Julia acorda e começa a falar com Gustavo, que está atrás da câmera. Ela declara que detesta ter insônia e ela sequer sabe que gravam. Ela é Julia Katharine, uma mulher trans que é o centro das atenções do filme de Gustavo Vinagre, e Lembro Mais dos Corvos é basicamente sobre Julia, que é a dona da história e sua narradora.
O tempo inteiro a biografada pergunta o motivo do filme, e o que o diretor queria com as falas dela. Aos poucos ela se abre, e fala sobre sua intimidade. Julia se descobriu cedo, aos 8 anos, e com seu tio avô que tinha 55. Ao mesmo tempo em que ele era o herói de sua mãe, ele era o único que a tratava como mulher, e os dois começaram a ter uma relação. O namoro dos dois era escondido e ao menos na intimidade eles se davam muito bem. Julia não sabia que estava sendo abusada, só chegou a essa conclusão na terapia quando já era adulta e a relação acabou de repente, basicamente porque ela cresceu.
Aos poucos ela revela detalhes de seu gosto por filmes tristes, e diz que segundo a sua mãe, ela tenta reproduzir seus filmes preferidos o tempo inteiro, mirando uma poesia no cotidiano, como uma Drama Queen normalmente é. A câmera é nervosa, e Gustavo claramente tem problemas com o foco, e isso de certa forma conversa com o ideal da vida, que também é imperfeito.
Em alguns pontos, o filme não soa tão interessante, por serem problemas meio usuais os que Julia tem como boa parte da humanidade e apesar dela ter um lado muito positivo, as confissões passam por problemas sérios, como com a sua mãe, que a culpa por estar afastada do restante da família, basicamente porque resolveu se assumir mulher trans.
Julia conversa muito bem, é espontânea e uma mulher muito inteligente, em suma é uma personagem muito rica e muito bem enquadrada por seu diretor e amigo. Seus questionamentos a respeito do porquê do filme simplesmente não fazem sentido, pois ela transborda o suficiente para encher este e outros tantos. No final, ela mostra o amanhecer da cidade, uma das poucas coisas boas de se ter insônia e isso funciona para si como terapia, assim como consumir e fazer cinema.
Umas das belíssimas surpresas dos circuitos de festivais esse ano, passando pelo Festival do Rio e pela Janela de Cinema de Pernambuco, Azouque Nazaré é o filme de Tiago Melo, que após produzir Aquarius, Santo Daime O Império da Floresta, Boi Neon e ser assistente de direção de Quase Samba, decide enfim dar vazão e retornar ao seu próprio cinema, através de uma história sentimental e contada por meio de anedotas que causam graça e frescor em quem as assiste
O tempo inteiro os cantos e espiritualidade são soberanos, incluindo aí alguns diálogos. As músicas repentistas e os batuque do maracatu dão a tônica e o que se vê com os personagens desse micro universo é um flerte com o sobrenatural, sem deixar de ser simples e pés no chão. Esses cantos, roupas e ritos tem proximidade do Maracatu, e através do personagem Catita (Valmir de Côco) se discute um pouco da religiosidade e misticismo do brasileiro, que sem muito esforço, consegue variar rapidamente e ter a crença em religiões espíritas e a prática do evangelho neo pentecostal.
A maior parte do humor do roteiro de Melo e Jerônimo Lemos mora nos eventos simples e cotidianos, nas brigas que ocorrem no meio da janta, onde marido e mulher discordam de como empregar seu tempo e dinheiro, e claro mora também na crítica a postura muitas vezes agressivas de alguns sacerdotes, que tentam empurrar seu conjunto de crenças para qualquer pessoa que os ouça, como o ocorre com o pastor, interpretado pelo Mestre Barachinha. O pastor e o protagonista tem uma conversa peculiar e que resume toda essa inteiração, com o religioso perguntando se o sujeito já aceitou Jesus e o homem respondendo Eu nunca fui contra ele. sendo sincero e completamente espontâneo no sentido de não encontrar necessidade de mudar seu estilo de vida.
Evidentemente que isso não é o suficiente e ainda nos tempos modernos o método de boa parte das igrejas é o de tentar manipular o povo prometendo para os que não aderirem, a danação eterna, mas o filme não demora a confrontar essa postura, seja mostrando a hipocrisia do pastor, que se aproveita da ignorância alheia para cumprir uma anedota que ficou muito conhecida no Brasil (tanto que que virou meme) a respeito da confusão da palavra adúltera e adultera no livro bíblico de Oséias, assim como no confronto que Catita tem com a força religiosa, finalmente se impondo, como deveria já ter feito muito antes, assumindo a sua própria identidade, há muito tempo buscada mesmo sempre estando tão perto dele.
Azougue Nazaré é lúdico, engraçado e simples, apesar de não ser simplório e nem se apegar demais aos clichês que se utiliza. Melo não nega suas origens, tampouco tem receio de parecer parte do movimento pernambucano de cinema que já tem expoentes como Cláudio Assis, Kleber Mendonça Filho e Gabriel Mascaro, e mesmo não tendo ainda tantas obras se nota uma sofisticação de linguagem, sensibilidade e principalmente potencial para evoluir para um cinema ainda mais pungente e criativo.
Jagoda Szelc traz uma história familiar complexa e cheia de reviravoltas em Torre: Um Dia Brilhante, filme polonês que começa com uma tomada aérea, documentando de certa forma a viagem de pessoas à área rural onde haverá uma reunião familiar. A trama gira em torno, principalmente, de Mula (Ana Krotoska), que mora com o marido e com a filha adotiva Nina (Laila Hennessy). A menina fará sua primeira comunhão. A visita da família, em especial de sua irmã mais nova Kaja (Małgorzata Szczerbowska) estremece as relações, já que ela é a mãe biológica de Nini.
Os conflitos e demais fatos se desenrolam lentamente, mesmo entre Mula e Kaja. Quando as duas são postas em tela se percebe uma tensão e nervosismo, revelando uma vontade de explodir de ambas mulheres, e os parentes que não tem nada a ver com isso, assistem passivos a essa guerra não declarada, entre refeições, conversas amenas, passeios no parque e idas à igreja.
A parte lúdica varia entre cenas que são claramente fantasiosas com as crianças brincando, e em outras em que o terror de impera sobre o imaginário dos familiares. Esses momentos de horror fazem menção as brigas que ocorrem ou que quase ocorrem. Mula sente que tem sentimentos de paranoia, e assume que precisa de ajuda, em um belo desempenho de Krotoska.
Todo e qualquer evento que ocorre com as pessoas que cercam Mula e com a própria parecem despistes, momentos de distração para o mal que se aproxima. O destino que espera a personagem faz menção a chegada de algo mal, e serve de paralelo inclusive com o apocalipse. Torre: Um Dia Brilhante termina pessimista, prevendo que uma tragédia poderia acometer sobre a família, sendo o destino dessa tal tragédia ainda desconhecido.
Desde que Guerra ao Terror ganhou o Oscar, e Clint Eastwood fez uma ode ao vício estadunidense por auto bajulação, com Sniper Americano (um dos 50 filmes mais lucrativos nas bilheterias americanas de todos os tempos), poucos filmes no mundo tentaram e de fato foram bem-sucedidos em mostrar conflitos de proporções bélicas alarmantes, em diversos cenários onde ainda explodem e devastam a pacificidade que pessoas, suas tribos e culturas precisam ter para resistir, sobreviver, e por fim, se isso é possível em lugares como Israel e Palestina, viver.
Agindo como se todo tipo de visão já tenha sido destilada ao público de Cinema, os “filmes de guerra” hoje em dia (com exceção de Os Campos Voltarão em 2014, o último filme do mestre Ermanno Olmi antes da sua morte) focam mais nas consequências paralelas e/ou posteriores de se passar por uma situação dessas; como se o centro da problemática não fosse mais o foco nas bombas e seus dramas de campo de batalha, e sim as suas questões periféricas, familiares, suas marolas, seus efeitos no homem ou na sociedade que sempre o torna quem ele(a) é, e que colhe os frutos do conflito armado que soldados e seus comandantes presenciam a ferro, fogo e sangue.
