme.

    Phillo é um anti-herói autêntico que não se importa com o politicamente correto, pois dirige enquanto bebe e carrega um animal silvestre sem as instalações necessárias para tal. Essa característica parece ser hereditária, visto que sua mãe prova toda a sua hospitalidade atirando com uma espingarda de cano longo nas motos dos arruaceiros que vêm importunar em sua propriedade. Como uma perfeita cowgirl, ela os espanta, numa cena à la Trapalhões.

    O romance com Lynn Halsen Taylor (protagonizada por Sondra Locke e escalada em razão do romance com Eastwood) é instantâneo e mal resolvido. Até determinado momento da trama, parece que a única relação estável da história será entre Phillo e Clyde, com direito até à música-tema para a trajetória — talvez por isso o orangotango o agrediu no início do filme. Phillo é tão preocupado com o parceiro que até procura um amor verdadeiro da mesma espécie para o animal. Ele sai de madrugada a fim de ajudar o bicho a praticar um estupro dentro da jaula de um zoológico e Clyde não pensa duas vezes: entra no lugar e manda ver na pobre e indefesa macaquinha, não sem antes causar furor na plateia ao acenar em tom de piada para a câmera. Curioso como após o coito de Clyde, Phillo quase perde uma luta. Talvez seu baixo rendimento seja motivado por ciúmes.

    O único confidente do personagem de Clint é o orangotango. Ele não se abre sequer com Orville (Geoffrey Lewis). A sua indestrutibilidade é posta à prova, mas todos que atravessam o seu caminho são absolutamente tolos, se deixando enganar pelos ardis do turrão lutador e seu macaco. Após executar perfeitamente uma armadilha, Phillo comemora levantando os braços, numa das cenas mais vergonha-alheia da carreira de Clint.

    O clima de comédia-pastelão faz da fita uma obra leve. Mesmo com a briga entre o casal de personagens principais, é até engraçado se analisar a discussão de Lynn com Phillo, pois é muito parecida com o término entre Locke e Eastwood, inclusive em como a história termina. Apesar de conter um caráter de redenção, em que o protagonista se deixa vencer por um “bem maior”, é até de se surpreender que o mocinho e a mocinha não terminassem juntos no final. Apesar de todos os pesares, Doido para Brigar… Louco para Amar possui uma veia cômica que acerta em grande parte do filme, e é condizente com o cenário de comédia da época, além de ter uma trilha country das mais prolíficas e bem escolhidas.

  • Crítica | Pra Frente, Brasil

    Crítica | Pra Frente, Brasil

    Pra Frente, Brasil

    Focando o ufanismo e discutindo a máxima de “Ninguém segura esse país”, Roberto Farias faz uma obra que tem em seu começo um clima muito semelhante ao das pornochanchadas. O intuito é ludibriar o espectador, fazendo-o acreditar estar vendo mais um espécime comum do cinema brasileiro dos anos oitenta e em poucos momentos de tela já é apresentada uma reviravolta. Misturando o ideal do Dream Team da seleção, destacando “as feras do Saldanha” — injustamente retirado do cargo antes da Copa de 70. Já na introdução é desenhado o mapa político e social de Pra Frente, Brasil, sem se valer de esterótipos bobos, de militares caricatos e maniqueístas e apresentando os oposicionistas como pessoas comuns, agindo cautelosa e disfarçadamente.

    O ano de lançamento da fita era 1982, enquanto os militares ainda estavam no poder, apesar de já não exercerem “a mão de ferro” com tanta veemência. A história começa mostrando Jofre Godoi, interpretado por Reginaldo Farias, um pacato servidor público que é confundido com um militante pelos militares, por estar no lugar errado e na hora errada. Logo que ele é capturado, é levado a um interrogatório. Sem circunlóquios, é submetido a algumas provações físicas e palavras de humilhação, envolvendo até a figura de sua esposa. O desaparecimento de Jofre faz com que a polícia entre em contato com o irmão dele, Miguel (Antonio Fagundes) e a esposa Marta (Natália do Valle), numa alusão a um defeito das autoridades, levantando a possibilidade ou de fingimento e sonegação de informação por parte da polícia ou de completa falta de estrutura e comunicação entre os órgãos.

    Jofre é submetido à violência, mas não sofre as surras calado; sua reação faz com que os torturadores ajam com mais dureza ainda. As mortes envolvidas no caso não são sequer noticiadas nos jornais. A personagem Marta serve de orelha para o discurso de que toda a imprensa é censurada. Do núcleo principal, somente Miguel tem clarividência sobre o panorama da nação: sua fala “Isso aqui não é a Suíça” evidencia o descaso com que o cidadão comum é tratado. Mesmo dentro do oikos de Miguel e Jofre, há quem ignore por completo a ausência de liberdade.

    A ansiedade e a preocupação fazem Marta ir às vias de fato, investigando o caso do desaparecimento de seu marido, inclusive utilizando-se de uma identidade falsa. Ela não vai presa por um triz. Paralelamente, Jofre é mostrado em seu cárcere, sem conseguir responder convenientemente aos seus agressores por tipificar-se categoricamente como um apolítico e de ideologia neutra. O típico sujeito normal que valoriza a família, a moral e os bons costumes e que, de um momento para o outro, tem todos os seus direitos retirados, como se não fizesse diferença alguma a sua postura anterior. Sua conclusão é de que aquele tratamento desumano é imerecido para todos os brasileiros.

    Mariana (da ainda muitíssimo bela Elizabeth Savalla), a amada de Miguel, engaja-se na militância de protesto. Num dos encontros com um dos “companheiros”, o personagem Zé Roberto é mostrado em uma iluminação diferente, com uma sombra sobre o rosto, emulando uma dualidade justificada pelo pretenso comportamento subversivo no âmbito político.

