Categoria: Críticas

  • Crítica | A Fantástica Fábrica de Chocolate (1971)

    Crítica | A Fantástica Fábrica de Chocolate (1971)

    Baseado na obra de Roald Dahl, A Fantástica Fábrica de Chocolate, clássico de Mel Stuart lançado em 1971 começa mostrando chocolates sendo fabricados e faturados – em uma apresentação que certamente abre o apetite de quem é amante do doce – ambientando o espectador na fantasia que se passará a seguir. Pouco depois, acompanhamos uma cena onde crianças saem correndo da escola para uma loja de doces para adquirir os chocolates de Wonka.

    Tudo que é preciso saber está aí, ao menos no que toca a mística em relação a Wonka e aos seus segredos. Logo, aparece Charlie (Peter Ostrum), que se vê obrigado a trabalhar para ajudar a sustentar sua casa, que contém seus quatro avós e sua mãe. Seu avô Joe (Jack Albertson), promete que sairá da cama que divide com os outros quatro, para trabalhar e dar ao garoto a chance de ser uma criança, já que ele tem muitas responsabilidades, mas ele não consegue isso.

    Dahl é quem escreve o roteiro, e nele é colocado seu protagonista infantil como um garoto fofo, mas desolado. É engraçado como sendo um magnata recluso,que procura alguém igual a si para adentrar em sua fábrica, Wonka acaba gerando muito lixo, que basicamente atrapalha a vida dos meros mortais, além de causar frisson na população inteira, sobretudo nos mais pobres, que não podem lançar mão de tanto dinheiro. Outra situação assustadora é que a forma como ele escolheu para selecionar quem entrará na fábrica privilegia apenas crianças mimadas e de grandes posses, sem maiores preocupações além de enfezar seus pais e exigir mimos.

    O ingresso à fábrica que Charlie encontra se dá pela pura sorte, após ele achar um tostão na rua, comprando dois chocolates, um para si e outro para o seu avô, e a reação da rua é a de quase matar o menino sufocado, mostrando ainda que de forma leve como funciona a ganância dos homens. O personagem que dá nome ao filme – no original é Willy Wonka & The Chocolate Factory – só aparece com 44 minutos de exibição, mancando e com o cabelo tão ralo que as partes laterais cobrem o centro de sua cabeça. Ele parece um homem digno de pena, e só quebra essa imagem dentro da fábrica, e o cenário lá dentro muda por completa, se mostrando um universo próprio, onde a física é diferenciada. Até os números musicais mudam, melhorando absurdamente, e esse é apenas um dos elementos fantásticos apresentados.

    As sessões em que passavam A Fantástica Fábrica de Chocolate nos anos oitenta e noventa eram acompanhadas com muito afinco pelas crianças, que achavam sensacional os rios e cachoeiras de chocolate,os anões de pele alaranjada chamados Oompa Loompas, as letras das músicas saltando a tela, e claro, as armadilhas que Wonka planta para as crianças. Talvez para as criança que assistiam, na reprise ou no cinema, não houvesse a noção de quão estranho e obsessivo era  o homem, transtornado e maníaco por organização que permitia às crianças até correr risco de morte caso lhe desobedecessem. Tanto Willy quanto seus amigos pequenos são figuras enigmáticas, parecem mágicos, e gostam de provar os humanos, e é essa a função dos trabalhadores da fábrica, mesmo no que toca Charlie, provado antes até de outras crianças.

    Para Charlie essa é uma oportunidade única, e de certa ele foi a única criança a usufruir tudo que a fábrica deu, não só dos doces mas também do aprendizado com Willy, mas não sem antes ser tentado. Neste ponto, ele é bem parecido com Wonka, apesar do adulto ser mais irascível. A Fantástica Fábrica de Chocolate termina com uma bela exibição de Gene Wilder, que consegue transmitir uma lição por meio não convencionais às crianças que assistem seu show.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.

  • Crítica | Loja de Unicórnios

    Crítica | Loja de Unicórnios

    As primeiras cenas da vida de Kit aparecem na tela em gravações caseiras datadas do início dos anos 1990, quando ela ainda era um bebê, e seguem seu crescimento. O filme protagonizado e dirigido por Brie Larson foi exibido durante festivais pelo mundo em 2017, e mostra a personagem deprimida após ser expulsa da faculdade de arte, tendo que voltar a morar com seus pais

    Loja de Unicórnios tem como ponto de partida o sentimento de autocomiseração de sua protagonista, que passa seus dias sentada ou deitada vendo desenhos infantis antigos. Ela literalmente não tem vontade para nada até que seus pais permitem que Kevin (Karan Soni), seu antigo amigo se aproxime. O tom de melancolia só aumenta, e a música de Alex Greenwald aprofunda esse sentimento de tristeza.

    Ao ser admitida em um emprego burocrático, num escritório, ela tem contato com pessoas mesquinhas e fúteis. O roteiro de Samantha McIntyre mostra essas personagens com lente de aumento. Kit conhece o personagem de Samuel L. Jackson por meio de um convite estranho, mas o primeiro contato de ambos é acompanhado de uma recusa da parte dela, procurando ser mais organizada e agir como adulta, fazendo tarefas repetitivas sem sentido típicas da rotina do trabalho corporativo.

    O filme começa bem na função de debochar das grandes empresas e das pessoas sem perspectiva que se empregam nesses lugares, mas no decorrer do longa ele acaba se perdendo demais em meio a essa crítica, soando bobo e infantil, tornando Kit uma personagem imatura e incapaz de ouvir “não”. Kit não aprende com as pancadas que a vida lhe dá, ao contrário, ao ganhar uma nova missão que poderia dar um novo significado a sua vida ela simplesmente se perde.

    Boa parte do elenco é sub-aproveitado, Hamish Linklater e Mamoudou Athie só parecem estar ali para cumprir contrato, o que é estranho visto ser um filme independente e barato. O final tenta conversar com uma filmografia mais cult e menos mainstream, revelando semelhanças e reverência ao cinema de Miranda July mas sem conseguir replicar o mesmo espírito, caráter e abordagem nonsense, por isso, acaba parecendo mais um panfleto de auto-ajuda mal pensado e pretensioso, um conto estranho sobre personagens que se julgam superiores unicamente por não se encaixar nas regras que a sociedade impõe, no entanto, não há um bom drama bom a explorar nesse quesito, afinal eles não são vítimas sociais, nem tem uma condição de vida precária ou algo que o valha. Nem mesmo a entrega de Larson salva o filme da mediocridade, ao contrário, faz ele parecer ainda mais arrogante.

    Facebook – Página e Grupo | TwitterInstagram | Spotify.

  • Crítica | Dogma

    Crítica | Dogma

    O quarto filme para o cinema dirigido por Kevin Smith como diretor, Dogma começa com um disclaimer, um aviso de que os eventos ali são uma brincadeira, uma paródia e que é preciso ter senso de humor, mesmo ao se falar do Divino, uma vez que Deus teria senso de humor. Antes mesmo da ação começar, já há uma boa localização do que seria explorado pelas próximas duas horas.

    A ação começa com um grupo de meninos agredindo um senhor de idade, em atenção à promessa do livro das Revelações (também chamado de Apocalipse). Enquanto isso, a Igreja Católica, através do Cardeal Glick (George Carlin) tenta soar mais atual, abrindo mão do Jesus Crucificado, para uma figura descolada do Messias, chamada de Cristo Amigo, que é basicamente Jesus apontando para frente, com a mão no coração, piscando, tal qual o meme do “Jesus Maneiro”.

    Enquanto isso, os anjos, Loki (Matt Damon) e Bartleby (Ben Affleck) tentam desenganar fiéis cristãos. Azrael é bem representado por Jason Lee, um demônio nada sutil. Aparentemente, os seres sobrenaturais invadem a terra e interferem no cotidiano dos personagens suburbanos e comuns, e a cena mais medonha  talvez seja Metatron, de Alan Rickman, o anjo que revela sua falta de sexo em um momento perturbador.

    Os serafins e demais anjos transitam na Terra à vontade, como se fossem seus donos, e isso é natural, afinal, estão vivos antes dos homens, e querem aproveitar o pouco que resta desse lugar. Smith faz uma espécie de filme coral, repleto de núcleos e missões divinas, pelo lado dos anjos rebeldes como Loki e Bartleby, e dos anjos bons, que  mesmo sendo justos, também destilam humor ácido e referencial.

    Para quem está acostumado com a carreira do diretor, é estranho ver Jay e Silent Bob como protetores da humanidade/profetas, mas em se tratando de época de crise, qualquer ajuda é válida. O filme não se leva a sério nem sequer quando trata das regras básicas da vida, os soldados de Azrael cortam o ar e se teletransportam do nada, com tacos de hockey, Loki e Bartleby fazem apostas com vidas humanas que cometem pecado, matando pessoas aleatoriamente basicamente porque podem – não sem antes ter um diálogo sensacional, que afirma que um homem casado não beija sua esposa de maneira lasciva – e homens mortos a dois mil anos caem do céu.

    Rufus, o personagem de Chris Rock vem para revelar algumas informações fundamentais, não só para a humanidade, mas também para o grupo de heróis que se reúne, com Jay, Bob e Bethany, e cada um deles tem um detalhe de sua vida revelado. Os personagens  de Jason Mewes, Smith, Linda Fiorentino reagem de maneira diferente um do outro quando confrontados, e para um filme de 1999, este estava bem a frente de seu tempo, principalmente quando demonstra o quão frágil é a perspectiva de vida e masculinidade de Jay, que não consegue aceitar sua orientação sexual gay ou bissexual, e precisa provar ser heterossexual a todo momento. O mundo está em colapso, mas refletir sobre preconceitos segue importante, ao menos pelos que cercam Rufus, que é o apóstolo mais livre de pensamentos retrógrados.

