Categoria: Críticas

  • Crítica | Bird Box

    Crítica | Bird Box

    São muitas as assombrações, muitos os demônios correndo soltos entre nós. O diabo mora no pequeno detalhe de que eles são atraentes. Uma pequena olhada em suas faces e é bem possível que nos entreguemos a seu poder de conquista. Mas esses demônios não querem apenas nos conquistar, sua satisfação é nos levar ao limite, à destruição, à autodestruição.

    [Esse texto contém spoilers. Não descrições de cenas e desfechos, mas interpretações da história. Sugestão: tendo chegado até aqui, assistir o filme é retornar a este ponto para o restante da leitura do texto.]

    Apesar de a descrição do filme indicar que se trata de drama, não é um erro de percepção entender que se está assistindo uma história de terror. A humanidade está sendo atacada por uma força incontrolável, que não se consegue explicar e que se espalha extremamente rápido. Ao primeiro, simples e breve contato com essa força, o indivíduo se torna autodestrutivo e comete suicídio logo em seguida.

    O enredo se confunde com a história de Malorie (Sandra Bullock), que, grávida já em estado avançado, se depara com as primeiras “contaminações” próximas a ela justamente quando saía do hospital onde havia ido para mais um exame pré-natal. Ela ainda, mesmo já no final da gravidez, não estava certa se queria ser mãe.

    Quando o contágio começa em sua cidade, se alastra de forma estupidamente rápida. O cenário de caos e destruição é apocalíptico. Não apenas um contingente enorme de pessoas ao seu redor, mas inclusive sua irmã Jessica (Sarah Paulson) que dirigia levando-as de volta do hospital para casa se mata.

    Malorie, caída na rua, tentando fugir do contágio e recém espectadora do suicídio da irmã, acaba se refugiando na casa de um estranho, juntamente com outros seus completos desconhecidos. Naquele refúgio, eles viverão pelos anos seguintes. Ela, que até ali era uma pintora solitária e reclusa, que praticamente não saia de casa (até suas compras de supermercado quem fazia e a levava era sua irmã), há muito não falava com a mãe, passará a viver com diversos estranhos, um dia após o outro, lutando pelo mais básico: sobreviver.

    Não bastasse a profunda metáfora da história, o filme é excelente também pelo nível excepcional de mistura de sentimentos e tensão da história. Suas duas horas passam muito rapidamente, graças a seu enredo muito bem construído. A sequência de fatos, de profundidade das mensagens de cada cena, cada diálogo nos faz ficar vidrados na tela. Embora não seja possível aqui falar sobre o livro que baseia o filme, é relativamente certo que Josh Malerman (autor do livro que deu origem ao filme) entrega uma obra profunda. Também não sendo aqui viável julgar falhas isoladas do livro ou do roteiro do filme, percebe-se que Eric Heisserer (A Chegada) poderia ter feito uma melhor adaptação para tornar a história mais verosímil. Explicações a respeito de disponibilidade de energia elétrica, água e suprimentos gerais ficam um tanto quanto falhas, especialmente se considerarmos os cinco anos em que ocorre a história entre o momento do hospital e o desfecho do filme. Isso não chega, contudo, a comprometê-lo, são detalhes menores diante de todo o resto.

    A direção de Susanne Bier (Serena) coroa atuações fenomenais de todos os atores. Sua condução leva a um nível próximo do perfeito de dramaticidade e explosões de emoções. Bullock encarna Malorie a ponto de quase nos fazer esquecer que se trata apenas de uma atriz interpretando um papel. Os companheiros de morada de sobrevivência de Malorie: Douglas, Tom, Cheryl, Lucy, Olympia, Charlie, Felix e Greg, são trazidos à vida por excelentes atuações de (respectivamente) John Malkovich, Trevante Rhodes, Jacki Weaver, Rosa Salazar, Danielle Macdonald, Lil Rel Howery, Machine Gun Kelly e BD Wong. Destacam-se também as interpretações de Paulson, das crianças Vivien Lyra Blair e Julian Edwards, além de Tom Hollander (Gary) – convincente e importantíssima, por sinal.

    Verdadeira trama filosófica, a história nos faz refletir sobre: o quão atrativas são as promessas de satisfação e prazer ao nosso redor (consumo desenfreado, prazeres momentâneos, drogas, soluções rápidas e fáceis para nossos problemas mais complexos?) e ao mesmo tempo quentou elas nos levam à destruição; pessoas próximas a nós que podem de uma hora para outra se entregar a isso; indivíduos aparentemente frágeis poderemos fortes e resistir a essas tentações e mesmo salvar outros de nelas caírem; pessoas ranzinzas, mal-humoradas, de mal com a vida podem ser importantes em apoiar nessa resistência; existirem pessoas deslumbradas com aquelas promessas, as quais conseguem, contudo, resistir à autodestruição, e também sentirem satisfação em levar outras a sucumbirem; tentar ajudar uma pessoa aparentemente frágil poder ser uma armadilha de um ser ardiloso e vil; a fragilidade da juventude, que se entrega facilmente aos prazeres e à satisfação, acreditando ser imbatível; a existência de comunidades dedicadas a entender a importância de se manter cego a tais promessas e como ler sobre essa cegueira (a alegoria da escola para cegos no final do filme é fenomenal); dentre outras questões nas entrelinhas.

    Como uma linha que costura todas as peças de pena que compõem todo esse tecido, se apresenta a importância da mãe como protetora, guia e educadora de suas crias. Sem perder de vista o risco da super proteção e do exagero (incluindo o potencial de fazer o filho lhe temer e querer se afastar de si), somos colocados diante do fundamental papel da mãe que se mantém cega e cega seus filhos para a contaminação da maldade. Pássaros se agitam com a aproximação do mal, é importante estarem isolados dele (engaiolados?) e voarem em ambiente seguro!

    Texto de autoria de Marcos Pena Júnior.

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  • Crítica | Ed Wood

    Crítica | Ed Wood

    Nenhum cineasta que amou de verdade o cinema pode ser o pior dos piores. Todavia, amor não coloca comida na mesa, e as vezes uma certa dose de talento e precisão são necessários para o coração devotado. Entre todos os Tim Burton’s que já tivemos, em mais de quatro décadas de sua carreira,revisitando-se e reafirmando a cada passo dado sua identidade, o Tim Burton pós Alice no País das Maravilhas virou o que muitos profetizaram quando foi divulgado o primeiro trailer da aventura feita sob medida para a Disney: um lego flexível, precificado e que se encaixa fácil, fácil nas diretrizes de um vasto cinemão americano, cheio de intenções e vícios de linguagem. No jogo de Hollywood, e estamos falando especificamente sobre ele, poucos sabem manter casados os fatores qualitativos e identitários a ponto de sua paixão primordial pelo Cinema se manter intacta por todo o caminho, este longo e penoso como sabemos ser para todos os(as) envolvidos(as).

    Olhando para esta pérola, filmada em um belíssimo e invejável preto e branco que lava o mundo das filmografias americanas de tons prata e grafite de forma quase ímpar, o Burton raiz ainda estava vivo, ou melhor, nascendo, no que pode ser chamado seu melhor filme sob a teimosia alucinante dos fãs em eleger Edward Mãos de Tesoura para este pódio. O cineasta ainda foi zeloso o suficiente, após o enorme sucesso de Batman e Batman: O Retorno, para não sobrepor a estética a essência da história por trás da figura amalucada e naturalmente esquisita do “pior cineasta de todos”, Edward Davis Wood Junior, e que por isso mesmo se tornou inesquecível, tal Tommy Wiseau do infame The Room para as audiências modernas, e homenageado em 2017 em O Artista do Desastre. Ed pode ser visto até hoje, e de forma reiterada, como “o alfa e o ômega do subgênero trash”. Filmes que, de tão ruins, ganham uma legião de fãs justamente por seu apelo ridículo, péssimo gosto em todos os sentidos e humor desproposital e insano.

    Sua trajetória na máquina hollywoodiana de sonhos não foi nada engraçada, porém, com Ed experimentado toda a sorte de pesadelos possíveis para realizar suas ‘obras-primas” na Era de Ouro dos grandes estúdios do passado,mas extremamente (no sentido literal da palavra) massacradas e marginalizadas pela crítica especializada e um público que o desprezava, colocando clássicos trash como Glen e Glenda, A Noiva do Monstro, e o mais famoso e ambicioso de todos, Plano 9 do Espaço Sideral (todos disponíveis no YouTube), abaixo de tudo o que se pode imaginar. Amante do macabro e do desconhecido tal qual o seu velho ídolo, Burton viu nos anos 90 a chance perfeita de edificar a cinebiografia do gênio dos anti-sucessos, devotando para isso toda a sua paixão pelos aspectos que o tornaram tão reconhecido, após ter morrido no mais completo e pesado ostracismo nos anos 50, mas não sem antes encontrar sua maior inspiração, um outro gênio da lâmpada, esse sim reconhecido ainda em vida: Orson Welles, o menino prodígio que aos 26 anos rodou Cidadão Kane e reinventou a roda.

    Ironicamente, temos aqui um filme sobre um dos maiores vira-latas de Hollywood em que Burton e Johnny Depp usam de suas charmosas peculiaridades notórias a fim de recriarem, juntos, com toda a elegância e o dinamismo possíveis, uma época onde sonhos ainda eram possíveis e eram mais fortes que tudo, dialogando sobre a própria vontade de produzir esses sonhos de uma maneira tão sólida e bem resolvida que fica difícil encontrar um candidato à altura, desde 1994, dentro ou fora do cinema americano, que nos faça cair inadvertidamente de amores pelo amor de lutar, contra todo um sistema, para se contar história sobre travestis, policiais ou alienígenas – ou tudo junto, misturado, porque não? Depp, um grande ator quando quer ser, e na época mais ator que celebridade, exala a paixão de Ed Wood pela câmera, pela luz, pela ação que movia seus atores; lendas como Bela Lugosi, o primeiro Drácula, do longínquo ano de 1931.