    Episódios comuns à historiografia são mostradas ou mencionadas no roteiro de Roberto Farias, Reginaldo Faria e de Paulo Mendonça, como, por exemplo, os casos dos “dedos-duros”; o controle das comunicações por meio de telefones grampeados; blitz organizadas em inúmeras estradas públicas. O posicionamento neutro não garantia aos civis a segurança de não serem reprimidos, graças à paranoia destes, pelo contrário, fazia com que fossem malvistos pelos membros da oposição que enxergavam-nos como acomodados, conformados com a situação calamitosa do Brasil. Os membros da repressão invadem os domicílios sem qualquer menção à permissividade, humilhando e maltratando mesmo os colaboradores do Regime. Até alguns dos homens fardados contestam a violência das ações, claro, de forma moderada, para que não sejam confundidos com os vermelhos.

    Miguel cansa de esperar a polícia e se posiciona contra os milicos, ameaçando o empresário Geraldo (Paulo Porto) de morte. Junto a ele, Miguel vai até a uma sessão de tortura, assistida por outros homens importantes, tornando óbvia a participação dos cidadãos influentes e comuns. Sem o apoio destes, a ditadura jamais seria legitimada.

    O desfecho narrativo ainda guarda algumas surpresas, como um embate entre um grupo de controle dos subversivos, que cerca Miguel e os seus dentro de uma casa, pondo em risco até a vida dos filhos de Jofre. O tiroteio generalizado deixa muitos mortos e é bem otimista se visto pelo lado dos protagonistas, até que ocorre a perseguição de carros na frustrada tentativa de fuga.

    O filme ficou somente um dia em cartaz: o regime censurou o copião logo que veio a público, por achar que o roteiro de Roberto Farias tivesse sido inspirado em situações reais, ligadas à Operação Bandeirantes, algo que realmente ocorreu.

    O momento da tragédia para Miguel é mostrada paralelamente à vitória da seleção de Zagallo no México, transitando entre o esporte inebriante, como os efeitos do ópio, e a dura realidade das pessoas comuns. Ao final, pouco antes do início dos créditos, há uma citação em texto, com a imagem da torcida congelada e os dizeres: “Este é um filme de ficção”. Traz uma dualidade ao tema, pondo em xeque a postura do governo e, claro, o papel alienante que o esporte tão idolatrado exercia na mentalidade do povo. Para a execução da fita, foi necessária muita coragem por parte de seus idealizadores.

  • Crítica | O Lobo de Wall Street

    Crítica | O Lobo de Wall Street

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    Em algum lugar entre o humor negro, fino e cáustico e o sonho de total prosperidade presente no American Dream está o discurso de Jordan Belfort, na quinta paragem envolvendo Leonardo DiCaprio nos filmes de Martin Scorsese. O ator amadureceu e cada vez mais mostra-se digno das películas de seu mentor, e prova disso é a completa ausência de temor que o artista mostra ao falar de forma fluída e direta com a câmera.

    O que Scorsese faz ao montar uma história baseada numa narração chega a ser transgressor dada sua qualidade. A abordagem usa de imagens lúdicas e justapostas para exemplificar o total desapego moral do panteão de personagens e a evolução de malcaratismo que o homem pode (e deve) experimentar. A afeição do realizador por ramos marginais de comércio faz dele o sujeito certo para explorar todas as “traquinagens” do profissional especulativo dos agentes da bolsa de valores, as nuances, os enganos, os blefes e, claro, os excessos de quem tem muito dinheiro e o que o uso desmedido dele pode fazer de “bom e ruim” com o sujeito. Em alguns momentos chega a passar uma mensagem voltada para o moralismo, até para desdenhar desse pensamento e mostrar o quanto ele se torna diminuto diante dos abissais excessos comportamentais de quem passa a vida brincando com um alto patrimônio econômico de terceiros.

    A falta de escrúpulos de Jordan é um diferencial, o que o torna um vencedor entre os perdedores que prosseguem na profissão e os que não se submetem a tentar novas coisas e a buscar desafios. Esta ousadia é muito bem registrada pela lente de Rodrigo Prieto e pontuado pelo texto interpretado magistralmente por DiCaprio. As fontes de renda que seu personagem vai arrecadando ultrapassam a barreira da criminalidade. O objetivo de atingir a riqueza absoluta também não conhece limites dentro do aceitável. O auge da charlatanice é a invenção da Straton Oakment por Belfort, que já começa como uma enorme rede de mentiras, obviamente criada por um sujeito que parece ter nascido com um talento único de trapacear.

    O modus operandi da companhia é regrado a orgias e práticas sexuais necessariamente infiéis a qualquer matrimônio possível. Estar chapado por entorpecentes durante o processo criativo era prática comum, assim como toda sorte de pecados provenientes do ser de cromossomo Y. O mundo é tão machista e chauvinista que é quase clássico, ignorando toda e qualquer regra politicamente correta atual. O cinismo de Jordan é passado para seus empregados como um bom aprendizado proveniente da relação entre mestre e pupilos.

    Ainda que Jonah Hill tenha recebido um sem número de indicações por sua performance – plenamente justificável em referência à cena em que demonstra os efeitos dos barbitúricos – o coadjuvante que merece menção por roubar a atenção do público é Max Belfort, o Mad Max, interpretado por Rob Reiner, com suas tiradas sensacionais e acessos de raiva contínuos e sua calma estabelecida de modo instantâneo.