Essa manobra discursiva, algo simbolizado por Stanley Kubrick nos dois filmes que existem dentro de Nascido para Matar, abraçando tanto o lado dos fuzis e das explosões (a violência gráfica de uma guerra), quanto o stress psicológico resultante de uma constante tensão onipresente, e suas avaliações dentro de um quartel general norte-americano, essa abordagem desse último lado menos icônico mas com grande potencial de aprofundamento dramático, estudando o comportamento das pessoas vivendo dia após dia uma situação desumana, deve-se a incrível capacidade de toda obra de arte de nos impactar, na forma que for, e dialogar com as nossas experiências de vida – sejam elas quais forem.
Uma Questão Pessoal é uma boa prova disso, conectando-nos em pleno solo italiano a uma segunda grande guerra mundial cujas lembranças latentes a fazem respirar eternamente, encontrando por isso fortes ecos hoje e amanhã num sem-número de produções culturais ao redor do nosso pequeno grande globo que, para a raça humana, poucas vezes foi tão complexo quanto no conturbado vigésimo século D.C. Tendo como contexto histórico a luta contra o nazifascismo em 1943, o filme da dupla Paolo e Vittorio Taviani, adaptando de modo deliciosamente visual uma das mais importantes obras da literatura italiana, o homônimo livro de Beppe Fenoglio, foca na luta interna do militar Milton, vagando pelas colinas e campos de Langhe no noroeste da Itália, dividido entre ajudar seu país e se prender de vez no amor que ele sabe ser a mulher da sua vida.
De espírito benevolente, Milton vaga entre a danação do seu povo, e o resistir militar do mesmo, mas sem nunca conseguir colocar em segundo plano a história que viveu e ousa resgatar a quase todo momento com a doce e bela Fulvia, aquela que dança em tempos em que isso é proibido. Assim, o título de Uma Questão Pessoal ironiza o ótimo equilíbrio que tanto livro e filme conseguem atingir entre as esferas militares e particulares de um homem que se arrisca e se devota sem descanso a duas questões, uma nacionalista e muito mais ampla, e a outra invariavelmente emocional e pertinente só a si mesmo e mais ninguém (a cena na qual Milton encontra seus velhos pais, muito próximo de soldados inimigos, e os abraça como um raio, partindo em questão de segundos para não chamar a atenção, é dolorosamente maravilhosa).
A narrativa imagética da adaptação do livro de Fenoglio merece um capítulo à parte, sendo que o filme faz uso aqui de um ótimo e contido trabalho de câmera, ainda que por vezes ousado e totalmente participativo de uma dramaticidade acionária que nunca descansa, nunca deixa de nos surpreender, principalmente nos minutos iniciais e que nos fazem submergir as forças reais que movem a história: Medo político, a expectativa de estar sempre passos à frente dos inimigos fascistas, os aliados à resistência, o mundo externo que chama para as incertezas da neblina e que não deixa Milton relembrar seu passado, mais simples e infinitamente mais feliz. Por essas e por outras, eis aqui uma história (e filme) muito maior que os seus rótulos, e que por mais que guarde semelhança com uma típica obra de conflitos armados, carregando todos os seus típicos elementos de gênero, consegue ir além dos limites do seu gênero, tal como o recente e magnífico Timbuktu. Outros cenários políticos, mesmos dilemas humanos.
O futuro da DC no cinema é uma incógnita, mais por conta dos bastidores do que pela recepção dos filmes. Tal qual foi com Mulher-Maravilha de Patty Jenkins, a versão de Aquaman de James Wan gerou muita expectativa e o resultado como stand alone é muito bom, principalmente por essa historia ter fôlego independente de Liga da Justiça e Batman vs Superman onde Jason Momoa já havia interpretado Arthur Curry.
A história começa mostrando a origem do personagem, narrado pelo próprio Aquaman, que descreve como Tom Curry (Temuera Morrison) conhece Atlanna (Nicole Kidman), em uma situação que soa um pouco bizarra pela configuração do encontro, assim como também causa estranheza os efeitos especiais que não conseguem se encarregar da tarefa de rejuvenescimento de Morrison. Após uma separação forçada dos pais, Arthur segue na superfície. Não demora para a ação se desenrolar, e Wan não tem vergonha alguma de se assumir como um filme despretensioso e canastrão, pois sempre que o vigilante é acertado e não cai, toca-se um riff de guitarra ao estilo rock and roll, e nesse ínterim, se introduz a figura vilanesca do Arraia Negra (Yahya Abdul-Mateen II), um personagem que age de maneira raivosa e unidimensional, mas que tem uma boa justificativa para ter ressentimento com o personagem-título.
As partes abaixo da água fazem lembrar o carnaval de cores de Fúria de Titãs e sua continuação, em especial com as cenas envolvendo a nobreza atlante. Demora a acostumar com o visual, mas depois do estranhamento as reuniões entre o rei Orm (Patrick Wilson), irmão e filho legítimo daquele povo e Nereus, interpretado por Dolph Lundgren que ostenta uma belíssima peruca digital. As batalhas na água são muito bem feitas e a física faz muito sentido. Um dos maiores receios dos fãs era em relação a esses combates se dava na utilização dos efeitos especiais, o que se mostrou totalmente infundada.
A psicodelia do visual das cidades submarinas é bem explicada pelo mentor Vulko (Willem Dafoe), que ao treinar o futuro herói, diz que a visão dos atlantes é mais aguçada e por isso se nota uma textura de luz diferente da superfície. Da parte do texto, há alguns problemas com a insistência no clichê de homem ressentido que culpa todo um povo pela exclusão de sua mãe, e essa questão mesmo no final não faz muito sentido, em especial com o rumo que as coisas tomam.
Outra questão um pouco incômoda é em relação a aliança dos vilões, não há preocupação em criar uma dualidade neles, são maniqueístas e mal intencionados ao extremo e isso não combina por exemplo com a vingança eco-terrorista de devolver à terra o lixo produzido pela superfície. Mas tecnicamente o filme é muito bem construído, as referências steampunk no visual da Atlântida quando ainda estava na superfície é absurda, assim como a justificativa para a alta tecnologia, como eram com as amazonas de Themyscera. Ao mostrar o exemplo de Mera e Atlanna há uma boa exposição de como o machismo e o patriarcado funcionam no reino dos homens seja em terra ou em mar. Apesar de não haver tanto aprofundamento dessa questão, a discussão sobre mestiços e imigrantes é muito bem explicitada.
As cenas de ação poderiam ter ficado mais reservadas ao filme, muito do impacto na parte inicial e no meio é perdido por conta do material de divulgação, mas no final as sequências inéditas são eletrizantes. As criaturas selvagens do Reino do Fosso são visualmente assustadoras, e funcionam quase como um legado de horror de Wan. Toda a mitologia do personagem é muito bem explorada apesar de não gastar muito tempo explicando.
A luta final peca um pouco por soar genérica, com muito slow motion entre o Aquaman já todo paramentado e com o Mestre dos Oceanos. Aquaman é divertido como se espera de um filme escapista de herói, que obviamente tem preocupações mercadológicas em vender merchandising mas que ainda arruma tempo para dar vazão a algumas discussões.
Sol Alegria é um filme que parte de um cenário político brasileiro fantasioso, mais ainda calcado um pouco na realidade de 2018 e 2019. O país é governado por uma junta militar e boa parte dos pastores evangélicos atribuem as desgraças que acontecem ao povo ao apocalipse que se avizinha. Em contraponto, uma família viaja para entregar armas a um grupo de militantes opositores formado por freiras, e que vivem da renda de uma plantação de cannabis. O objetivo do grupo é chegar à salvo na aldeia da Falange Sol Alegria.
Essa família tem métodos violentos e mata qualquer opositor seu, ou seja, assassinam os pastores, bispos e demais religiosos, a fim de tentar enfraquecer seus inimigos, além de estabelecer uma oposição mais enérgica e menos afeita as idéias de paz e amor, ainda que no comportamento de toda a família exista a mentalidade de amor livre.
Há no filme de Tavinho Teixeira e Mariah Teixeira uma proximidade temática aos filmes recentes de Adirlei Queiroz, Era Uma Vez Brasília e Branco Sai, Preto Fica, embora claramente Sol Alegria seja muito mais apegado ao metafísico que esses dois, e tenha discussões voltadas para outro espectro de excluídos. Em comum entre esses universos, há a questão de um governo onde conservadores são soberanos e quem sofre são as minorias e periferias.
