Categoria: Críticas

  • Crítica | Philomena

    Crítica | Philomena

    Philomena

    A película de Stephen Frears (de Alta Fidelidade e A Rainha) é pretensamente baseada em fatos reais. Martin Sixsmith – do competente Steve Coogan – é um ex-assessor de imprensa de um antigo ministro da Coroa, demitido injustamente, concordata esta motivada por um erro que não teria sido seu. As voltas com sentimentos auto-destrutivos e depressivos, bastante plausíveis diante do que lhe acometera, ele procura uma causa, algo que o motive a voltar a trabalhar com as palavras.

    A personalidade passiva e agressiva do protagonista logo é percebida, mostrando Sixsmith se utilizando de seu pouco tato com possíveis clientes da sua investigação jornalística. O modo como trata o caderno de interesses gerais é curioso por este achar o ofício um esforço fútil e voltado para mentes fracas. Graças a sua arrogância, quase perde a oportunidade de explorar o drama de Philomena Lee – Judi Dench – e seu filho há cinco décadas perdido, separado desta graças a rigidez predominante no convento onde residia. Através do relato da idosa mulher arrependida o drama é revelado ao público, em flashbacks contendo cenas de cunho extremamente emocional e que curiosamente contrastam muito com o discurso de Philomena, que até insiste em defender as freiras responsáveis pela separação desta de seu herdeiro.

    Por vezes a leveza da abordagem mascara os complicados e espinhosos temas propostos. Isto é causado muito pelo humor negro de Sixsmith e pelo gênio incompreendido de Philomena, variando entre sua docilidade costumeira e o claro incômodo de retornar às memórias incômodas e devastadoras, que por sua vez, a fazem agir hostilmente quando se vê confrontada, seja em relação ao conhecimento sobre a arquitetura do convento ou pela discussão de sua decisão de procurar o primeiro filho tão tardiamente.

    É interessante notar o momento da dupla de heróis, pois ambos passam por crises existenciais, e têm formas distintas de encarar isto, enquanto a situação de Martin acabara de acontecer e ele age de forma altiva diante das adversidades, Philomena prefere o silêncio, a resignação e condescendência diante a irônica forma como os indícios da localização de “Anthony” simplesmente sucumbira ante um incêndio “acidental”. A insegurança de Martin lhe é útil, visto que o faz ficar paranoico e aberto a teoria da conspiração, e que garante ao jornalista um furo e o arquitetamento de um evento midiático de proporções moderadas. O cinismo do redator é enorme e ele vê na história uma oportunidade de recuperar para o seu nome um pouco de notoriedade, enquanto a anciã vê a possibilidade de, após a viagem, achar seu filho.

    Frears usa mais uma vez um personagem inseguro, que cospe erudição para esconder seu vazio existencial e a vergonha por estar em tão constrangedora situação, como com Rob Gordon, em Alta Fidelidade. A gotejante simplicidade de pensamento e de julgamento por parte da senhorinha faz dela uma personagem simpática, mas não parece ultrapassar a sua emproada e blasé carapaça de isolamento, até um momento chave, em que mesmo sua máscara de indiferença cai, diante da péssima notícia que descobrira. Ele até mostra uma menor falta de escrúpulos do que a de sua editora, que o obriga a prosseguir sua busca e tentar demover a desconsolada mãe de retornar ao seu lar, para ter uma história grandiosa (ou o que mais se aproximar disso) publicada por Martin.

    O terço final varia entre momentos agridoces e de euforia extrema, é como uma montanha russa de emoções e emula as variações de humor de um típico caso de depressão diagnosticado, o que é natural dado a natureza da pessoa analisada e sua idade avançada, e, coincidentemente, também bateria facilmente com a situação do decadente Martin. A reconstituição do passado de Michael Hess e a forma como Philomena encara seu destino faz com que Martin a defenda ferozmente, sobretudo do complexo de culpa que ela insiste em exercer sobre si, fazendo-os entrar em atrito por momentos prolongados.

    Martin se vale de sua obstinação pela notícia para chegar ao fundo da história, e do acobertamento dos paradeiros de mãe e filho, entrando nas brechas deixadas pelos religiosos e se valendo de sua ácida e corrosiva personalidade para provocar os culpados e obrigá-los a contar a verdade. A reação de Philomena é de perdoar seus malfeitores, ao contrário da fúria que permeia a atitude do investigador. As distintas formas de enxergar o todo se cruzam ao final, e chegam a uma conclusão em comum. O impressionante é que mesmo após a epopeia e o turbilhão de emoções pelas quais passam Lee e Maxsmith, os dois não mudam seu modo de viver, ao contrário, o roteiro de Coogan e Jeff Pope mostra como duas partes tão diferentes entre si podem agir juntas e produzir uma tão doce, agradável e sucinta história de auto-descoberta, abordando as debilidades inerentes a uma longa existência mas sem desolar o espectador com cenas de cunho melancólico.

  • Crítica | RoboCop (2014)

    Crítica | RoboCop (2014)

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    O cineasta holandês Paul Verhoeven marcou uma geração de jovens dos anos 90 com suas produções marcadas pela violência gráfica e distopias futuristas. Com três clássicos nas mãos (Robocop, Vingador do Futuro e Tropas Estelares), o diretor estabeleceu uma linguagem própria e uma base considerável de fãs mesmo dentro da crítica, mas não resistiu à modernização e ao crescimento da “caretice” de Hollywood no final da década. Tanto é que Verhoeven acabou voltando desiludido para a Holanda e lá produziu o excelente A Espiã e, o ainda não lançado no Brasil, Steekspel. Como já era de se esperar, a onda de remakes atingiu seu legado, e em 2012 foi refilmado O Vingador do Futuro, fracasso retumbante e totalmente esquecido pelo público.

    Agora é a vez de Robocop, considerado por muitos seu melhor filme nos EUA. A MGM já tentou refazer o filme algumas vezes, mas não encontrava a pessoa certa. Após ver o sucesso dos dois Tropa de Elite, acabaram-se as dúvidas. A visão política e social de José Padilha, combinada a intensas cenas de guerra urbana das autoridades contra os “inimigos”, assemelhava-se bastante à proposta de Verhoeven. Logo, o brasileiro foi chamado para dirigir o projeto.

    A história se passa em torno do incorruptível e incansável detetive Alex Murphy (Joel Kinnaman), que investiga, na cidade de Detroit, crimes que sobem cada vez mais na escala de poder. Após seu parceiro Jack Lewis (Michael K. Williams) ser baleado em uma operação, ele decide investigar sozinho a rede de corrupção da cidade, mas sofre um atentado que quase tira sua vida. Nisso entra a Omnicorp e o plano de trazer para o mercado doméstico a produção de soldados robôs com a função de proteger o país. O presidente da companhia, Raymond Sellars (Michael Keaton), empenha-se arduamente com a ajuda do apresentador de TV Pat Novak (Samuel L. Jackson). Assim, decidem transformar o moribundo Murphy em uma máquina, porém os planos da empresa não saem como planejados.

    As comparações com a obra original serão inevitáveis, mas ao contrário dos remakes/reboots lançados atualmente no mercado, o novo Robocop possui história própria a ser contada de forma singular. Esse mérito podemos dar a Padilha, que não caiu na tentativa de recriar o filme de Verhoeven, tampouco de inovar completamente retirando a essência política da história. Porém, faltam ao remake a originalidade e a anarquia criativa do original justamente como sátira de um universo policialesco e anestesiado, sofrendo com a violência endêmica sem conseguir reagir dentro dos moldes de uma sociedade democrática. Dessa forma, Robocop surge como a união dos traços marcantes da modernidade: a automatização robótica e o discurso policial como salvador da pátria. E, neste aspecto, Padilha flerta timidamente com esses temas, sem causar nenhum tipo de reação ao espectador.

    A Detroit do filme de 1987 era realmente suja, decadente e claramente violenta, em uma previsão profética do que se tornaria a cidade hoje. Porém, no remake ela é uma cidade moderna, com policiais honestos morando em bairros de classe média alta sem nenhuma preocupação. Nem de longe passa a imagem falada na história de que Detroit estava entregue à violência.

    As inserções televisivas, e satirizadas ao extremo pelo diretor do original, foram diminuídas em um único personagem, Pat Novak, apresentador de algo como um programa da Fox News, ou mesmo um Datena ou Cidade Alerta no Brasil. Reacionarismo e discurso da ordem através da violência contaminando o debate, mas que não causam nenhum efeito além de informar friamente o espectador. A TV possui esse único papel: o jornalismo-marrom. Não vemos nenhuma propaganda contra a radiação solar ou programas de humor com bordões ridículos que pareciam entreter a todos, elementos que marcaram o tom humorístico televisivo de 1987, ausência essa que transparece sisudez.

    Os acertos do filme se dão pela visão política interna e global, que provavelmente teve o dedo de Padilha. A questão não é somente a segurança interna de uma cidade dos EUA, e sim como o império já se alastrou pelo mundo e os robôs e drones são usados pela máquina militar a fim de estabelecer seu poder, como mostra a cena inicial em Teerã, na qual um ED-209 executa um garoto. Também é interessante o papel da China na história. Murphy é transformado no Robocop em uma linha de montagem na Ásia, e quando foge, sai em uma linha de produção tão automatizada quanto ele, lembrando as fábricas da Samsung, Apple e outras multinacionais. Definitivamente, os EUA deixaram de concentrar todo o poderio industrial do planeta. Porém, isso poderia ter uma contradição, já que o crescimento econômico da China é acompanhado de crescimento político, e nesse contexto talvez uma invasão ao Irã não aconteceria ali tão perto dos chineses.