    Wood apenas queria trabalhar, sob o pecado de ser uma criança perdida numa loja de doces – e como ele amava doces, um mais do que o outro. Wood atuava como cineasta de um tempo mais inocente, que Charles Chaplin ainda era um malandro, Walt Disney ainda lutava para ser o mito que é, e tudo não passava de um exercício caro mas unilateral, sem grandes intenções por trás de nada. Cena após cena, Burton e Depp, no auge de ambos, mostram o lado sombrio, ganancioso e duro de se trabalhar na ilusória Hollywood, pois sabiam, após várias experiências, que nos anos 90 o jogo já era outro, completamente oposto ao mundo de sonhos e diversão de um homem que acreditava em seu coração para guiá-lo com suas lentes em um campo cada vez mais tomado por lobos, e que não aceitam ovelhas sentimentais. Ao recriar uma época, Ed Wood recria com força impressionante o espírito de se fazer filmes, sendo um respiro, uma dose de reflexão, e/ou uma ode para qualquer um que sonha em fazer o mesmo, ou que apenas admira os que tem coragem para tanto.

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  • Crítica | Pendular

    Crítica | Pendular

    Julia Murat é uma diretora de filmes bem tocantes. Historias Que Só Existem Quando Lembradas é conhecido por sua ternura e é nessa espírito que vem a luz Pendular, um longa ficcional focado em um jovem casal que se muda para um grande galpão industrial abandonado. Os personagens, nominados como Ele e Ela são vividos por Rodrigo Bolzan e Raquel Karro e aos poucos, é mostrada a historia de amor e cumplicidade dos dois.

    O tal galpão é dividido por uma linha adesiva laranja, de um lado o homem faz seu ateliê de arte e do a garota usa para praticar seus números de dança. Na prática, o local serve de palco para a vida, pois ali eles liberam seus impulsos primitivos, se exercitam fisicamente jogando uma pelada que faz acontecer os jogos com ambos os sexos, além de haver ali também um sem numero de vezes que eles transam. O lugar transpira humanidade e o primitivismo típico do comportamento humano.

    Ao mesmo tempo em que o roteiro não é verborrágico, ele fala demais. É conceitual na essência da palavra, mas sem soar piegas ou hiper pretensioso. Ser um filme naturalista nos últimos tempos pode soar negativo, dado que o formato é utilizado a exaustão no cinema alternativo brasileiro, mas aqui ele cabe perfeitamente, mesmo que o elenco seja formado por atores mais experimentados

    As cenas de sexo são reais e intimas demais, não são exacerbadamente erotizadas. Murat consegue passar como funciona a transa de idéias e fluídos entre duas pessoas que não são exatamente bem resolvidas, e que fazem de suas próprias existências um experimentalismo puro e simples.

    A duração do filme faz ele perder um pouco de força, são 120 minutos e em alguns momentos se nota uma barriga. Mas apesar disso, Pendular é potente demais ao mostrar a intimidade humana e como funciona a mente do ser humano, normalmente dependendo do outro para ter alguma reciprocidade sentimental, mas ao sendo exatamente necessário para viver ter alguém do lado, além de mostrar os recônditos da alma humana de modo muito visceral e orgásmico.

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  • Crítica | Roma (2)

    Crítica | Roma (2)

    Roma, novo filme de Alfonso Cuaron foi cercado de polêmicas  desde sua concepção, alguma delas bem vazias, como ser uma produção da Netflix (como se isso fosse um pecado mortal) e outras um pouco mais relevantes, especialmente as que tocam as questões classistas que o roteiro abrange. De qualquer forma, essas tais questões não impediram o filme de ser premiado no Festival de Veneza, sagrando-se lá vencedor do principal prêmio. No Rio de Janeiro e em São Paulo a empresa de streaming promoveu sessões em cinemas, e de fato a experiência em ver um produto tão grandioso e pensado do jeito que foi é muito melhor apreciado em tela grande, onde o ambiente e tamanho do ecrã faz toda a diferença.

    Esse talvez seja o filme mais artesanal e pessoal de Cuaron dos últimos anos, sendo bastante personalista, uma vez que ele faz não só roteiro e direção, mas também montagem e fotografia. Durante os créditos iniciais em que a água invade o chão da garagem do principal cenário do filme, a casa de uma família de classe média mexicana que é cuidada por Cleodaguiria Gutierrez  (Yalitza Aparicio), mas que quase sempre é chamada de Cleo. Curiosamente, ela é a única entre as personagens principais que tem sua nomeação completa proferida, basicamente porque é ela a personagem mais humanizada e mais suscetível a toda sorte de infortúnios, como membra da classe trabalhadora e nada abastada.

    Cuaron demora a colocar falas dentro do seu filme, primeiro ele ambienta o espectador na casa, indo e voltando com sua câmera pelos cômodos que Cleo arruma e cuida, estabelecendo um belo cenário e paisagem interna. A escolha por fazer o filme sem cores poderia soar errada mas aqui funciona até dramaticamente, uma vez que as aflições da personagem principal parecem pela ausência do artifício que normalmente evoca alegria. Sem cores, é mais fácil estabelecer a angústia como status quo.

    Cleo não é uma moça que já aparece sofrendo, ao contrário, ela tem sua rotina, envolvendo as crianças que cuida, e para cada uma delas há uma afeição diferente, o mesmo se diz sobre o cachorro da família e a idosa que lá mora. As únicas pessoas dentro da casa que não são  exatamente próximas dela são os patrões, as pessoas que a empregam, o casal Antonio  (Fernando Grediaga) e Sofia (Marina de Tavira) que claramente estão em crise, ainda que esse plot demore um pouco para ser explorado, pois o foco narrativo é na vivência da moça que os serve.

    Boa parte das cenas silenciosas se passam na garagem, a mesma que está no começo e a mesma onde Borras o cachorro vive e faz suas necessidades. É ali que se estabelece talvez a maior mostra da diferente entre classes dos núcleos de Cleo e Sofia/Antonio, pois o homem vive reclamando das fezes do animal, que geralmente não são limpas e sujam os pneus de seu carro já velho, uma máquina potente, mas claramente pequena demais para aquela garagem, assim como é o ego do personagem, grande demais para ser dividido com uma família que tem esposa, avó e quatro filhos infantes.

    No entanto, esse não é um filme sobre Antonio, e sim sobre Cleo e logo a rotina da moça é retomada, com ela descobrindo tardiamente sua sexualidade, se envolvendo com o primo de um conhecido, que mais tarde, a abandona quando ela mais precisa. De certa forma, a maldição que paira sobre a sua patroa também paira sobre si e esse é um dos poucos momentos em que a jornada de ambas se encontra e coincide episodicamente.

    A reação de Cleo é uma, de receio em ser despedida por ter engravidado, enquanto Sofia se torna amargurada, insensível a maioria dos eventos de seus filhos e anestesiada emocionalmente de uma forma que até aparenta cinismo. A grande exceção a essa regra é a boa recepção que ela dá a sua criada, quando ela assume que está esperando um bebê. Ela tenta auxiliar Cleo, fazer todo o processo de pré natal, não deixando ela desamparada e visto que o filme se passa entre 1970-71, isso é até um grande avanço, visto que boa parte das empregadas domésticas só tem direitos de fato de alguns anos para cá, e a realidade mundial é essa. No entanto, o texto de Cuaron não aplaca nada, há uma situação hierárquica posta e jamais transposta, quando pode, Sofia humilha a mulher que em alguns momentos chama de sua família. Por mais que a solidariedade seja grande, não há uma relação de igualdade ali, tampouco de conciliação e quem enxerga isso prestou pouca ou nenhuma atenção nessa relação em particular.

    A rotina da família é muito bem exemplificada, sobretudo no que toca as viagens, sejam as de festas de fim de ano, ou simplesmente de férias, onde levam Cleo para ou servi-los ou para que ela também descanse. Na primeira viagem que fazem, há uma demonstração cabal da diferenças entre Sofia e Cleo, enquanto Sofia fica com os parentes bêbados, dentro da casa repleto de cães vivos e de cabeças empalhadas dos cachorros que serviram o sítio, enquanto a protagonista visita os subúrbios, onde os empregados se embriagam com bebidas baratas e copos sem luxo, nos arredores dos grandes locais. A união entre esses dois micro universos só acontece quando o fogo toma a mata, pois o incêndio claramente não descrimina raça, credo ou classe social.

    As curvas finais do longa ganham muita emoção, em eventos que deveriam ser usuais mas que são cortados pela entropia. Após perceber que o sujeito que a engravidou não arcaria com a responsabilidade paternal, Cleo vai a uma loja comprar um berço para o  seu bebê, e nas ruas estoura uma briga, entre revolucionários e contra revolucionários. Dentro da loja de varejo ela se depara com uma inesperada surpresa, que aparentemente colabora para que sua bolsa rompa e ela entre em trabalho de parto.

    Já no hospital toda a sequência pela sobrevivência da criança passa a ser pesada. A forma como Cuaron mostra a frieza dos médicos diante do parto e a interação entre Cleo e sua recém nascida filha varia entre a impotência e a depressão aguda. As sensações dos personagens são facilmente passadas ao espectador, a falta de poder de reação dos personagens é acompanhada normalmente por lágrimas e soluços de quem assiste e essa sensação prevista no ambiente do cinema certamente não tem igual situação a ver de maneira individual em um domicilio individual.