A ideia que o roteiro propõe é que os desvalidos e mazelados se unam e provoquem o mal com violência aos que se valem da autoridade e poder para espalhar seus próprios preconceitos. Para isso os estereótipos são normalmente invertidos, com algumas das freiras sendo interpretadas por homens, com relações sexuais homo-afetivas vividas de maneira incestuosas, e claro, com o armamento da população mais pobre.
O modo como retratam a irmandade católica pode ser encarada por parte do público mais conservador como profano, basicamente porque o longa retrata esse grupo formado por pessoas sem maiores prendimentos morais ou recalques sexuais. Cada um lida com sua sexualidade como quer e a nudez não só para eles como para quaisquer dos personagens centrais é um aspecto hiper natural, não erotizada, necessariamente. Entender que os católicos de Sol Alegria são apóstatas basicamente revela uma fobia não só ao sexo, como também um desejo egoísta de que qualquer gênero que perverta ou subverta os parâmetros de heteronormatividade, o que por si só é anti-ético e desonesto, não só pela crueldade da exclusão, mas também pela tentativa fracassada de tentar velar ou envernizar um preconceito.
Nota-se também uma forte influência de dois diretores estrangeiros, Bruce la Bruce, em especial o recente Misandricas, que também representa o grupo religioso católico de forma que foge dos clichês, e John Waters, sobretudo os produtos mais undergrounds como Problemas Femininos (Female Trouble) e Viver Desesperado (Desperate Living), que tinham uma visão de mundo muito particular, dadaísta e niilista, em comum com o filme dos Teixeira, há o fato de se basear em espectros políticos de seu tempo para evocar a vilania.
O final do filme, com o número artístico da família, tem seus altos e baixos, além de ser um pouco extenso, mas ainda assim reflete bem como a sociedade fora dos parâmetros estabelecidos. O fato de apelar para um discurso escatológico, de quase fim da humanidade obviamente não ocorre por conta daquela família que Sol Alegria acompanha, tampouco os residentes da chácara que leva o nome do filme, e sim dos agentes externos a tudo isso, e essa sensação de revolução libertária é muito bem pontuada por Tavinho e Mariah e faz temer a que ponto a realidade tangível poderá se aproximar do estado do filme.
É interessante para nós, brasileiros, falarmos sobre o papel de um jornalista num dos países mais intolerantes do mundo para com o seu trabalho investigativo, e que por tantas vezes auxiliou a história humana a tomar novos rumos, e a conhecer novos caminhos diante de certos absurdos, e polêmicas carentes de elucidação. A revelação aqui é clara, e objetiva: o renomado profissional francês Jacques Mayano, desligado de quaisquer práticas religiosas e focado apenas nos aspectos mais mundanos possíveis da realidade das coisas, sempre envolto a livros e casos bem-sucedidos de investigação jornalística, mergulha de cabeça no caso de Ana (uma jovem noviça francesa que afirma ter contato com a própria Virgem Maria), após requerimento do próprio Vaticano para que ele se envolva nos desafios dessa premissa, e dela venha a retirar a verdade como já está habituado de fazer.
Nada mais do que a verdade, e da maneira mais confidencial possível. Nas mãos de Hollywood, com certeza esta seria uma oportunidade perfeita para brincar com os típicos arquétipos do Cinema de horror, ou melhor, mais uma das intermináveis homenagens (e plágios não-oficiais) de O Exorcista, clássico de 1973. Contudo, A Aparição se beneficia por demais de uma visão mais cult e intelectualmente instigante da relação entre um homem mundano, e a fé, sem exageros ou algo do tipo. É notável o quanto o filme, contido em sua plenitude, consegue criar e manter, fluindo por sua trilha-sonora e no seu inteligente uso de simbologias religiosas, uma aura tanto mística quanto de interesse por sua história de inegável sobriedade artística quanto a direção que a trama vai tomando, no desenrolar constante das verdades que Jacques extrai de um novo mundo, para ele.
Um mundo em que qualquer evento sobrenatural não é visto com tanta surpresa e estranheza, assim. Ao passo de sua aceitação do trabalho, Jacques, junto de outros jornalistas encarregados do mesmo, mantêm relações com as provas da existência de um sagrado de uma forma que prontamente eles sequer imaginaram vir a passar. Tal situação vai ao encontro de uma moral jornalística que faria qualquer profissional da área delirar com as possibilidades que um caso desses oferece, e com o nosso protagonista não é diferente. Mesmo não acostumado com esse universo “assombrado” pelo “inexplicável”, Jacques usa de sua paixão pelo ofício e age como arqueólogo trilhando as veredas (e as incertezas) de um atraente desconhecido. Tanto que podemos ver nos olhos do ator Vincent Lindon (deO Valor de Um Homem), em ótima atuação, o quanto o cristianismo pode ser um mar insondável e traiçoeiro aos que nele ainda estão aprendendo a nadar.
O que fazer, que medida tomar diante do que não pode ser cientificamente comprovado, mas que se manifesta diante de olhos despreparados ao manifesto? Eis o dilema que desafia o ceticismo do homem, e a imparcialidade do profissional. Tal roteiro, que passa a evocar cada vez mais a curiosidade do jornalista e sua desconfiança por vezes para com a veracidade dos fatos, quase não dá margem para o lúdico e o poético que tanto habitavam, intrínsecos, os espetaculares e antigos filmes de viés religioso de Luis Buñuel, por exemplo, o que de maneira alguma é algo prejudicial. Ao invés de injetar realismos no sobre humano, aqui temos o contrário, mixando até o final o que pode ser irreal dentro da lógica da realidade, através de uma bela ótica cinematográfica que pouco se vê na produção contemporânea fora do cenário europeu.
Quando Anna, a garota santificada pelos olhos da igreja e parte do mundo vai até um shopping, experimenta então o ambiente do fútil pela primeira vez. O consumismo que verte dos manequins e que faz as pessoas tão reféns de suas compras, quanto a mesma do seu contato com o sagrado. Já quando Jacques a vê, vê nela exatamente isso: uma garota normal nesse mundo moderno e frio, cuja missão que diz ter é grande demais para seus ombros amparados apenas pela fé do que ela diz ser real; quase palpável. O filme de Xavier Giannoli se interessa pela investigação do intangível, e do improvável, enquanto elementos que desnorteiam a nossa percepção da realidade. É justamente especulando a existência do que vai além das nossas certezas que A Aparição se constrói como um verdadeiro suspense dramático sobre a relação imprevisível, simbólica e por vezes tensa que o ceticismo pode viver casando-se com o oposto que tanto o atrai, e que pode vir a consumi-lo por inteiro. A luta de poderes é grande, e da forma elegante como o filme a constrói, de fato chega perto do grau de excelência almejada que se propõe, desde o início, a alcançar.
É sempre inebriantes e deparar com um diálogo num café de rua entre um homem, e uma mulher, sendo tratado como algo vulcânico e imprevisível como assim deve ser, sobretudo num filme latino-americano em que as relações humanas são tão importantes quanto a luz incidindo sobre esses personagens, todos(as) sob constante choque (i)material. Mas o que acontece antes e depois desse diálogo é o que importa: Eles se casaram cedo demais. Os jovens Rímini e Sofia estavam fadados ao fracasso, mesmo depois de doze anos juntos, criando e alimentando suas cicatrizes entre os tapas e beijos, o silêncio e a verborragia de sempre.Se separam, vida que segue, e aqui começa o filme. No lugar que restou ao passado no decorrer de uma nova casa, cheia de novas possibilidades e tinta sobre tinta chamada futuro.
Ao Sherlock Holmes de um pretérito inesquecível, restava mesmo explorar os meandros do destino que nos fazem desviar de um grande amor que, afinal, nunca ia ser eterno.Estamos falando daquela que nunca esquecemos, vulgo alma gêmea. A pessoa que sempre volta porque tudo (ou quase tudo) é um gatilho que nos remete a ela. Não que Hector Babenco nunca tenha explorado isso, em Ironweedprincipalmente, seu primeiro filme inteiramente feito em Hollywood, cujo tema do amor perdido duelava com outros tão importantes quanto, na história do casal de Meryl Streep e Jack Nicholson. Em O Passado, porém, o tema não encontra paralelos dentro da trama, e reina sozinho numa história de amores loucos, como o próprio cineasta definiu, inseguro,o seu próprio filme.