    O papel da família de Murphy também se tornou muito maior no remake. Enquanto no original sua família era uma simples lembrança distante, agora sua esposa, Clara Murphy (Abbie Cornish), possui participação ativa, na tentativa de humanizar o personagem. O que faria sentido se seu papel não fosse cada vez mais diminuído conforme o filme avança, até chegar a uma cena final um tanto quanto embaraçosa no heliporto. Seu filho então é praticamente um poste. Até o ator mirim de Homem de Ferro 3 foi mais importante.

    Também é menos impactante a figura do vilão. Enquanto Kurtwood Smith dá vida ao impressionante e odiável Clarence Boddicker, em cuja cena da morte de Murphy traumatizou uma geração de crianças, Antoine Vallon (Patrick Garrow) não cativa em momento algum, servindo somente para ser morto no final em estéril cena de tiroteio que causou um pouco de vertigem, tamanha velocidade e quantidade de cortes. Toda a gangue de Boddicker era marcante, enquanto a gangue de Vallon é representada somente por dois policias corruptos, personagens também unidimensionais e sem graça. Também é difícil estabelecer uma violência tão grande em um filme PG-13, a praga do cinema moderno, em que todos os filmes precisam ser “para a família”.

    Como era de se esperar, as cenas de ação do Robocop moderno não suportariam mais aquela velocidade lenta da década de 80, e o protagonista consegue pular e saltar a fim de cumprir objetivos, em cenas bem realizadas e que não incomodam, como era o medo de muita gente. Apesar de ser boa, a estética de videogame e FPS incomoda um pouco não só pela filmagem, mas também pela falta de uma ameaça realmente importante ao espectador. A cena de luta com os ED-209 foi bem feita, e 9 entre 10 espectadores esperaram uma referência ao fato de ED não conseguir descer escadas, o que infelizmente não ocorreu. A referência maior ficou na aparência do protagonista, com traços que lembram a “armadura” original, inclusive seu tom de cinza, que a deixou muito bonita. Depois transformada em preta, perde um pouco esse charme, lembrando mais os soldados do BOPE e a temática de “policialização” do debate político.

    Como elemento em desarmonia, a trilha sonora original, composta por Basil Poledouris, foi repaginada e usada em alguns momentos estranhos, não encaixando neles muito bem. As músicas de cenas de ação e principalmente dos créditos finais tampouco soaram como complemento ao filme, parecendo mais com o restante da produção, dando uma sensação de “faz sentido, mas tem algo errado aqui”.

    A ciência também possui um papel maior no filme de 2014. Explicações técnicas do cientista responsável pelo projeto, Dennett Norton (Gary Oldman), estão sempre presentes, seja em cena, seja em narração, o que se torna algo desnecessário. Também há a boa e velha ciência hollywoodiana com seus termos do tipo “queimadura de 4º grau em 80% do corpo” e “ele está sobrescrevendo as prioridades do sistema”, sempre usadas para justificar uma guinada fácil no roteiro. Como quando Murphy, inexplicavelmente, passa a sentir emoções novamente mesmo quando essa capacidade foi biologicamente retirada. O detalhe da mão humana também é complicado: apesar de eficiente dramaticamente, pois deixa Murphy ainda com toque humano, torna todo o projeto do robô mais difícil, afinal, basta uma queda da moto em alta velocidade, um pisão de ED-209 ou simplesmente um tiro para incapacitar sua mão.

    Robocop (2014) é um bom filme, mas possui os defeitos clássicos do cinema moderno: excesso de explicação, violência sem peso dramático, resoluções fáceis e rápidas e personagens unidimensionais. A impressão presente no final da projeção é que vimos um filme inteiro como robôs “com 2% dopamina” no sangue. A produção tem seus méritos e consegue trazer novos debates, mas sem brilho e empatia. Não será esquecido como o remake de O Vingador do Futuro, mas tampouco figurará entre os clássicos do gênero. Que sirva ao menos para Padilha conseguir se estabelecer no mercado norte-americano e produzir obras melhores por lá.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Caçadores de Obras-Primas

    Crítica | Caçadores de Obras-Primas

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    Depois do excelente Tudo pelo Poder, de 2011, a expectativa pelo novo filme dirigido por George Clooney era grande. Com uma temática interessante e um elenco carismático, poucos afirmariam que o filme fosse um fracasso. E aqueles que afirmaram, acertaram.

    Caçadores de Obras-Primas se passa no final da 2ª Guerra Mundial, quando um especialista em arte chamado Frank Stokes (Clooney) convence o então presidente Roosevelt a enviar uma força-tarefa para a Europa com o objetivo de evitar o saque, comandado por Hitler, de obras de arte guardadas em museus europeus. Para isso, ele conta com a ajuda de alguns amigos também especialistas nos mais variados ramos da arte, como James Granger (Matt Damon), Richard Campbell (Bill Murray), Walter Garfield (John Goodman), Jean Claude Clermont (Jean Dujardin), Donald Jeffries (Hugh Bonneville), Preston Savitz (Bob Balaban) e o tradutor de alemão Sam Epstein (Dimitri Leonidas). Também está presente a especialista francesa em arte Claire Simone (Cate Blanchett).

    Tentando trabalhar com grande sensibilidade um tema sobre a importância da arte em meio à guerra, o filme se utiliza de discursos em vários momentos, com músicas enaltecedoras de fundo a fim de dar um clima heroico aos personagens; isso causa embaraço no espectador, pois a função de resguardar a arte é um sentimento além de heroísmos baratos tão comuns em filmes que retratam o militarismo americano – que também recebe carta branca em relação aos tempos atuais ao mostrar como o exército dos EUA salvou o planeta dos nazistas.

    Também rasa é a construção dos personagens, todos retratados em situações cômicas e munidos de frases feitas fora de contexto, aparentando terem saído de um programa de TV da época retratada no filme.  Desta forma, torna-se dúbia a mensagem séria que a narrativa tenta impor, visto que é quebrada com piadas em toda a película.

    O retrato feito dos russos lembra os filmes de James Bond do auge da Guerra Fria, com seus vilões caricatos de cara amarrada, dando a entender que os soviéticos não foram os reais responsáveis por conter a máquina de guerra alemã. São tratados como estorvo no caminho americano de libertação e sua participação é citada apenas como um  “eles perderam vinte milhões de pessoas”, em uma afirmação também estranha de se fazer antes de terminar a guerra, quando esses cálculos só foram divulgados com certeza alguns anos depois do final do conflito. O russo retratado no filme tem tamanha importância dramática que não diz uma única palavra.

    No final, o que sobra do filme é uma ode à importância da arte como memória coletiva dos avanços da humanidade, mostrando como o papel desses homens foi importante para salvar essas obras do confinamento nazista, evitando-se uma destruição muito maior – já que, ainda assim, muitos trabalhos artísticos foram destruídos, em especial os de arte moderna e de artistas judeus. Porém, esse grupo de soldados corajosos merecia uma homenagem melhor do que esse pastiche transfigurado de drama.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Ela

    Crítica | Ela

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    O quarto longa dirigido por Spike Jonze – o segundo sem Charlie Kaufman – inicia mostrando Theodore Townbly, o solitário personagem de Joaquin Phoenix exercendo seu ofício de desenvolvedor de mensagens amorosas para quem não tem tanta poesia nas palavras como este tem. Seu traquejo e talento visam esconder o sentimento de isolamento que o preenche, mas isto não funciona, pois a princípio observa-se o quão vazio é o seu cotidiano e a falta que sente de sua antiga parceira.

    É curioso notar como o roteiro de Jonze trata a questão da ausência de alguém, mostrando o desenvolvimento de um sistema operacional que vem para suprir essas carências. Samantha, dublada por Scarlett Johansson, causa uma impressão imediatamente chamativa e apelativa em Theodore, invadindo seu mundo idílico de escritor recluso para arrebatar a sua atenção, primeiro pela novidade, depois pelo conjunto de interesses atingido junto ao artista, que parece frustrado com sua condição não diferente do resto do mundo. A solidão é uma praxe na prática mundana, e seu ofício é uma das ofertas que buscam suprir essas demandas.

    Suas prioridades se rivalizam entre pornô, videogames e internet, como a rotina de muitos solteiros de meia idade da contemporaneidade. O rombo que ficou após seu término o deixou vulnerável às “investidas” de uma máquina que emula as características de um ser do sexo feminino, especialmente nos aspectos ligados à graça e leveza das mais doces mulheres. Além, é claro, da sensual e rouca voz.  Exceto pela ausência de carne, este seria o par perfeito, e a percepção de Theodore sobre isso se dá muito cedo e aumenta com a chegada dos e-mails que destacam a papelada do divórcio.

    Samantha busca ter manias e defeitos, a fim de ser falha como os humanos e transpirar uma maior verossimilhança. A avidez por tentar reabilitar o protagonista da sua separação é irônica, pois num mundo moderno onde os problemas humanos têm dificuldade em subsistir, é um ser mecânico que tende a solucionar a questão de maior problema naquele tempo. A mecanização das relações encontra em um objeto inorgânico uma solução paliativa e que age entropicamente, supostamente por uma ação fora dos padrões de programação. Até a dúvida a respeito entre a veracidade dos sentimentos e a programação original é discutida com afinco, e gera interessantes dúvidas sobre a solidão de ambas as figuras. A relação sexual consegue ser perfeita sem uma imagem sequer. Ele inclusive prefere discutir com ela o pós-coito, algo que talvez não fizesse com uma mulher de carne e osso. Ou seja, a todo tempo sua existência é posta a prova.

    Jonze tem uma predileção por assuntos e temáticas lúdicas e repletas de situações idílicas, mesmo quando justificadas pelo leve avanço no futuro e na tecnologia. Apesar de utópico, o porvir ainda contém uma aura fantástica exacerbada e repleta de lirismo visual. A amplitude da sala em que Theodore vive aumenta a sensação de vazio, pois a casa mal parece ter outro cômodo que não aquele, assim como a falta de opções em que a personagem se vê depois de provar Samantha. Ele e ela agem tolamente, como apaixonados experimentando uma arrebatadora sensação de forma pioneira.