    O escopo de discussão aumenta com a personagem de Salma Hayek, que diz que a Biblia foi mal editada, e replicou preconceitos contra mulheres que não correspondiam a realidade. A musa, Serendipity inverte o arquétipo do orelha, explica mais do que os personagens querem saber, mas levanta boas dúvidas a respeito de como o mundo foi feito e como seu Criador foi transformado em uma figura misógina, quando na verdade sua face real era uma mulher.

    O terço final não é tão legal e divertido quanto os outros dois, a forma como os personagens bons derrotam os maus contém algumas boas piadas, mas não tão legais quanto o auge do filme, mas mesmo nesses momentos, se  reflete sobre a condição dos anjos, que não podem resolver suas ânsias sequer com masturbação, dado que não tem sexo, e esse seria um dos motivos da revolta, o não gozo, a inadimplência com o orgasmo, e essa castidade os volta para a violência, diferente do personagem de Rickman, que não age como um incel violento e frustrado por saber bem o seu papel nesse xadrez divino.

    Dogma acaba violento, com a  Terra em estado péssimo, mas com alguma esperança de sobrevida, tal qual quase todos os eventos catastróficos da Bíblia, ainda conta com todo o elenco que Kevin Smith tornou famoso na fase de sua filmografia de Nova Jersey, trazendo seus amigos para uma produção que pôde ser vista por um público maior que os de nicho nerds que sempre acompanharam sua filmografia, e além de tudo, ainda reflete bem sobre a função do mortal diante dos desígnios divinos, embora obviamente não leve nada a sério, nem a mitologia cristã judaica, nem o próprio enredo.

    Facebook – Página e Grupo | TwitterInstagram | Spotify.
  • Crítica | A História do Mundo: Parte 1

    Crítica | A História do Mundo: Parte 1

    Estrelado, dirigido e produzido por Mel Brooks, narrado pela lenda do cinema Orson Welles, A História do Mundo: Parte 1 é um épico, ou ao menos é uma paródia metalinguística desses, satirizando grandes partes da história da humanidade. Antes de falar da idade da Pedra e da descoberta do fogo pelo homem, Brooks homenageia, de seu modo, 2001: Um Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, antecipando um pouco do que seria o clima de sua obra posterior, SOS: Tem Um Louco Solto no Espaço, em que o alvo principal eram as space óperas como Star Wars.

    Na fase da Pré-História, o roteiro mostra homens lidando com dinossauros e descobrindo o humor físico ao mesmo tempo em que entendem como funciona o fogo, e por mais que não seja pretensioso, o roteiro aponta para esse  aspecto cômico como algo antigo, mas ainda assim fundamental para o que se considera engraçado ou não, dando importância ao que fez gente como Jerry Lewis ficar tão famoso.

    Não demora a começar a se explorar o Velho Testamento, na verdade o Pentateuco, que é o conjunto de livros que Moisés escreveu lá no início da Bíblia Sagrada. Aqui, o próprio Brooks brinca de fazer Moisés, imitando Charlton Heston em Os Dez Mandamentos, de Cecil B. Demille. A parte em que se fala da Roma antiga também faz alusão a mitos bíblicos, em especial na que deve ser a melhor das piadas do filme, quando o diretor atua como um taverneiro que pergunta aos apóstolos o que eles querem beber, no meio da Santa Ceia. Ele inquire Judas sobre o que beberia exatamente quando Jesus fala que um deles seria o traidor, e por mais telegrafada que seja a piada hoje, na época, funcionou de maneira hilária.

    Roma  parece ser o maior alvo de críticas do texto, seja com o comércio, ou com piadas que discutem o racismo desse que seria o berço da civilização ocidental. Também se zomba das autoridades, na figura de Cesar, mostrando um sujeito incapaz de entender as mais simples piadas, proferidas pelo bobo da corte que faz um número Stand Up (obviamente, feito também por Brooks). As questões políticas também são levantadas, e o voto do Senado por retirar direitos dos pobres mostra que a política não mudou nada.

    Também há um sem números de piadas com o cinema clássico, com os guerreiros reclamando de usarem armas de papelão, e essa desconstrução era tão comum nos filmes de Brooks que influenciaram até mesmo humoristas brasileiros, como o elenco d’Os Trapalhões, que também ironizavam falhas de orçamento do seu programa. O humor rasgado combina muito com a filmografia dos irmãos Zucker, embora esse tenha um pouco mais de inteligência, inclusive em suas diversas críticas aos costumes ao longo do filme.

    A História do Mundo: Parte 1 é um filme de esquetes, tal qual A Vida De Brian e O Sentido da Vida, do grupo inglês Monty Python, mas com um humor americano típico, repleto de sátiras a si mesmo e a nossa história. O filme ainda conta com momentos musicais inspirados (como os da Inquisição Espanhola) desdenhando da maneira com que o cinema lidava com períodos sangrentos e nefastos. O timing de comédia de Brooks é sem igual e seu filme beira o genial, contando ainda com cenas pré créditos que aludem a uma parte 2 até hoje não concluída, cujo teor é um dos mais engraçados durante os 90 minutos de exibição. O clássico de Brooks funciona como motivação de riso, mas também de reflexão.

    Facebook – Página e Grupo | TwitterInstagram | Spotify.

  • Crítica | Homecoming: A Film By Beyoncé

    Crítica | Homecoming: A Film By Beyoncé

    Enganado foi aquele que acreditou que Homecoming: A Film By Beyoncé, o documentário sobre o show de Beyoncé no Coachella de 2018 que estreou no último dia 17 de abril na Netflix, seria um filme para humanizar a cantora. A humana por trás do ícone. Não é só isso. O longa é escrito, dirigido e produzido por ela e isso deixa muito claro a autoconsciência de sua própria imagem, do legado de décadas. Homecoming, então, acaba sendo sobre a excelência de ser humana e também uma das maiores personalidades do mundo, de como Beyoncé é o resultado da História e abre portas para tantos outros.

    O documentário alterna entre dois momentos no tempo, as imagens do show e as imagens do processo do mesmo. A cantora se apresentaria no famoso festival em 2017, mas a gravidez surpresa de gêmeos mudou todos os planos e o espetáculo teve que ser adiado para o ano seguinte. Desde o começo havia uma grande expectativa em relação ao evento, Beyoncé seria a primeira mulher negra a ser headliner do festival, dois anos após ela lançar o já memorável Lemonade, álbum visual em que ela expõe suas aflições sendo uma mulher negra, buscando em suas origens a fonte de sua força.

    O show que até a artista subir no palco estava envolto em rumores e surpresas, durou horas e pôde ser assistido ao vivo pela transmissão oficial do festival no YouTube e imediatamente tomou conta da mídia, naquela semana só se falava da experiência completa que foi entregue. Completa mesmo, pois o documentário se aproveita dos respiros entre as performances para mostrar o processo criativo do grande dia, e fica claro a preocupação da cantora em suprir as necessidades de tudo que seria feito naquela noite. Além de ser um show historicamente importantíssimo, ele seria transmitido ao vivo, ele seria filmado para o documentário, ou seja, ele precisava ser cinematográfico, e o som seria utilizado para um álbum ao vivo – esse que foi lançado de surpresa, com 40 faixas, ao mesmo tempo que o documentário saiu na Netflix.

    É muita coisa, e ela parece ter pensado em cada detalhe. Se você der play em Homecoming e fechar seus olhos, a experiência será tão boa quanto, até mesmo quando a cantora utiliza de voz over para dar contexto às imagens de bastidores. Mas ao abrir os olhos, percebe-se que Beyoncé e seu co-diretor Ed Burke queriam muito mais do que um show ao vivo, as câmeras são onipresentes no palco, na banda, no elenco de dançarinos, na cantora, na plateia, mas não apenas registrando, mas ajudando a contar uma história. O palco enquadra, a luz compõe, é impressionante como um dos desejos da artista que é revelado durante o documentário funciona, em certo momento ela diz que quer que o público sinta a energia daquele palco, que a câmera capte as bases tremendo, o trabalho duro.

    E que trabalho de mestre, todos os artistas escolhidos a dedo pela cantora parecem ter crescido juntos com tamanha entrega e sincronia, é como uma família, e eles acabam sendo o grande triunfo do documentário. O show rodava na internet há um ano, o que o filme traria de novo? É quando percebemos que enquanto faz história, Beyoncé esfrega ela na nossa cara. O termo homecoming em inglês, no caso, significaria a reunião de ex-alunos, o longa utiliza de frases vindas de contextos universitários para exaltar a importância da educação para a população negra dos Estados Unidos, assim como das universidades para essas pessoas. O elenco do show é de jovens que de alguma forma têm um passado com o meio universitário, é a celebração da excelência desses jovens. É Beyoncé mostrando às duas décadas de Coachella que quem perdeu em não dar espaço a essas pessoas foi o festival, pois nada como o Beychella – nome dado ao show – havia sido feito antes, e acho que todo mundo com o mínimo de sensatez deva concordar que será difícil superar.

    Em um momento Beyoncé agradece por todas as mulheres que abriram as portas antes dela, logo antes de ver que uma fã da plateia está vestida como ela. O quão importante é existir Beyoncé? Em primeira instância me preocupou que o filme fosse encabeçado apenas por ela e narrado por ela da perspectiva dela, quantas camadas isso poderia proporcionar? Não sejamos ingênuos de acreditar que isso não impede o filme de ir muito além, mas é importante que seja assim. É Beyoncé compreendendo o poder do passado e o poder da educação negra, da arte negra em sua imagem, e controlando isso de sua forma. Ela sabe quem ela é e o que ela representa, que seja ela então quem conta sua história. Existe a cultura pop depois de Lemonade, e existe também a cultura pop depois do Beychella e seu homecoming, assim como foi Pantera Negra. Há um caminho bonito a ser seguido.