Palco de um ator só; monólogo exclusivo. Tudo gira em torno de um sentimento vivo, materializado no sexo, nas discussões, em outras mulheres que como numa música de Caetano, não fazem Ríminientre viagens e outras bocas esquecer Sofia (que sempre reaparece nos momentos de conflito), nem no mais íntimo e prazeroso dos momentos de fuga. Babenco sabia muito bem como mostrar um personagem se deteriorando, de dentro pra fora, perdido em outros espaços, outros embaraços, com Gael García Bernal dando um show de atuação – na época com apenas 29 anos de idade. Notável como suas melhores cenas são as que contém menos diálogo, apostando tudo na performance de um ator nada menos que incrível. No lançamento do filme, há uma década, Babenco afirmou para uma revista brasileira que não tinha um jovem ator brasileiro à altura de Gael, e que tampouco sabia dirigir melodramas. Felizmente, verdades absolutas parecem não existir, muito menos na era da pós-verdade.
Falsa modéstia do hermano mais brasileiro que já existiu, ou não, fato é que após Carandirue uma carreira inteira de filmes aclamados, e outros nem tanto, Babenco já mostrava sinais claros de cansaço criativo, e uma melancolia incômoda que por vezes não acrescenta em nada, pelo contrário: age aqui subtraindo grandezas dramáticas, fazendo muitas vezes o filme simplesmente não chegar a lugar algum. Babenco filmou o livro do argentino Alan Pauls como se tivesse colado as páginas nas lentes de sua câmera, sem pressa, mas sem muito tesão, também. Faltou Cinema e sobraram vontades. Mesmo assim, o domínio cênico do diretor continuava impressionante nesse seu penúltimo ímpeto, e há um fator principal aqui a provar isso, em pequenas grandes cenas de um filme repletos de velhas novidades pipocando, aqui e ali, por quase duas horas: sexo. Coisa rara não só pra muita gente, mas pro Cinema, em si.
Sabe-se que são poucos os filmes que já o tiveram de forma completamente verdadeira, orgânica, profunda e honesta com o ato, gotejando-o tão sincero na narrativa que se tornou memorável na vibração dos corpos, em cena. É raro o sexo explodir na tela, mais raro que aqueles cem reais que nunca encontramos perdido na calçada. Contudo, a cena final de O Passado emblema algo próximo a “aquele” nível de descortinamento sexual que poucos cineastas podem encher a boca e falar que alcançaram, um dia, nessa mídia chamada Cinema. Captar uma espécie de tesão inegável que escorre da pele das pessoas não é pra qualquer um, Babenco sabia disso, os melhores sabem, e filmava o tesão sussurrado entre quatro paredes de um jeito indescritível, e tão vívido, que fazia ser real – ao invés de parecer ser real. Talvez uma baita cena dessas, filtrada pela visão de um mestre na sua penúltima obra, seja então uma das recompensas principais desse belo e regular filme afinal de contas, por mais superficial que uma constatação dessas possa ser aos interessados.
Filme de 2016 com clima e atmosfera típica das fitas antigas de décadas atrás. TheLove Witch é um filme de Anna Biller, que também fez o roteiro e é pessoalmente responsável pelo belíssimo figurino do filme. O longa conta a história da jovem Elaine (Samantha Robinson), uma bruxa iniciante que vive seus dias entre tentar tocar a vida após uma bruta decepção amorosa, e claro, as iniciações nos ritos de feitiçarias.
Elaine é dona de uma beleza clássica, típica das pin-ups dos anos sessenta, até a criação de sua maquiagem remete a um tempo pregresso, fazendo lembrar os filmes de terror mais antigos, desde as comédias Elvira: A Rainha das Trevas e Da Magia a Sedução, como também os longas mais caros e clássicos de terror da Hammer Films. A mistura entre o gótico e o psicodélico se manifesta tanto no visual quanto nas relações entre a personagem principal e os outros.
O roteiro em alguns momentos é tão explícito que chega a ser didático em especial nos assuntos que se relacionam com a figura da protagonista e com visões mais progressistas no papel que a mulher exerce social e cotidianamente. As vítimas dos feitiços são atacadas entre outras coisas graças aos pecados que elas cometeram ao longo de suas vidas, normalmente associando a violências ou violações de privacidade das mulheres. No entanto, o discurso político não soa panfletário, ao contrário, é bem humorado, mesmo que possa chocar as plateias mais conservadoras.
Boa parte dos cinéfilos que assistiram The Love Witch se perguntaram se Elaine funciona ou não como alter-ego da cineasta, no entanto, se ela é ou não é um fato irrelevante, já que as ideias que ela professa e a vida que leva reúnem elementos comuns aos anseios de qualquer mulher adulta, a diferença é que dentro desse universo fantasioso e canastrão estabelecido aqui, ela consegue cumprir algumas das violências que muitas pessoas apenas sonham em realizar.
Quinto capítulo da saga de Harry Callahan, Dirty Harry na Lista Negra começa mostrando a violência em São Francisco, e logo depois, foca nas mãos do vilão, um homem misterioso que faz uma lista com oito nomes. Um dos nomes é exatamente o de Callahan, fato que faz com que ele seja pessoalmente interessado em resolver a questão.
Em determinado momento são mostrados dois personagens, o diretor de filmes baratos Peter Swan (Liam Neeson) e o problemático ator Johnny Squares (Jim Carrey), um junkie que após fazer um escândalo no set de filmagem e se picar com heroína, é assassinado dando à famigerada lista um caráter maior que mera especulação. É engraçado ver ambos em início de carreira, dando o pontapé inicial em um filme tão criticável.
Buddy Van Horn é o diretor, o mesmo que já havia trabalhado com Clint Eastwood, em Punhos de Aço – Um Lutador de Rua e Cadillac Cor de Rosa, mas o roteiro de Steve Sharon, faz com que esse seja o capítulo mais combalido e fraco da saga, série cinematográfica que ia caindo de qualidade de filme a filme. Ao menos, Horn consegue algumas boas imagens, ao manter incógnito seu vilão, utilizando a visão em primeira pessoa para emular os monstros e assassinos slashers que atacavam suas vítimas, como em Tubarão ou Halloween. Há momentos bem icônicos e divertidos, como a utilização de um carrinho remoto com uma bomba atrás dos heróis ou o desempenho de Carrey ainda muito novo, como uma estrela inconsequente que reúne elementos de rockstar e ator mimado.
No entanto, o final do longa é confuso, envolvendo personagens periféricos à rotina de Harry, que são postos em perigo e o detetive deve ir até lá, para resolver o caso. Toda a questão é mostrada de uma forma extremamente artificial. A maior parte dessa série de acontecimentos é simplesmente jogada, não há muito desenvolvimento, somente uma série de coincidências incômodas, tornando este Dirty Harry na Lista Negra um dos produtos menos inspirado da franquia, e claramente Eastwood já não parecia à vontade interpretando um de seus célebres personagens.
A surpresa por traz de O Chalé é Uma Ilha Batida no Vento e Chuva é enorme, pois seu começo de certa forma não faz jus a toda a complexidade de texto e de atmosfera que o decorrer do filme trará. A ideia por trás dessa história veio do desejo da diretora, Leticia Simões em retratar um pouco da vida e obra do romancista Dalcidio Jurandir. Para isso, ela decide viajar até o Pará praticamente sozinha em um lugar que mal tem sinal de celular para tentar capturar um pouco de quem era Dalcidio.
O documentário não se apega a muitas fórmulas e ao invés de perguntar às pessoas o que elas achavam de Dalcidio, basicamente mostram os lugares que ele frequentou acompanhado de seus textos. A investigação passa por escolas do Pará, onde são entrevistados alunos e professores e há um interesse genuíno pelas perspectivas de vida dessas pessoas. A reflexão sobre a educação acaba sendo não só local, mas nacional, e desata alguns nós e dúvidas bem específicas. Uma professora diz que boa parte dos pais prefere colocar os filhos para trabalhar ao invés de estudar, enquanto outros profissionais falam de algo óbvio que é o desrespeito que boa parte dos alunos tem em sala de aula.