    É a carência de Theodore que permite a ele se afeiçoar por Samantha, e a necessidade parece gerar nela também as sensações únicas e até a capacidade dos humanos de pensar de forma diferenciada. A conclusão de que “o passado é só uma história que contamos a nós mesmos” não seria tirada pela maioria dos homens viventes.

    O modo como as pessoas vivem seu tempo é engraçado, com jogos que simulam a maternidade, mas que são consumidos por solteirões sem filhos. O desamparo e solidão não permeiam só a vida de Theo, mas a de seus amigos também, mostrando que tal mal assola a sua geração como um todo. A predominância da cor vermelha nos ambientes após alguns percalços do protagonista ajuda a evidenciar o quão triste é sua vida após uma autoanálise. Até o SO de Samantha é julgado neste momento, e, claro, discutida a validade de manter viva uma relação como esta. Até avatares físicos são usados para apimentar o caso, tornando-o mais tácito, mas a concentração é quebrada por um gesto banal, de forma equivalente a diversas outras relações entre um homem e uma mulher.

    A proximidade de Samantha da realidade torna-se incômoda para o seu parceiro, é como um banho de água fria nas suas intenções. O que ele procurava era algo ideal, irrealista e sem confrontos. Mas a amante é tão emotiva, desequilibrada e passional como qualquer mulher (e o alarme de feminismo apita um som estridente e ensurdecedor). O limite entre a existência ou não deste relacionamento é tênue e discutível. A generalização feita a respeito da ausência de sentimentos de um SO é muito semelhante ao lugar comum de algumas mulheres ao julgar os homens como ser igualmente insensíveis entre si.

    A situação chega a um impasse quando o homem percebe que não usufrui de um sentimento exclusivo e que Samantha é apaixonada por mais 641 homens. A percepção de que o amor é expansivo e quanto mais é praticado mais há a necessidade de ser compartilhado, é um ótimo paralelo ao argumento poligâmico. Samantha era para Theodore como uma compensação, um substituto para a sua carência afetiva e para o vazio que ficou em seu peito após o rompimento com sua alma gêmea. A busca para uma solução para a dor o fez moldar sua musa segundo suas vontades e isso causou nele dores insuportáveis, mas o fizeram se aproximar de outra alma igualmente desolada pelo abandono, mas ainda assim sem muita expectativa de êxito. A última rejeição o fez amadurecer ao ponto de não querer projetar mais nada quanto a vida sentimental e até a perdoar quem o feriu no passado.

    Ela é uma ode à luta entre a solidão e a carência. Spike Jonze traz um roteiro fino, tocante e emocional, abrilhantado pela ótima encarnação que Joaquin Phoenix dá ao solitário homem comum e real.

  • Crítica | Liga da Justiça: Guerra

    Crítica | Liga da Justiça: Guerra

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    Iniciando o reboot das animações do DCAU (DC Animated Universe), Liga da Justiça: Guerra adapta o primeiro arco de histórias de Geoff Johns à frente do título dos Novos 52. O início, introduzindo Batman – até então uma lenda urbana – e o Lanterna Verde (Hal Jordan) mostra uma das primeiras ações conjuntas dos heróis mascarados, ainda bastante desentrosados. A cena em si pouco inspira entusiasmo e quase não diz nada ao espectador.

    A personalidade dos vigilantes é fraca, sua constituição é vazia e não permite nuances, é quase como se o poder fosse a personalidade deles. Quase não há variações e o nível de ação sem propósito é grande, no sentido de não explorar grandes motivações. O erro seria até perdoável, caso as cenas de ação fossem bem feitas e plásticas, mas isso não ocorre com frequência. As animações da DC jamais foram um primor quanto ao roteiro, mas sempre foram redondas, algumas vezes até se saindo melhor que as sagas originais, vide Liga da Jusiça: A Legião do Mal por exemplo. Este sucesso não se repete nesta obra.

    O foco maior das ações dos seres superpoderosos é em atos isolados dos feitos dantescos, quebrados no máximo por ações em dupla com outros vigilantes coloridos. O quadro muda decorridos 60 minutos de exibição, especialmente com a presença do opositor, o soberano de Apokolips: Darkseid. O ruim é que o excessivo tempo gasto em piadas desvirtua a atenção do público, e a falta de exploração dos dramas dos personagens causa uma total falta de empatia por seus caracteres.

    A equipe de dublagem não é ruim, mas está muito aquém dos antigos castings de Andrea Romano. Vozes como as de Kevin Conroy, Tim Daly, Michael Ironside e tantos outros fazem uma falta considerável, visto que estes encarnaram os heróis mais famosos dos comics por muitos anos. Outro inconveniente é o opositor. Antes retratado como um inimigo imponente de discurso orgulhoso e bravo, é mostrado como uma ameaça física unicamente, se importar com si é praticamente impossível pois sua faceta não tem o mínimo apelo ou carisma.

    Justice League War inicia mal a nova seara de animações da DC Comics. Tem um caráter ordinário, falha em produzir algo novo, em rememorar os bons momentos da editora e tampouco revitaliza o tema de modo competente. Jay Oliva traz uma fita insossa e apática, muito inferior a sua anterior, Liga da Justiça: Ponto de Ignição mesmo quando apela para a violência pueril e tudo isso é ainda mais lamentável quando percebe-se que acabaram com a equipe criativa antiga para trazer isso à tona. A cena pós créditos dá um gancho para continuações vindouras, mas é tão gratuito que mal justifica a menção.

  • Crítica | Oslo, 31 de Agosto

    Crítica | Oslo, 31 de Agosto

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    O segundo longa do norueguês/dinamarquês Joachim Trier (de Começar de Novo) começa como um rememorar, uma experiência de retorno a experiências passadas e a boas memórias, em detrimento do presente um tanto conturbado de Anders (Anders Danielsen Lie) o personagem principal da jornada. A tentativa em mudar sua condição de ex-dependente químico para um ser autônomo na sociedade parece árdua e difícil, e obviamente cheia de percalços e agruras.

    A variação do que Joseph Campbell explana em Herói de Mil Faces tem no lugar comum (Oslo) o chamado a aventura para Anders. Encarar a sua antiga rotina, seus entes queridos e entidades pretéritos é o desafio pelo qual ele deve passar. A possibilidade de se reviver os acontecimentos do passado, mesmo os mais ternos, algo doloroso para Anders, por fazê-lo lembrar das vezes em que obtinha heroína, ecstasy e outras substâncias ilegais. A aproximação das sensações mexe com o seu ímpeto e o devasta pela simples menção.

    O intuito do retorno a cidade seria uma entrevista de emprego, muito pautada, ainda que inconscientemente, na tentativa de Anders em provar para si mesmo que é capaz de recomeçar sua vida, mesmo sendo um ex-adicto, com 34 anos e com um potencial pouco explorado até então, ao contrário do que declarara ao seu “simpático” cunhado (na verdade um mala, apesar de ser bom ouvinte), ele guarda boas expectativas quanto a voltar a escrever e a se sentir útil novamente. A dificuldade que ele apresenta em receber reprimendas ou palavras negativas é bem condizente com a realidade de quem luta contra uma condição tão extrema como um vício ainda em processo de cura.

    A erudição, aprendida de berço, o ajudou a compor suas ideias sobre democracia, arte, escrita e o auxiliou a escolher seu ofício. O elitismo em que estava acostumado colaborou para o seu isolamento, mas não foi de forma alguma o fator preponderante para sua entrega ao vício. O contato com chegados do passado reabre nele algumas feridas, e o faz “desejar” uma recaída – que até fica em vias de ocorrer, e esta somente é impedida graças ao auto-freio do protagonista.

    Mais do que fomentar a discussão, a película de Joachim Trier busca mostrar  a faceta real de um drama infelizmente muito frequente na contemporaneidade, sem mostrar gratuidades ou fazer os caracteres de vítimas da sociedade, ao contrário, encara a questão de frente e apresenta um ponto de vista plausível e uma alternativa de vida baseado na dignidade de um ex-adicto, que busca forças para manter-se distante de seus demônios. Ao final a lente tenta evocar o otimismo ao ser reticente em mostrar a movimentação dele, mas ao consumá-la, ela se afasta, como se fosse repelida, graças as ações do combalido personagem. Antes dos anúncios de créditos, Trier aproveita para mostrar uma variação da lei da semeadura, claro, sem a mínima complacência com o espectador.

  • Crítica | Meu Nome é Ninguém

    Crítica | Meu Nome é Ninguém

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    Baseado numa ideia de Sergio Leone – e esta é a única prerrogativa a ele alcunhada nos créditos – Meu Nome é Ninguém chegaria aos cinemas em 1973, sobre a régia de Tonino Valleri, de O Dia da Ira, e protagonizado pelo amigo da família e bom moço – já não tão moço – Henry Fonda e o herói cômico Terence Hill, famoso por seu cowboy Trinity, até por esse arquétipo há uma expectativa em relação à história que será contada.

    Nobody – Hill – é um sujeito maltrapilho, rápido no gatilho e que passa a seguir Jack Beauregard – Fonda – seu herói de infância, que oscila entre a figura do paladino e a do assassino a sangue frio com uma facilidade mórbida.

    Mas o tom de comédia é o que prevalece. Terence Hill é muito carismático e tem uma veia cômica muito eficiente, mas esse estilo cabe mais nos produtos de Trinity e Bambino. O filme fica cansativo e enfadonho, especialmente no meio da fita. A trilha de Ennio Morricone é boa, mas ajuda a forçar ainda mais o tom humorístico. É um western leve, quase não há sangue, a temática é até infantilizada, como um filme de super-herói no ambiente árido do oeste americano. O excesso de piadas empobrece o roteiro, mas não faz dele algo reprovável.