    Homecoming: A Film By Beyoncé é um documentário limitado e dura mais do que o necessário, mas injeta vida a cada bloco. Ao mesmo tempo que expõe em inúmeros ângulos um dos atos artísticos mais importantes do século, Beyoncé se mostra resultado de muitos, se mostra mãe e esposa, estudante da vida assim como todos nós. Humana também, mas muito além. E mais importante do que isso, Beyoncé deixa claro a vários jovens que portas servem para serem abertas, ou melhor, quebradas com golpe de salto 15.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.

  • Crítica | Velvet Buzzsaw

    Crítica | Velvet Buzzsaw

    Depois de estrear muito bem com o thriller O Abutre, em 2014, e levar Denzel Washington ao Oscar em 2018 com Roman J. Israel, o diretor e roteirista Dan Gilroy retorna esse ano com Velvet Buzzsaw pela Netflix. O filme traz de volta a dupla que brilhou em seu primeiro filme, Jake Gyllenhaal e Rene Russo, em uma história carregada de humor, horror e críticas afiadas – dessa vez direcionadas ao ambicioso mundo da arte. Se tudo isso funciona junto já é outra história.

    A jovem Josephina (Zawe Ashton) trabalha numa famosa galeria de arte comandada pela influente Rhodora (Russo), e após encontrar os hipnotizantes trabalhos de um vizinho recém falecido, ela junto com tua chefe movimenta o cenário artístico da cidade com esses quadros misteriosos e que valem um bom dinheiro. Gyleenhaal é o excêntrico Morf, um respeitado crítico de arte que começa a ficar perturbado com os quadros desse falecido artista.

    Vindo de Gilroy e com um cenário narrativo tão propício, já era esperado que o longa tivesse a sua carga de sátira, todos os personagens representam personalidades específicas e extremamente caricatas. O diretor parece não se interessar em personagens tridimensionais, eles permanecem fiéis a uma certa superficialidade que de início se encaixa bem no primeiro ato do filme, quando ego e poder tomam conta do texto, se arriscando até a brincar com o que é arte – ou não. Mas o “dedo na ferida” dura pouco e o longa começa a sofrer pelas suas próprias escolhas.

    Se o humor constrói bons momentos acerca da sujeira dos bastidores de um mercado tão lucrativo, é quando Velvet Buzzsaw se transforma em outro filme que as bases começam a ruir. A narrativa entra no piloto automático e é como assistir cenas descartadas da franquia Premonição, o horror como atmosfera não funciona por falta de ritmo e a violência é no mínimo previsível, não há respiro e fluidez entre esses dois filmes que parecem se estapear por espaço até o fim dos 113 minutos de duração. O raso das personagens começa a soar como fragilidades e nem a sátira funciona se tentamos enxergar com outros olhos, sinal de que aos poucos o filme vai se tornando vazio.

    Porém, o longa dá um tempo para o espectador mais insistente se permitir divertir, dá para terminar de assistir esse novo projeto de Gilroy com um gosto nem tão amargo na boca se o encarar como uma grande brincadeira a tempo. Brincar de alfinetar, brincar de fazer comédia, brincar de fazer terror, brincar de se levar a sério. É o que o diretor parece estar fazendo, até o elenco se diverte nessa brincadeira – principalmente Gyleenhaal –  e no fim das contas funciona em certo nível.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.

  • Crítica | Rei dos Reis

    Crítica | Rei dos Reis

    Obra de grande investimento da MGM, Rei dos Reis é um filme bíblico clássico conduzido por Nicholas Ray, o mesmo responsável pela direção de Juventude Transviada. Depois de uma longa abertura, pontuada pela bela música de Miklos Rosza, começa finalmente a ação, narrada pelo general romano Pompeu, vivido por Conrado San Martin, e através de seu relato percebe-se o tempo de escravidão que Israel sofria sob o domínio do Império Romano.

    A produção era cara, mas não tão pomposa quanto foi Cleópatra, lançado dois anos depois. Nos momentos iniciais, se mostra um pouco do que seria a gênese da vida do Messias, mostrando um pouco das tramas políticas que reinavam em Roma, culminando na perseguição que Herodes praticou aos primogênitos hebreus. Mostra-se também em detalhes sua queda, a briga pelo trono que seu filho travou, e obviamente, o retorno de José e Maria. Incrivelmente o filme é bastante fluido, algo não muito comum em adaptações bíblicas, aparentando uma certa modernidade no modo de contar sua história.

    O roteiro funciona mais como um resumo dos evangelhos do que como uma trama coesa e isso é uma pena, pois tanto Ray quanto Jeffrey Hunter, intérprete de Cristo estão muito bem. O ator inclusive ganharia uma fama tardia por seu papel como Christopher Pike no primeiro piloto de Jornada nas Estrelas. Ao menos nos episódios mais famosos da biografia do Filho de Deus há um belo desempenho de Hunter, mesmo que os momentos como o apedrejamento da mulher adúltera ou o destino de João o Batista primem pela artificialidade, não do ambiente, mas da situação.

    Philip Yordan conta em seu roteiro com uma valorização de Barrabás, mostrando-o como um ativista político, belicoso e forjador de armas, que não se vê seguindo um profeta pacifista, ainda mais na situação que seu povo está. Apesar de exagerada, a questão contém um pouco das características que também seriam associadas a Judas Iscariotes, o apóstolo que pensava que Jesus deveria ser mais enérgico e interferir diretamente na servidão do povo de Israel.

    Rei dos Reis ganhou fama em sua época por ser um filme que tratava da história de Jesus sem o receio de mostrar como o povo judeu foi ingrato com o profeta que lhes deu tudo, pavimentando o caminho para que Franco Zeffirelli fizesse Jesus de Nazaré e Mel Gibson realizasse A Paixão de Cristo. Ainda assim, o filme soa bem menos grandioso do que Os Dez Mandamentos, de Cecil B. Demille.

    Facebook – Página e Grupo | TwitterInstagram | Spotify.

  • Crítica | Calmaria

    Crítica | Calmaria

    “Isso muito Black Mirror!”. A frase que se transformou em uma espécie de meme na internet poderia se encaixar aqui. Vejam bem, poderia. Caso Calmaria fosse um bom filme, com certeza seria comparado a algum episódio da bem sucedida série sci-fi que tem surpreendido pessoas por seus roteiros inventivos. Entretanto, esse thriller estrelado por Matthew McConaughey e Anne Hathaway só conseguiu me remeter ao clássico trash O Passageiro do Futuro.

    Dirigido e roteirizado por Steven Knight, britânico que roteirizou o sensacional Senhores do Crime (dirigido pelo mestre David Cronenberg), escreveu e dirigiu o ótimo Locke (estrelado unicamente por um inspiradíssimo Tom Hardy), além de fazer parte das ótimas séries Peaky Blinders e Taboo, ao mesmo passo que cometeu os argumentos de A Garota na Teia de Aranha e de O Sétimo Filho, seu novo longa é um thriller neo-noir estrelado pela proeminente dupla de atores mencionada acima (McConaughey e Hathaway), Djimon Hounson, Diane Lane e Jason Clarke. Na trama, um pescador obcecado em fisgar um atum que ele jura o provocar pessoalmente é procurado por um antigo amor de seu passado que quer o contratar para matar seu marido. Enquanto se decide sobre cometer ou não o assassinato, fatos estranhos passam a acontecer ao redor do pescador.

    O roteiro é uma completa bagunça. A tentativa de Knight criar algo “inteligente” acaba se tornando somente pedante. O cineasta tenta incluir elementos de clássicos literários como O Velho e o Mar e Moby Dick, mas o faz de forma rasa e pretensiosa. Pior, só faz a história se tornar mais desagradável ao paladar do espectador. Ao longo do desenvolvimento da trama, elementos noir são adicionados, mas de forma atabalhoada e incoerente. Aos trancos e barrancos a história vai se tornando cada vez mais sentido e cômica até culminar em um plot twist que praticamente cospe na cara do espectador. Nem M. Night Shyamalan em seus piores momentos conseguiu conceber algo tão bizarro quanto o que é visto em tela.

    No que diz respeito à direção, Knight é ainda mais equivocado. O cineasta não consegue criar um clima decente de mistério e todas as suas tentativas de subir o tom soam bregas. Há um momento especial que resume isso: a primeira aparição de Hathaway. É uma cena tão caricata que poderia estar Uma Cilada para Roger Rabbit. O que deveria causar admiração, causa risada. A direção passeia com a câmera mostrando detalhes da atriz. Sua aliança é mostrada em destaque, sua forma de andar, a trilha sonora ganha um tom mais solene… até que ela diz que vai pagar a bebida do personagem de McConaughey. Nesse momento há um movimento de câmera súbito que fecha no rosto de Hathaway fazendo uma tentativa de expressão de femme fatale enquanto corta subitamente para McConaughey engolindo a bebida rápido em um momento de surpresa. Não tive como não pensar no clássico filme de Robert Zemeckis. A diferença é que Eddie Valiant (Bob Hoskins) e Jessica Rabbit atuam muito melhor que a dupla de protagonistas de Calmaria. Além não estarem bem separadamente, a dupla não tem a menor química. Simplesmente não convencem. Clarke está tão canastrão que acaba odioso por sua interpretação preguiçosa, não pela natureza horrenda de seu personagem. Já Lane e Hounsou são completamente desperdiçados pelo diretor. No final das contas, o longa se torna um sofrido exercício cinematográfico pretensioso que subestima a inteligência do espectador.

    Facebook – Página e Grupo | TwitterInstagram | Spotify.