Os versos de Dalcidio são ótimos e bem escolhidos. A justaposição das imagens com o som de suas palavras é muito boa mas em alguns pontos a narração não soa tão acertada soando inclusive burocrática. Apesar de Simões ter uma voz boa, em alguns momentos soa excessivamente lento, mas em tanto outros a leitura é intensa, e mesmo quando não está perfeito ainda há naturalidade. As divagações sobre literatura e como fazê-las agrega demais às imagens coletadas. Algumas cenas claramente tem as lentes sujas e colabora com o longa, já que conversa com um cinema de verdade, feito com baixo custo, suor, esforço e muito trabalho.
Há um ternura muito forte e a captação do trivial que a diretora faz condiz demais com o que fala a obra de Dalcidio. As cenas por dentro do rio, nas águas do arquipélago de Marajó filmadas a partir de uma jangada são de um primor tremendo e o resultado final de O Chalé é Uma Ilha Batida no Vento é uma celebração à vida no norte do país, além de evocar a memória de Dalcidio de maneira muito tocante, talentosa e bela.
Antes mesmo de qualquer explicação, o filme de Sérgio Tréfaut começa com um assassinato envolvendo seu protagonista, um homem de chapéu e sobretudo preto segurando uma carabina antiga e matando algumas pessoas. Raiva é baseado em Seara de Vento de Manuel da Fonseca e mostra uma família sem recursos, e que recai sobre Palma, personagem de Hugo Bentes, a tarefa de tentar sustentar os familiares, ainda que não tenha trabalho.
Tréfaut traz à luz um western contemplativo, em preto e branco, e que fala sobre necessidades básicas. A busca de Palma, após o início acachapante é basicamente por dinheiro. Nesse ponto se percebe o desespero de toda a família, e o foco narrativo passa a ser nas lamurias e lamentações dos parentes, que acreditam que morrerão caso um milagre não aconteça, e esse prospecto não está muito longe de ser real.
Apesar da ausência de cor o cineasta consegue captar bem as paisagens de Alentejo, as áreas desérticas que massificam a sensação de desolação, seja da fome que se alastra como o vento ou os assassinatos que acontecem quando o sol deixa aquelas planícies. Tanto a escassez quanto esse conjunto de atos violentos são só algumas das mostras de como o Estado simplesmente ignora o cidadão do interior, não há qualquer menção de ação do poder público.
A denúncia que o diretor luso-brasileiro tenta estabelecer evoca o emocional, pois é difícil assistir o drama pelo qual passa a família de Palma sem sentir ao menos algum desgosto, mas também é pragmático e até um pouco cínico em seu roteiro, ao citar as forças mafiosas que habitam o interior, representadas pela figura de Elias Sobral (Diogo Dória). Raiva é um filme contemplativo mas que não tem medo de escolher um lado político, criticando veementemente a ignorância de forças políticas às ações de gangsters, e obviamente, ataca a falta de assistencialismo a essas família.
Há um aviso no começo da exibição afirmando que este é um filme fictício e que não há fatos ou pessoas reais expostos ali, e isso se dá porque Diamantino, novo longa de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt começa mostrando um jogador de futebol português que lembra o ex-melhor do mundo Cristiano Ronaldo. A obra leva o nome desse jogador, que é interpretado por Carloto Cotta, que aquela altura, está disputando entre os melhores do mundo e esperando a grande final que lhe fará (ou não) ganhar uma taça que seu time não tem.
Matamouros (sobrenome do protagonista) está em um iate e percebe um drone cercando sua embarcação, fruto esse do grande assédio e perseguição que sofre por ser uma celebridade e ter sua vida privada sempre exposta. Após perder um lance decisivo na Copa toda sua carreira é posta em descrédito e ele decide se dedicar a causas comunitárias, porque supostamente seu talento com a bola nos pés havia acabado – isso não é totalmente comprovado.
Todo o entorno dele é extremamente estranho, ele vive com duas mulheres belíssimas, que apesar de serem tratadas como suas irmãs, Sonia (Anabela Moreira) e Natasha Matamouros (Margarida Moreira), o tratam de maneira mimada, com tantos carinhos que há até a possibilidade real de tratar-se de algo incestuoso. A culpa e responsabilidade que recai sobre ele também é de se estranhar, uma vez que aparentemente ele levou seu time a uma final inédita praticamente sozinho.
O protagonista se envolve com comerciais estranhos e xenófobos, que pregam a saída de Portugal da União Europeia tal qual fez a Inglaterra no Brexit, mas ao mesmo tempo se envolve emocional e sexualmente com uma refugiada muito bonita. O roteiro de Abrantes e Schmidt apela para o lúdico, mostrando cachorrinhos em tamanhos gigantes em meio aos sonhos e ilusões de Diamantino, onde o esportista interage com eles, possivelmente referenciando as dificuldades que teve em manter sua carreira de jogador de alto nível viva, em contraponto a uma visão do homem comum que considera que sua rotina é somente de um homem privilegiado, e mesmo que seja assim, claramente ele tem suas agruras e dificuldades, ainda mais porque boa parte dos jogadores de futebol profissionais tem ao menos em sua origem algo muito humilde.
Diamantino é poético, tem um discurso e um desfecho em aberto, mostrando um homem que tem seu emocional arrasado basicamente pelas expectativas dos outros em cima de si, que apesar de ter financeiramente tudo, tem dificuldade em encontrar sua identidade, chegando finalmente a uma conclusão após perder boa parte dos luxos que sempre teve enquanto esteve na ativa.
Filmado em preto e branco e levando em conta a cidade carioca do Rio de Janeiro como cenário, começa o exercício de Murilo Benício para adaptar a peça de Nelson Rodrigues, O Beijo no Asfalto. A primeira cena mostra um rapaz atravessando a rua, e sendo pego por um ônibus, sob o olhar do personagem de Stênio Garcia. Logo, a quarta parede é quebrada, e uma série de atores famosos aparecem em uma roda, ensaiando e fazendo teste de roteiro.
A discussão do elenco destaca a análise do texto, entre elas, a capacidade da polícia e da imprensa, num trabalho conjunto de produzir fatos dramáticos, para vender jornal. Para que as cenas soem mais reais, há a presença do teatrólogo e diretor Amir Haddad, no centro das articulações, conduzindo narrativamente os artistas na direção do texto de Rodrigues e a forma como os atores fazem as cenas é tão realista que lembra realmente as reconstituições de crime feitas pela perícia da polícia, e de fato, é sobre isso que a peça fala e discute, embora exista um inquérito dentro da história, mas que não é fidedigno ou preocupado com a verdade, e sim preocupado em criar um factoide. Benício utiliza sua força como ator e astro para apresentar uma crítica a manipulação midiática apoiada pelas autoridades do baixo e alto clero, no caso aqui, do baixo.
Esta versão é bem mais explícita que a de Bruno Barreto nos anos oitenta, embora não tenha alguns momentos de nudez que há na outra encarnação. A escolha por fazer algo teatral conversa com a ideia original de Nelson Rodrigues, e propicia uma força enorme para o drama, não só para quem está se derramando como personagem, a exemplo de Garcia, que brilha muito, mas também para os atores que discutem, como Fernanda Montenegro, que diz ter feito Selminha quando jovem, e que a gritaria que Débora Falabella faz tem que ser histriônica mesmo, pois eram outros tempos, os anos sessenta, e esse tipo de notícia no subúrbio carioca que serve de cenário acabaria com a moral daquela família, e Montenegro estava correta, a realidade entre as zonas sul e norte é enorme.
Benício acerta demais na adaptação de seu roteiro e no elenco, ainda consegue aludir a hipocrisia da sociedade que condena o homossexual além de mostrar como a manipulação da imprensa pode esmagar um homem comum. Poucas vezes a obra de Nelson Rodrigues foi tão acertadamente traduzida como aqui, e ainda de maneira tão emocional e delicada, soando forte como a versão anterior de Barreto, mas completamente diferente narrativamente.
Nos créditos finais, Montenegro descreve como foi uma das peças de Nelson Rodrigues, destaca que seu texto prevalece o teatro da culpa, e fala das vezes que Nelson era enquadrado pelo público, que vez por outra o chamava de tarado e de inimigo da família tradicional brasileira, e lembra que ele era repórter de polícia antes de enveredar pela dramaturgia. Essas lembranças são algumas das mostras da reverência de Benício a obra do escritor e cronista, para muito além até da escolha de uma de suas peças para a sua estreia na direção cinematográfica.