    Os indícios e pistas dados no começo aos poucos se desenrolam, formando a emboscada de Nobody como um mosaico somente para mostrar qual o intuito do bem-feitor desconhecido. A referência a Sam Peckinpah prenuncia o epílogo, e é claro, explana a larga influência dele nos realizadores italianos. A despedida de Sergio Leone do gênero é com uma temática bem diferente do habitual, a não ser pelas últimas cenas.

    Nobody quis libertar Jack de um desfecho anônimo para o seu destino, e deu fim à sua existência humana para torná-lo uma lenda. O discurso do “morto” evidencia o rompimento como uma época romântica, a do faroeste clássico, e a abertura para uma exploração menos idealizada do Oeste Selvagem, como era retratado no Western Spaghetti e sobretudo na filmografia de Leone, que por sua vez dá lugar a uma forma de crime mais organizado. O final maravilhoso tem um tom de profecia, como um axioma do que aconteceu após a queda de popularidade do gênero e consequente substituição do tema por ternos de risca de giz, o cinema acompanhou a realidade e mudou o foco de sua criminalidade, retratando-a de forma mais ostentosa, honrada e sofisticada. O roteiro nesse ponto é tocante e de uma sensibilidade única.

  • Crítica | A Menina Que Roubava Livros

    Crítica | A Menina Que Roubava Livros

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    O livro de Markus Zusak, em que se baseia o filme, é muito, muito bom. É um daqueles que dá vontade de reler. Seu grande trunfo é ser narrado pela própria morte, o que confere à trama um ponto de vista único, incomum. Além do narrador, o mais interessante do livro é o contraponto entre o encantamento de Liesel pela leitura e suas experiências com a morte. Há nele um quê de Fahrenheit 451 e de Preciosa, ao focar no poder transformador, libertador, redentor da leitura e da escrita. Contudo, devido a um roteiro que se preocupou apenas em pinçar os eventos – mas não as reflexões – que ocorrem no livro, esse enfoque se perdeu totalmente. E o filme se tornou apenas mais um (melo)drama de guerra. Uma pena. E mesmo o ato de “roubar livros” é vazio de significado, já que pouco se explora a motivação das personagens, tampouco a evolução do relacionamento entre elas – a ladra, Liesel, e a proprietária dos livros, Ilsa Hermann.

    A direção é bastante burocrática, com poucos arroubos e nenhuma inovação. A falta de criatividade confirma-se na previsibilidade do desfecho de algumas cenas, mesmo para os que não leram o livro. E, apesar de o ritmo ser arrastado, o final é abrupto. Como se, de repente, o diretor se desse conta de que não tinha mais tempo e precisava concluir tudo em menos de 10 minutos. O que, obviamente, acaba deixando o espectador com a impressão de que perdeu um trecho da história.

    Do elenco, vale destacar a atriz Emily Watson como Rosa Hubermann, mãe de Liesel. Apesar de sua performance não ter grandes momentos, é, sem dúvida, a personagem com o arco dramático melhor escrito e desenvolvido. Geoffrey Rush – Hans Hubermann – como sempre não decepciona e consegue uma boa interação com Sophie Nélisse – Liesel.

    É um detalhe, mas incomoda bastante se o espectador começar a reparar: o sotaque alemão dos personagens, que vai e vem indiscriminadamente. Todo mundo já está habituado a assistir filmes ambientados em países “não-ingleses” e falados em inglês. Ninguém mais questiona por que em Os Homens Que Não Amavam As Mulheres, que se passa na Suécia, todos falam inglês. Tarantino, em Bastardos Inglórios, optou por colocar os personagens falando em seu idioma nativo. São duas boas opções amplamente aceitas pelo público. Então, por que optar por utilizar um sotaque alemão? E por que abrir mão disso temporariamente e colocar o prefeito da cidade discursando em alemão?

    Mais uma adaptação de livro que decepcionou. Como filme “independente” é apenas mediano – a melhor nota seria 2,5. Como adaptação fica bem aquém das expectativas dos leitores. Quem não leu o livro, talvez aprecie um pouco mais.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Ajuste de Contas

    Crítica | Ajuste de Contas

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    Aos 67 anos de idade, Sylvester Stallone ainda está no auge, esculpindo o mesmo material de sempre. A crítica insiste em afirmar o óbvio sobre sua limitação como intérprete e sobre seu esforço natural em agarrar-se a uma década em que seu sucesso – bem como o de seus colegas brucutus – era astronômico.

    Sly sofre do preconceito do ator em um único estilo de papel. Síndrome que não afeta somente astros de ação, mas atinge-os com maior fatalismo. A decadência da perfeição física pode destruir a personificação viril e violenta dos personagens ostentados por sua carreira. Não deixa de ser verdadeiro que o ator manteve-se em sua zona de conforto, mas poucos são os atores que se arriscam em estilos diversos e são bem sucedidos no processo.

    A nostalgia que cerca Ajuste de Contas, além da força de Sly, vem do fato de que dois grandes personagens boxeadores se evocam memorialmente em cena: Rocky Balboa, defendido em seis filmes pelo boquinha torta, e Jake LaMotta, uma das interpretações máximas de Robert de Niro em talento, aumento de peso e maquiagem protética.

    A união destes atores traz a mística em torno da produção que faz do boxe enredo central. Sly e De Niro são pugilistas em fim de carreira que aceitam o desafio de uma revanche. A trama alinha-se com o conceito de personagens antigas que retornam para mais um assalto. Porém, em vez de trazerem à tona as personagens citadas, situam-se pela memória afetiva do público que deseja ver os atores de novo no ringue.

    Juntos formam a dupla que ri de si mesma em uma história focada no humor. Riem da velhice, do anacronismo de atores que viveram outra época, no auge, em que a popularidade pesava mais que efeitos especiais. A predileção pela comédia é um foco necessário para que o filme não seja mais um que faz da luta uma redenção. A mudança de polo dramático pode não oferecer originalidade, mas evita que o memorialismo evoque a potência dos dramas de Balboa e LaMotta.

    Pela segunda vez no ano, De Niro entrega uma boa interpretação. Não que seu papel exija muito do ator. Porém, considerando sua guinada desde a década de 2000, com performances canhestras, as atuações em Trapaça e nesta produção lhe dão um fôlego breve.

    A aguardada luta dos rivais é bem realizada e não parece que os atores estão parcialmente em cena, substituídos por esportistas profissionais em diversos ângulos neste improvável crossover.

    A parte mais insossa da produção centra-se no papel de Kevin Hart. O personagem é responsável pela realização da luta mencionada, mas se transforma no típico falastrão, como um Chris Tucker genérico. No elenco de apoio, Alan Arkin faz o mesmo velho debochado de sempre e, ainda que, como Sly, esteja repetindo o mesmo personagem desde Pequena Miss Sunshine, seu papel funciona pelo desconcerto e pela verborragia de palavras de baixo-calão que ainda divertem.

    Rir de si mesmo e reverenciar o próprio passado evidenciam o anacronismo destes atores em relação ao modus operandi atual da indústria cinematográfica. De maneira leve, mesmo que sem completa coesão, realizam uma boa trama.

  • Crítica | Uma Aventura LEGO

    Crítica | Uma Aventura LEGO

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    Onde mais que não num universo Lego seria possível reunir Batman, Gandalf, Superman, Han Solo e As Tartarugas Ninjas e ainda achar plausível que eles estejam juntos na mesma história? Depois de tantos videogames usando os amados bonecos como protagonistas de aventuras mil, já estava mais que na hora de irem para a “telona”. Era justamente a mobilidade vista nos consoles que a maioria dos espectadores esperava ver no filme. E as expectativas não só se cumpriram, como se superaram. Mesmo sendo todo digital, a animação remete aos filmes de stop-motion, o que contribui para o saudosismo do público adulto.

    A história é banal, e não precisava ser complexa mesmo, afinal é um filme voltado mais aos pequenos. E em certos momentos, dá a impressão de estar se perdendo no meio de tantas possibilidades dadas pelos inúmeros “universos” Lego. Parece um tanto non-sense os personagens irem do Velho Oeste ao céu, e depois ao fundo mar. Porém, o que pode parecer apenas uma muleta do roteiro para exibir na tela o máximo de produtos Lego, acaba se revelando totalmente coerente com o desfecho.

    Se, para a criançada, é a aventura de um boneco “padrão” Lego que precisa derrotar um vilão, para os adultos a história traz embutidas, além das referências pop, críticas ao status quo sócio-político-econômico atual. Leva a reflexões sobre o consumismo desenfreado, o monopólio – tanto de bens quanto de informações – e, principalmente, sobre a alienação e a supressão da individualidade e do livre-arbítrio. O “mundo comum” do protagonista é assustadoramente semelhante aos mundos distópicos de 1984, de George Orwell, e de Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Parece muito um filme infantil, mas como já disse, para as crianças, é uma aventura multicolorida e muito, muito divertida.

    Interessante notar que mesmo os menores detalhes são feitos com peças Lego. Fogo, água, tiroteios, explosões, fumaça – tudo foi feito “juntando” pecinhas. É óbvio que o filme tem um atrativo a mais para aqueles que passaram a infância brincando com Lego, construindo coisas e reclamando da falta de peças da mesma cor para construir uma casa que não fosse toda listrada. Mas o filme se sustenta e consegue agradar mesmo àqueles que não tiveram essa oportunidade.

    Apenas algumas ressalvas. No último terço, a “bagunça” cresce exponencialmente e o roteiro parece não ter certeza de qual caminho seguir. E a dublagem… Além de se perderem as vozes originais – e muitas das piadas eram feitas sobre os atores donos das vozes – em alguns momentos os dubladores nacionais soam tão artificiais que conseguem fazer o espectador “sair” do filme. Os distribuidores parecem não se importar com a penca de marmanjos que se interessam por assistir o filme com o som original.