    O glamour da vida bandida de Belfort ajuda a aumentar a simplicidade no entendimento do público, mesmo no espectador menos afeito ao vocabulário do mercado econômico. Sem falar que Jordan é um personagem que angaria a simpatia do público muito facilmente como o anti-herói cheio de fanfarronices que faz mesmo o espectador mais conservador torcer contra a lei e a ordem. O pecado mortal do bando passa pelo preciosismo e a completa falta de cuidado em conduzir as ações marginais, fazendo as transações de forma tresloucada e sob efeito das drogas mais pesadas que estes poderiam lançar mão. A inteligência no tratamento profissional deles era inversamente proporcional à maturidade em realizar as transações de modo ordeiro. A batalha pelo telefone da mansão dos Jordan entre Donnie e Jordan mostra do modo mais degradante e engraçado possível o quanto as relações entre os membros do grupo são loucas, inclusive estabelecendo uma comparação entre o espinafre do Marinheiro Popeye e a cocaína do protagonista. A situação faz o chefe de operações se precaver mais, o que evidencia sua evolução. Incrível como, mesmo com toda a sua hipocrisia, ele permanece amado e inspirador para todos ao seu redor.

    Como em Os Bons Companheiros e Cassino, os minutos finais sintetizam a decadência do criminoso e sua queda após todos os seus atos indignos. O cinismo chega ao auge quando ele tem de romper com o seu ethos ao ter de “entregar seus antigos companheiros”, mas o infrator ainda sofre algumas reviravoltas antes de ter sua sentença decretada. Não só a queda que coincide com o desfecho de Goodfellas, as reações dos protagonistas são semelhantes. O “Lobo” acerta no todo: a trilha sonora variando entre o nostálgico e o atual, o roteiro impecável, o clima odisseico/épico da trama, as atuações impecáveis, e, é claro, a lente ainda afiada e pontual de Martin Scorsese, que se mostra o sujeito de sua geração mais competente na contemporaneidade.

  • Crítica | Um Estranho no Lago

    Crítica | Um Estranho no Lago

    Um Estranho no Lago

    Frank (Pierre Deladonchamps) passa suas tardes de verão numa praia à beira de um lago, ponto de encontro de homossexuais. Conhece e torna-se amigo de Henri (Patrick d’Assumçao), recém-separado que vai ao local apenas para desfrutar do sossego. Mas envolve-se fisicamente e se apaixona por Michel (Christophe Paou), o macho-alfa da praia, atraente e misterioso, cujo ex-namorado é encontrado afogado no lago. Frank, que presenciou o afogamento, aproxima-se do culpado com um misto de atração sexual e fascínio pelo perigo.

    Tudo se passa nessa única locação – a praia e seus arredores. Apesar de ser ao ar livre, tem-se a impressão de que os personagens estão confinados numa “casa” com alguns cômodos que incluem a área de estacionamento, a praia, o lago e o bosque que circunda o lago. O roteirista / diretor Alain Guiraudie é bem-sucedido ao estabelecer limites invisíveis entre os cenários dando a entender que o que se passa num dos “cômodos” não é visto dos demais – com exceção da praia e do lago, óbvio, por serem geograficamente indissociáveis. Sob esse aspecto, entre outros, assemelha-se bastante a uma peça de teatro.

    A história é simples. O espectador acompanha dia após dia os homens se encontrando na praia. A passagem do tempo é percebida a cada vez que Frank chega e estaciona seu Renault antigo sempre no mesmo local, apesar de não existirem vagas demarcadas. Lembra ligeiramente Feitiço do Tempo, mas lembra bastante The Rebirth – em que a rotina se repete ad aeternum e um evento inesperado perturba o cotidiano do(s) personagem(ns). Com essa perturbação, surge mais um personagem, o inspetor Damroder (Jérôme Chappatte), totalmente alheio a esse ambiente. E, justamente por ser “de fora”, invade a vida dos personagens sem parecer se importar em incomodá-los com perguntas. Questiona os frequentadores da praia a respeito do afogamento, nas entrelinhas tentando entender como funciona aquele microcosmo. E, à procura de pistas, atravessa o local de ponta a ponta sem diferenciá-lo, como se os limites insinuados pelo diretor não existissem para ele.

    Minimalismo é o que melhor descreve todos os aspectos do filme. Toda a trama é construída e desenvolvida baseada nos detalhes. O código de convivência pré-estabelecido entre os frequentadores; os olhares trocados – alguns discretos, outros nem tanto – combinando um encontro no bosque; a convenção de ver sem reparar, quebrada apenas por Eric (Mathieu Vervisch), o voyeur; o local afastado em que Henri se senta e a forma recorrente como cruza os braços enquanto conversa. E a tensão crescente entre Frank e Michel é percebida em pequenos gestos, mínimas alterações no tom de voz, ligeiras mudanças no teor das conversas.

    Cada um dos personagens materializa diferentes aspectos do relacionamento sexual, indo do desejo inseparável do sexo ao desapego total. Frank é sexual e sentimental. Michel, o garanhão que não quer muito envolvimento. Henri desfruta de seu “bromance” platônico com Frank. E Eric é o eterno frustrado. Apesar dos papéis serem facilmente identificáveis, não quer dizer que sejam caricaturas. Assim como no restante, não há excessos. A caracterização é concisa, justa e nunca condescendente.

    Em muitas prateleiras – reais e virtuais – este filme provavelmente estará na seção erótica e/ou gay. Contudo, da mesma forma que Azul é a Cor Mais Quente não é um filme lésbico, mas sim um drama – ou romance, como preferir -, Um Estranho no Lago não é um filme gay, mas um thriller.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | O Nevoeiro

    Crítica | O Nevoeiro

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    Em 2007, Frank Darabont realizava mais uma parceria com Stephen King, adaptando o conto O Nevoeiro para os cinemas, como já havia feito anteriormente em À Espera de Um Milagre, Um Sonho de Liberdade e outros trabalhos menores. Essa parceria diz muito sobre o trabalho de Darabont, que, assim como King, procura sempre demonstrar em alguns de seus personagens a faceta repulsiva e irracional do ser humano. O Nevoeiro não é diferente disso.