    Apesar de haver uma naturalização de boa parte dos eventos cotidianos, como as brigas da família, os destratos muito comuns entre patrões e empregados, a bandinha militar que passa pela rua sempre naquele período de fim de ano, há sempre uma sensação de incômodo, não só por parte de Cleo, mas também de toda a família. Nem mesmo as crianças parecem sentir-se pertencendo aquele lugar ou situação. Obviamente que é é a mepregada que mais sente isso, afinal seu trauma e abandono são mais recentes que os de Sofia e as crianças. Sua mudez não é só fruto do evento traumático que sofreu, mas também uma manifestação em forma de voto de silêncio pelo segredo que guarda. Claramente queria ela sentir a mesma anestesia que Sofia, mas não consegue, e em um momento de catarse, no final quando estão na praia e ela se supera para salvar as crianças, finalmente ela e Sofia desabam juntas, uma por alivio de finalmente conseguir verbalizar o desejo que tinha e outra por alivio e agradecimento por não ter tido ainda mais perdas naquele momento.

    Roma registra emocionalmente como é a trajetória da classe operária, resultando em uma série de relações fracassadas repletas de altos e baixos sentimentais, onde mesmo após heroísmos, ainda se joga o mesmo jogo de sobrevivência estabelecido no capitalismo, onde os privilégios passam por cima inclusive dos laços afetivos. Cuaron é certeiro em seu comentário social e na exposição visceral dos relacionamentos, sem aplacar nenhuma relação de poder escusa e sem livrar os personagens proletários da luta diária que é a sobrevivência em uma zona urbana da América Latina, mostrando que mesmo após uma gravidez cujo fim foi terrível, não há como resguardar a mãe que acabou de sofrer tudo aquilo, obrigando-o a cuidar de todas as outras crianças da casa e subir escadas que não deveriam ser escaladas nessa condição, sendo essa só uma das pequenas mostras que o filme dá do quão cheia de agruras é vida da moça.

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  • Crítica | Legítimo Rei

    Crítica | Legítimo Rei

    Quem não recorda de Coração valente (filme de 1995 dirigido e estrelado por Mel Gibson)? Um épico e excelente longa com suas quase três horas, que conta a história verídica do revoltoso escocês William Wallace. Líder popular que liderou um pequeno exército de resistência ao jugo inglês.

    Para quem gostou do filme, há um outro mais recente que é imperdível: Legítimo Rei (Outlaw King). Lançado esse ano, o filme dirigido por David Mackenzie apresenta a história de Robert the Bruce – o oitavo do seu nome (Chris Pine), filho do também chamado Robert the Bruce – o sétimo do seu nome (James Cosmo), Rei de uma Escócia subjugada pela Inglaterra em finais do século XIII e início do XIV. Foi justamente a sanha de domínio de todas as terras britânicas por parte do Rei Edward I (Stephen Dillane), da Inglaterra, que despertou a resistência revoltosa de William Wallace e seus seguidores.

    Depois que o exército do Rei Edward I conseguiu capturar, executar e esquartejar o corpo de Wallace (ponto exato da história onde termina o filme de Gibson), começa a exibir partes de seu corpo pela Escócia. Aproximadamente no mesmo período Robert the Bruce – o pai (o VII) falece. Revoltada com o que o Rei Edward I faz com Wallace, parte da população escocesa, liderada por Robert the Bruce – o filho (o VIII), decide iniciar nova resistência ao Rei inglês. Sem adentrar em muitos detalhes para não gerar informação prévia (spoiler) sobre o filme, importa dizer que ele sofre derrotas, grandes perdas e desterro. Passa anos fugindo até se organizar e retornar para sua terra para lutar contra o Rei inglês (nesse momento já não mais Edward I, falecido, mas seu sucessor Edward II).

    O ponto baixo do filme é a aceleração da trama para ficar dentro do padrão comercial, duas horas de duração. Fosse produzido com mais ousadia, e com trama desenvolvida mais em consonância com o espaçamento temporal da história real, a película alcançaria o nível das inesquecíveis como alcançou a de Gibson.

    Legítimo Rei é uma bela produção. Locações fenomenais (a Escócia tem paisagens naturais deslumbrantes), figurinos e ambientações mais qua adequados e convincentes; fotografia que transmite a sensação de estarmos dentro da época e das cenas, com destacado papel na composição das emoções. Talvez uma pequena falta seja a trilha sonora, praticamente inexistente.

    Como destaque final ficam as atuações de Pine e Dillane. Se a direção de Mackenzie (A Qualquer Custo) não chega a ser um primor, ao menos não compromete a qualidade do filme. A história de Robert the Bruce (o VIII) é fenomenal e cativante. Não há dúvidas de que merecia uma película dedicada a ela; poderia ser um pouco melhor, contudo. Importante saber que Robert the Bruce VIII é ascendente de James I da Inglaterra (reinou os dois países, unificado-os), da casa de Stuart, e que permanece como linhagem direta da atual família real britânica.

    Texto de autoria de Marcos Pena Júnior.

    https://www.youtube.com/watch?v=V6Msl1HFJv0

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  • Crítica | Under the Silver Lake

    Crítica | Under the Silver Lake

    Um dos retornos mais aguardados de 2018, Under the Silver Lake é o novo longa do diretor David Robert Mitchell, o cara que fez muita gente ficar de olho em seu trabalho depois de estrear Corrente do Mal (It Follows), um clássico do horror contemporâneo e um dos percursores da controvérsia teoria do pós-terror. Nesse seu novo trabalho, ele ainda bebe da fonte do horror, mas constrói uma narrativa surrealista cheia de comédia de humor negro.

    Sam (Andrew Garfield) é um jovem desempregado que está prestes a ser despejado de seu apartamento e passa o dia olhando a vida dos vizinhos pela sua sacada. Ele conhece a bela Sarah (Riley Keough) na piscina do prédio e consegue passar uma noite com ela, porém, no dia seguinte Sarah e suas coisas desaparecem e o rapaz entra numa jornada alucinante pela cultura pop de Los Angeles para descobrir o que aconteceu com a garota.

    O cineasta a princípio parece querer misturar muitas histórias em uma só, porque a sinopse que você leu no parágrafo anterior é apenas uma pequena parcela de tudo que acontece no longa. O personagem de Garfield vai se apropriando de novas narrativas a cada sequência do filme, em meio a lendas urbanas, festas estranhas, cultura pop americana e perseguições, ele vai se mostrando um retrato muito verdadeiro do jovem millenium.

    A impulsividade, aleatoriedade e os efeitos de se enfiar de cabeça em novas informações a todo momento que são tão presentes em tempos como o nosso é o principal acerto da produção. O protagonista e o restante do elenco se enquadram bem em performances surrealistas, assim como o design de produção que é muito afinado, entregando momentos muito bem compostos pela inventiva fotografia.

    Mas mesmo que os movimentos de câmera do filme façam de tudo para entregar algum ritmo, é ele o principal erro do longa. São mais de duas horas que mesmo com as constantes novidades narrativas, não se sustentam com o espectador, pois apesar dos contextos, algumas personagens e cenas soam gratuitas demais e próximo do final são até anticlimáticas. De fato, os olhos ainda devem estar atentos no trabalho do diretor por conta da sua originalidade e de seus referenciais, mas aqui o efeito não é tão bom quanto há 4 anos atrás.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

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  • Crítica | O Paciente: O Caso Tancredo Neves

    Crítica | O Paciente: O Caso Tancredo Neves

    Sergio Rezende é um diretor que em sua filmografia fez questão de fazer muitas menções ao cenário político brasileiro, normalmente levando Paulo Betti a tira colo, para ou protagonizar ou ao menos estrelar como coadjuvante seus filmes. Ao longo dos anos fez Lamarca (94), Guerra de Canudos (97), Mauá – O Imperador e o Rei (99), Zuzu Angel (06) e o recente Em Nome da Lei onde ele beatifica a figura de Sergio Moro, sem cita-lo evidentemente. Em comum, nessas cine biografias há a tentativa de evocar heroísmos, ainda que se juntar todos esses personagens, claramente não haja uma linha ideológica única que os guie. Quando recaiu sobre si a responsabilidade de fazer um filme sobre Tancredo Neves, obviamente que houve uma preocupação por parte de crítica e público.

    Mais até do que Rezende, em O Paciente – O Caso Tancredo Neves a figura mais exigida certamente é Othon Bastos, que faz o político que deveria subir ao poder após tantos anos de Regime Militar. Ao menos na construção da atmosfera e retorno a época de posse de Tancredo há um belo acerto do diretor, pois a Brasília daqui parece mesmo a da segunda metade dos anos oitenta.

    Tanto na luta por um regime democrático quanto na teimosia de não querer se tratar, o personagem de Tancredo soa  bastante fiel ao personagem histórico. Bastos acerta demais no tom, embora o elenco que o cerque como família não seja tão brilhante, sobretudo Lucas Drummond, que faz seu auxiliar, um jovem sobrinho que ao menos na construção do roteiro, ainda parecia ter alguma vida política viva. Seu Aécio Neves é um sujeito voluntarioso, indignado com o que fazem ao seu avô e desnecessariamente  falante, parece estar ali por motivos propagandista, ainda que fosse tarde demais para o (atual) senador mineiro, que nas eleições de 2018 foi eleito deputado federal e  com não muitos votos, graças a figura de paladino que foi desconstruída após os escândalos da Lava Jato.