    Há, nesta animação, um quê das animações da Pixar. Tem aquela capacidade, difícil de atingir, de ao mesmo tempo agradar gregos e troianos, adultos e crianças. As piadas, as gags, os diálogos são compreensíveis em diferentes níveis a cada um dos espectadores. Se a criança vai se divertir por causa do jeito engraçado de um personagem falar algo, alguns dos adultos irão se divertir tanto pela piada quanto pela referência a algum filme, livro ou HQ. Consegue ser abrangente sem ser superficial. O que, convenhamos, atualmente é uma qualidade e tanto.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Spring Breakers: Garotas Perigosas

    Crítica | Spring Breakers: Garotas Perigosas

    Spring Breakers é uma tradição no verão americano, capitaneada por emissoras de segmento juvenis, onde são exploradas imagens de moças semi-nuas se exibindo, bebendo e se entorpecendo, e a chamada de Garotas Perigosas é exatamente essa: a de mostrar musas teenagers como Vanessa Hudgens, Rachel Korine, Ashley Benson e Selena Gomez com pouca roupa se esfregando para a tela.

    Logo de cara há uma tentativa através dos signos de associar esse estilo de vida banal ao desespero suicida desta geração pós-criação da MTV, com uma das personagens chupando uma pistolinha d’água. Os belos corpos curvilíneos das quatro protagonistas contrastam com a tristeza que têm por não conseguir a inscrição para o festival de verão. A falta de ambição e ausência de objetivos faz das suas trajetórias caminhadas vazias, caso não alcancem o que querem. O motivo é estúpido e insípido, mas as influi a correr atrás disso a qualquer custo – mesmo que tenham que se inserir em ramos de atividade marginal.

    A edição, variando entre o estereótipo do videoclipe dos anos 90 e o do cinema autoral/independente americano, é confusa e não encontra seu ponto ideal durante o filme. O ponto que Harmony Korine defende não é definitivo, ele não escolhe lado, só registra as imagens, como se documentasse o modus operandi das “virgens” suicidas. O filme vai por uma vertente mais séria e opta por abordar algo de forma a fazê-lo parecer uma denúncia, que entrega todas as motivações fúteis de seus personagens, isso o torna deveras pretensioso.

    As cenas de farra são filmadas de modo depressivo, não há glamourização, só a explicitação da decadência e vulgaridade, quase sempre partindo da ótica do sóbrio, a câmera analisa a história como um sujeito sóbrio vendo toda a vergonha que alguém ébrio é capaz de produzir, seja por atitudes impensadas e movidas a álcool como também os atos relacionados a ilegalidades. O lifestyle bandido é julgado moralmente o tempo todo e isso é um bocado incômodo.

    Há tantas semelhanças com Sucker Punch que chega a ser bizarro, dado o fato de que os gêneros dos dois filmes é completamente diferente. Os paralelos passam pelo grupo de quatro beldades em trajes sumários, mas que não apelam para a nudez, a temática pesada disfarçada com corpos esculturais, a dificuldade em passar ao público a mensagem de denúncia, a protagonista religiosamente resignada que teme sempre pelo pior. Os erros são muito parecidos com os da pérola de Zack Snyder, mas não é tosco e nem tão equivocada quanto, e nem é tão insuportável, mas é até mais pretensiosa.

    A nudez, protegida em quase toda a duração do filme só é mostrada em tela em um momento de fragilidade das moças, onde os antigos planos de dominação escoam ralo abaixo – como já se podia prever. As cores quentes e vivas dos biquínis das moças contradizem o estilo de vida bandida que escolheram para si, esse jogo de cena é interessante, mas ainda é pouco.

    Korine em alguns momentos até emula o modo de abordar a pequinês do homem como Terrence Malick, além de copiar o registro visual de Scarface de De Palma, louvado e reverenciado por toda a extensão da fita. A proposta é confusamente executada e o roteiro tenta se valer de uma erudição que não combina com o produto final. Korine, acostumado a trabalhar com histórias envolvendo marginalidade juvenil não acerta tanto quanto no passado, especialmente como no roteiro de Kids, Larry Clark. A impressão é de que Harmony ainda precisa amadurecer como realizador se quiser fazer filmes nessa toada, visto que sua premissa era interessante mas a execução ficou aquém do ideal.

  • Crítica | A Mão do Desejo

    Crítica | A Mão do Desejo

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    O jovial primeiro filme de David O. Russell como diretor se inicia focando em Ray Albelli (Jeremy Davies), um universitário comum com aparência mais jovem do que realmente é e que viaja de ônibus em direção a casa de seus pais. Os problemas que o incomodam enormemente são ligados aos seus genitores, que parecem viver seu próprio inferno astral e fazem questão de incluir o rebento nestas crises. A introdução é perfeita em ambientar o personagem, em cinco minutos a empatia pelos dramas do rapaz é plenamente alcançada, o público torna-se capaz de entender suas agruras.

    Os anseios de Ray são os mais normais e ordinários possíveis, seu habitual mundinho teenager é inconvenientemente invadido pela condição fracassada de suicida de sua mãe, e no lugar de um sentimento de compaixão por ela,  ele se mostra o tempo todo incomodado com a situação. A nova rotina dele transpira inadequação, seja nos banhos que é obrigado a dar na matriarca ou pelo carente cachorro, que o atrapalha sendo um voyeur inesperado e inoportuno quando este decide “socar o macaco” e aliviar suas tensões – o tempo inteiro ele está aflito e apreensivo.

    A notícia de que Raymond finalmente iria para Washington, ingressar no seu estágio e logicamente começar a traçar sua vida adulta abala a convivência (após muito esforço) prazerosa entre ele e sua mãe, interpretada por uma provocante Alberta Watson. A tratativa entre os dois transita entre muitos estágios, desde as cobranças comuns até outras obsessões motivadas, entre outras coisas graças a obsessão pelo gozo jamais consumido de Ray.

    Quando a família volta a estar composta por inteiro, na casa, as coisas ficam ainda mais confusas. Há uma clara aversão entre os cônjuges e com o passar do tempo isto parece irreversível e a situação pecaminosa evolui, deixando a possibilidade de um deslize movido pelo álcool de lado, para se caracterizar cada vez mais com uma aventura proibida, ciumenta, taxativa e repleta de cobranças exclusivistas.

    A situação torna-se insustentável para Raymond, ao ponto dele tentar alternativas externas, para finalmente resolver os imbróglios que se apresentam a ele. Sua atitude ainda não condiz com a de um adulto mas suas reações tem uma plausibilidade razoável analisando-se a situação como um todo, especialmente considerando o quão entrópica é a série de eventos que ocorreram consigo desde que retornara  ao seu antigo lar.

    A vontade de não mais existir ocasiona sua tentativa de fuga, num rompante de tentar viver uma vida diferente da que levara anteriormente, talvez não exitosa ou cheia de esperanças de um futuro próspero como era antes, mas sem os demônios que tanto afligiam aquele Ray Albelli. A estreia de David O. Russell como realizador autoral é interessante, e desde já toca em temas espinhosos, sem muito receio em chocar o público, mas sem parecer desrespeitoso aos olhos de espectador menos afeito a temáticas mais querelas no âmbito da família americana.

    Ouça nosso podcast sobre a filmografia de David O. Russel.

  • Crítica | Sodoma e Gomorra

    Crítica | Sodoma e Gomorra

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    Neste épico bíblico dirigido por Robert Aldrich, Ló – sobrinho de Abraão no livro do Gênesis – é um herói idealizado, cheio de fé, invulnerável e movido pelo bem maior – devoção ao Divino. A frente de um povo que viaja pelo deserto, mesmo com todo esse código de honra ele recebe atos de insubmissão armada. No entanto o líder interpretado por Stewart Granger trata a todos com benevolência e muita paciência.

    O roteiro de Hugo Butler e Giorgio Prosperi, baseado no romance de Richard Wormser toma muitas liberdades poéticas, muitas delas pouco importantes. Atribui fala a Ló, que no original seria de Abraão, assim como o código moral e senso de justiça do protagonista que mais lembra a figura do seu tio do que a sua própria. Viúvo, Ló tem repúdio pelo escravismo. É um devoto fiel, mesmo diante das adversidades.

    No livro “sagrado”, a história de Sodoma e Gomorra é um sinônimo de punição aos prazeres carnais e sem pudor ou moralismo. As orgias e bacanais são sugeridas de forma bastante tímida, há no máximo uma citação ao lesbianismo com a rainha tomando sempre uma escrava como a sua “preferida”, mas esse é o máximo de ousadia que a fita permite. Os “pecadores” são retratados como malévolos desalmados e sem coração, além de bastante egoístas. É levantada a possibilidade de uma conspiração contra o governo – plot parecido com outros dois trabalhos em que Sergio Leone se envolveu, a saber, Os Últimos Dias de Pompeia e Colosso de Rodes – mas ela é deixada de lado por falta de importância e claro, devido ao final apoteótico.

    A ex-escrava real Ildith (a belíssima Pier Angeli) é posta entre os hebreus para ser informante, mas ela se recusa devido à mágoa com a rainha que a abandonou aos bárbaros, mas aos poucos sua motivação dobra-se a causa hebreia. Ela se recusa a deitar com Ló até que os dois se casem, pois ele “precisa ser um bom homem e dar exemplo” – sua vida lasciva em Sodoma a condenaria a não ter felicidade jamais, o que justifica seu trágico fim. No entanto Ló a garante como merecedora de sua “masculinidade suprema”. É curioso como a relação entre os dois não é minimamente construída, na verdade é gratuita e jogada.