    Na trama, o pintor David Drayton (Thomas Jane), é apresentado ao espectador em seu ambiente de trabalho, pintando cartazes de filmes, até ser interrompido pelo início de uma tempestade. Na manhã seguinte, David tem a proporção dos danos causados na noite anterior e decide se dirigir até a cidade com seu filho para comprar mantimentos, ante a possibilidade de uma nova tempestade mantê-los isolados. Chegando à cidade, David se dirige ao supermercado quando percebe que um forte nevoeiro parece tomar toda a cidade. As coisas parecem sair do controle quando os habitantes do vilarejo têm ciência de que existe algo em meio àquela impenetrável bruma e se refugiam no estabelecimento, onde a história se desenvolve.

    Novamente, Darabont trabalha com o terror típico de King, uma forma de análise comportamental de seus personagens. Dessa vez, o diretor explora esse microuniverso contido e trabalha cada aspecto existente nele. A atmosfera claustrofóbica cresce pouco a pouco, tomando toda as personagens da mesma forma que a névoa invade a cidade. Assim, tensões são criadas em meio a dilemas morais, políticos e religiosos.

    Essa claustrofobia causada pelo número de pessoas refugiadas em um ambiente frágil – toda a fachada do supermercado é feita de vidro, denotando o perigo iminente – pouco a pouco desmascara cada camada da sociedade ali presente. Da mesma forma que a bruma envolve o vilarejo, seus habitantes são libertos de qualquer freio moral, mostrando abertura à natureza humana. O tom pessimista da obra de Darabont questiona nossa capacidade de viver em sociedade e até onde nossos monstros internos se mantêm guardados para que possa existir um equilíbrio interno. Assim como Buñuel, em O Anjo Exterminador, e Hitchcock, em Os Pássaros, o cineasta não está disposto a explicar os motivos que ocasionaram tal ameaça, mas sim discutir questões mais importantes relativas à sociedade.

    O trabalho de desconstrução do elenco, em raras exceções, é bastante primoroso. O roteiro contribuiu para que o filme não soe panfletário, principalmente no que tange o belo trabalho de atuação de Marcia Gay Harden, que, interpretando uma religiosa fundamentalista, de maneira gradual introduz camadas em sua personagem, transformando-a em uma criatura tão monstruosa quanto aquelas que se encontram em meio ao nevoeiro.

    O Nevoeiro é um grande filme que não toma escolhas fáceis. A condução da história e a forma como cada personagem encara esses acontecimentos ocorrem de forma realista e plausível. O tom niilista da obra segue até a sua fatídica conclusão e a cegueira partilhada por cada personagem, cada qual com suas escolhas e ideologias, dará o tom das consequências de suas escolhas.

  • Crítica | Taxidermia

    Crítica | Taxidermia

    taxidermia

    Taxidermia funciona como uma colcha de retalhos. Inspirado nos contos do escritor Lajos Parti Nagy, o filme conta três causos bizarros que têm em comum as gerações de uma família disfuncional e repleta de esquisitices em seu cotidiano.

    O primeiro ato foca no soldado Moroscovany (Csaba Czene), que, ao enfrentar um frio intenso, tem a sexualidade reprimida. A busca pelo prazer sexual se pauta no voyeurismo, sendo que seus alvos são sempre do sexo feminino. Suas fantasias alcançam ares bizarros e flertam com o bestialismo e dores intensas. A vagina, para ele, é um objeto de adoração; mesmo a mais remota menção ao órgão sexual feminino o faz delirar e se decepcionar por não alcançar o orgasmo. Suas taras fazem com que seu superior pense que ele fantasia com sua rotunda esposa e, por isso, o pobre soldado perece. A banheira, onde o protagonista antes dormia, é um signo da sexualidade e torna-se uma representação de sensações pueris, como uma mensagem alertando que o bizarro varia de cabeça a cabeça.

    A segunda parte é protagonizada por Kalman (Gergely Trócsányi), o bebê com rabo que cresceu estupidamente e tornou-se um adiposo esportista que participa de um torneio cujo objetivo é atestar a quantidade de comida que um corpo humano pode aguentar. Bravamente ele defende as cores da Hungria. Curioso é que os órgãos oficiais olímpicos reconhecem o torneio de glutonaria como um evento legitimamente esportivo. O lazer entre o núcleo de personagens gordos é incomum e bizarro mesmo quando coincide com o que é comum ao sujeito “normal”.

    A terceira geração dos Balatony mostra Lajus (Marc Bischoff), um taxidermista que contrasta com seus antepassados, inclusive com seu ainda vivo pai, que era uma lenda do esporte. Os quilos que os separam servem para mostrar o abismo filosófico entre os dois. A relação entre os parentes é cortada pela visão degradante do moço em relação ao seu antecessor, e pautada no ódio provocado no filho. O pai, mesmo em uma forma decadente e imóvel, insiste em desprezar o rapaz de forma muito arrogante. O filho, por sua vez, despreza por completo a asquerosa figura que o progenitor se tornou, tanto fisicamente como também de gênio e caráter. No entanto, Lajus sente-se deprimido por brigar com ele, e ao encontrá-lo pela última vez, decide torná-lo o protótipo de sua obra de arte suprema.