    As conversas sobre os bastidores do planalto são muito boas, e apesar de muitos personagens conhecidos da política brasileira só tenham aparições em arquivos de vídeo como José Sarney, Ulysses Guimarães etc, há uma boa base para o entendimento de como a saúde de Tancredo era algo importante para manter o país nos trilhos democráticos e nesse ponto, todo o mérito é da atuação de Bastos.

    Há um gasto de tempo enorme no registros da briga da junta médica para decidir qual ação deveria ser tomada ou qual erro foi mais crasso para o agravamento da saúde do homem público e isso narrativamente acrescenta pouco a historia, o máximo que contribui é na construção de  thriller que o filme precisa.

    Apesar de mais uma vez Rezende incorrer em uma propaganda ideológica – dessa vez atrasada ao invés de adiantada como foi com Moro – O Paciente é um filme tenso, que mantém um suspense em aberto especialmente para o espectador que não sabe qual foi o destino final de Tancredo Neves, para plateias estrangeiras e desavisadas claramente há um mistério histórico ali muito bem construído e para quem obviamente conhece minimamente a historia do Brasil, é um prato cheio de boas referencias, em especial pelo desempenho de Bastos, que engole todo o resto do elenco, mesmo quando seu personagem está desacordado.

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  • Crítica | Homem-Aranha no Aranhaverso

    Crítica | Homem-Aranha no Aranhaverso

    Desde que fez Homem-Aranha 2, de Sam Raimi, a Sony parece tatear quanto a conduzir bem um filme sobre o herói da Marvel que lhe cabe. Homem Aranha 3 foi muito achincalhado, O Espetacular Homem-Aranha e sua sequência, O Espetacular Homem Aranha 2 : A Ameaça de Electro, não tiveram vida fácil, Venom foi um fracasso de critica e até Homem-Aranha: De Volta ao Lar não é uma unanimidade, mesmo entre os fãs. Por conta disso, a nova animação era cercada de expectativas, e a maior parte delas foram correspondidas.

    Homem-Aranha no Aranhaverso começa narrado por Peter Parker, o herói aracnídeo original, que goza de grande popularidade nesta versão e que conversa diretamente com as fases Ultimate do herói, escritas por Brian Michael Bendis e desenhadas por Mark Bagley. Outra característica própria e que cria uma boa conexão do filme com o espectador é a narração engraçadinha, que flerta com uma camada fina de metalinguagem, quase quebrando a quarta parede. Parker é dublado por Chris Pine, e sua personificação é bem semelhante ao auge que o herói teve após o casamento com Mary Jane.

    A animação causa um certo estranhamento, em especial quando Miles Morales (Shameik Moore) é introduzido. A velocidade dos quadros soa esquisita por conta da pigmentação da pele dos personagens, quando eles usam máscara isso não parece tão evidente, mas aos poucos isso passa a ser algo comum. O roteiro de Phil Lord e Rodney Rothman trata muito bem de Morales e é fácil entender o deslocamento dele na nova escola, que ele julga elitista – e de fato é, ainda mais para um garoto negro e latino como ele – bem como no seu cotidiano, uma vez que ele tem o desejo de manifestar sua arte do grafite de alguma forma, mas é sempre proibido por seu pai, Jefferson Davis (Brian Tyree Henry). Ele encontra eco na figura do tio Aaron (Mahershala Ali), e divide com ele o mesmo hobby pela arte.

    É aí que mora o diferencial do  filme de Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rothman, ele obviamente alude as crianças, mas traz tramas complexas. Mesmo o Peter Parker desse dimensão, forte, famoso e loiro (em uma alusão clara ao clone Ben Reilly) tem seus defeitos, e quando este sai de cena, deixa pontas soltas, seja pelo fracasso de não ter detido o vilão Rei Do Crime (Liev Schreiber) ou por não ter sido o exemplar mentor de Miles. O choque dimensional traz à tona outras versões do amigão da vizinhança,  e é nesse crossover que habita boa parte do carisma, principalmente com a figura de Peter B. Parker, de Jake Johnson.

    Apesar de algumas divergências criativas e pessoais, fato é que os dois criadores do Homem-Aranha, Steve Ditko e Stan Lee tinham em mente que seu personagem deveria inspirar o público, mostrando que qualquer pessoa pode ser heroica mesmo com todos os percalços mundanos e cotidianos, e nesse ponto, o filme talvez seja o produto em áudio visual mais acertado, incluindo aí até o Homem-Aranha de Sam Raimi. Tanto Morales, quanto B. Parker e até a jovem Gwen (Hailee Steinfield),  transpiram isso, obviamente com a sardinha puxada para o lado do jovem negro e latino,que está em fase de amadurecimento e numa jornada rumo ao conhecimento do que é ser um herói e de como lidar com o clichê de com grandes poderes vem grandes responsabilidades. Destaque também para o engraçado Homem-Aranha Noir, feito por Nicolas Cage, um personagem sério mas com ótimas piadas, e mais uma participação do ator em adaptação de quadrinhos.

    O humor do filme é muito presente, Miles é engraçado e seu mal jeito e timidez dão a ele um charme exótico, variando entre as descobertas típicas da adolescência bem como o alvorecer do heroísmo. Há também um largo uso de onomatopeias e balões típicos dos quadrinhos, que reverberam as falas e pensamentos dos personagens. O grupo de personagens, tanto vilanescos quanto de benfeitores é grande, diverso e ambos os lados desafiam Morales, para finalmente entender qual é a sua vocação.

    Qualquer uma das contra-partes do Aranha tem algo em comum, que é a perda de um ente querido, que serviu como manifestação física da perda e esse luto, seja recente ou não é bem explorado, unindo assim os personagens tão diferentes, que trabalham bem em equipe graças a um inconsciente coletivo muito forte, que pode ou não ter a ver claro com o sentido de aranha que a maioria deles tem. O filme tem um ritmo frenético e mal parece que tem pouco menos de duas horas, mas o maior acerto de Homem Aranha no Aranhaverso certamente é o fato de que ele é carregado de alma e sentimento, com expressões que funcionam bem com todas as referencias que Lee e Ditko pensaram para seu personagem mais humano, servindo como reverência ao primeiro desses que faleceu recentemente e com uma carga emotiva muito forte, sem medo de parecer um produto de super herói, super colorido e cheio de escapismos, como os bons momentos da Era de Prata dos quadrinhos.

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  • Crítica | O Diretor e o Jedi

    Crítica | O Diretor e o Jedi

    O começo do documentário em longa metragem de Anthony Wonke se dá em meio a um discurso de Rian Johnson, de que ele conduziria o episódio 8 da franquia, o famigerado Os Últimos Jedi, filme esse que foi muito criticado por boa parte da fanbase. O Diretor e o Jedi brinca inicialmente com toda a expectativa prévia ao filme, mas não demora a mostrar os bastidores, do diretor e roteirista discutindo e ensaiando as cenas com Daisy Ridley e Mark Hammil, na intimidade de seu lar, junto ao produtor Ram Bergman.

    Desde o início se percebe que esse não seria um documentário em making off ao estilo dos featurettes encomendados pelos estúdios e que passam no Youtube e passavam antes nos canais como MTV ou TNT, há realmente uma preocupação em investigar a origem das idéias e o modo como Johnson tentou orquestrar desde as cenas com maquetes, até as de CGI ou as que tem atores dentro de roupas que emulam alienígenas.

    Para sanar a dúvida dos fãs  da franquia, que não acreditavam que Johnson realmente tinha liberdade para escrever o que bem entendesse, há uma cena que discute o momento imediatamente posterior ao final de O Despertar Da Força, com Luke recebendo seu sabre clássico, jogando-o de lado. Após explicar as razões para Hammil do porque ele faz isso, há cena imediatamente após isso, em que o interprete de Luke deixa claro o seu descontentamento com o rumo da historia assim como a divergência com aqueles fatos. Esse discordar foi aberta a imprensa e as redes sociais do ator e o fato de Wonke abordar isso em seu filme é algo realmente corajoso e ousado, uma vez que o filme analisado passou por um processo polêmico de analise da crítica e publico.

    O filme não se limita a mostrar as cenas in loco em Skelling Michael, a ilha na costa da Irlanda que serviu de cenário para o isolamento de Skywalker, ou as cenas de treinamento com sabre de Daisy, mas também mostra  o uso dos animatronicos de escala grande, além de não necessitar das narrações mega enfadonhas que geralmente ocorriam nos extras e materiais especiais da trilogia prequel e clássica. Há uma leve influencia de Império dos Sonhos, filme de Kevin Burns que falava a respeito de Star Wars, Império Contra Ataca e Retorno de Jedi além do fenômeno da saga como um todo, mas a inspiração é muito mais no espírito do que no formato, há a ideia sim de mostrar que um cinema lendário estava ali sendo registrado, mas não há necessidade dourar a pílula, tampouco fingir que não houveram tensões ao construir uma obra envolvendo tanto ego, vaidade, dinheiro e paixão de fãs.

    O reencontro de Mark Hammil com Frank Oz é bem legal, e claramente ambos se emocionaram ao se reencontrarem depois de tanto tempo. Outro momento que também consterna o publico são as partes que mostram Carrie Fisher, e o diretor acerta muito ao não tentar criar um clima solene com o fato dela não poder mais participar da franquia.