    Os efeitos especiais da água tomando o deserto são de um realismo “invejável”, seja pelo CGI tosco ou as maquetes molhadas, tudo funciona como uma piada de mau gosto. Os traidores pagam com as suas vidas, no fogo, em outra cena sofrível. Ló fixa residência em Sodoma contra sua vontade, depois de passados mais de 90 minutos de exibição. O filme é lento e excessivamente longo. Ao mudar-se para a cidade, o protagonista muda. Ele – e o resto dos hebreus – começa a comercializar sal, passa a ostentar roupas mais luxuosas, renega sua origem humilde, mas não trai sua palavra e nem a sua fé, é um sujeito incorruptível acima de tudo.

    Após 2 horas e 12 minutos, é dada a sentença para a vida pecaminosa dos sodomitas. A ira de Jeová cairá sobre os escravos também e todos os que se recusarem a deixar a cidade – curioso o censo de justiça. A estátua de sal é qualquer coisa, Ló fica inconsolável e é sustentado pelas duas filhas – volta à estaca zero, é novamente um ermitão. Toda a construção da figura imponente e infiel a história bíblica sucumbe ao mesmo final.

    A designação de Leone é oficialmente a de diretor de segunda unidade, e sua participação neste é bem menor do que no filme de Mario Bonard. Os Últimos Dias de Sodoma e Gomorra não é nem de longe um dos melhores produtos de Robert Aldrich – principalmente se comparado a Doze Condenados e Assim Nascem os Heróis – e só não é plenamente descartável pela curiosidade em ver como era o retrato dos filmes épicos sessentistas.

  • Crítica | Os Últimos Dias de Pompeia

    Crítica | Os Últimos Dias de Pompeia

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    Lançado em 1959, esta versão do romance de Edward Bulwer Lytton tem seu roteiro adaptado por quatro cineastas que estourariam na década que viria, Duccio Tessari (diretor de Tex e o Senhor dos Abismos e Uma Pistola para Ringo), Sergio Corbucci (Django), Ennio De Concini (roteirista de ÁtilaGuerra e Paz), e claro, Sergio Leone, que substituiria o diretor Mario Bonnard quando este teve de se ausentar devido a problemas de saúde.

    A fotografia ficou por conta de Antonio Ballesteros, que viria a trabalhar novamente com Leone em sua estreia na direção de longa-metragens com o Colosso de Rodes, e mesmo com essa semelhança na equipe de produção, o estilo de filmar de Bonnard é completamente distinto do de Leone, e muito mais ligado ao modo do cinema clássico americano, com ângulos panorâmicos, câmera parada e sem muitos maneirismos, além é claro do cast. O elenco é encabeçado por Steve Reeves, o protótipo do brucutu, seu personagem  era independente, destemido e super-forte, ao ponto de conseguir puxar uma corrente de uma parede de pedra e arrancar uma porta de metal com as mãos nuas. Não à toa, Reeves inspiraria Arnold Schwarzenegger a seguir a carreira de ator.

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    O roteiro trata de uma conspiração que mataria inúmeras famílias romanas, ao passo de que a assinatura dos crimes era uma cruz avermelhada, o que fez os investigadores suporem que os facínoras mascarados eram cristãos insatisfeitos com o regime, mas logo isso se mostra um engodo, e uma conspiração romana surge.

    As cenas de embate físico são lastimáveis, tão mal coreografadas que Reeves dispensou dublês na maioria das vezes, devido principalmente aos seus opositores, em sua maioria homens rotundos  e com pouca agilidade. Depois ele queima a face do vilão Gallinus (Mimmo Palmara), mas não há nenhuma consequência grave para o antagonista, a não ser uma maquiagem mequetrefe que surge minutos após o combate. Não há sangue ou técnica de luta, a não ser é claro na genial cena de batalha de Glaucus com um jacaré, que deixaria Roger Corman morrendo de inveja.

    A tentativa de isentar os romanos da culpa de assassinar os cristão nas arenas com os leões mostrando-os sendo enganados falha miseravelmente, e além de não fazê-los parecer inocentes, ainda os classifica como imbecis e ingênuos. Os reais malfeitores são o Consul (Mino Doro) e Julia (Anne-Marie Baumann) – estrangeiros adoradores de Isis – mais uma vez denunciando o politeísmo evidenciando que  os seus dias estavam contados.

    A natureza pune os infiéis, e ela pode ser encarada como a mão pesada do Divino, que busca vingança e pune aos soberbos que trataram os inocentes que não queriam negar sua fé, é quase um recado ao Império, de que não deve mexer com os herdeiros de Israel. Os que tentam tomar para si, o ouro e as riquezas, morre soterrado, a ganância é paga com a morte. As últimas cenas envolvendo o vulcão em erupção são muito bem realizadas, o épico tem em seu caráter a indelével mensagem de que viver sem fé é pior do que morrer.

  • Crítica | Capote

    Crítica | Capote

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    Benett Miller estréia na direção de longas-metragens lançando mão da história de uma das personalidades mais controversas e polêmicas do ambiente literário/jornalístico. Capote começa focando o caso investigado pelo cronista e registrado em seu último livro A Sangue Frio. O horrendo massacre do Clã Clutter e todas as relações provindas dele são se tornam crives graças a magistral interpretação de Phillip Seymour Hoffman – sua transformação é assustadora, a afetação, a voz, os trejeitos, tudo nele é distinto e diferente do que havia feito em filmes anteriores e extremamente parecido com a figura do individuo biografado.

    A eloqüência de Truman é louvada pelos seus chegados. Em uma mesa de jantar ele é mostrado discursando sobre o roteiro de Bonequinha de Luxo, contando de forma hilária os causos junto a Blake Edwards (diretor do filme) para logo depois, começar um relato emocionado a respeito da perda de sua mãe, e como auxiliaria seu desolado padrasto – cujo qual retirou o seu sobrenome. O registro de Miller é perfeito, não soa piegas, é real, tocante e consegue mudar a abordagem de forma rápida, ajudando a angariar ainda mais empatia das pessoas dentro e fora de tela, de uma forma absolutamente manipulativa sim, mas não pedante.

    A persona de Perry Smith (Clifton Collins Jr.) mobiliza a alma do escritor e o faz sentir algo além da misericórdia por sua alma desgostosa e amargurada. Os sentimentos que acometem o protagonista são confusos para o próprio e o interesse do dramaturgo aumenta notadamente, visto o tamanho que seu texto ganha, de um simples artigo para um livro inteiro: “Meu livro vai devolve-lo ao reino da humanidade, eu nasci para escrever isto” – mesmo sem ter rabiscado uma palavra sequer, mas o autor classifica o futuro escrito como o romance documental do século.

    O detetive responsável indaga Truman a respeito do título da futura publicação (A Sangue Frio) se este seria pela referencia óbvia a crueza dos assassinatos ou pela relação dele com os ditos criminosos. O processo de concepção das palavras é flagrada com uma câmera acima dos ombros e da cabeça do escritor, a lente mostra ele na máquina de escrever com pilhas de folhas empilhadas de forma organizada. Também é aventada a dificuldade dele em encontrar um final para a sua história, o desfecho teima em ficar em suas mãos.

    A diferenciação entre os momentos dele como centro das atenções, nas festas dentro das mansões e nos momentos dentro do cárcere junto ao seu objeto de análise é pontuada pelo comportamento completamente diverso. Há um abismo entre as duas formas de agir, o que demonstra a perfeição de Hoffman em viver e retratar as nuances do Capote homem.

    A questão proposta pelo realizador não é até onde a relação Perry/Truman  chegou, mas até onde ela poderia chegar e como esta evoluiu dentro da psique de cada um dos envolvidos. Esta passou por momentos de amizade, cumplicidade, amor platônico e por meros interesses profissionais – todos esses estágios explorados um a um e de forma verossímil em todos eles. Enquanto a sentença de Smith não é cumprida, Capote não consegue levantar o lápis, a melancolia em que mergulha nos últimos 30 minutos desmentem qualquer negação que fizera dantes negando seu envolvimento emocional com o encarcerado analisado, as feridas em si causadas foram profundas, e jamais um cineasta conseguira captar tal faceta da curiosa figura que Truman Capote era como nesta fita.

  • Crítica | O Tempo e o Vento

    Crítica | O Tempo e o Vento

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    Esta não é a primeira adaptação da obra do escritor Érico Veríssimo. Em 1967, O Tempo e o Vento foi levado para a televisão em formato de novela, dirigido por Dionísio de Azevedo e dividido em três partes. Novamente, em 1985, a TV Globo criou a bela minissérie dirigida por Paulo José, em que trazia Tarcísio Meira como Capitão Rodrigo e Glória Pires como Ana Terra. Apenas em 2013, a obra de Veríssimo ganhou uma nova adaptação, dessa vez para os cinemas e com direção de Jayme Monjardim.

    O longa dá início com o belo trabalho de fotografia de Affonso Beato, explorando as paisagens dos pampas gaúchos em um pôr-do-sol esmaecido. Mostra-se a chegada do Capitão Rodrigo (Thiago Lacerda) até a casa da família dos Terra Cambará para encontrar-se com a já centenária Bibiana (Fernanda Montenegro), em meio ao cerco de sua casa pela família Amaral, inimiga declarada dos Terra Cambará.

    Adaptar uma obra como O Tempo e o Vento para os cinemas não é tarefa fácil. A série literária de Veríssimo conta a história de gerações de famílias marcadas por romances e guerras no Rio Grande do Sul. Condensar tudo isso em apenas duas horas de exibição, sem parecer superficial, exigiria uma habilidade que Monjardim deixou a desejar.

    A trama envolvendo a família Terra Cambará é narrada por Bibiana Terra, apresentando toda a história de formação de um período do Brasil. Primeiramente, acompanharemos a história de amor de Ana Terra (Cléo Pires) e o índio Pedro Missioneiro (em uma bela interpretação de Martín Rodriguez). Logo após, Bibiana relembra seu romance com o Capitão Rodrigo Cambará. A narrativa de Bibiana relembra aproximadamente 150 anos de história de amores, capazes de resistir às guerras e grandes tragédias.