  • Crítica | Olympia – Parte 2: Vencedores Olímpicos

    Crítica | Olympia – Parte 2: Vencedores Olímpicos

    O inicio de Olympia – Parte 2: Vencedores Olímpicos mostra a natureza, para logo depois exibir humanos invadindo esse habitat, em corridas típicas do treinamento. Isso faz lembrar o obvio, que sua diretora, Leni Riefenstahl, dedicava sua carreira à época de 1938 ao Regime Nazista de Adolf Hitler, tal qual visto em Olympia Parte 1:Ídolos no Estádio e O Triunfo da Vontade.

    Estranhamente, as cenas iniciais tem um tom de epílogo, com os jovens rapazes bonitos nadando nus, somente homens, quase como em uma fantasia homo erótica, fato que contrastava com o conservadorismo da época e claro com a questão de segregação típica do III Reich. É engraçado e sugestivo que o objeto de louvor de um filme que faz parte da máquina de propaganda do Partido Nacional Socialista seja tão fálico e dê tanta vazão a um homo erotismo inconsciente.

    Outro fato de substancial importância é o começo um pouco cômico e mais íntimo deste em relação ao primeiro filme. Ao registrar a intimidade dos campeões olímpicos dos jogos de Berlim em 1936, é permitido mostrar o lazer dos atletas que são o ápice da humanidade de fato – e não necessariamente arianos, aliás, esse é um dos poucos momentos em que esportistas negros aparecem e não são acompanhados por vaias, afinal, não há publico – e isso gera momentos realmente engraçados e diversos.

    Nesse episódio há mais destaque para duas modalidades que quase não apareceram na primeira parte, que são as de regatas, com os barcos correndo o mar, e esgrima. Há também um bom destaque para o boxe olímpico e esportes de corrida. O ritmo deste é melhor construído que Olympia 1, é mais curto – pouco menos de 90 minutos contra quase duas horas do outro – e há menos menções a Hitler e sua trupe.

    Riefenstahl não só foi pioneira em técnicas de filmagem e edição, mas também ajudou a inaugurar a ideia central de como deveria ser um documentário esportivo e uma transmissão de competições, com a câmera presente nos campos ou nas arquibancadas, além de ter um dinamismo no modo de contar que era ímpar.

    Prossegue engraçado o fato de não haver qualquer citação a União Soviética, uma vez que boicotaram aqueles jogos olímpicos, além é claro da vitoria no futebol da seleção italiana, que já havia ganho a Copa de 1934 e ganharia a de 38, com grande apoio de Benito Mussolini, fato é que esse filme é um bocado menos propagandista que os outros da cineasta. Após esse, ela ficaria um bom tempo sem lançar filmes, somente em 1954 com Terra Baixa, e se tornaria persona non grata no pós Guerra. Quanto ao filme, Olympia Parte 2 é uma ode ao corpo humano, vangloriando todas as imperfeições, feitos e contradições dos mesmos, se tornando complicado por conta de associar a perfeição dos atletas ao ideal da raça que Hitler e seus seguidores pregavam

    https://www.youtube.com/watch?v=W34McNixF_M&t=2s

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.

  • Crítica | Primeiro Ano

    Crítica | Primeiro Ano

    Thomas Lilti, mesmo diretor de Hipócrates, traz à luz uma nova comédia temática, dessa vez utilizando a vida acadêmica da universidade francesa como cenário. Primeiro Ano mostra dois jovens aspirantes a médicos, primeiro o “veterano” Antoine Verdier (Vincent Lacoste), que já tentou prova para Medicina outros dois anos e foi reprovado, e o novato Benjamin Sitbon (William Lebghil), um calouro desatento e filho de um médico famoso.

    O roteiro simples explora as opções e perspectivas dos estudantes ao escolherem seus cursos, de uma maneira um pouco diferente de como funciona o vestibular no Brasil, no entanto, a obsessão de Antoine é uma só: ingressar no curso de medicina. É curioso como essa área é novamente explorada por Lilti, embora não se dê tanta importância dramática para isso, uma vez que poderia ser qualquer outra área muito disputada o alvo do protagonista.

    O filme é leve, apesar de tratar de uma situação difícil: a pressão que jovens estudantes colocam em seus próprios ombros. Em alguns momentos o roteiro reflete sobre isso, ainda que não seja esse seu principal objetivo. Mesmo a aproximação dos dois personagens centrais se dá de modo gradativo e natural. O paralelo que se faz com a primeira chance de um e a última do outro soa interessante, mas é explorada apenas sob o ponto de vista cômico, quando muito mostra-se algumas crises desses mesmos estudantes, reagindo mal a toda pressão que envolve o universo deles. Ainda que raso, o filme fala sobre questões pontuais como vaidade e competição, e o diretor consegue passar a ideia de gravidade através das atuações de seu elenco, principalmente via Lacoste, que está mais uma vez muito bem.

    Primeiro Ano mostra bem como pode funcionar a obsessão dos que se dedicam a estudar, inclusive referenciando questões pontuais como a dicotomia entre ser obcecado por resultados ao invés de ser apaixonado pelo que se estuda. Ainda que conte com um desfecho piegas, o filme ainda é um bocado divertido e tocante em muitos pontos.

    Facebook – Página e Grupo | TwitterInstagram | Spotify.

  • Crítica | Olympia – Parte 1: Ídolos do Estádio

    Crítica | Olympia – Parte 1: Ídolos do Estádio

    Parte da construção da figura de cavaleiro perfeito que Adolf Hitler teve durante sua carreira  como chanceler, comandante em chefe e fuhrer na Alemanha se deu pela colaboração de imprensa e artista com o seu governo, e Leni Riefenstahl foi fundamental nesse quesito. Em 1938, já depois de A Vitória da Fé e O Triunfo da Vontade, ela trouxe a luz Olympia – Parte 1: Ídolos nos Estádios, um documentário que começa mudo, mostrando monumentos gregos, que ficam bastante bonitos com as técnicas de iluminação que a diretora sabia empregar, ganhando um ar de mistério ao reunir a trilha instrumental que induz emoção e a fumaça artificial empregada ali.

    Há de se lembrar que é um filme do início da era de outro do cinema, os clichês da arte ainda seriam inaugurados, estavam na verdade em construção com o cinema da diretora alemã e esse pode parecer menos patriótico e menos propagandista que O Triunfo, mas e bem pouco. Os esportes olímpicos eram competidos pela nata da humanidade, os melhores entre os melhores, os servos do panteão olímpico, e nada mais justo para um país totalitário e que acredita na raça pura, associar os feitos do ariano a isso.

    Hitler não demora a aparecer, aos 16 minutos ele saúda as comitivas esportivas que chegavam aos jogos de 1936 em Berlim, e os esportista saudavam o líder com a o símbolo Heil Hitler, bem como os italianos, que vinham do país de Mussolini, e segue bizarro a torcida se levantando no estádio para saudar a bandeira nazista, com uma suástica enorme. A prova cabal de que o povo estava com seu governo, é importante lembrar e frisar isso, não perder de vista que existia adesão do povo as idéias totalitárias e ao culto da imagem tiveram eco com o  povo.

    O meio do filme não é tão bem feito quanto a introdução, que é longa e semelhante aos filmes mudos, se valendo da imagem para contar sua historia. É engraçado, pois tanto as Olimpíadas quanto a obra de Rifenstahl são anteriores a Guerra, e aqui há até um certo louvor aos Estados Unidos, tocando o hino da nação que seria adversária do  Eixo em 1941. Com a União Soviética não participou da competição, nem houve necessidade de mostra-la em qualquer instância, evidentemente.

    O filme carece de um ritmo mais dinâmico, se torna enfadonho em alguns pontos, mesmo se descontando a questão temporal. Esperava-se que o tom competitivo salva-se isso, mas não, e ele é claramente menos propagandista que o resto da filmografia de Riefenstahl, embora, coincidência ou não, haja um enfoque grande em atletas do Japão, que formaria o Eixo com Itália e Alemanha, e muitas vaias para os atletas da America, sobretudo os negros.

    Assistir hoje Olympia Parte 1 é um misto de sensações, de asco pelo louvor que Riefenstahl propagava ao Fuhrer e ao seu governo, ao mesmo tempo que é um bom registro de como era as competições olímpicas nos  anos quarenta, ainda que essa versão tenha uma duração longa, de quase duas horas, fato um tanto incomum para a época, ainda assim a técnica da diretora, que tornou sua arte em algo ainda mais erudito, apesar dos pesares e da propaganda ao ideal nazi-fascista.

    https://www.youtube.com/watch?v=JOUFkMWPblY

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.

  • Crítica | O Ódio Que Você Semeia

    Crítica | O Ódio Que Você Semeia

    Eles estavam começando a se apaixonar. Estrela, ou Starr, já olhava pra aquele garoto com olhos cintilantes, e recebia o mesmo olhar em troca do rapaz que cresceu junto, combinando as mesmas gírias, costumes; compartilhando de uma cultura vista pelo sistema de ‘cultura paralela’. Hoje no mainstream pop devido a vários cantores, autores e filmes como Moonlight: Sob a Luz do Luar, e Pantera Negra, a cultura afrodescendente passa aos poucos a ser respeitada, admirada e apropriada mais por ser lucrativa, antes de tudo, e menos por simplesmente merecer o respeito dos senhores brancos. A prova disso é que, na mais banal das noites, na volta de uma festa, Khalil vira mais uma estatística ao ser baleado, ao lado da inocente Estrela, e, para tornar-se inspiração de resistência, e luta, seu sangue faz manchar o asfalto noturno aos pés da viatura que trouxe a morte.

    O Ódio Que Você Semeia se passa nos Estados Unidos no tempo do agora, mas a realidade trata de produzir remakes ao redor do mundo, e principalmente em países profundamente racistas como o Brasil, cujos índices anuais de violência divulgados não mentem sobre a direção favorita de uma bala, no asfalto ou na favela. A partir dos vários desdobramentos populares que seguem da morte de Khalil, mais um negro liquidado por ser negro em solo americano, as situações amparam, tal um cenário de fundo, o que realmente importa aqui. Como voltar ao normal, a escola, aos rolês descompromissados com os amigos, após presenciar o ódio enorme que existe do sistema contra você, sua família, e que, por muito pouco, não custou a sua própria existência?