    O Diretor e o Jedi investiga a gênese não só da direção de Johnson, mas também os primórdios de seu roteiro e as idéias que o fizeram chegar a esse ponto da história, massificando a ousadia do diretor que resolveu não seguir cartilha nenhuma ao construir sua historia, avançando sobre a mitologia de Guerra Nas Estrelas sem receio de incomodar fãs, e o fato de não condescendente nem com filme nem com o artista faz com que o trabalho documental soe bastante digno e honesto em seus esforços.

    https://www.youtube.com/watch?v=MQ-5YoytZDc

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  • Crítica | Bumblebee

    Crítica | Bumblebee

    Bumblebee tem surpreendido em suas primeiras exibições com elogios da crítica e público que afirmam se tratar de um filme divertido, com bom ritmo e despretensioso, ao contrário de toda a franquia Transformers, de Michael Bay. Além disso, o longa ainda resgata a simplicidade dos primeiros desenhos, baseados nos brinquedos da Hasbro, que faziam a alegria da criançada nos anos oitenta. O filme de Travis Knight consegue estabelecer uma conexão com seu espectador que não se via desde o primeiro filme da franquia, e em muitos pontos ele o supera.

    O começo do longa mostra a guerra em Cibertron, com os Autobots servindo como resistência aos Decepticons, os mesmos vilões de sempre, que nessa versão canibalizam o planeta, de certa forma. Não há um mergulho nessa trama, e isso é ótimo, pois pode investir emoção em outros momentos. É estabelecido que B-127 (dublado por Dylan O’Brien), um robô de aspecto semelhante a uma abelha iria até a Terra e permaneceria incógnito até os outros heróis se juntarem a ele. Ao chegar ao planeta, ele se depara com alguns militares humanos, entre ele o Agente Burns (John Cena, que estás surpreendentemente bem no filme), além de enfrentar um decepticon que o perseguiu. Nessa luta, é respondido um detalhe importante da biografia do personagem.

    Nesse epílogo já se nota uma bela diferença em relação a impessoalidade dos outros filmes, há perdas humanas, se vê quem morre, e esse é um belo acerto do roteiro de Christina Hodson. Mas esse quadro evolui quando é introduzida a personagem Charlie Watson (Hailee Steinfeld), uma adolescente impopular, e que tem ainda de lidar com a perda de seu pai.

    A menina possui um interesse em mecânica automotiva, já que é algo que a aproxima da memória de seu velho pai. Com o tempo, ela decide comprar um fusca encostado no ferro velho, sem saber que se tratava de B-127. A forma como os dois personagens começam a interagir é muito terna e bem construída, o robô que ganharia dela a alcunha de Bumblebee está traumatizado, não consegue falar e nem entrar em modo de combate, e ela trata o alienígena como um novo amigo, jogando no nessa relação uma carga emocional de compensação pela perda que teve. Toda essa dramaticidade é muito bem explorada, não há grandes exageros melodramáticos, ao contrário, tudo é bem construído, mesmo os típicos percalços soam bem escritos e executados.

    O fator que mais pesa a favor do spin off/prequel em comparação aos outros capítulos da franquia é a questão das personalidades, o filme bem como os personagens são carregados de sentimentos, e possuem alma ao contrário do restante da cine saga. Steinfeld consegue trazer um carisma aos personagens humanos que não se via em Shia Labeouf, por exemplo, muito menos em Mark Wahlberg apesar de ambos serem atores com bons momentos no cinema. A menina que já havia surpreendido em Quase 18 prossegue fazendo um bom papel aqui, e seus problemas sérios de aceitação conversam com os de Bumblebee e fazem sentido exatamente por se tratar de dois personagens flagelados e à margem. Além disso, o fato de durar menos de duas horas e ter um bom ritmo favorece demais ao longa na comparação com os longas de Bay, se isso não fosse o bastante, o fato dele pouco se levar a sério colabora ainda mais para o filme – o modo com alguns humanos são desintegrados, como gosma transparente é engraçado e tira o peso do acontecimento.

    Os personagens humanos periféricos tem cada um seu momento de desenvolvimento e vestir a máscara do protagonismo, mas nada exagerado. O design dos autobots é mais quadrado, remetendo a um fator nostálgico e funcional, pois o design ultra futurista tornava os Transformers em guerreiros super poderosos meio genéricos e artificiais demais e a graça do anime e cartoon era que eles parecessem brinquedos – afinal, é uma cinessérie da Hasbro.

    Apesar de claramente haver um declínio na historia quando deixa de lado os homens e mulheres de Brighton Falls para focar no núcleo militar, o final consegue acertar essas duas questões em uma amálgama com cenas de ação bem divertidas e uma luta emocionante, além de também mostrar didaticamente o quão boba era a mentalidade paranoica da Guerra Fria, e o quanto os Estados Unidos podia agir de maneira irracional diante da possibilidade de ter vantagens em um conflito. Bumblebee é carismático, divertido e certeiro, simples em sua fórmula e emocional quando necessário.

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  • Crítica | Liga da Justiça: Trono de Atlantis

    Crítica | Liga da Justiça: Trono de Atlantis

    Adaptando uma das fases dos Novos 52, Liga da Justiça Trono de Atlantis é uma animação de 2015, de Esthan Spaulding que mira nos arcos e reformulações mais recentes do Aquaman, mas que não tem coragem o suficiente para ser uma animação solo do herói aquático. O começo apela para o triangulo amoroso entre Diana Prince, Superman e Lois Lane e só depois mostra Arthur Curry como personagem principal.

    O traço característico da animação faz ele se assemelhar demais as fitas recentes de Jay Oliva e em comum com Guerra, Batman vs Robin e outros filmes do animador, há também o roteiro raso e simplista, que reúne os elementos das historias em quadrinhos recentes de uma maneira tão corrida que nãos e valoriza sequer os pontos bons delas. Há muita pressa em resolver os conflitos  em mostrar a ação acontecendo, fato que faz com que a apreciação do filme feito direto para o mercado de home vídeo não passe de uma experiência genérica e pouco audaciosa.

    Arthur Curry é dublado por Matt Lanter, o mesmo que fez a voz de Anakin Skywalker em toda a série Clone Wars de Dave Filoni, mas o serviço que presta é tão mal utilizado que quase não faz diferença a longa experiência do ator de vozes. Mera é feita por Sumalee Montano, mas também bão tem destaque o suficiente, e há outra curiosidade, Andrea Romano faz a senhora de Atlantis, e seu papel é tão clichê que também faz perguntar porque a principal responsável pelas escolhas das vozes dos seriados e filmes animados da DC se permitiria fazer um papel como esse, ainda mais um que tem interferência direta na trama.

    Ao final da apreciação do longa animado a sensação é de que os produtores não entenderam direito o ram de Geoff Johns, Paul Pelletier e Ivan Reis, pois pegaram somente as partes onde a ação impera e diluíram toda a complexidade dos quadrinhos, a tradução entre mídias não funcionou. O roteiro de Heath Corson se apega  somente as brigas e não dá profundidade aos dramas vividos e sua cena pós crédito também é risível, mostrando o encontro de vilões e mais um gancho para outras animações, mostrando que todo o drama ali estabelecido não seria nada além de uma preparação para outros filmes.

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  • Crítica | Os Garotos Selvagens

    Crítica | Os Garotos Selvagens

    Vencedor do Grande Prêmio da Semana da Crítica no Festival de Veneza e eleito como o melhor filme do ano pela revista francesa Cahiers du Cinéma, Os Garotos Selvagens é o primeiro longa-metragem de Bertrand Mandico, conhecido por curtas e médias de cunho experimental.

    Passado no início do século XX, o longa acompanha cinco jovens rapazes de famílias ricas que acabam cometendo um crime bárbaro. Na expectativa de mudarem o comportamento agressivo dos filhos, as famílias confiam os jovens ao misterioso Capitão, que promete transformar todos eles em seres dóceis e antiviolência em uma viagem em alto-mar.

    Lembrando de forma honrosa Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, Os Garotos Selvagens é um dos filmes mais originais do ano, assim como também traz temáticas e símbolos extremamente pertinentes para a atualidade. A passos tímidos, essas temáticas vão surgindo na narrativa de maneira que a primeira parte do longa flutue na percepção do espectador como uma incógnita, o visual entre espectros do fantástico e do sinistro sustenta bem o filme, ainda mais com sua montagem sugestiva ao experimental.

    Quando o grupo de rapazes chega ao destino da viagem e inicia-se a segunda parte desta história, fica mais claro do que se trata a obra de Mandico. É delicado discursar sobre este segundo momento do longa, até exaltar o elenco se torna perigoso, e para não interferir em futuras experiências pode-se dizer que de fato é um trabalho de atuação minucioso e bastante interessante.

    O filme percorre os campos temáticos da masculinidade, da violência, das crenças, e principalmente, da sexualidade e o que vem dela ou através dela. Com uma direção de arte inspirada nesses caminhos, é um deleite se perder entre espaços estranhos e simbólicos, além da fotografia que se utiliza na maioria do tempo do preto e branco, reforçando talvez o quanto assuntos são mais antigos e enraizados do que imaginamos.

    Em um apuro estético irretocável e com discurso afiado, mas prejudicado pelo final expositivo e até certo ponto anticlimático, Bertrand Mandico estreia entregando uma fábula atrativa e incômoda. Que tenha nossa atenção.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Crítica | A Casa do Medo: Incidente em Ghostland

    Crítica | A Casa do Medo: Incidente em Ghostland

    – O que sua história era pra ser?

    – Assustadora.

    Não é legal quando, em três minutos (literalmente) de filme, o mesmo já pede desculpas pra gente através de um diálogo? Ele não vai assustar, no máximo chocar se isso ainda for possível em 2018, com vídeos de discussão política bem mais aterrorizantes no YouTube do que uma jovem possuída vomitando num padre. A ficção quase não encontra chances mais para ser pior que a realidade, mas A Casa do Medo: Incidente em Ghostland ignora isso e tenta nos fazer roer as unhas de qualquer jeito na ponta da poltrona igual O Massacre da Serra Elétrica fez com sucesso com espectadores ainda não acostumados a verem de tudo, arrepiando-os até depois da sessão, relembrando momentos aqui sequer alcançados senão brevemente por jumpscares baratos a todo momento, uma câmera escura e confusa preservando o terror gráfico que está à espreita, e uma construção cênica que busca o êxito que James Wan conseguiu, junto a plateias modernas, com a casa onde tudo acontece de A Invocação do Mal.