    Dito isso, fica mais claro entender a proposta de Monjardim. Contudo, isso não torna mais fácil aceitar algumas de suas escolhas. Sua adaptação busca um tom novelesco, até mesmo burocrático, e seu olhar é voltado apenas para o romance entre os protagonistas. Não espere encontrar muito contexto histórico e político, que é apenas pincelado. Utilizada em segundo plano, a conjuntura da época só aparece como justificativa de que não foi esquecida.

    Castelhanos, Farrapos e Guerra do Paraguai são temas apenas mencionados, dando-se pouca explicação ao que estava acontecendo e sobre o que aquelas batalhas se tratavam. Tudo isso acaba com um gosto ruim na boca. Monjardim parece carecer de objetividade narrativa. Se seu desejo era fundamentar sua obra através de uma trama romântica, deveria ter focado nisso desde o início, colocando alicerces ao longo da história de amor entre Rodrigo e Bibiana e deixando o restante em segundo plano. Contudo, ao abrir a lente filmando um épico, a dimensão de sua obra se esvai em uma narrativa superficial.

    Ainda assim, O Tempo e o Vento está longe de ser um filme ruim; o universo recriado por Monjardim tem personalidade própria. O conceito de que tudo que Deus tira para dar novamente é muito bem explorado ao longo da trama, tempo cíclico a que Veríssimo idealizou em sua obra. O personagem de Rodrigo, muito bem interpretado por Lacerda, esbanja carisma e utiliza muito bem os olhares para demonstrar suas emoções, assim como Fernanda Montenegro, como de costume, se entrega ao papel da velha senhora Bibiana. Difícil não se emocionar com a cena inicial em que Lacerda, com suavidade, carrega Montenegro no colo levando-a até a janela.

    O Tempo e o Vento tem escolhas de roteiro que dificilmente passarão batidas, mas ainda assim é um belo material. A obra de Monjardim ganhou uma versão televisiva em formato de minissérie para a TV Globo, mas resta saber se os problemas narrativos do filme não sejam repetidos na versão para a televisão, não interferindo, assim, na qualidade da obra.

    “Uma geração vai, e outra geração vem; porém a terra para sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar donde nasceu. O vento vai para o sul, e faz seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo seus circuitos.”

  • Crítica | Trapaça

    Crítica | Trapaça

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    Trapaça trata de um grupo marginal de trambiqueiros com um nível de atuação modesto a princípio, visto o perigo que os acomete a todo momento. O caminho da quadrilha é atravessado por um agente da lei, que após idas e vindas (e trocas amorosas), decide por unir forças a fim de pegar peixes maiores para sua rede – por parte do agente – e livrar a própria cara – por parte do bando.

    O “cabelo” bagunçado e colado no topo da cabeça de Irving Rosenfeld (Christian Bale) prenuncia os percalços que seu personagem sofrerá a frente da operação. O exercício de contenção que ele faz ao ter o topete desarrumado é impagável e serve inclusive para demonstrar a tensão dentro do ramo que escolheu e o quanto de cautela é necessário para ter uma longa subsistência.

    David O. Russell sabe como ninguém trabalhar a imagem de Amy Adams. Todo filme que ele a dirige, a atriz parece ficar ainda mais bela se comparada a outras produções, sem falar que sua atuação só ascende quando contrastada com trabalhos de outros realizadores (exceção, claro, de O Mestre, de Paul Thomas Anderson). Graças ao seu cuidado, inteligência para os negócios e aos seus talentos dramatúrgicos, Sidney Prosser (ou Edith) constitui o par perfeito para os ardis e mirabolantes planos de Irving, fazendo-o praticar algo inédito para si: utilizar-se de sinceridade com uma mulher. A sensualidade que a ruiva passa para tela é absurda e é de causar frisson em senhores que não se acham mais viris. Grande parte disso deve-se a atuação, uma dos elementos mais acertados do filme, a outra boa parte é graças aos seus belíssimos predicados.

    A movimentação de Richard DiMaso (Bradley Cooper) ainda no início da película reconfigura os papéis apresentados, mostrando um poder de adaptação ímpar por parte dos personagens. A narração de alguns deles garante multiplicidade de óticas relativas ao golpe que será aplicado e lembra a abordagem escolhida por Scorsese em Cassino. Não que isto seja um problema, longe disso.

    A predileção do cineasta por relacionamentos fracassados e baseados em infidelidade ganha mais um capítulo nesta produção. A associação da incorreção conjugal à charlatanice repete o que foi visto em Huckabees: A Vida é uma Comédia, jogando os pecados de “integridade honrosa” no mesmo caldeirão, ainda que, dessa vez, a criminalidade, de fato, faça parte da equação. A diferença básica é que neste roteiro a poligamia é uma bandeira levantada: sua validade não é muito discutida, mas a situação é real e tratada como só mais uma forma de relação entre os homens, sem escolher um partido ou mensagem moral.

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    Victor Tellegio é um ótimo retorno de Robert De Niro a um de seus papéis mais confortáveis. O ator é magistral mesmo aparecendo durante pouco tempo na tela, tirando a má impressão após sua decepcionante participação em A Família, de Luc Besson.  Outros coadjuvantes com presenças diminutas se destacam, como Jack Huston fazendo um mafioso que, ao contrário de seu personagem em Boardwalk Empire, não usa máscara, mas que rouba a cena sempre que a câmera o enquadra. Destaque também para Louie C. K. que melhora a cada participação em longas-metragens.

    Obviamente que as atenções (ainda) estão voltadas para Jennifer Lawrence. Sua personagem é uma das mais imprevisíveis, não é a melhor coisa do filme, evidentemente – nem é a melhor atuação, se comparada a de Amy Adams – mas, ainda assim, sua caracterização guarda boas surpresas e evoca alguns dos bons twists da história. As desventuras da beldade de orgulho ferido garantem situações das mais curiosas e interessantes do roteiro.

    O trâmite do plano final é tão dúbio que chega a ludibriar até o espectador mais atento, visto que é complicado tentar prever os próximos passos do grupo de Irving graças à imprevisibilidade e raciocínio caótico de seu líder.  O nível de envolvimento de cada personagem só é comprovado após o desfecho, e, mesmo com os destinos finais, os que (aparentemente) têm um bom fim, não o têm sem questões incômodas; a perfeição passa longe de suas vidas. O roteiro de Russell e Eric Warren Singer é finalizado com uma mensagem aparentemente idílica e otimista, mas não tão clara, mais uma vez emulando Martin Scorsese (e Nicholas Pileggi) em Os Bons Companheiros. Trapaça é uma ode ao cinema de Scorsese, especialmente à filmografia ligada à temática da criminalidade, e é reverencial, em suma. Portanto, não desrespeita suas referências, ao contrário, as idolatra e lhes dá um tempero de atualidade e contemporaneidade sem maiores complicações.

    Ouça nosso podcast sobre a filmografia de David O. Russel.

  • Crítica | Jovem e Bela

    Crítica | Jovem e Bela

    Jovem e Bela

    Isabelle desde o início da película é um objeto a ser observado, ela é vigiada por olhos desejosos de si, ainda que alguns desses o façam de forma inconsciente (questão esta dúbia e discutível, visto o desenrolar da trama). A sexualidade nela é aos poucos aflorada, e como é sublime ver um corpo juvenil se auto-descobrindo, especialmente antes de ser tocada por mãos masculinas que as ferem tal monumento a beleza. É impossível não se afeiçoar minimamente pelas feições e curvas de Marine Vatch

    Os beijos que recebe dos presentes em seu aniversário são desferidos quase todos próximos de sua boca, isto, aliado a música da trilha e sua letra profética, prenunciam uma carência que começa a crescer e que evoluiria dentro de sua psiquê. Havia um desejo por mais, uma necessidade de auto-exposição, que não seria satisfeito num estilo de vida normal e extremamente regrado.

    O seu novo ofício é organizado, ela só atenderia as tardes, nunca a noite ou em finais de semana: seu intuito era o de ter uma carga horária o mais comum e normativa possível, visto que a natureza de seu trabalho não era usual. Seus clientes tem gostos e preferências muito diversas, alguns são exigentes, outros desonestos, outros preferem não ser tocados – o que é esquisito dada a natureza do serviço, sua adaptação é plena e se dá aos poucos, mesmo com (alguns) insultos que recebe de quem a contrata.

    A opção pelo emprego não a exime do constrangimento, que a faz se lavar obsessivamente, para se livrar dos sinais e odores dos homens que a possuem. No entanto, sua insatisfação é crescente, só faz aumentar, mesmo com a pequena fortuna que vai acumulando. Há mais que somente o código moral a incomodando, e ela não consegue entender o que está lhe causando isso.

    A segunda parte da história, a partir do Momento Inverno, mostra a aposentadoria forçada de Isabelle e a decepção de sua mãe ao descobrir seus serviços. A profundidade da questão é abordada muito bem, sob os olhos da figura materna, que procura a culpa em todos os fatores externos a sua própria ação. O sentimento que ela tem pela filha é de asco pelas atitudes que considerava erradas por essência e também de medo do vício que ela adquiriu. Ao final ela não consegue entender a confusão que se passa na mente da moça.

    François Ozon apresenta uma história única, que não é condescendente com o público em momento algum, não o poupando das vicissitudes da questão primordial, mostrando esta sobre várias facetas, desde a comum associação satânica, até a fantasia e fetiche de muitas mulheres – fetiche no caso correspondente o ato de “auto-comercialização”, declarado por uma das personagens. O desfecho, em aberto, levanta inúmeras possibilidades para o futuro de Isabelle, nenhuma dessas porém garantem a si um futuro sem traumas ou lembranças vis.

