Resenha | Achados e Perdidos – Stephen King
Na longa carreira de Stephen King, iniciada em 1974 com o lançamento de Carrie – a Estranha, com inúmeras histórias de horror e personagens ilustres, faltava a presença de um detetive clássico, evidenciando uma investigação tradicional, aos moldes de outros americanos do gênero. Em Mr. Mercedes, publicado em Junho de 2014, nascia o detetive aposentado Bill Hodges para preencher esta lacuna. Diante do sucesso do livro, o autor desenvolveu uma trilogia com a personagem, ainda em publicação nos Estados Unidos e no Brasil.
Lançado pela Suma de Letras no final de junho, Achados e Perdidos teve a publicação estrategicamente atrasada para que o terceiro livro, O Último Turno, saísse meses depois, em sintonia com a edição americana (a edição brasileira chega um mês depois do lançamento oficial). Nesta segunda narrativa, a literatura é o ponto de partida que impacta duas personagens em tempos distintos.
Como em obras anteriores as quais referenciava a literatura como estrutura modificadora – e matéria para obsessão como em Misery – o autor promove nas entrelinhas de seu novo romance um tratado sobre a importância da arte, sem nunca inseri-la como superior aos próprios homens que a leem. Tanto na obra, quanto em entrevistas, faz questão de ressaltar a importância da leitura mas nunca a sobrepõe a importância de sua família, fator que demonstra como King amadureceu durante os anos e, mesmo mais manso, continua afiado na narrativa.
O mestre do horror tem capacidade extrema ao dilatar os tempos das ações, situando-a em dois espaços temporais distintos, entrelaçando duas tramas que, em algum momento, o público reconhece que entrarão em conflito. O estilo é fluído e as personagens cativam por se assemelharem com os próprios leitores: dividem bons e maus pensamentos, ações boas e ruins, na mesma medida. São humanos vivendo dilemas comuns, exceto pelo fato de que King é naturalmente um autor endiabrado e suas personagens tendem a seguirem um caminho brutal.
O futuro conflito que eclodirá no desfecho é bem construído e tão esperado que a participação do detetive Bill Hodges é menor neste segundo volume da trilogia. De fato, a personagem e seu grupo entram em cena somente após um terço da leitura. Tem-se a impressão que, após o sucesso do ótimo Mr. Mercedes, a intenção de promover outra aventura com o detetive foi composta a partir de uma história anterior. Sendo Hodges inserido em um contexto prévio. A personagem funciona como um bom apoio para o conflito, entregando aos leitores a mesma química da história anterior, porém, em uma participação diminuta que, diante da força da história sobre a potência da literatura, permanece em segundo plano.
Sem apresentar detalhes do enredo, que poderiam estragar a leitura, afinal, trata-se de uma obra de suspense, King desenvolve um interessante autor fictício considerado canônico pela crítica. Sua história de distanciamento da sociedade, aproxima-o da vertente de escritores reclusos como o grande J. D. Salinger (tema de um Vortcast sobre O Apanhador no Campo de Centeio) e, no Brasil, Rubem Fonseca e Raduan Nassar. Ao pontuar dois personagens leitores de uma mesma obra, em épocas diferentes, a metanarrativa demonstra como a literatura é capaz de tocar diversos estilos de leitores e produzir um significado diferente dentro de cada um. Mesmo um único objeto literário se transforma ao adquirir leituras múltiplas que, nesta narrativa, carregam-se pela obsessão e o desejo de possuir o autor como se ele fosse um amigo íntimo do leitor.
O espaço para desenvolver o conflito entre os personagens leitores é amplo, desequilibrando a inserção do detetive conhecido do autor. Por um lado, King entrega uma obra que foge de uma continuação tradicional, como se negasse o protagonismo ao seu carismático detetive de terceira idade, porém, tratando-se de uma trilogia, sua presença poderia ser mais significativa. Conforme a trama chega ao seu desfecho, o autor pontua o gancho para o último romance da série, retomando o grande conflito do primeiro romance que, esperemos, retorne o velho Kermit Hodges na posição de personagem principal.
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