    Não se engane, o começo aqui é bacana e renderia um curta-metragem (ou mesmo um longa nas mãos certas) de primeira linha: Mãe e duas filhas herdam um sobrado e se mudam pra lá, pra uma casa macabra visando a felicidade (?), e na estrada já presenciam um caminhão de sorvete com pessoas encapuzadas acenando, de dentro. Sem motivos para se alarmar, elas chegam na casa e logo são atacadas antes de desempacotar os travesseiros. Sobrevivem no modo girl power, atacando os algozes demoníacos feito animais que não aceitam o abate, só que o ataque deixa traumas irreparáveis na vida das sobreviventes, sempre com seus psicológicos abalados, até o passado chamá-las de volta para o inferno que conseguiram escapar.

    O diretor Pascal Laugier já havia mostrado no bom Martyrs, merecido sucesso de 2008, ser o típico cineasta doente que filma o lado brutal dos seres-humanos até nos fazer duvidar se ainda podem ser chamados disso, dado seus atos de perversão e luta em tela, e aqui isso não fica muito diferente.E é ai que Laugier se sabota. Mesmo com suas boas ideias, e influências modernas, o diretor é do tipo gráfico que expõe para depois explicar; que joga na tela ao invés de construir uma tensão que vá além do decente. De pesadelo em pesadelo, as irmãs Beth e Vera percebem que serão sempre aquelas meninas atormentadas no cativeiro, nadando eternamente no medo primordial onipotente que banha suas vidas adultas, desde que foram salvas por sua mãe do abate já referido.

    Quando aposta no lado emocional e não apenas assustador, Ghostland se sai muito bem e foge da banalidade que facilmente poderia cair, estreitando os laços familiares de sobreviventes que, sabemos, cedo ou tarde irão voltar para o que tirou a normalidade das suas vidas hoje atormentadas. O filme além de tudo reforça nossa relação com o poder do som no Cinema, nos fazendo lembrar que boa parte do que sentimos diante de uma imagem é causado, imperceptivelmente, pelo trabalho de som em paralelo, e esse certamente se destaca, no ano em que a melhor mixagem de som de um filme veio de outro terror, o bom Um Lugar Silencioso.De qualquer forma, eis aqui um projeto que se debate para encontrar sua insondável direção e o seu verdadeiro potencial dramático, limitando-se a sustos fáceis e uma brutalidade contida para satisfazer os fãs de filme de terror (o jumpscare da cena da fechadura é ofensivo), devido sua estrutura ser tão caótica quanto à mente de Beth, Vera e sua mãe.

    Se as coisas vão bem, ou melhor, capengando até a metade de Ghostland, o mesmo não pode ser dito daí em diante, quando o filme não resiste em tornar a brincadeira o mais sobrenatural e surreal possível, dentro de uma proposta realista já estabelecida de assassinos perseguindo a família que cruzou seu caminho de barbárie, e doentia, na estrada. Nisso, o estudo proposto de traumas infantis vira, de uma cena para outra, um palco amalucado para cachorros latindo para o nada, fetichismo infantil e espíritos assombrando quem antes era assombrada por uma violência real, ainda que absurda a beira de um gore fraco, e previsível. Um filme para os amantes específicos do gênero, sendo que há tanta coisa melhor por ai, a começar pelas ótimas influências desse exemplar desequilibrado do terror contemporâneo e que, afinal, choca por motivos qualitativos os quais não consegue resolver. Sobra intenção, falta execução.

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  • Crítica | Miriam Mente

    Crítica | Miriam Mente

    Uma das maiores graças de cobrir festivais como o Festival do Rio é poder ver não só os sucessos mundiais e o panorama do cinema brasileiro que foge ou não do mainstream, mas também poder acompanhar filmes que dificilmente passarão no circuito e de praças de cinema normalmente não cultuadas. Miriam Mente é um filme da República Dominicana, que fala sobre costumes e sobre a vida na infância. O filme foi exibido também em uma das mostras da semana da crítica do Festival de Cannes.

    A historia gira em torno da menina negra Miriam (Dulce Rodriguez), uma menina bem nova, que mora com sua amiga Jennifer (Carolina Rohana), tem uma vida aparentemente sem preocupações, usufruem de alguns luxos, como acesso a uma casa enorme, educação de excelência, aulas de dança etc. A diferença é que Miriam não tem o mesmo sangue que sua amiga, e só tem acesso a tudo isso por algum tipo de caridade que lhe é prestada e cujo motivo não é revelado ao longo de sua duração.

    Miriam tem acesso a internet e flerta com um rapaz por um grupo de mensagens, marca de se verem, mais de uma vez aliás, mas ao notar que ele é pobre e negro, como ela também é, ela se nega a encontra-lo, e chegando a época do baile, ela finge ter um par só para que as pessoas não a amolem, já que ela tem dificuldade em verbalizar os fatos que lhe ocorrem.

    Se um espectador analisar de modo superficial e sem contexto algum, é capaz de nem perceber o incomodo que a menina vive, afinal ela tem muitos luxos e é bem cuidada por tantos outros empregados da família rica, mas todo seu entorno transborda falsidade e um tradicionalismo que a esmaga e faz sentir mal, sempre. Mesmo sempre calada, se nota em seu olhar e até nas pequenas inverdades que solta, um sentimento de não pertencimento aquele local e ao estilo luxuoso que lhe é entregue e mesmo com essas regalias, ela tem sua identidade sufocada e não pode sequer encontrar um rapaz que sempre paquerou.

    O filme de  Natalia Cabral, Oriol Estrada engana ao fingir se tratar de mitomania, ao menos em relação ao seu titulo, pois as mentiras mais graves não vem de Miriam, e sim dos que a cercam, que fingem aceita-la mas que na primeira oportunidade de produzi-la para um baile, fazem questão de alisar seus cabelos, tentando torna-la uma menina branca, sem sequer perguntar a ela, e mesmo que perguntassem, dificilmente ela saberia verbalizar isso, pois em todos os 99 minutos da duração do filme ela não consegue dar vazão a nada. Miriam Mente é simples, mas extremamente poderoso e sufocante, por mostrar uma historia pesada e que é levada com uma atmosfera falsamente leve.

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  • Crítica | O Beijo no Asfalto (1980)

    Crítica | O Beijo no Asfalto (1980)

    O Beijo no Asfalto foi lançando durante a época das pornochanchadas, copiando de certa forma boa parte da iconografia desse movimento, ainda que tenha um estilo narrativo bastante diferente de seus pares. Muitos filmes baseados na obra de Nelson Rodrigues foram feitos nesse estilo, A Dama da Lotação, de Neville de Almeida, Toda Nudez Será Castigada, de Arnaldo Jabor, tem ambos um mergulho maior no modo de contar historias dessa época, a visão que  Bruno Barreto dá sua obra é única, sendo talvez seu filme mais contido no que toca a nudez mas o que mais explora a área sentimental.

    Em Dona Flor e Seus Dois Maridos, Barreto adapta Jorge Amado de uma maneira bem gaiata, mas seu modo de ler Rodrigues é demasiado dramático e é engraçado e curioso analisar a obra hoje em dia. No ano de 1980, havia ainda algum tipo de censura e tratar de uma historia cujos elementos discutiam homossexualidade era algo muito forte, mas o mais importante na atualidade é verificar questões como o modo que a imprensa lida com a população comum e como altera seu status quo a troca do nada, só para fomentar historias e crônicas.

    O roteiro de Doc Comparato mostra Aprigio, de Tarcisio Meira tendo que lidar com o escândalo familiar, de seu genro Arandir (Ney Latorraca) ter beijado os lábios de um moribundo após o mesmo ser atropelado. Arandir é casado com Selminha (Cristiane Torloni) e vive também com a irmã mais nova dessas, a linda Dalia (Lídia Brondi), e há um conjunto de perversões e insinuações incestuosas bem comuns a literatura e dramaturgia de Nelson.

    Não só se discute a questão da homossexualidade e o preconceito que a traz, mas também a maldade e sagacidade da imprensa, especialmente a figura de Daniel Filho, que faz um Amado Ribeiro asqueroso e também do policial Cunha, interpretado por Oswaldo Loureiro. A necessidade de criar um factóide não é orquestrada somente pelo jornalista, mas também pelo policial, que na sua gana de tentar fazer uma justiça que jamais precisaria ser cumprida, passa por cima de qualquer moralidade ou pensamento ético, vilipendiando até quem nada tem a ver com o tal “crime”. Há uma cena envolvendo os dois atores e Torloni que é forte, e que certamente marcou o imaginário do publico.

    Tarcisio faz um Aprigio bem austero, e incapaz de se julgar qualquer “pecado” moral relacionado a homossexualidade,lembrando o óbvio, esse era o pensamento retrogrado vigente em plenos anos sessenta, e infelizmente ainda vigora para muitos. Não há como identificar em si qualquer desvio de conduta, ele era um sujeito livre de qualquer suspeita, o perfeito machão segundo a sociedade conservadora da época, mas que escondia um segredo, uma sexualidade reprimida por tantos anos de culpa que ele faz passar por cima da intimidade das duas filhas e a existência do genro. O Beijo no Asfalto termina meio poético, repetindo o ciclo do começo, com mais uma morte e mais um ósculo sob o asfalto do centro do Rio, localizado na Lapa.