    Talvez, a melhor cena de O Ódio Que Você Semeia, a conversão cinematográfica em 2018 do livro de Angie Thomas, seja uma cena de um minuto que plenamente resume a relevância da obra: Estrela volta para a escola de elite onde estuda, rodeada de amigos (todos brancos), e que não entendem a gravidade do que aconteceu. Ela tenta explicar, mas ninguém lá viveu o racismo na pele. Se sensibilizam, claro, mas não entendem a dor. Vai além da compreensão dos seus olhos claros. Quando focado nas relações, principalmente as familiares da garota, após o trágico incidente na qual é envolvida, o filme brilha e expõe a boa adaptação ao Cinema que a história ganhou, bem escrita e mais sugestiva, do que falada – afinal, nenhum romance merece ter suas páginas simplesmente coladas numa tela.

    Se antes era necessário parágrafos e mais parágrafos para descrever as emoções das personagens, apenas um close aqui já dá conta do recado, seja no olhar do julgamento que o pai dá ao novo namorado branco da filha, seja numa lágrima que escapa quando menos se espera. Isso porque o nível da atuação coletiva não desaponta, e muitas vezes diverte, liderada pela expressiva Amandla Stenberg, uma ótima atriz em ascensão. Ainda que sempre dividido entre a tensão do drama que envolve crimes de cunho racial, e o sentimentalismo que sobra de uma situação dessas, há um certo equilíbrio de prioridades aqui, e a direção de George Tillman Jr. mantém o tom de revolta e inconformismo até que Estrela, uma ótima personagem, finalmente entenda que as lutas nunca abandonarão a sua vida.

    Vemos aqui a construção de uma guerreira, e o custo disso a médio e longo prazo na personalidade de uma jovem cidadã, rumo a vida adulta. Por isso, é muito imprudente sequer cogitar que O Ódio que Você Semeia é apenas racismo para adolescentes, sem a força de abordar este crime contra a humanidade que outros filmes como Infiltrado na Klan apresentam – e com a força de um jumbo. A obra literária na qual o filme é oriundo não simplifica, ou suaviza seus temas inevitavelmente polêmicos e fortes, mas em ambas as mídias nas quais a história de Estrela/Starr é narrada, é então preservada a confusão emocional e psicológica que a protagonista sofre, após ver o assassinato do seu melhor amigo naquela inesquecível noite, sendo esse redemoinho de conflitos, causas e consequências, que formam a estrutura desse belo, contemporâneo e doce conto juvenil de pura resistência, e superação.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.

  • Crítica | 1964: O Brasil Entre Armas e Livros

    Crítica | 1964: O Brasil Entre Armas e Livros

    O filme 1964: O Brasil Entre Armas e Livros, se inicia de modo metalinguístico, explicando que o filme do site Brasil Paralelo sofreu um suposto boicote em universidades e instituições de ensino pelo Brasil, afirmando sua proibição de circular nessas mesmas instituições. Curiosamente, não há provas ou quaisquer indícios a respeito disso. As fontes não são mostradas, já que este documentário pouco se importa com isso, como é demonstrado ao longo da exibição em diversos momentos.

    Percival Puggina é o primeiro dos entrevistados, um jornalista especialista na tentativa de refutar Paulo Freire, e começa falando sobre as tensões da Guerra Fria, afirmando que quem não viveu aquilo não poderia falar ou opinar sobre isso. A narração – terrível – de Filipe Valerim fala de maneira bastante tosca sobre a revolução russa, afirmando que Vladimir Lenin era uma deidade para os soviéticos, enquanto Leon Trostky e Josef Stalin eram como papas. Na visão contaminada dos responsáveis pelo documentário, o maniqueísmo corresponde à realidade, e não contradiz a verdade, de que mesmo com um governo de mão forte, havia uma bela fragmentação na liderança dos governos revolucionários russos.

    O filme é dito como dirigido por um trio, Lucas Ferrugem e Valerim, cineastas pouco conhecidos, sem trabalhos pregressos reconhecidos, sequer em curtas metragens ou algo que o valha. Boa parte da argumentação que defende o filme mora dentro do argumento primordial onde afirma que existe um discurso ideológico totalitário no Brasil, que só permite demonstrar e discutir filmes com viés esquerdista. Falácias à parte, edição e trilha sonora escolhida faz a  obra soar engraçada, maniqueísta e infantil para muito além do discurso que o filme propaga, mas também em sua abordagem cinematográfica, já que aparentemente o objetivo não é esclarecer ou narrar uma parte da historia que supostamente não foi contada, e sim em criar animosidade, estabelecer o socialismo e o comunismo como o inimigo mundial até os dias de hoje.

    Em alguns pontos o filme soa tragicômico, com um humor implícito e não proposital sobressaindo. Há muita teoria da conspiração e chutes sobre a história, com dados tiradas ou de lugar nenhum ou de fontes pouco (ou nada) reconhecidas por quaisquer vertentes acadêmicas, sejam elas de direita ou esquerda. O documentário chega ao cúmulo de Olavo de Carvalho afirmar que Oscar Niemeyer tinha um plano para que Brasília fosse a cidade que tornasse o presidente como um líder do Olimpo, afastada do povo, como o ideal de uma cidade pretensamente soviética, capaz de isolar a população do seu mandatário fisicamente.

    Incrivelmente, se debocha bastante sobre Jânio Quadros, sobre sua postura confusa, demagoga e populista. Ocorre que, os realizadores não parecem ver a semelhança de Quadros com o recém-eleito Jair Messias Bolsonaro. Não é coincidência que os entrevistados sejam defensores de Bolsonaro, do mesmo modo, não é coincidência que o lançamento deste filme em uma época onde a popularidade da presidência vem caindo exponencialmente.

    O filme carece de ritmo, é longo e repetitivo, busca massificar a mentalidade confusa da nova direita como se fosse essa a maior autoridade a respeito da história. A falácia parece ser a mola motriz do longa. E a realidade é que até a montagem deflagra isso, ao mostrar depoimentos que fazem contradizer o falante anterior, uns falam que Jango e Brizola conspiravam contra a nação, outros que a conspiração militar foi mais acertada, outros que os militares entraram aos poucos e de maneira convidativa no governo, enquanto outros diziam que a esquerda não reconhecia Jango. É tudo muito confuso, sequer quem montou o filme sabe o discurso que deve defender, ao menos Real: O Plano Por Trás da História, Polícia Federal: A Lei é Para Todos e Jardim das Aflições não soam tão infantilmente construído quanto este.

    O filme vende uma narrativa onde manifestantes políticos, em especial, guerrilheiros, entre eles pessoas que chegaram ao poder como José Dirceu e Dilma Rousseff, eram assassinos e torturadores, em contrapartida não se assume que houveram torturas por parte dos militares, esta sim amplamente documentada, diferente do lado contrário. A mudança da história é baseada no nada, em opiniões de gente que esteve no poder, como se o comunismo fosse algo demoníaco e espiritual, que surgiu do nada e tomou o poder. Há mentiras sobre os desaparecidos, alegando que eles eram exilados, que fugiram de sua nação, quando a maioria era morto ou obrigado a se retirar do país sob o risco de morte.

    O máximo de condenação ao Regime que se permite é à época do AI-5, em 1968, mas a realidade é que o todo é confuso. Basicamente se trata como ideologia comunista toda sorte de pensamento e ação de esquerda, tentando associar lideranças brasileiras que andavam livremente com celebridades esquerdistas. Trata-se dos encontros do Frei Betto com Fidel Castro como se fosse algo secreto. Chega a ser patética essa argumentação, ainda mais quando se releva a repressão violenta com estudantes e a censura, que era dita como algo brando, feito por um guardinha de esquina, além de se negar que o governo militar era de ordem direitista, como se houvesse ali uma neutralidade política, o que contradiz entre outras coisas, a admiração de parte dos entrevistados por Médici. A ideia de Guerra Civil entre militares e comunistas soa imbecil, ainda se tenta, através da fala de Lucas Berlanza, uma associação dos militares à Lula e o movimento sindical, que segundo ele teria fomentado estes movimentos por medo de que o brizolismo crescesse com a volta do líder trabalhista ao Brasil. O filme de Valerim e Ferrugem é tão repleto de mentiras que é difícil não analisar e rir do que fala em suas longas duas horas de duração, chega a ser engraçado o quanto os entrevistados são vitimistas, e clamam por uma autocrítica da esquerda como se essa fosse a responsável pelas atrocidades deste período. O filme termina com uma citação de George Orwell, autor de tradição advindo de uma esquerda radical, e que certamente ficaria ofendido por ter seu nome associado a este discurso, que em última análise, soa acéfalo e sem um norte.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.

  • Crítica | Filhos da Esperança

    Crítica | Filhos da Esperança

    Um futuro perturbador marcado pela infertilidade da espécie é a ficção que melhor representa o presente.

    Repressão que parte do estado, violência entre a própria população, uso exagerado de drogas, imigrantes presos em jaulas. São assuntos difíceis de tratar e muitas vezes negligenciados, porém, não é preciso muito se atentar a essas situações, ainda que de forma velada em nosso cotidiano. Filhos da Esperança parte dessa ideia.

    No futuro, em 2027, a humanidade está próxima do colapso porque nessa distopia as mulheres não conseguem mais gerar filhos. O controle de imigração também é severo e opressivo. Esse é o cenário em que Theo (Clive Owen), um herói moldado pela ocasião,se encontra.Ele vive inerte a realidade das ruas como empregado do governo e após ser sequestrado por um grupo ativista, reencontra laços com o passado em Julian (Julianne Moore), sua ex-esposa. Theo precisa conduzir a primeira gestante em anos para os cuidados de uma organização interessada no bem-estar e futuro da humanidade. Kee precisa ser cuidada, já que é uma imigrante ilegal e as autoridades se aproveitariam de alguma forma da sua gestação.