Tinta Bruta é um filme que reflete sobre a condição humana, focado em pessoas que tem problemas sérios de timidez, como é o caso em específico de Pedro, personagem de Shico Menegat que já no começo é interrogado por conta de um caso de agressão que teria cometido, e que mais tarde é revelado o motivo do acontecido. O filme de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon saiu premiado do Festival do Rio, e não é a toa.
Na parte onde Pedro é entrevistado, recomendam que ele prenda o cabelo, fato pequeno, mas que o incomoda, já que ter o cabelo daquele tamanho é para ele uma manifestação visual de como ele quer ser, sem freios. Ainda durante esse inquérito, é dito através da leitura dos depoimentos de terceiros que ele é incapaz de relacionar com os seus colegas, e que esse foi o principal motivo para ser expulso, ainda que esses motivos sejam discutidos ao longo da história. Fato é que ele só se relaciona com a sua irmã, Luiza, interpretada por Guega Peixoto.
Não se sabe se por vontade própria ou por falta de trabalho – ou por um misto dos dois – Pedro acaba trabalhando como CamBoy, com o pseudônimo Garoto Neon, onde utiliza tintas para fazer seus números. Pedro não tem exatamente uma zona de conforto, mas até o pouco que lhe causava conforto é tirado, uma vez que Luiza irá morar na Bahia, além de estar sendo plagiado, em seu trabalho com tintas. Esses fatos fazem o garoto entrar parafuso, se desesperando para encontrar uma saída para esses e para outros problemas que vão aparecendo, incluindo aí os comuns à vida adulta moderna.
Pedro é um rapaz normal, com os mesmos problemas e virtudes típicos da puberdade, não se aceita tanto quanto deveria e não se adapta a vida sempre conectada, mesmo que sua função empregatícia seja ligada a internet. As relações que ele tem passam ou por uma necessidade de enorme carência ou por uma frieza terrível. Mesmo os contatos que não envolvem troca de intimidades também não são usuais, quase sempre com brigas ou defesas contra a violência. A naturalidade com que se trata desses assuntos espinhosos é bem mais tocante do que Beira-Mar filme anterior dos diretores.
A solidão parecer ser a tônica do destino do protagonista, mas a parte 3, apelidada de Garoto Neon parece ser a de realmente chegar a uma conclusão sobre quem Pedro é, e quais necessidades ele deve suprir. Em um momento aleatório, ele afirma que a tinta que usa não é tóxica e de certa forma, o modo com ele as usa o torna imune a toxicidade de algumas pessoas que tentam se aproximar. Apesar de ter um desfecho bastante melancólico, Tinta Bruta termina de maneira otimista, compondo enfim um quadro onde o futuro pode finalmente ocorrer.
Wilson Simonal foi um ícone muito grande da música popular brasileira. Era mais que um simples cantor, era um artista indiscutivelmente diferenciado, um sujeito que tinha uma performance quase mágica e que teve uma derrocada cujos motivos são muito discutíveis, como já foi mostrado em Simonal: Ninguém Sabe o Duro Que Dei, documentário de 2009. A versão cinebiográfica ficcional é comandada por Leonardo Domingues, acostumado a montar e editar filmes, comandando o projeto desde o Festival do Rio de 2013 onde fez uma reunião nos bastidores e começou a discutir sobre como faria a biografia do artista. Apesar de não ser perfeito e de só ter a estréia prevista para 2019, Simonal é curiosamente bem atual, por falar em questões políticas, fake news e até mesmo delação.
O momento inicial do filme é quase um epílogo, mostrado em um plano sequência lindíssimo no backstage de um show de retorno de Simonal, em 1975, no auge da Ditadura Militar e de sua rejeição. Assim que Fabrício Boliveira aparece cantando, ele começa a ser vaiado e ao menos em seu começo, Domingues torna seu filme poderoso, o problema é a condução a seguir.
O roteiro de Victor Atherino volta quinze anos no tempo, e mostra o antigo conjunto musical do protagonista, e sem qualquer preparação, o Simonal de Boliveira já é mostrado como um homem ousado, ao entrar na piscina de sunga, mesmo sendo um mero serviçal como músico, em uma festa da alta sociedade. Essa sequência é bem passível de ter ocorrido, mas ela é apresentada de maneira caricatural e isso é uma constante no longa. Não demora a aparecer personagens importantes na história do cantor, Leandro Hassum faz Carlos Imperial, o homem que o descobriu como cantor solo (e a caracterização é bem feita, a despeito do péssimo desempenho de Hassum em comédias recentes como Candidato Honesto 2) e de Teresa, sua futura esposa interpretada pela deslumbrante Isis Valverde que já havia feito par com Boliveira em Faroeste Caboclo. A grande questão é que a história do cantor é tudo, menos chapa-branca e o filme de Domingues flerta com um lado pudico muito forte.
Boliveira é indiscutivelmente um ótimo ator, mas não consegue capturar o caráter carismático de Simonal, e nem replica o mesmo molejo e pilantragem, ao menos na maior parte dos momentos, seu desempenho é repleto de altos e baixos. Toda a sequencia da historia no beco das garrafas é muito boa, e João Velho faz uma versão de Luis Carlos Miele maravilhosa e faz acreditar ali que ele é o Sinatra com melanina, em compensação as partes onde ele grava no estúdio são péssimas, com um lyp sync vergonhoso. Quando o protagonista flerta com mulheres, Boliveira acerta mais, soando natural, e especialmente, em suas performances no palco. Há um brilho especial do ator nesses momentos.
Há uma cena em específico que é primorosa, onde Simonal está cantando, faz o público entoar um coro, vai andando pela saída lateral e se retira do teatro para tomar uma pinga no bar do lado, retornando depois, mais uma vez utilizando um plano sequencia. Domingues mostra que sabe filmar e sabe inserir momentos grandiosos em seu filme, por mais que não seja perfeito, ele é bem correto.
O filme é um bocado refém das datas marcantes e se repete muito nesses ciclos e apesar de tudo tem momentos divertidos, e traz algumas discussões sobre afirmação do negro e do consumismo. Ele cai em alguns panfletarismos baratos, em especial quando o personagem de Silvio Guindane retorna a vida do biografado, e também não dá a importância devida a algumas questões pontuais, como o vício em remédios de Teresa, na verdade, referencia muito essa questão mas não dá uma importância real, só sugere algo.
Toda a parte da derrocada e da crença que o contador está fazendo um rombo nas suas finanças ao menos acerta mais que o documentário de 2009, pois demonstra como ele era um sujeito impulsivo e não calculista. O roteiro compra o discurso de que Simonal foi vítima das circunstâncias, e tem momentos bem construídos, mas a ânsia por contar uma historia tão complexa não é recompensada com um filme completo, ao contrário, há muita pressa da produção por falar de muita coisa, e claramente 105 minutos não foram suficientes para comportar uma história tão complexa. Claramente, Simonal tem problemas e virtudes, mas acima de tudo possui alguma alma.
Há cineastas e produtores das mais variadas pretensões. Desde revolucionar com muita grana o espetáculo cinematográfico que conhecemos (James Cameron, Steven Spielberg, Kevin Feige), até representar a alma efervescente do país e do momento em que enfrenta (Jean-Luc Godard, Glauber Rocha, Roberto Rossellini). Claro que o esforço do primeiro tipo ganha muito mais atenção por parte do público, mas abençoado seja aquele que não perde o foco da sua ambição. No caso de Paul Feig, do sucesso Missão Madrinha de Casamento (inexplicável, até hoje) e o Caça-Fantasmas de 2016 (todos têm um Esquadrão Suicida na carreira, certo?), o cara faz o tipo do entertainer mais clássico que há, o que apenas deseja divertir a plateia, mas diferente dos mestres que tanto nos fizeram rir até mesmo sem falar uma palavra, ele por sua vez vive para apostar o seu (nosso) tempo em produtos fabricados para serem degustados, e afetados pela amnésia que vem na volta a realidade que seus filmes nunca nos conseguem fazer fugir, de verdade.