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  • Crítica | Palace II: Três Quartos e Vista Para o Mar

    Crítica | Palace II: Três Quartos e Vista Para o Mar

    Há  vinte anos atrás no começo do ano de 1998 uma tragédia chocou o Brasil inteiro. Lembro como se fosse hoje da implosão de um prédio na Barra da Tijuca e da já noção do quanto os engravatados de Brasília eram poderosos e mesquinhos. Palace II: Três Quartos e Vista Para o Mar é um documentário de Gabriel Corrêa e Castro, que dez anos atrás fez o curta Poeira nos Olhos, também sobre o prédio, e Rafael Machado, e resgata a memória de muitos moradores do Palace II.

    Apesar de toda a surpresa da população, o que se diz logo no início do filme é que essa tragédia já era anunciada, visto o histórico da falta de qualidade nos imóveis e moradias de Sérgio Naya, principal responsável pelo conjunto habitacional. O começo do registro se dá com tomadas aéreas mostrando como ficou o lugar onde já esteve o Palace.

    Talvez para quem não seja do Rio não haja a percepção real do que era morar na Barra naquela época, pois o bairro era a chance mais barata de ficar perto da praia, o paraíso dos emergentes. E da boca das vítimas vêm a notícia de que o prédio demorou a ser entregue e já com as pessoas habitando ali se notava que o lugar estava inacabado. Os últimos andares não tinham um tratamento básico, faltava porta, janela, tinta nas paredes, nada parecia estar realmente pronto. As imagens de arquivos hoje soam até engraçadas, embora ainda assim sejam trágicas, com moradores tentando bater nos empreiteiros que os acusavam de invasão, mas mesmo com esse tipo de atitude, o que se via era uma total blindagem em cima de Sérgio Naya, o real responsável por tudo aquilo.

    O material claramente era de péssima qualidade. Para os peritos que verificaram o local havia muito mais areia e barro do que cimento. Quando um morador pregava um quadro, o prego descia rasgando as paredes de quaisquer que fossem os cômodos. A fachada era linda, mas o interior era deplorável.

    O registro sobre o fatídico dia 22 de fevereiro de 1998, é bem detalhado. O prédio balançou bastante no meio do carnaval e se viam rachaduras enormes ao longo de todo o edifício, e sob ordens de um moderador que era engenheiro, começaram uma evacuação emergencial. Há cenas descritas dignas de filmes de horror, como o momento em que uma família espera o elevador, desesperada por conta das escadas não estarem mais transitáveis, e ao abrir a porta do elevador se dá conta que tijolos deslizaram lá para dentro. Outro momento marcante, esse já registrado em vídeo, foi a segunda queda, que produziu uma espécie de cachoeira, assim como a implosão, igualmente dantesca.

    O filme é um pouco burocrático, e tem um formato de reportagem televisiva, mas apesar disso dá para notar o quão sincero era o choro da perda de referencial das famílias. Os momentos de garimpo dos bens, onde cada andar do prédio parecia uma fatia de lugar com apenas vinte centímetros dá a dimensão de como aquelas pessoas se sentiam. Mas Naya era poderoso e muito generoso com seus colegas, emprestava imóveis quando eles não tinham onde morar tendo então um conjunto de favores prestados e que poderiam ser cobrados. A cassação demorou a ocorrer e o processo se arrastou. Em 2001 os moradores ainda estavam em quartos de hotel e alguns ficaram nessa condição por quase dez anos. A via crucis envolvia a tentativa de vencer pela cansaço, com ofertas ofensivas e argumentos fracos de que aquilo foi um erro de cálculo.

    O filme de Machado e Castro mesmo tendo bons depoimentos não consegue causar tanta comoção quanto pretende. Não há qualquer linguagem mais cinematográfica, remetendo a uma matéria de televisão editada com 84 minutos, que serve mais para rememorar do que emocionar com a sua triste história.

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  • Crítica | Roma

    Crítica | Roma

    Sempre explorando novos caminhos, o cineasta mexicano Alfonso Cuarón entrega esse ano pela Netflix o seu trabalho mais pessoal, Roma é um filme de resgate de memórias numa espécie de carta ao passado. Na intimidade de uma casa de classe média da Cidade do México no início da década de 1970, Alfonso nos apresenta Cleo, uma empregada jovem e bondosa, que trabalha para a família de Sofia.

    Sofia é casada com Antonio e juntos eles têm 4 filhos, porém problemas no relacionamento dos dois vai mudando as relações da casa enquanto Cleo precisa lidar com uma nova descoberta. A personagem criada pela estreante Yalitza Aparicio é de uma sensibilidade rara, sua Cleo é silenciosa mas fala muito só com o movimento de seus lábios nas tantas vezes que sorri.

    Como a narrativa, ela é delicada e absolutamente amável, suas feições comunicam de maneira sutil e por isso em momentos mais dramáticos ela se sai tão bem, é como presenciar um momento cru e real. E Roma caminha bem com sua protagonista tanto em clima quanto estética, Cuarón dispensa a parceria de sucesso com o fotógrafo Emmanuel Libezki e faz ele mesmo a fotografia do longa, além de também co-editar. E ele não poderia se sair melhor.

    O preto e branco cai com uma luva em cenários cheios e ostentadores, contrastes e silhuetas realçam uma atmosfera nostálgica encantadora e a câmera se movimenta ressignificando espaços e ações, sabendo muito bem balancear com planos estáticos de muito impacto narrativo. O longa mesmo que linear e sem pressa para revelar um grande plot, entrega momentos pontuais de pura carga emocional que ecoam na mente do espectador, cenas marcantes e que nascem clássicas na frente de nossos olhos.

    Roma é de fato uma obra muito especial, além de carregar entrelinhas questões sociais como relações trabalhistas e divergências de classe que nunca parecem gratuitas, mas sim naturais, o filme traz um dos retratos mais fortes sobre as circunstâncias de ser mãe e mulher. Cuarón cuida de memórias nessa sua nova empreitada e consegue enraizar sua narrativa em imagens contemplativas e de significâncias das mais abstratas. Uma bela experiência, daquelas que se agradece por acontecer.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

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  • Crítica | Be Natural: A História Não Contada da Primeira Cineasta do Mundo

    Crítica | Be Natural: A História Não Contada da Primeira Cineasta do Mundo

    O filme começa com uma montagem cheia de clichês hollywoodianos, tendo início com os blockbusters recentes, depois dos anos 90 e 80 até chegar em Charles Chaplin, aludindo a toda a trajetória que o cinema teve do começo com os Irmãos Lumiere até hoje. O documentário conta a história de Alice Guy Blaché e se inicia na França, no começo dos experimentos dos Lumière, narrado por Jodie Foster.

    A especialidade da cineasta Pamela B. Green é o trabalho na áreas de design gráfico, animação e pesquisa de filmagens de arquivo, e seu esforço documental começa pela árvore genealógica da sua biografada, mostrando o parentesco das pessoas ainda vivas e que prestaram ajuda a Green para montar esse quadro. Não demora a mostrar uma de suas primeiras obras, A Fada do Repolho (La Fée aux choux), de 1889, que por sua vez era uma refilmagem do mesmo filme rodado três anos antes e aqui já se nota uma diferença básica de seu trabalho em relação aos Lumière, pois ela investia em ficção enquanto os irmão faziam mais documentários.

    Guy Blaché aparece no filme basicamente em duas entrevistas em vídeo, uma de 1957 e outra de 1964 que são diluídas e passam conforme a trajetória e jornada pessoal e de trabalho avançam. Bizarramente, a maioria das pessoas famosas que depõem, entre elas Peter Bogdanovich, Geena Davis, Patty Jenkins, entre outros, não fazem a menor ideia de quem seja a diretora e o maior trabalho do filme certamente é tentar entender o motivo dela ter sido apagada da história.

    Alice sempre sonhou em ser atriz, mas foi proibida pelo pai de fazer teatro, e isso faz com que haja suspeita de que a mulher que protagoniza a maior parte dos seus filmes seja a própria. Segundo uma perícia feita para o documentário, há uma chance grande disso, ainda que o método utilizado não seja totalmente preciso. Além disso, o modo como ela gravava era bastante sofisticado para a época, por meio de uma pré-gravação dos sons de seus filmes.

    Nos estudos de Sergei Eisenstein nota-se que ela influenciou o diretor soviético em seu modo de registrar. O termo Be Natural que dá nome ao filme era utilizado como lema nos sets, ela pedia que o elenco agisse de maneira realista. Entre os filmes estudados, há destaque para Esmeralda (La Esméralda, 1905), filme que adaptava O Corcunda de Notre Dame de Victor Hugo e que demorou a ser associado ao nome da diretora (os registros apontavam para um assistente de direção como realizador), há também uma versão da Paixão de Cristo (The Birth, the Life and the Death of Christ, 1906), um filme grandioso e o primeiro a ter mais de trinta minutos de tela. Um Tolo e Seu Dinheiro (A Fool and His Money, 1912), com Jamie Russell tinha o elenco totalmente formado por negros, em uma época em que geralmente brancos faziam black face e representavam os negros como seres caricatos e involuídos.

    O documentário é longo e carece de um ritmo dinâmico, mas as razões que levaram a diretora a ser descreditada são muito bem explicitadas, em especial pela ignorância dos historiadores e autores de livros sobre a pré-história do cinema. O trabalho de Green é muito acertado ao buscar respostas sobre o que aconteceu com a figura da diretora.