    O conjunto de imagens filmadas por György Pálfi é essencial para que se entenda sua mensagem, numa tentativa de registrar a trajetória humana na Terra enfatizando o grotesco. Os closes na cauda de Kalmar preconiza a característica animalesca e sobre-humana, mostrando o homem como um ser também bestial. Já no episódio do chaveiro de feto, há uma pitada de humor negro, elemento frequente no decorrer da película, a fim de mostrar o cinismo inerente ao ser humano.

    O intuito é causar nojo, asco e ojeriza e comover pelo barbarismo e, claro, pela escatologia, emulando lágrimas com suor provindos das axilas de um gordo. Lajus, através de sua máquina de auto-empalamento (o mecanismo que o faz desfalecer), permite que ele se torne imortal, ainda que esta seja uma escultura incompleta. O filme fecha com um detalhe no umbigo, símbolo do nascituro, representando o nascimento de algo para o clã Balatony, que teve trajetória encurtada em um sentido e estendida em outro.

  • Crítica | Toque de Mestre

    Crítica | Toque de Mestre

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    Produção espanhola de baixo orçamento, escrito por Damien Chazelle (de Agnosia), Toque de Mestre conta a história de Tom Selznic (Elijah Wood), um talentoso pianista que sofre de medo do palco, retornando às salas de concerto após cinco anos de afastamento, depois de uma performance desastrosa. Momentos antes da apresentação que marca seu retorno, recebe uma ameaça, afirmando que deve fazer o melhor concerto de sua vida, sem errar uma única nota caso queira salvar a si próprio e à sua esposa, Emma (Kerry Bishé). Sem sair do piano – ou quase – tenta descobrir o autor da ameaça e como conseguir ajuda.

    Não há como não pensar em O Homem Que Sabia Demais de Hitchcock devido à ambientação da trama. Utiliza-se o mesmo conceito: uma situação dramática que se desenrola enquanto a orquestra executa uma obra. Neste, diferente da produção de Hitchcock, a ação do filme se passa toda dentro do teatro – com exceção dos primeiros minutos em que o público é apresentado ao protagonista (em pânico) e seu piano. Personagens confinados em apenas um local costumam render boas histórias, com bons momentos de suspense. Com este não é diferente, apesar de não conseguir manter um nível de tensão suficiente para evitar um eventual bocejo do espectador.

    Se, no seu primeiro terço, o filme se sustenta bem, o mesmo não ocorre no restante do tempo. No início, o suspense se mantém, pois, junto com Tom, o espectador tenta entender a extensão da ameaça ao mesmo tempo em que se pergunta por que raios o vilão está fazendo aquilo. Do segundo terço em diante vai se tornando cada vez mais irregular. A começar pelo momento em que “descobrimos” quem é o vilão – poderiam ao menos ter tido o cuidado de suprimir o nome do ator dos créditos iniciais – e em que é revelada a motivação do vilão – um tremendo anti-clímax. Impossível não pensar “Mas era só isso?”. Dali em diante, a trama se torna errática. As ameaças a Tom se tornam repetitivas. O foco da ação é desviado para personagens sem qualquer função narrativa – algo similar ao Rodrigo Santoro em Lost (entendedores entenderão). O filme vai perdendo fôlego e se encaminha para o desfecho sem muito entusiasmo.

    É preciso relevar vários detalhes para comprar a história, principalmente se o expectador tiver conhecimento, mesmo que mínimo, do universo de concertos de música erudita. Se o pianista sofre de ataques de pânico, por que não está em tratamento – terapia e/ou medicamentos? Que maestro correria o risco de fazer uma performance com esse pianista, que não se apresenta em público há anos – sem ao menos um ensaio? Que maestro não percebe que o pianista não está agindo normalmente? E, se percebe, por que não o procura durante o intermezzo? Aliás, como não perceber, e o pianista deveria estar polidamente sentado ao piano ao invés de sair do palco sucessivas vezes enquanto a orquestra executa a peça? Para o espectador que já tenha tocado algum instrumento, fica a dúvida: por mais virtuoso que seja o músico, é humanamente impossível tocar passagens complexas como aquelas, tão excepcionalmente bem quanto ele as toca e ainda conversar com um desconhecido que o ameaça. E como é possível que o vilão tenha se preparado por três anos e não ter controle total sobre toda e qualquer ação de Tom? E ainda, se o vilão apenas queria a chave, havia várias outras possibilidades de obtê-la que não envolveriam um plano tão mirabolante e tão suscetível a falhas como o que foi engendrado.

    O elenco está bem, nenhuma atuação excepcional nem nada terrível demais. A fotografia está ok, exceto nos momentos em que tenta ser inovadora e usa certas angulações sem qualquer justificativa. Se praticamente não há sangue no filme, isso é compensado pelo vermelho carmim do cenário, tão excessivo que chega a enjoar. Há algumas boas sacadas na montagem, que na maior parte do tempo se aproveita do ritmo da música. Quanto à trilha sonora, pode não agradar a todos pelo caráter atonal das composições, mas casa bem com o clima de suspense do filme.

    Mesmo estando longe de ser um Hitchcock em termos de estrutura narrativa e desenvolvimento da tensão, ainda assim consegue ser um filme de suspense ‘assistível’. Não é inovador, mas cumpre o que se propõe – entreter o espectador e deixá-lo (um pouco) tenso durante 90 minutos.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | O Grande Herói

    Crítica | O Grande Herói

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    A intenção do filme de Peter Berg é notada logo em seu título, tanto na versão original – com Lone Survivor – mostrando um sobrevivente solitário, como em toda a pompa do nome brasileiro: O Grande Herói. A história real de um combatente que foi ao Afeganistão atrás de um dos principais asseclas de Osama Bin Laden, tenta pegar carona nos sucessos de bilheteria recentes, que focam a caça aos inimigos mundiais, realizados por Kathryn Bigelow, como Guerra Ao Terror e A Hora Mais Escura. A mesma superação do indivíduo está presente na fita que tem como protagonista o produtor executivo Mark Wahlberg, além de ser claramente uma tentativa de um suspiro por dias melhores por parte do diretor de “sucessos” como Hancock e Battleship: A Batalha dos Mares, tentando emular os melhores momentos do gênero, com uma clara influência de Três Reis, Falcão Negro em Perigo e um ânimo que remete a Platoon.