A primeira dúvida do espectador pode ser aonde está Melissa McCarthy, presente em quase todos os filmes de Feig até agora, e aqui substituída pela doce Anna Kendrick, sempre perfeita para o papel da “inocente” melhor amiga, no caso, da super mulher executiva e rica que conhece, Emily (Blake Lively), quando ambas se cruzam indo buscar suas crianças, na escola. Uma é o contraponto genérico da outra: Stephanie parece ser uma vlogueira prestativa e cheia de coração, enquanto Emily parece seu oposto, avisando-a desde o começo: ‘Você não quer ser minha amiga, querida’. Ambas “parecem ser” porque essa é exatamente a premissa de Um Pequeno Favor. Eis aqui a modelação do que as pessoas parecem ser, seus arquétipos tidos como verdadeiros até certo ponto, e a remodelação disso para expor as suas verdadeiras e surpreendentes identidades. Nisso, a amizade entre duas mulheres vai mudando de tom, e o filme também; muito sutil e inteligentemente.
O que começa como mais uma comédia despretensiosa ganha novos traços que certamente o espectador desavisado nem sonha encontrar, pelo caminho. Feig tem com Um Pequeno Favor o seu melhor filme, leve como sempre, mas desta vez com uma trama baseada no romance de Darcey Bell a investigar, com o mesmo dinamismo de sempre (e toques de um suspense mais que suave) o que, de fato, um rosto angelical ou uma postura competitiva podem resguardar; aquilo que as máscaras do cotidiano escondem de bom e ruim – até certo ponto. É O Discreto Charme da Burguesia sendo descortinado de forma ultra simplificada e adocicada, não só pela boa presença de Kendrick, mas pela construção de um Cinema que não possui debates temáticos e reflexão como seus fundamentos principais, e sim o entretenimento, puro e simples, como principal força, e pulsação. Pela primeira vez, Paul Feig decide inserir algo a mais numa comédia romântica, e o resultado é deliciosamente satisfatório.
Lars Von Trier se tornou um cineasta refém de suas marcas dentro e fora das telas. Depois de Ninfomaniaca Vol 1e Ninfomaniaca Vol 2, decidiu adaptar uma história que mostra um personagem psicopata, detalhando os assassinatos que ele comete em um movimento gradativo. A Casa Que Jack Construiu começa com uma conversa em off, entre o personagem principal (Matt Dillon) e uma pessoa que se faz de entrevistadora, e que mais tarde, ganha a alcunha de Virgilio (Bruno Genz).
Como é de praxe, o roteiro de Von Trier é capitular e o nome dessas divisórias é Incidente, e mira nos acontecimentos que envolvem os assassinatos que ele comete. O primeiro deles defronta ele, um sujeito tímido e antissocial com uma moça chata, interpretada por Uma Thurman que tem seu carro quebrado e não tem um macaco. Ele dá carona a moça e ela protagoniza uma conversa chatíssima, sugerindo que ele tinha cara de um assassino serial, e a inconveniência parece que gera nele um gatilho desse desejo.
Aos poucos, é mostrado que Jack é neurótico, tem mania de limpeza e transtorno obsessivo-compulsivo, e o roteiro de Von Trier acaba por ser tornar um filme sobre os métodos de violência e assassinato. O fato de gostar desses crimes é mostrado como algo a evoluir lentamente, assim como os modos dele dissimular, se tornando um enganador, mas que sempre precisa de alguma abertura por parte de suas vítimas, quase como um vampiro precisa de um convite para adentrar em uma residência.
Ainda nesse tomo, há uma cena dantesca, com o assassino arrastando o corpo da vítima, amarrada ao pára-choque do carro, deixando um rastro de sangue pelo caminho, com a chuva o salvando, providencialmente. Aparentemente, mesmo sendo frio e cético, ele é ajudado pelas forças sobrenaturais da natureza. Von Trier também apela para clichês do gênero, mostrando o personagem ainda criança mutilando um patinho, mostrando tendências sociopatas quando ainda era infante.
Ao menos em um ponto o filme acerta, que é no quesito de fazer um retrato de como um serial killer funciona, inclusive mostrando sua evolução, como a especialização em estrangulamento, assim como sua sofisticação em registrar as vítimas em foto, começando com quadros bem básicos, passando a tentar criar uma narrativa dali para frente. Depois disso ele passa a congelar os cadáveres com mais freqüência e seu TOC diminui, ou seja, seus defeitos se adéquam ao seu modo de operar.
Jack passa por estágios da evolução de seu quadro muito semelhantes aos estágios do luto, incluindo aí a negação de sua problemática psique. Ele tenta fingir por um tempo que não é um predador/caçador e pensa em adotar uma família, mas até isso é um verniz social, e até esse despiste ele acaba por perverter. Neste ponto, as críticas a Von Trier passam a ser justas, já que a referência a parábola da tartaruga e do escorpião é extremamente óbvia nesse trecho, e não se desenvolve o assunto para muito além disso. O diferencial talvez ocorra porque é neste ponto que ele começa a empalhar algumas vítimas, e se torna um taxidermista.
Quando passa a ser reconhecido pelo seu trabalho, Jack é chamado via imprensa de Senhor Sofisticação (Mr. Sofistication), mas a realidade em que vive abre mão de qualquer sutileza. Quando ele diz que se apaixona por uma mulher – Jacqueline (Riley Keough) – ela a humilha o tempo inteiro, inclusive chamando-o de Simple. O segmento dessa personagem foi o maior argumento por parte de quem detrata o realizador, afirmando que ele é um misógino, mas é exatamente nesse ponto que o roteiro explora um fato comum a muitos mulheres quando tentam denunciar maus tratos masculinos, pois mesmo quando a moça denuncia para os policiais o que aconteceu, mesmo com Jack repetindo em voz alta as maldades que já fez, as autoridades dão de ombros, não acreditando que aquilo é verdade, seja por uma misoginia ou pelo egoísmo vigente que tanto Jack quanto o cineasta acreditam predominar na normalidade humana.
A tática nazista de usar uma bala para matar muitos – com uma munição full metal jacket – é a demonstração dele utilizando pela primeira vez armas de fogo, e esse é o momento onde ele tem mais conflitos com pessoas que não suas vítimas. Aqui ele apresenta sua faceta mais agressiva e intolerante, e onde deixa mais lastro para ser encarado como o suspeito de ser o Senhor Sofisticação. Ao mesmo tempo em que ele começa a se definir como um artista da dor, ele também assume para Virgilio um leve desejo de ser pego, aludindo a um clichê freudiano, de que quase toda pessoa que tem necessidades psiquiátricas severas, tem em algum momento o desejo de não existir, isso se manifestando nesse desejo de ser pego
Se terminasse aí, o filme poderia até soar positivo, mas o epílogo é uma sucessão de eventos intragáveis. Toda a questão envolvendo os mitos gregos do inferno que Hades governa e os Campos Elísios, lugar onde os heróis e os servos dos deuses vivem e que só pode ser visto pelo personagem de longe é mega pasteurizado, sem falar que apela para um ecumenismo meio bobo, misturando mitos gregos com o judaísmo e evangelho cristão de uma maneira nada fluída. Nesse ponto, a pretensão de Von Trier grita e incomoda demais, ate mais do que no momento em que se autorreferencia, apelando cenas de seus outros filmes. A Casa Que Jack Construiu tem bons conceitos, mas sua narrativa é bagunçada, e muito refém da fórmula que o diretor estabeleceu. Em seu final soa como uma repetição das temáticas caras ao diretor, só que em um filme claramente menos inspirado, ainda assim, não justifica a ranzinzice com que foi tratado na maior parte dos reviews negativos.
O filme de Lucas Camargo e Nicolas Thomé Zelune começa com uma narração em off, enquanto a imagem vai lentamente se abrindo, com um foco redondo mostrando uma gravura. O Pequeno Mal trata de relações e da dificuldade do homem se abrir com o outro, e se enxergar como parte de um coletivo. Essas sensações são passadas ao espectador principalmente pela vivência de João (João Paulo Bienemann), um garoto bastante distante até de seu parceiro, e de Janaína (Janaina Afhonso), uma menina epiléptica que cuidavam um do outro, e decidem morar juntos, a fim de sobreviver na capital paulista.