  • Crítica | Frankenstein: Entre Anjos e Demônios

    Crítica | Frankenstein: Entre Anjos e Demônios

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    Stuart Beattie, responsável pelos roteiro de Austrália e das franquias Piratas do Caribe, G.I. Joe, assume a direção desta versão moderna da história do monstro de Victor Frankenstein. A trama é baseada na HQ escrita por Kevin Grevioux, co-criador de Underworld: Anjos da Noite. Talvez por isso tem-se a impressão de que a história está ambientada num universo semelhante ao de Underworld. Ou seja, em vez de vampiros versus lobisomens, o embate é entre demônios e gárgulas.

    E, assim como na história de vampiros e lobos, a humanidade ignora totalmente a existência de tais criaturas e o confronto entre elas – apesar de ser difícil acreditar que sejam tão despercebidos a ponto de nenhum transeunte notar esses seres estranhos e assustadores com olhos vermelhos nos céus duma metrópole. Mas enfim, se é necessário ignorar esse fato para mergulhar no universo da história, que assim seja.

    Desse “mergulho” advém o principal problema do filme: a falta de profundidade tanto da história quanto dos personagens – não há “onde” mergulhar. A luta entre anjos e demônios é enfocada de modo tão superficial que o espectador sequer se sente compelido a tomar partido de um dos lados. Ambos são tão insossos em suas motivações que parece não fazer muita diferença quem leva a melhor na disputa. Soma-se a isso o fato de que temas centrais da história do monstro de Frankenstein – criatura versus criador, homens brincando de deus – são apenas ligeiramente pinceladas, sem nunca serem exploradas devidamente, o que enriqueceria bastante a trama.

    Nem a presença de alguns bons atores no elenco consegue prender o espectador. Bill Nighy não faz feio, como sempre, mas dá a impressão de ter atuado em modo automático. Miranda Otto, como líder dos gárgulas, dispara algumas das piores falas do filme. Aaron Eckhart até tenta dar mais peso a Adam, mas não há muito o que se fazer com um personagem mal construído.

    Ao menos, o filme não é longo – 93 minutos – e mantém o ritmo com sucessivas cenas de ação. Consegue entreter, se o público não for ao cinema esperando uma nova versão do personagem já que, do clássico personagem criado por Mary Shelley, sobrou apenas o nome no título.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | O Abrigo

    Crítica | O Abrigo

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    A observação de Curtir LaForche (Michael Shannon) da chuva que se avizinha mostra o homem diminuto diante do destino que o aguarda, mesmo a mais ordinária das obras naturais tem o poder de sobrepujar o esforço deste ser. O Abrigo, a exemplo do último filme de Jeff Nichols, também se passa em uma área rural, e é permeada por pessoas simples com problemas reais e superações familiares a serem alcançadas. O pano de fundo proposto por Nichols é como uma tela em branco, e ajuda o público a embarcar na história de forma satisfatória, cada pequeno detalhe visa remeter a uma vida comum e normal, em um lar conservador e feliz segundo as aparências, mas que atrás da capa de normalidade esconde perturbações e assombrações proféticas ou alucinatórias.

    A despeito de seu discurso, quase sempre calmo, Curtis se sente inadequado, deslocado, como se algo estivesse errado, e como se tudo pudesse piorar e ruir de forma drástica, daí viriam seus sonhos premonitórios catastróficos. Os signos do filme afora, seus momentos não desperto são igualmente lúdicos, mas outros fatores reforçam seu desconforto, seja a deficiência física de sua filha manifestada pela surdez, a sensação de achar-se sujo e não poder lavar-se, seus problemas com a garganta – que são o inverso da incapacidade de sua filha – a dificuldade em se comunicar com suas esposa, seus atrasos para jantares familiares, todos estes problemas provindos de sua paranoia.

    Curtis receia em consultar-se com o psiquiatra que seu médico lhe recomenda, põe obstáculos fáceis de transpor unicamente para ter para onde fugir, mas sua preocupação é justificada ao observar o que ocorreu com a sua mãe, e o destino final que ela tomara. Sua escolha é uma consulta com uma psicóloga, uma alternativa amena e mais leve do que encarar o problema  de forma definitiva, mas que ainda assim, obriga o homem a olhar-se de frente, encarando os seus demônios. A atuação de Jessica Chastain como a esposa (Samantha) é pródiga em demonstrar não só o típico comportamento feminino ao ver a figura masculina que deveria ser forte, tornar-se fraca, mas também mostra o quão conflitante é o sentimento de impotência diante do grave problema que (aparentemente) acomete seu marido. No entanto, mesmo com todo o cuidado, Curtis prossegue com os preparativos para o forte anti-tornados, mostrando que há em sua mente uma dúvida quanto relevância dos sinais que este vê nos céus.

    Os últimos 30 minutos sintetizam o conjunto de sensações que atormentam Curtis, desde o inesperado apoio por parte da esposa – para ele uma causa perdida – até o confronto com seu antigo amigo Dewart (Shea Whigham), que o faz revelar toda a sua insanidade diante dos vizinhos e claro, o evento que poria a prova a razão ou não razão da paranoia do protagonista.

    Take Shellter é um belo filme sobre apoio e sobre convivência amorosa mesmo com adversidades tão intensas. Apesar de assustada, Samantha permite que Curtis tome as rédeas da situação e pouco interfere e deixa espaço para que o marido aja conforme acha ser o correto, ela o abraça e o entende, mas não fecha os olhos para o óbvio, e tenta até o último instante deixá-lo vencer sua condição empurrando-o a tomar uma atitude de ruptura.

    Nichols conduz o desfecho de um modo que deixa o público apreensivo, igualando em partes a duplicidade de pensamento de Curtis no espectador – o que se agrava com a cena imediatamente anterior aos créditos finais, que por si só grafam a ideia de união familiar, inclusive na paranoia. O desfecho ratifica a enorme relação de interdependência entre os personagens de uma forma poética e muito tocante, sem deixar de lado a inexorabilidade do destino, por mais lamentável e triste que isso possa ser.

  • Crítica | 12 Anos de Escravidão

    Crítica | 12 Anos de Escravidão

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    A introdução que McQueen arquiteta é típica de sua filmografia, com nenhuma palavra por parte dos importantes personagens mas escancarando o conjunto de sensações que eles têm através das imagens. Solomon Northup (Chewtel Ejiofor) passa por formas diversas de escravidão, desde o simples plantio de cana até ganhar status e seguir o serviço de músico, como um negro livre das amarras que ainda prendiam seus irmãos. Solomon é obrigado a retornar ao estágio de cativo, perdendo o direito que conquistara para si legitimamente, e com isso, os conflitos que visavam o retorno a liberdade vieram, entre eles, a condescendência de alguns do escravizados. Um dos negros, Clemens, ao ser indagado sobre uma possível rebelião diz:

    “Somos negros, nascidos e criados escravos. Os negros não têm estômago para lutar.”

    A mercantilização das vidas é mostrada de forma emocional, com uma rasgante separação de uma mãe e suas duas crianças… Solomon toca seu violino na tentativa de desviar a atenção da separação, mais tarde recebe o nome de Platt, é comprado por Mister Ford (Benedict Cumberbatch) e volta gradativamente a resignar-se e aceitar o chicote. Ele próprio vê Platt como uma outra personalidade, a que aceita os maus tratos a fim de sobreviver mesmo sabendo o quanto isto é injusto.

    McQueen flagra as consequências da rebeldia, mostrando o personagem preso com uma corda no pescoço por longos momentos, após uma discussão com um dos mestres brancos. Mesmo estando “certo” ele é mantido suspenso, sofrendo por seu ato de desobediência, para aqueles que exploravam seus préstimos, sua vida prosseguia sendo inferior, mesmo para aqueles que este considerava benevolentes.

    Edwin Epps, o novo mestre de Platts é imprevisível, e atuação tresloucada de Michael Fassbender grifa ainda mais esse aspecto. A religiosidade, algumas vezes ligada a esperança de dias melhores, é muito presente na vida dos homens brancos, e os motiva de forma diferente, Ford prefere tratar a todos da forma mais suave possível enquanto a rigidez de Epps é dita como prevista nas páginas sagradas da Bíblia, o realizador utiliza a filosofia religiosa para demonstrar diferentes pontos de vista relativos ao convívio com o diferente.

    Patts, uma das escravas “preferidas” de Epps interpretada por Lupita Nyong’o, é mostrada com as costas inflamadas e sangrando graças a uma sessão de chibatadas de seu mestre: esta parte constitui em si uma cena forte e bastante chocante, não só pelo grafismo do sofrimento, mas também pelas injustas razões do castigo. O espanto para o público infelizmente não é o mesmo para os personagens, acostumados a atos selvagens como aquele. O escravocrata faz questão de humilhá-la e tortura Solomon mentalmente, tentando coagi-lo, por perceber que ele tem um pouco mais de liberdade de pensamento que os outros negros servis.

    Quando o golpe finalmente é resolvido, os cabelos de Solomon são grisalhos, suas feições mudaram, estão mais duras, ele está marcado como nunca, mas ao ver os seus novamente, sua reação é de desabar em lágrimas em frente àqueles que tanto buscava, e seus constantes pedidos de desculpas são prontamente recusados. Mais tarde, ele se tornaria um ativo crítico abolicionista, mesmo sem ter sucesso nos tribunais contra seus agressores. O roteiro adaptado de John Ridley é competente demais em mostrar os muitos momentos da trajetória de Northup, sem fazer concessões e sem saídas politicamente corretas, pois expõe uma realidade dura e cruel sem dar ao povo retratado um papel estereotipado de vítima. A direção de Steve McQueen é ainda mais madura do que a apresentada no ótimo Shame, o que demonstra uma ótima evolução por parte do diretor, especialmente em tocar em temas tão delicados quanto os abordados na sua ainda breve filmografia.

    Ouça nosso podcast sobre Steve McQueen.