    Filmes militares edificantes são um sub-gênero clichê e com uma enorme propensão a repetir lugares-comum. O cotidiano dos combatentes residentes no Oriente Médio é muito parecido com o dos filmes que influenciaram Berg. Nas instalações militares prevalece a companhia exclusivamente masculina, o isolamento dos acontecimentos da terra natal dos alistados, armamento de primeira linha, e, obviamente, muitíssimo prolífico e claro, como se todos fossem fiéis ao deus islâmico, barbas bem cultivadas.

    A câmera de Peter Berg registra de forma assaz curiosa a rotina da caça ao terrorista subversivo, mostrando uma evolução visual muito grande por parte do realizador. As partes que mostram a espera pelo melhor momento para o grupo armado dar o bote são muito equilibradas em mostrar o tédio sonolento dos soldados enquanto aguardam a hora H, como também mostra o suspense amedrontador ao menor sinal de que algo pode ou não dar errado para eles, mostrando a tocaia tanto sob os olhos dos orientais possivelmente ligados ao Talibã como dos yankees camuflados na mata. A espera pela solução da questão referente a perseguição do alvo primário é muitíssimo sufocante e agorafóbica e piora quando surge a dúvida entre a libertação ou não dos reféns que aparentavam não ser hostis. O resultado final da discussão deixa em aberto outro debate, o da diferenciação de como identificar quais tipos de civis fazem parte do esforço de guerra inimigo.

    A atmosfera de caça toma conta do filme e a fotografia de Tobias A. Schliessler (que já havia trabalhado antes com Berg e também em Dreamgirls: Em Busca de um Sonho) é excelente pois consegue capturar a essência das trocas de tiros entre os lados distintos. Quase dá para sentir a areia voando após os projéteis acertarem o chão. A mixagem de som, por conta de Andy Koyama, Beau Borders e David Brownlow não foi indicada ao Oscar à toa. Também é um esforço descomunal de execução que beira a perfeição, aumentando a sensação de perigo do espectador junto aos aventureiros da jornada, aliada, é claro, a edição de som de Wylie Stateman.

    A edição de vídeo também é um primor. As escolhas de plano sequência são pontuais e constituem no melhor aspecto da película, sem dúvida, pois o apuro visual nas cenas próximas ao fim do conflito são de tirar o fôlego e qualquer traço de discordância entre o público e os personagens cai por terra, o observador mais atento pode até discutir os motivos dos militares de alta patente, mas não duvidam da motivação dos que sofrem no campo de batalha, pois a empatia é automática e impossível de ignorar.

    O pós-combate é ainda mais impressionante graficamente do que o entrave em si, graças a maquiagem e direção de arte. Os hematomas e feridas abertas desfiguram todos os atores fazendo-os irreconhecíveis até mesmo para as suas mães. A sucessão de infortúnios que invadem a vivência dos sobreviventes ganha proporções homéricas e os combatentes sofrem o diabo. No desespero da troca de chumbo, a técnica dos fuzileiros não faz tanto efeito quanto o esperado e os melhores resultados dos seus esforços são por meio das atitudes movidas pela bravura que pouco calcula riscos e que se vale muito mais de ações voluntariosas do que por escolhas mais sábias e mais pensadas. É até curioso que o socorro por parte dos militares fora de combate somente vem através de um protocolo e de um movimento absolutamente burocrático de informação de coordenadas, composta por um número de dez dígitos. Em que mundo perfeito haveria um desesperado oficial do exército sendo baleado e conseguindo falar de cor a sua localização entre latitude e longitude? Somente em um mundo utópico.

    Uma cena em particular mostra toda a excelência e grandiosidade visual de O Grande Herói, a vista interna do helicóptero atingido pelo míssil RPG sendo destroçado no ar e explodindo no impacto com a superfície é uma das cenas mais impressionantes do cinema de guerra mundial, e presa muito pelo realismo de todos os elementos que a envolvem.

    Quando o personagem principal Marcus Luthrell  se vê voando sozinho e é encarado pelos possíveis inimigos, o ator Mark Wahlberg  passa a apresentar uma atuação lúcida e verídica como há muito não fazia. Seu esforço talvez só iguale à sua participação em Infiltrados. Os sacrifícios físicos mostram um sofrimento sem igual e a dor que ele sente ao ter de se ferir para conseguir sobreviver é gráfica e calamitosa.

    A sua postura à la Rambo nos vinte minutos finais faz perguntar o quanto de toda esta história é de fato algo real, mas até os exageros narrativos são passíveis de perdão graças a todo o esforço em contar a história de Marcus Luthrell por meio de imagens e com pouquíssimo discurso político imperialista, mesmo com a fala final valorizando o esforço dos fuzileiros. Antes dos créditos finais, são mostrados fotos dos militares executados em serviço, algumas vezes acompanhando a sua vida civil. Involuntariamente o guião discute a necessidade belicista dos EUA mostrando grande parte do seu esforço militar perecer tão longe de casa, claro, com pouco pedantismo perto do que poderia ser e ainda contém referências ao Pashtunwali, prática corajosa do povo afegão em proteger um sujeito indefeso mesmo quando isto vai contra os interesses do regime Talibã.