    A indiferença do protagonista com o mundo é um ponto determinante para o desenrolar da trama. O título brasileiro do filme entrega a esperança como força motriz da trama, e de fato o é. Não é ocasional que pessoas se aglutinam em torno de veículos midiáticos, nem que o barco do projeto humanista, colocado como destino final para Theo é nomeado “O Amanhã”. Em meio ao caos absoluto, a esperança é o que resta e sua ausência também seria ausência de vida. Sem razão para seguir em frente e uma catástrofe iminente, o fim já está decretado.

    A construção narrativa de Filhos da Esperança se dá pelo estado de desequilíbrio instituído. Há conflitos gerais, mas sobre tudo humanitária. A câmera acompanha Theo, mas constantemente se desloca para revelar a distopia instaurada. São muitas as cenas que lembram os campos de concentração nazistas no constante desejo do diretor de enquadrar o caos e até mesmo a morte.É um trabalho em que Cuarón repete este recurso, já usado antes em E Sua Mãe Também (2001), é um artífice para contrastar a história de seus personagens com o plano de fundo daquele universo. Uma esfera maior.

    Há mais uma razão para a liberdade exercida pela câmera nos enquadramentos do filme.Essas tomadas perfeitamente orquestradas por Jim Klay, Geoffrey Kirkland (Direção de Arte) e Emmanuel Lubezki (Fotografia), levam o espectador à vertigem imposta aos personagens.Isso é essencial para que o público desperte a ideia de que a camada principal é fruto da conjunção angustiante e sufocante em que se segue o entrecho.

    É interessante pensar que treze anos após seu lançamento, Filhos da Esperança esteja em tamanha sintonia com a realidade. A crise humanitária de 2006, poucos anos após o 11 de setembro persiste ainda hoje e ainda centrada na figura do presidente norte-americano. Naquela época a política de imigração se encontrava em estado austero pelas guerras impostas pelos Estados Unidos aos países do centro da Ásia. No atual contexto, é o México onde nasceu Alfonso Cuarón e outros países latino-americanos que estão em debate e no gritos reacionários dos gringos.

    As experiências quais somos submetidos todos os dias no século XXI se fazem claustrofóbicas porque também atravessamos tempos de inquietude e violência. Em confronto com Filhos da Esperança, há que se atentar a luta necessária para manter a sanidade, para prosseguir com a vida mesmo rodeado pelo caos. As circunstâncias dão razões para desconfiança generalizada, nas pessoas, nas instituições e enquanto indivíduo, é muito fácil internalizar esse conflito onipresente e extravasá-lo de maneira bastante perigosa. Em seu filme, Cuarón encontra no próximo, na confiança e cooperação humana a ponte para a esperança. A mensagem do diretor acerta em cheio nosso presente quando aponta nossa falta de humanidade e incapacidade de lidar com a vida.Isso só será reparado quando for entendido que nenhum ser humano é ilegal e que se o respeito para com as pessoas e suas histórias deve reavisto.Essa geração está mesmo comprometida e a esperança nasce todos os dias com uma nova aurora.

    Texto de autoria de Gabriel Caetano.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.

  • Crítica | Família Submersa

    Crítica | Família Submersa

    Co-produção brasileiro-argentina, Família Submersa é o novo filme de Maria Alché e reflete sobre a condição humana através de um drama de família. O protagonismo é entregue a Mercedes Morán, que vive Marcela uma mulher resiliente que recebe em sua casa os convidados do velório de sua irmã e está claramente incomodada com a chegada das pessoas que vem para a despedida de sua antiga amiga e companheira, que dela, era bastante próxima, além de obviamente ter que lidar com a dor da perda.

    A família está claramente mal, mas aparentemente isso não é culpa somente do luto, há algo não resolvido entre os parentes e o roteiro não entrega esse ou esses conflitos de bandeia. O que se nota, observando com bastante atenção é que cada uma das rusgas parece ocorrer por conta da convivência forçada entre pessoas bem diferentes entre si e que só tem em comum os laços sanguíneos.

    Há algumas característica e semelhanças desse com o recente Torre – Um Dia Brilhante, em especial no caráter das relações familiares, embora o filme de Alché seja mais explicito em sua exploração de problemática e em seu caráter de desconstrução da perfeição vista nas séries e comerciais  quando se fala de clãs.

    Os dias de Marcela seguem entre desregras e tentativas de aventuras que quebrem sua rotina, e os dissabores e tentações que ela sofre são bem humanos, típicos de uma pessoa que tem dificuldade em lidar com a sua realidade atual e que quer viver coisas novas, situações novas, fugir da morosidade típica de um casamento infeliz. O final do filme tem um tom agridoce, com uma pitada leve de otimismo, mostrando os que aguardaram o velório festejando, dançando, em um dos poucos momentos em que o filme se permite ser sentimental positivamente falando, largando um pouco de mão a melancolia e dissabor, sendo abrilhantado ainda mais nesse aspecto pela bela participação de Morán enquanto fio condutor da singela historia  de luto e amargor.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.
  • Crítica | Como Falar Com Garotas em Festas

    Crítica | Como Falar Com Garotas em Festas

    John Cameron Mitchell é um realizador peculiar. Seus filmes de maneira geral se baseiam em batidas emocionais das personagens, e as tramas são mais ou menos impulsionadas de acordo com as emoções pontuadas em cada sequência; se um título mais ou menos polêmico como Shortbus girava em torno de sexo como um catalisador pra inúmeros contextos íntimos facilmente ignorados em função do sexo em si, e o aclamado Reencontrando a Felicidade (cujo título nacional é impossivelmente entreguista) apresentava o luto como algo a ser assimilado ao invés de tratado como algo nocivo, era de se esperar que uma adaptação de um conto de Neil Gaiman (um autor naturalmente generoso com os aspectos emocionais de suas obras) fosse ainda mais sensível e aflorado, de acordo com as explorações típicas de seu diretor/co-roteirista – e Como Falar Com Garotas em Festas, inspirado na história homônima de Gaiman (leia nossa resenha aqui), de fato se apresenta como um veículo perfeito para seus interesses narrativos. Nem tudo funciona o tempo todo, mas o filme traz doçura e diversão suficientes pra compensar a maneira acochambrada com a qual tenta conjugar suas diferentes partes e propostas.

    O longa introduz Enn (Alex Sharp), o protagonista, como um jovem e entusiasmado punk na Londres dos anos 70 que, na companhia de seus amigos Vic e John, inadvertidamente, após um bagunçado show no clube local (comandado por uma peculiar Nicole Kidman, no papel de Boadicea, uma punk da cena OG, em mais uma parceria com Mitchell após ser exaltada por Reencontrando a Felicidade) acaba encontrando um esquisito conluio de jovens e conhecendo Zan (Elle Fanning, arroz-de-festa em filmes habitualmente mais excêntricos do que a média), uma alienígena presente na terra junto de outros ETs por tempo limitado em função de uma “experiência”. Em busca de algo mais autêntico nas horas que restam a ela no planeta (na forma da música e da cultura punk), Zan escapa de seus pares e acompanha Enn em uma incursão pelo incerto cenário da juventude de Croydon (um epicentro artístico londrino), enquanto é perseguida pelos outros membros de sua espécie (participações menores mas não menos estranhas de nomes como Ruth Wilson, Matt Lucas e Edward Petherbridge), que pretendem interromper suas novas “experiências” para garantir a Retirada, o evento de passagem onde os membros mais velhos da raça devoram os mais jovens.

    Talvez as descrições de trama e ambientação soem mais mórbidas do que ambas realmente são, embora a bizarrice de todos estes elementos seja provavelmente maior do que se pode imaginar, mas o ponto é que Mitchell empresta leveza e doçura consideráveis a tudo que se vê ao longo do filme, de penetrações anais e perspectivas evolutivas cósmicas a um embate/confraternização entre punks terráqueos e coloridos alienígenas agregados – e mesmo que algumas coisas não combinem e não façam muito sentido, a ideia primordial de rebelião jovial contra normas e expectativas permanece intacta e, se a atmosfera geral apresenta a filosofia de vida punk como uma abordagem ideal diante da necessidade de se viver coisas mais intensas e originais, até mesmo a baderna da narrativa vem em auxílio do filme. Não há como prevenir o desperdício de subtramas e eventos que pareciam do interesse do filme, e frustra como nada é aprofundado ou examinado com maior atenção, mas é uma troca aceitável conforme Sharp e especialmente Fanning garantem um núcleo afetivo eficiente e conseguem ancorar uma obra que talvez não tenha muita certeza do que almeja configurar.

    Apesar de centralizar a ação em uma cena punk original e, portanto, baseada tanto em música quanto em atitude, Como Falar Com Garotas em Festas prioriza um ritmo ágil para contar sua história, e tanto o roteiro (de autoria de Mitchell e Philippa Goslett) quanto a montagem de Brian A. Kates estruturam o filme menos como uma corrida contra o tempo e mais como um sprint contra as perspectivas sociais-biológicas da época, a bem da verdade não muito diferentes de anos recentes; há apenas uma inserção musical significativa, dominada com ferocidade por Elle Fanning na única chance de Zan para fazer valer as paixões que carrega e divide com Enn em um palco, culminando em algo transcendental para ambos, mas esta acaba sendo suficiente – senão pela ambientação, ao menos pelo desenvolvimento das personagens.