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  • Crítica | Amanda

    Crítica | Amanda

    Uma das surpresas recentes nos circuitos de festivais é o longa francês Amanda, de Mikhael Hers, uma história de ternura, saudade e ausência. A trama começa mostrando mãe e filha dançando, sendo elas Sandrine Sorel (Ophelia Kobel) e a pequena Amanda (Isaure Multrier). As duas vivem alegremente, de maneira espontânea e protagonizam momentos realmente engraçados ao lado do irmão/tio David (Vincent Lacoste), que por sua vez, tem interesse romântico na vizinha, Lena (Stacy Martin). A maior parte das relações e situações do filme passam por estes personagens.

    Sandrine e David são tão próximos que em alguns momentos é fácil confundir os dois com um casal, não que exista qualquer erotização, mas a intimidade entre eles é grande, tanto que Amanda enxerga o tio como uma figura paterna. Tudo muda quando uma tragédia envolvendo um ataque acontece e muitas pessoas perecem, entre elas, Sandrine, e a falta de detalhes sobre os motivos que motivaram o acontecimento dá uma sensação de impessoalidade, que faz o desaparecimento dessas pessoas se assemelhar ao arrebatamento bíblico. Mesmo sem detalhes, a dor de todos é excruciante.

    O rapaz que antes não conseguia tomar nenhuma decisão séria por menor que fosse, se vê obrigado a lidar com sua parente de apenas sete anos, e sem estrutura emocional ou financeira ele apela para a avó da criança, que eventualmente cuida dela, mas a maior parte do tempo, Amanda fica com ele, e esse tempo que eles passam juntos se resume a sensação de uma melancolia que teima em aparecer apesar de todos os personagens fingirem que ela não existe.

    Como novo pai ele tem que lidar com o terror noturno de Amanda, que acorda com receio de que outro agouro tire mais de seus entes queridos. A via crucis pelo qual passa a menina e David é algo muito poderoso, só não sendo mais pesado que as ações dos fantasmas que insistem em intensificar a dor da ausência causada por aqueles que não podem mais responder por si. Amanda é um filme amoroso sobre o sofrer e uma ode aos que se foram.

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  • Crítica | Em Chamas

    Crítica | Em Chamas

    Em Chamas é um dos chamados filmes de reencontro, onde a tônica dos eventos gira em torno basicamente de retornar a memória dos personagens a um encontro com gente do passado dando vazão assim a novas experiências e sentimentos. A história conduzida por Lee Chang-dong mostra o entregador Jong-soo (Shin Hae-mi) em um dia de trabalho, quando encontra com Hae-mi (Jeon Jong-seo), uma antiga amiga que já foi bastante próxima, mas agora está a caminho do exterior.

    Jong-soo se compromete  a cuidar do animal de estimação da moça, um gato, e antes dela ir eles se envolvem sexualmente, e esse fato torna ainda mais estranhos os  eventos que vêm a seguir. O modo que Lee escolhe dramatizar os eventos evidencia um cuidado enorme com os detalhes sentimentais, revelando as camadas mais complexas da história de maneira lenta, sem expor as intenções do roteiro logo de cara, até para fazer o espectador entender toda a atmosfera proposta e compreender que são e o que fazem os personagens ali, a duração de quase 150 minutos ajuda a massificar essa ideia.

    Um novo elemento é posto na equação, um rapaz chamado Ben (Steven Yeun, o Glenn de The Walking Dead) um rapaz que ela conheceu na Africa, sujeito esse com manias e costumes incomuns, seu linguajar é diferenciado, ele chama seu próprio alimento de sacrifício, além de guardar consigo alguns artigos femininos, que não se sabe se são seus ou de outra pessoa. Jong começa a se aproximar dele, para entender o que passa ali, movido por algum sentimento ou sensação que não é em um primeiro momento revelado.

    A obsessão do personagem principal extrapola (muitos) limites do aceitável, envolvendo perseguição e observação de todos os hábitos do sujeito, em uma paranoia digna dos filmes mais cínicos de Alfred Hitchcock, como Janela Indiscreta, embora a motivação desse personagem seja diferenciada em caráter da que James Stewart carrega, assim como os rumos que a trajetória de Jong toma.

    A face benevolente de Ben é tão corretamente construída que mesmo quando ele aparentemente está movido por algum ato estranho ou que meramente pareça falso fica difícil julga-lo como se fosse um sujeito dissimulado. Ele é extremamente agregador, pacifista e afável, ao contrário do apressado Jong, que é inquieto e cheio de neuroses, sendo mostrado em mais de um momento correndo, esbaforido, normalmente na direção do nada, ainda que claramente ele tenha um objetivo em mente, embora nem ele saiba direito o que é e por isso essa sensação de nada e vazio.

    Em Chamas é um filme de incertezas e de uma busca não planejada por identidade, onde a sensação de pertencimento a algo impera sobre as ações dos humanos vistos em tela, manipulando estes para cumprirem seus destinos, mesmo que essa manipulação e controle seja inconsciente e a subserviência dos mesmos também não seja escolha dos próprios.

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  • Crítica | Mogli: Entre Dois Mundos

    Crítica | Mogli: Entre Dois Mundos

    Antes inclusive da produção de Mogli: O Menino Lobo, de John Favreau, a adaptação do Livro da Selva já estava em produção pelas mãos de um sujeito importante para o cinema mainstream recente. Andy Serkis tentava traduzir o material original de Rudyard Kipling que encantou gerações através não só da literatura mas também da animação clássica da Disney nos meados dos anos sessenta, e sua versão, Mogli: Entre Dois Mundos demorou a ser entregue e a ser finalizada, por motivos até hoje discutíveis, graças não só aos estúdios Disney, que tem em seu Mogli o alicerce para onda de live actions que fizeram sucesso e dão bilhões de dólares de arrecadação, como pela Warner, que claramente recuou e não permitiu ao realizador fazer o filme que queria, com o orçamento que precisava.

    Ainda assim, e reduzido (de certa forma) a estrear para plataformas digitais via  streaming pela Netflix, a versão que Serkis fez tem animais digitais com um visual estranho, quase mal acabados, e isso evidentemente denigre o produto  final, mas não contamina a história. Na trama, o tigre Shere Khan ataca alguns homens e mulheres, e mata a mãe biológica do rapaz, que acaba sendo encontrado pela pantera Bagheera, e levado até sua alcateia, que fica responsável pelo bebê.

    A história começa narrada pela serpente Kaa, dublada por Cate Blanchett, cujo visual talvez seja o mais estranho entre as criaturas animadas, mais até que os lobos de Akela (Peter Mullan) e companhia. Não demora até ocorrer uma deliberação entre os animais, incluindo aí o urso Baloo (Serkis), Baghera (Christian Bale), a loba Nisha (Naomi Harris) e até o vilanesco Shere Khan (Benedict Cumberbath). Esse elenco pomposo tem um embate face a face muito poderoso, mesmo que sejam suas contra-partes animalescas. Já nesse prólogo o filme se demonstra grandioso e ele segue assim mesmo nos momentos de despretensão.

    Mogli cresce, e é vivido pelo jovem Rohan Chand, um intérprete de olhos muito expressivos, seja quando brinca com a pantera que o salvou ou mesmo em situações banais como comer uma fruta ou matar um inseto. Seja sozinho ou com seus mentores –  na falta de um pai de sua espécie, ele tem um urso, uma pantera e muitos lobos – ele entende como funciona as leis da selva, sobre como caçar e quem caçar, mas também preserva a inocência típica de um filhote.

    Toda a essência da vida de menino criado por lobos e sua experiência na selva que o cerca é muito bem enquadrada pela câmera de Serkis, e é realmente triste que um trabalho visual tão bem concedido como a construção das paisagens naturais esbarre nas figuras em efeitos especiais dos macacos, ou do lobo albino Bhoot,  que mais parece um poodle mal tosado. É difícil levar o filme a sério, porque seus personagens digitais passam longe de serem críveis. Mesmo as movimentações deles são artificiais e a textura é terrível. Os que mais se aproximam de salvar disso são Shere Khan, Bagheera  e alguns momentos Baloo.

    Ao mesmo passo que no ambiente selvagem o jovem humano é amado pela maioria das criaturas, quando se encontra com o homem ele é tratado de maneira hostil, enjaulado após reagir com fogo contra os seus, e cutucado com pedaços de pau por outras crianças. Nesse início, ele é tratado como um animal, já que veio do habitat selvagem. A parte em que acontece o rapto do menino e a chegada a civilização perde um pouco do bom ritmo que antes predominava, mas não é de todo ruim e a área sentimental volta a predominar, mostrando que o medo do tigre devorar Mogli faz com que a pantera e o urso achem que é bom para ele voltar para a civilização. O que faz realmente pecar é a construção da rivalidade entre o felino e o homem, que não é é tão bem desenvolvida e é o erro mais crasso do roteiro que Callie Kloves apresenta.

    Mogli consegue se adaptar ao mundo civilizado e lá descobre alguns horrores, os mesmos que fizeram com que ele fosse órfão e ajudaram Shere Khan a se tornar uma figura maligna. A gangorra emocional melhora bastante no final, e o desfecho trágico envolvendo caça e caçadores é simbólico e um bom rito de passagem para o personagem que dá nome ao longa, e capta perfeitamente como funciona esse limbo existencial que o menino sofre, mostrando que a busca de identidade dele é visceral, sem deixar de ser poética, algo que o filme de Favreau não traduz bem. Mesmo que visualmente os efeitos especiais não estejam a altura das emoções que Serkis passa, Mogli: Entre Dois Mundos é talvez a mais inventiva e bonita adaptação do clássico O Livro da Selva.

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