  • Crítica | Tudo Por Um Furo

    Crítica | Tudo Por Um Furo

    Anchorman-2

    Adam McKay é responsável por dirigir alguns dos filmes mais hilários da carreira de Will Ferrell, como Ricky Bob: A Toda Velocidade, Quase Irmãos, Os Outros Caras e, claro, Âncora – A Lenda de Ron Burgundy. A esperada continuação do filme mais notável da parceria entre McKay e Ferrell começa tão estúpida e boba quanto o primeiro episódio, com toda a gritaria típica dos filmes do ator e a estupidez de Ron, mostrando a perfeita caricatura do jornalista televisivo moderno.

    A trajetória de Burgundy é interrompida com poucos minutos de exibição. Seu status quo é quebrado e a lenda é contestada, sendo logo mandado embora. A sequência de eventos que ocorre após a fatídica notícia é absolutamente hilária, sendo praticamente impossível para o espectador não rir. O renascer deste como jornalista após a humilhante constatação de sua incompetência é reunir a sua trupe novamente – nada mais clichê e certamente não poderia ser menos engraçado do que foi, pois cada um dos seus coadjuvantes está em uma situação das mais curiosas e absurdas: Champ Kind (David Koechner) tornou-se dono um restaurante fast-food que serve asinha de morcego empanada; Brian Fantana (Paul Rudd) faz ensaios fotográficos com pequenos gatos e se excita deveras com isto; enquanto Brick Stamland (Steve Carrell) acredita estar morto e é tão burro que vai ao próprio enterro. Toda a ironia da antiga rotina deles, ao invés de se repetir, é substituída por cenas ainda mais “babacas” que as anteriores.

    Tudo dentro do roteiro faz parecer um teatro dos absurdos. O machismo e racismo de Burgundy parecem não ter diminuído nada com o passar dos anos. Associados à intelectualidade média de norte-americano, esses preconceitos fazem da comédia algo sem muito compromisso com o politicamente correto, o que é muito raro, principalmente com o fato de não ser associada somente a jocosidades sexuais por necessidade. Todos os grupos secularmente excluídos recebem sua dose de gracejos: negros, gays, mentalmente prejudicados, latinos e mulheres.

    Seu retorno obviamente não é fácil, e ele tem de enfrentar novas rivalidades dentro da emissora, que só circula notícias, e na casa de sua esposa e atual ex, Veronica Corningstone, a ainda bela Christina Applegate. O método antiquado como Ron vê o mundo cobra o seu preço. Há necessidade de se reinventar como profissional da informação e como figura masculina, e sua saída é usar um discurso ufanista e sensacionalista voltado para o público que está dentro do maior denominador comum. Sua seleção de matérias visa reforçar a ideia de que a América é o melhor lugar do mundo para se viver, ignorando tudo o que aconteça à volta do mundo e que seja relevante. A falta de noção impera no modo de operar do laureado e premiado jornalista, e a ausência de limites faz com que todos não achem estranho ensinar o público a enrolar e fumar cachimbos de crack na televisão ao vivo. Tudo é tão absolutamente louco que, por mais nonsense que seja o cenário, o circo midiático maluco torna-se lógico e faz total sentido dentro daquele universo tão estapafúrdio.

    Uma boa novidade é o romance em que se metem Brick Tamland e Chani Lastname (Kristen Wiig), uma personagem desequilibrada mentalmente com direito a alguns distúrbios e transtorno obsessivo-compulsivo, inclusive com o mesmo background de origem militar para tais demências. Quando este tem de ir ao seu encontro, é apresentada a ela uma miscelânea enorme de variações de preservativos, inclusive os que não funcionam na prevenção de gravidez. A primeira interação do responsável pela previsão do tempo na tela verde é tão incrivelmente idiota que se torna uma das cenas que mais causaram gargalhadas nos últimos tempos.

    A falta de tato social de Ron continua intacta, se não aumentada. O affair que tem com Meagan Good  (Linda Jackson) o faz exagerar ainda mais com os estereótipos raciais. Até na mesa da família da moça utiliza-se de todo tipo de insinuação sexual, especialmente das mais sujas, com o que ele acha ser natural, unicamente pelo fato dos presentes serem negros, o que, em sua cabeça, os faz mais liberais nos assuntos relacionados ao coito poli e monogâmico. Um drama dos mais trágicos acontece com ele, e Burgundy se enfia numa luta contra o vício em crack que o faz agir como um pai ausente e irresponsável seletor de notícias. Quando cobre uma aleatória perseguição de carros, consegue uma entrevista de Veronica com Yaser Arafat, que vem a falar de sua tentativa de pacifismo com Israel. Seus índices de audiência atingem picos estratosféricos, mas sua fama é interrompida por um acidente que tira a sua visão, e consequentemente a capacidade de comunicar notícias via teleprompter.

    Depois da volta por cima e reinvenção enquanto cego, Ron Burgundy tem à sua frente um dilema moral: continuar a carreira cobrindo fatos sem importância ou ir ver o seu filho homenageá-lo em um recital. Sua escolha é a moralmente correta e ele se alinha com as coisas que o fazem bem, reatando as suas amizades e retornando ao seu verdadeiro amor, como na maioria dos último bons filmes de Ferrell. Ficaria um gosto de decepção se não fosse pela ótima cena repaginada da batalha entre jornalistas que reúnem ainda mais cenas de notícias, com participações especiais das mais diversas, entre humoristas e atores consagrados. Uma épica batalha contendo muita violência e referências das menos cabíveis possíveis, num dos exercícios de Deus Ex Machina com justificativa das melhores possíveis e um argumento providencial muito bem encaixado.