    Traído por um ato final que não se sustenta (nem desperta muito interesse) a partir do que vimos ao longo da projeção, Como Falar Com Garotas em Festas ao menos conta com um desfecho mais cálido do que a melancolia de seus instantes derradeiros indicava. E mesmo que seja irregular e superficial demais pra ser devidamente reconhecido, é um filme simpático e pulsante que ganha apreço por seus predicados mais básicos, e pela facilidade com que transforma estranheza e lugares-comuns em manifestações genuínas de sentimentalismo e bom humor, mesmo diante de possibilidades nada alegres e bastante impessoais. Nada mal para uma rocambolesca trama amorosa entre um punk sem rumo e uma alienígena fatalista.

    Texto de autoria Henrique Rodrigues.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.

  • Crítica | Mussum: Um Filme do Cacildis

    Crítica | Mussum: Um Filme do Cacildis

    Figura mítica do humor brasileiro, Antonio Carlos Bernardes Gomes, ou Carlinhos,  é a figura principal do novo filme de Susanna Lira, Mussum – Um Filme do Cacildis, que por sua vez, começa através da música, do samba que ele praticava com sua antiga banda, Os Originais do Samba. A maioria dos primeiros entrevistados dizia que ele era um passista fabuloso e parecia talhado para o samba, e de fato, ele era, o que não o impediu de mostrar outras facetas de sua persona artística.

    Mussum era humorista, aparentemente ele parecia ter nascido para fazer os outros rirem, e um dos maiores acertos que o filme poderia “cometer” é o deixar ele mesmo explicar quem ele era, mostrando sua trajetória por entrevistas  suas, que servem como narração em off ou não de parte de seu passado. Alguns amigos do seu passado dão depoimento também, normalmente aparecendo com uma animação de tv antiga, um artificio meio bobo, mas que não chega a atrapalhar a compreensão da mensagem que  o documentário quer passar.

    Carlinhos tinha receio de entrar no morro, mas depois que foi pela primeira vez, virou sensação. Ele sempre destacou que sua criação o colocou no rum do sucesso, mesmo que a probabilidade de dar errado era enorme, mas ele passou por cima disso sem pensar. Boa parte das passagens da vida do biografado são animadas de modo divertido, com fotos antigas com uma animação bem primária, acompanhadas das palavras de Lázaro Ramos, e é nesse ínterim que se conta o aborrecimento ao ser chamado de Mussum pela primeira vez por Grande Otelo quando faziam um programa de televisão, e de Chico Anysio afirmando que ele deveria ir devagar com o dialeto que o sujeito inventou.

    Também é curioso notar os elogios de gente gabaritada a respeito  dos Originais do Samba, entre elas, Elis Regina, provando que não era essa “apenas” a banda do trapalhão. O filme trata com humor a árvore genealógica de Mussum, com o cúmulo de ter dois Antonio Carlos Junior, batizados assim por conta dele ter esquecido, mas os filhos jamais reclamaram de falta de amor e cuidado do pai. É uma pena que as entrevistas ocorram com o filtro animado já citado, pois em momentos onde a emoção prevalece, como a vez que um dos filhos de Mussum embarga a voz ao cantar uma música de seu pai chama mais atenção pela forma do que pela reação e conteúdo do mesmo. Ainda assim, sobra emoção do documento histórico que Lira conduz.

    O filme também discorre sobre a questão racial e sobre as acusações de Os Trapalhões ser um programa racista, ao mesmo tempo em que ele era um dos poucos negros no horário nobre, um dos primeiros a fazer sucesso na televisão e a se tornar ícone. Em paralelo a isso, os filhos diziam que seu pai os ordenava a não levar desaforo para casa, além de ele também reagir na rua quando xingavam ele ou seus herdeiros por palavras racistas. Curiosamente nesse ponto há boas falas de Joel Zito Araújo, além de uma cena do filme Os Trapalhões no Auto da Compadecida, onde ele fazia Jesus e batia de frente com os preconceitos do povo. A escolha dessas falas dá um bom panorama sobre a postura do mesmo a respeito do preconceito racial. Mussum – Um Filme do Cacildis consegue atingir mais acertos que erros, e  discorre de maneira bem singela e franca sobre a historia de seu biografado e melhor, sem soar enfadonho ou repetitivo, além de acrescentar bons momentos novos a biografia de Mussum como músico, humorista e como o ser humano admirável e  digno de saudades que ele era.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.
  • Crítica | Sonho de Rui

    Crítica | Sonho de Rui

    O início de Sonho de Rui passeia pela casa do personagem de Pedro Monteiro, que vem a ser o próprio Rui. Entre desarrumações, alimentos jogados pelos cômodos, o protagonista assiste um clássico de Chuck Norris em seu DVD player, Bradock: O Super Comando. Até a fonte utilizada nos textos que sobressaem a tela lembram as usadas nos filmes de guerra antigos que tinham o Vietnã como pano de fundo. Rui é apaixonado pela figura de ator, e não aceita que façam troça do astro, nem mesmo os famigerados Chuck Norris Facts, os memes com a força e poder do ícone dos filmes de ação.

    O filme é dirigido por Cavi Borges e Ulisses Mattos, e mostra as tentativas do personagem, que é ator em tentar vender o apartamento que ganhou de herança. Seu objetivo é levantar dinheiro para financiar seu sonho de refilmar o clássico de Norris que ele havia visto antes, para isso ele tem que romper sua timidez ao tentar negociar o lugar onde mora, fazer aulas de inglês e deixar para trás a forma não musculosa que tem.

    A maioria dos diálogos do filme são artificiais, parecem dublados, e essa questão anti natural conversa demais com a ambição de Rui em filmar o  longa em inglês. É declarado que o sujeito tem Transtorno Obsessivo Compulsivo, ou TOC como é popularmente conhecido. A falta de manutenção do apartamento faz com que possíveis compradores, que reclamam da ferrugem dos canos e bicas e isso frequentemente é confundido com xingamento dado aos ruivos, de Ferrugem, fato que incomoda o personagem principal.

    Rui é um sujeito não só tímido, mas praticamente celibatário, quando ele se relaciona com o sexo que lhe agrada ainda assim é estranho, e parte sempre da outra pessoa e não dele. O motivo de ser ruivo não explica suas inabilidades sociais, e nem sua aversão a contato humano, muito menos a dificuldade de lidar com desconhecidos. A caracterização que Monteiro produz lembra um pouco a condição recentemente alcunhada de incel, os celibatários involuntários, tendo inclusive uma postura que culpa os outros por não ter uma convivência social dita normal. O fato dele ser metódico praticamente não chega a ser cogitado como fonte desse estranhamento nos relacionamentos, nem mesmo com o excesso de formalidade pelo qual ele passa.

    O roteiro de Mattos prima pela comédia, e os momentos mais inspirados são justamente esses, mas os momentos mais sérios e dramáticos são bem feitos também, e mostram um sujeito que apesar de engraçado, é bastante complicado e tem dificuldades em lidar consigo próprio e com os problemas de ordem comum. Nesse ponto, ele lembra um pouco a parceria de Fabio Porchat e Ian SBF em Entre Abelhas, que também tratava de um personagem com dificuldades de aceitação cuja motivação era nonsense e que também não tinha perspectivas de sucesso.

    A raiva de Rui tem a ver com o fato de sua casa inteira enferrujar, e curiosamente a câmera de Borges registra cada vez mais suas sardas saltando no rosto, deixando claro sua condição ruiva e o que o irrita em si mesmo. O Sonho de Rui é um filme despretensioso, divertido e melancólico quando precisa, e conta com uma atuação inspiradíssima de Pedro Monteiro.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.
  • Crítica | Shazam!

    Crítica | Shazam!

    Cercado de expectativas, ainda mais após Aquaman ter  dado tão certo com publico e crítica especializada, Shazam! finalmente chega ao circuito comercial de cinema mundial, no entanto, já no início se indica que este é um filme independente de Homem de Aço, Batman vs Superman, Liga da Justiça e outros crossovers, tanto que nem tem a já tradicional animação da DC que também esteve no filme de James Wan e em Mulher Maravilha. David F. Sandberg teve a árdua missão de fazer um filme que soasse juvenil, divertido e diferente de toda a atmosfera que Zack Snyder tinha feito, e o caminho pavimentado antes por Wan é muito bem conduzido, sendo esse um longa-metragem algo bem diferente de tudo que foi feito na nova fase de heróis da Warner Bros.

    As primeiras cenas do filme mostram um jovem, atormentado por uma rejeição provinda de seu pai, que aliás é  interpretado por Jon Glover, o mesmo que fez o Homem Florônico em Batman e Robin, e foi o pai de Lex Luthor em Smallville, o interprete serviu de introdução portanto em três vilões em adaptações  da DC Comics. Neste início, o jovem Chad Silvana tem um encontro mágico com seres mitológicos, e a partir daí começa uma obsessão pela mágica. Esse menino se tornaria no futuro o ator Mark Strong, que faz um sujeito curioso, rico, que tem problemas sérios com seu pai e desconta toda sua frustração nessa busca.

    Em paralelo a isso, são mostrados alguns garotos órfãos, sendo o primeiro deles, Billy (Asher Angel) um menino que se perde de sua mãe e que cresce entre orfanatos, casas de adoção e reformatórios, além de Freddy Freeman (Jack Dylan Grazer), um menino hiperativo que é louco pela cultura de super heróis. O primeiro é adotado por uma família que costuma trazer meninos e abandonados para casa, enquanto o segundo já faz parte dessa casa. Os dois tem de lidar com a questão de não terem pais, além das  questões comuns a puberdade. Os dois são acompanhados por outros irmãos, cada um com sua importância e personalidade, sendo eles Darla, Pedro, Eugene  e Mary.