No noticiário televisivo, se fala de um incidente que ocorreu na estação de metrô de Pinheiros, quando ela ainda estava sendo construída, e tal situação de calamidade de certa forma conversa com o ideário pessimista e niilista de Janaína e João. O filme se dedica a uma melancolia típica das metrópoles urbanas e se vale desse sentimento bastante comum para tentar arrebatar seu público.
O filme tem uma linguagem que foge um pouco das fórmulas narrativas mais catedráticas, deixa muitos conceitos e respostas em aberto, e isso pode incomodar um pouco o público. Sua duração é curta de pouco mais de 70 minutos e não há gorduras no filme, todos os dramas apresentados são desenvolvidos na medida. A desolação de alma dos personagens é muito bem exemplificada, seja pelos problemas de saúde de um ou pela dificuldade do outro em se relacionar carnal e emocionalmente com quem quer que seja.
Os elementos fantásticos dos quais o filme se mune são mostrados normalmente em momentos em que não há como distinguir se são reais ou não, e a dualidade faz o filme crescer, em especial porque o trabalho da direção de arte remete a um período meio barroco, fazendo lembrar as primeiras produções dirigidas por Roger Corman (em especial as que adaptam Edgar Allan Poe) e algumas da Hammer Films (as que tinham Christopher Lee e Peter Cushing, principalmente), mas O Pequeno Mal é bem mais que apenas um filme de referências, e apesar de não ser perfeito, demonstra um belo potencial da dupla de diretores.
Documentário de Fabiana Assis que fala sobre a condição de moradia no estado de Goiás e o espinhoso assunto relacionado as ocupações, Parque Oeste começa com um vídeo institucional sobre a capital Goiânia, uma cidade cuidadosamente organizada, ao menos é o que diz na propaganda. A diretora utiliza da ironia para quebrar a quarta parede e aliviar um pouco as tensões antes de começar a se aprofundar mais nas questões nevrálgicas de seu filme.
O documentário é conduzido e narrado por uma mulher chamada Eronilde Nascimento que foi moradora do antigo parque oeste, que anda tranquilamente pelas ruas da cidade como uma autêntica filha da terra anda sobre seu lugar de origem. A conversa com o restante do povo é bastante franca e toda gente que passa por ela é tão simples quanto a própria. Por mais natural que essa movimentação possa parecer nesse momento, houve uma época que não era exatamente deste jeito.
Segundo as pessoas entrevistadas, o Parque Oeste servia para desova de corpos e desmanche de carros antes de se tornar o lar de tantas famílias, não mais do que de repente muitas barracas começaram a aparecer, e aquelas terras foram sendo habitadas por milhares de famílias, em um movimento muito parecido com a favelização que tomou algumas das capitais do Brasil. Para muito além de qualquer discussão demográfica o que o filme de Assis tenta estabelecer é o óbvio, mostrando que o que tinha nesses espaço eram vidas habitando o lugar, mas esse entendimento básico não parecia estar no pensamento das autoridades.
Há uma gravação do então governador Marconi Perillo, intercedendo para que se apressasse a desapropriação dos terrenos, e que essa fosse executada pela Prefeitura. A fala de Perillo faz notar alguns fatos, primeiro o óbvio e total descaso com que ali morava e segundo o complexo de Pôncio Pilatos que tinha, pois queria lavar as mãos e deixar a violência política ocorrer através do poder municipal e não em sua alçada. A discussão que o filme propõe a respeito da moradia como função social se estende para além da teoria e se torna prática.
As cenas de tiroteio registradas por câmeras amadoras não são tão boas, basicamente por serem gravadas por pessoas sem técnica, no entanto, elas garantem uma veracidade absurda, pois são eventos reais registrados por quem sofre com as ações truculentas. As cenas são dignas dos fronts de guerra, e onde a qualidade das imagens peca em mostrar o mal agouro, seja por falta de qualidade ou por medo do cinegrafista, o som preenche o restante do imaginário de quem assiste e é simplesmente assustador, especialmente porque uma das “cenas” ocorreu às oito da manhã, com boa parte das treze mil pessoas que ali habitavam despertando do sono.
Os moradores se abrigavam em barricadas, para se proteger do lançamento de bombas, e mais tarde, um ônibus transportava os despejados. Esses eventos formam uma sequência tragicômica e quase teatral, apesar do pragmatismo hiper-realista das ações de garantia da lei e da ordem. Os policias batiam nas mulheres sem qualquer pudor e essa era só uma das muitas violências que ocorreram. Em torno de 3500 moradias foram derrubadas, com os tratores passando por cima das casas. Os desabrigados e despejados ficavam tão mal que cediam a paranoia e desconfiança até com as marmitas que recebiam do governo, temendo que essas estivessem envenenadas.
Algumas partes do longa-metragem já foram utilizadas em outro filme de Assis, Real Conquista, um belo curta também de cunho político. Parque Oeste serve não só como continuação dele, mas também como expansão da discussão e temática, tão emocionante quanto outro, causando e ampliando as discussões a respeito de moradia e o direito de ir e vir. Apesar de ter alguns problemas de ritmo, que dispersam um pouco do público, o desfecho é muito bem pontuado por um rap que fala da realidade das desocupações e do povo que sofreu na pele, morrendo, sendo despejado e destituído do direito à moradia.
O detetive de modo rude, Harry Callahan, sempre teve suas aventuras pautadas em outros produtos da cultura pop que faziam sucesso na época em que seus filmes iriam estrear no cinema mainstream, e Sem Medo da Morte antes mesmo da introdução de seu astro, é mostrado uma situação capciosa, com uma mulher atraente pedindo carona, fruto de um óbvio despiste, servindo de isca para as ações intempestivas de um grupo terrorista.
Harry (Clint Eastwood) é introduzido como de costume, após o mote que o fará se mover, tendo de resgatar refém de um malfeitor genérico, resolvendo a situação do modo mais truculento possível. Mesmo com a repetição de elementos, nota-se uma interessante e charmosa abordagem da estilo de vida dos anos setenta, especialmente na bela trilha sonora, repleta do som de metais do jazz, fatores que ajudam a datar ainda mais o protagonista/anti-herói em uma estética que de tão enérgica, beira o fascismo, resultando em uma busca por justiça a qualquer custo.
O universo em que habita Dirty Harry é amoral como era a atualidade em meio a libertação sexual, e isso se demonstra em dois pontos chave, o primeiro, anedótico, se dá quando em meio a uma perseguição onde o inspetor mal encarado “invade” o set de filmagem de um filme pornô, durante a gravação de uma cena de sexo grupal. Certamente tal aspecto jocoso se deu pela afeição do diretor James Fargo ao tema, lembrado especialmente em Doido Para Brigar… Louco Pra Amar, onde o tom escrachado era ainda mais evidente.
O outro fator, mais importante e simbólico, é o acréscimo da nova parceira do personagem principal, a detetive Kate Moore (Tyne Daly), que substitui seu antigo assecla, recentemente morto. Um novo conjunto de nuances deveria ser despertado, como a existência de movimentos como o feminismo, crescente em meio a revolução sexual que se instaurava, mas ainda invisível aos olhos conservadores de muitos homens, inclusive de Callahan, mas o que se nota é empáfia comum ao macho brucutu que despreza a mulher, unicamente por ela ser “inapta” a um trabalho tão bruto quanto este, ao menos na ideia retrógrada e conservadora vigente na época.
O roteiro tem alguns problemas sérios, como o de seguir com alguns estereótipos fálicos, como a associação do negro a violência, ainda que o racismo velado seja um pouco quebrado graças a figura interpretada por Albert Popwell (que já havia participado dos dois filmes anteriores, com cenas menores) chamada Mustapha, uma liderança em meio ao submundo criminal que trabalha aqui como informante de Harry e chega a vestir a máscara de mentor em determinados pontos da trama. A quantidade de vozes diferentes e que antes eram ignoradas ganham espaço e não ocorrem à toa, e sim por pressão de seu tempo, já que não há qualquer reflexão em tais temas, somente a exposição delas.
O modo violento com o qual Harry age piora demais. Seus atos incluem até o uso de uma bazuca, para acertar apenas um homem, fato que serviria de inspiração para o Paul Kersey de Charles Bronson nas fatídicas continuações de Desejo de Matar. A terceira aventura do homem que empunha a Magnum 44 serve de parâmetro para o que se tornariam as franquias de ação no futuro, cada vez mais violentas e banais nos filmes subsequentes.