    O humor de Tudo por um Furo é universal, mas o roteiro faz ainda mais sentido para quem é comunicólogo. Todas as sandices mostradas em tela fazem da obra algo difícil de se levar a sério, obviamente não fazendo uso de humor inteligente ou cerebral. Por isto mesmo é uma obra única, por ser pensada e feita como uma troça de uma indústria que se leva demasiado a sério pela responsabilidade de informar. O filme é corretissimamente pensado e acerta muito dentro de sua proposta. Analisar algo fora desse escopo é total perda de tempo.

  • Crítica | Grand Central

    Crítica | Grand Central

    grand central

    Rebecca Zlotowski está à frente da controversa produção francesa Grand Central. A diretora já havia abordado temas espinhosos em seu primeiro filme, Belle Epine, em que falava sobre temas ligados à delinquência juvenil. Na fita de 2013 ela foca sua história em Gary (Tahar Rahim), um inconstante rapaz que transitou entre muitas atividades sem jamais se firmar profissionalmente em nenhuma delas. Finalmente consegue o seu intento ao ingressar numa empresa que trabalha material radiativo, e nela consegue o que tanto procurava: estabilidade, segurança no trabalho e um salário decente, apesar das queixas alheias por não ter uma formação das mais versáteis.

    Gary se aproxima do colega de trabalho Toni (Denis Menochet, o Monsieur LaPadite de Bastardos Inglórios), a princípio para conseguir dinheiro emprestado. Ao chegar à casa do companheiro, Gary analisa os cômodos, especialmente o quarto, flagrando com olhos curiosos e desejosos a cama, por fazer, dele e de sua companheira. O cotidiano de Gary é bagunçado, sua vida parece um desalinho enorme. Além de muita desorganização, sua família está aos pedaços e algo fora desta realidade já seria um enorme suspiro de alívio para sua triste existência. Por meio de uma jocosa armadilha, ele se permite levar por uma tentação e pelo desejo pelo proibido.

    Karole (Emma Seydoux) é esposa de Toni; tão debochada e fingida quanto o marido, ela instiga Gary através de um gesto sexual nada sério, e se insinua para ele na frente de todos. Sua brincadeira é acompanhada de risos gerais, inclusive de seu esposo, o que a livraria de qualquer complexo de culpa, assim como resguardaria sua imagem de suspeitas de indiscrição. Ela também trabalha na multinacional e enfrenta as mesmas situações complicadas e perigosas que acometem o protagonista. As condições de exposição à radiação são analisadas constantemente para que os funcionários não corram tanto risco de contaminação.

    O primeiro contato da dupla fora do ambiente controlado e sem a presença de Toni é de conflito. Os dois se seguram para não demonstrar desejos carnais. As faíscas saem e a proximidade do contato epitelial é sufocante. As coxas de Emma Seydoux parecem chamar a presença do protagonista, assim como seus seios. Ela não está tão sensual como em Azul é a Cor Mais Quente, mas ainda assim é muitíssimo sexual e voluptuosa. E o inevitável finalmente tomou forma. A dupla de infiéis tem dificuldade em reincidir a relação, mas não deixam de ter o desejo mútuo de repeti-la, apesar dos pesares.

    O medo não é o de serem pegos, mas sim a culpa devido ao pecado que ambos cometem. O roteiro é bastante verossímil na abordagem da dúvida, tendo em si muita veracidade e coerência, mostrando que, apesar de a infidelidade ter sido gerada por movimentos impulsivos, os envolvidos tentam manter ao máximo o controle de suas atitudes, temendo ser descobertos e usando sempre o mesmo local para a prática ilícita de amor. O envolvimento emocional os faz serem imprudentes, como se vivessem uma paixão adolescente totalmente sem fronteiras ou restrições. A evolução sentimental os faz sentirem-se como se andassem sobre as nuvens, em uma atmosfera leve e sem julgamentos.

    A dupla vida que leva mexe com a psiquê de Gary, e ele pensa duas vezes antes de socorrer o marido de sua amada, numa ação que poderia dar fim não só a vida do acidentado, mas também a sua. Karole classifica esta ação como uma tentativa dele de bancar o herói, situação que se agrava com a notícia de sua gravidez — piorada e muito pela incapacidade de Toni em gerar filhos. As intenções de Gary parecem ser claras em relação a ficar com ela, já Karole não é completamente clara quanto às suas vontades, trazendo uma versão para cada um de seus parceiros. Logo o temor de Gary se cumpre, e ela escolhe o affair mais antigo. Sensações de solidão e de ter sido usado predominam em seu ser. A sucessão de eventos o prejudica demais e o faz perder tudo que considerava importante: seu emprego, seu lugar na comunidade e, principalmente, sua musa. Não fica difícil para ele perder a cabeça e agir sem raciocinar, e numa desesperadora tentativa de reaver o que tinha perdido, comete os piores atos possíveis para si mesmo e para aqueles a quem jurava amor, quase pondo fim à própria vida depois da desilusão. Sua última cartada faz efeito, pelo menos a priori, e surte um efeito o qual tinha poucas esperanças de conseguir.

    O roteiro de Zlotowski e Gaelle Mace aborda não só a grave questão da infidelidade nas relações amorosas e profissionais, como também expõe uma problemática muitíssimo discutível do ponto de vista da ética do trabalho junto às precárias condições e da exploração da mais valia por indivíduos sem muitas oportunidades. A grande questão nas duas proposições é até onde é justa a corrida para se fazer o que deixaria o indivíduo (individual) feliz e plenamente satisfeito, mesmo que às custas do sofrimento alheio.