    Sandberg consegue colocar colocar pitadas de terror muito bem empregadas, e por mais que não seja do gênero, é mais assustador que Quando as Luzes se Apagam. Suas criaturas monstruosas são bem feitas e causam medo,  mesmo quando soam artificiais. Esses opositores, somados ao vilão maniqueísta servem bem a construção do conflito entre o ideal de Campeão do Relâmpago que vivo que Shazam/Capitão Marvel deveria ser, em confronto com a realidade dele ser um herói em formação, afinal, seu alter ego é também muito novo, vive na puberdade e tem seu caráter em formação. Como diz o mago de Djimon Hounsou (em uma participação especial bem legal por sinal), ele não é perfeito, mas é o herói que pode ser o campeão do antigo conselho dos magos que se foram.

    O roteiro repercute bem a questão da orfandade e do abandono parental, de um modo bem diferente dos quadrinhos, mas igualmente sentimental, alias é neste ponto que Billy se diferencia totalmente de Silvana ele é mais maduro e digere melhor a rejeição que o vilão , e isso ele aprende com seus irmãos adotivos, sobretudo Mary e Darla, estabelecendo assim uma união familiar melhor trabalhada até que a origem de Geoff Johns e Gary Frank em Shazam Com Uma Palavra mágica.

    O filme ainda guarda boas referências aos quadrinhos, como as que homenageiam Shazam e A Sociedade Monstruosa do Mal! de Jeff Smith, além de uma escolha de trilha sonora que funciona bem demais, mesmo em suas contradições, como quando passam os créditos, que além de ter uma animação ao estilo Deadpool, ainda é acompanhada pelo clássico dos Ramones I Don’t Want to Grow Up, que faz lembrar uma boa frase de Freddy Freeman nos quadrinhos, de que Billy se corrompeu e tornou chato ao agir como adulto, já a versão  de Zachary Levi não é isso, ao contrário, o ator está bem a vontade no papel e parece talhado para fazer um homem tão poderoso com a mentalidade de um moleque, além de ter uma química monstruosa com Grazer, estabelecendo um bromance melhor até do que a versão infantil dos dois interagindo. A escolha  dos produtores por não fazer do personagem um herói grandioso conforme as revistas antigas da editora Fawcett, e sim apelando para a fase em que a DC adquiriu as propriedades intelectuais do personagem funciona aqui, apesar de gerar curiosidade para uma versão sua que fosse mais séria e poderosa como a original

    Shazam! lembra um filme de herói tipico da Disney, escapista e fantasioso como Rocketeer, divertido e engraçado num nível que nem os filmes iniciais da Marvel conseguiram, ao mesmo tempo não se parece com praticamente nenhum filme de herói recente, causa um fascínio semelhante ao Batman de Tim Burton, mas com una aura mais despretensiosa e sem medo de ser puramente uma historia infanto juvenil.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.

  • Crítica | A Primeira Noite de Crime

    Crítica | A Primeira Noite de Crime

    Dando vazão a uma espécie de fetiche cinematográfico por narrativas de origem, a quarta incursão ao universo narrativo de Uma Noite de Crime, explora, como denota o título, os motivos que levaram a criação da lei do Expurgo, uma noite criada por lei em que os crimes não possuem punição da justiça. Uma ação visando aplacar o estresse dos cidadãos.

    A narrativa que se iniciou em 2013 como uma história de terror foi se descolando desse gênero a cada sequência. Aprofundou-se, na medida do possível, sem perder a tônica de uma história pautada para o entretenimento, em  uma análise social sobre a sociedade que permitiu tal mudança de paradigma. O primeiro filme focava na tensão de uma família aprisionada em casa; O segundo mostrava como as ruas lidavam com os fatos; a terceira parte acrescentava a tensão política e contrapunha questões sociais entre os ricos que podem se defender do expurgo e os mais humildes que buscam sobreviver a noite.

    Nesse novo ato, temos um breve panorama da queda econômica americana e um estudo psicológico que justifica a violência controlada como forma de aplacar a violência aleatória. Para executar o primeiro teste, um bairro de Nova York, em que se destaca a população de baixa renda da cidade, foi escolhido.

    Ampliando a análise politica vista anteriormente, mesmo que de maneira breve e pontual, a trama se situa como uma observadora dos tempos presentes estabelecendo o binômio básico entre dominante e dominado. De um lado, os detentores do poder e a composição da esdrúxula lei do expurgo. Do outro, a população oprimida cuja duas únicas opções são sair da cidade, abandonado o próprio lar por uma noite, ou ficar no local e ganhar uma pequena quantia estipulada pelo governo como participação no evento. Diante da necessidade, evidente que muitos personagens decidem ficar.

    Ao ler ou assistir narrativas distópicas, muitos se perguntam quais estruturas levaram a composição desse universo opressor. Talvez o que poucos percebam é que tais ações acontecem de maneira gradual. O universo antes do expurgo, por exemplo, representa obviamente momento mundial atual. Diante de um momento em que se destaca certa falência democrática, a ascensão de um novo fascismo, e outros direitos cambaleantes, o fio entre ficção e realidade parece se esgarçar, dando-nos a impressão que o futuro pode ser mais tenebroso do que se parece.

    Evidentemente, tais reflexões surgem a partir do filme e não inseridos como fundamento dentro de sua estrutura. A franquia, em geral, é voltada para o suspense. Sob esse aspecto, Gerard McMurray que assume a direção nesta sequência executa boas cenas de ação, dando maior dinamismo para sequências que comparados aos anteriores não funcionavam tão bem. Cenas em plano-sequência se apresentam bem encenadas e em um dos atos finais da trama, o som de um alarme aliado a falhas elétricas estabelecem com qualidade a tensão final.

    Talvez o maior erro do filme seja não se aprofundar por completo em questões levantadas pontualmente, argumentos que sustentariam um interessante filme social sobre a opressão das lei. Mas talvez a franquia como um todo não tivesse essa intenção. Mas se estabelece bem como entretenimento que promove também certa reflexão ainda que pautada em algumas bases narrativas comum ao gênero de suspense.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.

  • Crítica | O Triunfo da Vontade

    Crítica | O Triunfo da Vontade

    Em 1934 Leni Riefentstahl, uma cineasta alemã que acabou dedicando sua carreira e filmografia a registrar os feitos do terceiro reich, tratou de documentar a vitoria do partido nazista de Adolf Hitler. A primeira imagem é justamente da águia com a suástica e o ponto de partida é a festa do partido em 5 de Setembro de 34 em Nuremberg, onde se comemoravam as vitórias do governo tirano-fascista que assolou a Europa e o mundo nas décadas de trinta e quarenta do século XX.

    O filme trata de relembrar a perda da primeira Guerra Mundial 20 anos antes do lançamento deste, e essa nova fase política é chamada pelas cartelas de texto como o renascimento da alma alemã. As primeiras cenas com agentes humanos mostram Adolf Hitler saudado pelo povo, desfilando em um carro oficial, glorificado e adulado pelo povo alemão, que o adotou como chanceler e líder.

    É importante lembrar que esse é um filme propaganda, um dos expoentes da cultura que Joseph Goebbels ajudou a montar como máquina forte do Estado, que transformava manifestações artísticas em meras formas de exaltar o poder e o domínio nazi-fascista e autoritário da ala de poder de Hitler. Perder isso de vista é sinônimo de auto enganação e para contextualizar leitores não cientes do cenário histórico politico, Riefenstahl acabou se tornando um dos principais nomes do cinema alemão justamente por essa vontade de fazer documentários sobre o regime, passando não só pelo louvor a Hitler, mas também nos encontros que o líder austríaco teve com outras lideranças do espectro de extrema direita, como Benito Mussolini e as tropas italianas, no entanto nada impressiona mais que a série de discursos dos politicos nacional socialistas, entre lideranças locais e governadores de lugares ocupados, como a Polônia.

    Os aplausos se intensificam com as falas de Goebbels, que destaca que a força autoritária alemã vem das mortes e tristezas de seu povo, evocando um sentimento nacionalista bem condizente com o discurso demagogo que a pátria deve ter seus anseios acima de qualquer outro ideal, justificando inclusive a segregação e obliteração de oposição ou algo que o valha.  Há um cuidado enorme em evocar um espírito de heroísmo e oportunismo barato, que se vale até do fato de Hitler ser veterano da  Primeira Guerra, ainda que claramente ele não tenha sido um dos que mais sofreu na pele a vitória dos opositores da Alemanha.

    É preciso ter estômago para assistir ao filme, soa tragicômico a relação de falsidade que vem de Hitler para os mais novos com quem fala, em especial a Juventude Hitlerista, assim como a idolatria que esses moços o dedicam, e não seria um absurdo afirmar que nem toda essa reverência seja necessariamente imposta, pois o discurso repleto de preconceitos e lugar comum é fácil de ser aderido pelo jovem sem conhecimento, suscetível ao engodo proveniente desse pensamento segregacionista. Engraçado são as partes escolhidas por Riefenstahl para estampar o discurso, com Adolf falando que aquele era um movimento que não diferenciava castas ou credos, quando a maior perseguição era exatamente em quem não se qualificava como membro da raça ariana, “pura” e “ideal”. O discurso demagogo servia principalmente para os de fora ou as plateias mais adultas, eram parte da tentativa de verniz social que a Alemanha pregava, e o discurso daria certo se tivessem sido eles os vencedores da Segunda Guerra.

    O final do longa metragem acontece em meio a grandes celebrações pós morte de militares e políticos importantes, com Hitler benzendo cada uma das novas bandeiras do exercito, cumprimentando um a um seus conterrâneos. Por mais o objetivo não fosse obviamente este, O Triunfo da Vontade registra uma fragilidade de discurso e estrutura do Reich, mostrando um bocado da hipocrisia alemã enquanto povo e dos oportunistas que tomaram o poder, mostrando bem como pode o sujeito comum se aliar a figuras nefastas basicamente por preconceito, prepotência ou por subestimar o potencial destrutivo de autoridades preconceituosas e castradoras.

    https://www.youtube.com/watch?v=WeZPDmGXtNI

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.