Filmes sobre personalidades históricas que, com seus feitos, superaram diversas barreiras e deixaram uma grande marca na humanidade não costumam ser muito justos, pela complexidade que geralmente esses personagens trazem, o que os torna difíceis de serem transpostos à tela grande. Nesse contexto, a figura de Jesse Owens se encaixa perfeitamente. Símbolo de uma das maiores realizações esportivas (e também políticas) do século, Owens incompreensivelmente nunca teve sua história contada em um filme de grande orçamento, série de TV, ou nada à sua altura. Porém, tendo em vista o contexto, época e país de origem, esse fato passa a ser compreensível.
Raça é dirigido por Stephen Hopkins, mais conhecido por alguns filmes dos anos 1990 e por dirigir episódios de seriados como 24 Horas, e escrito por Joe Shrapnel e Anna Waterhouse. A produção histórica é bastante precisa e de qualidade, tanto no figurino quanto em locação. O ator principal, Stephan James, sustenta e entrega um Jesse Owens bastante convincente. Sobra apenas a dúvida se o atleta possuía a mesma personalidade introspectiva e cabisbaixa que o ator mostra. O comediante Jason Sudeikis interpreta o treinador de Jesse, o antigo corredor Larry Snyder. Sudeikis é um ator limitado, mas também não compromete a relação estabelecida entre mestre e pupilo, que é o eixo central do filme.
Porém, mesmo abordando tudo isso e sendo historicamente bem apurado, faltou ao filme uma energia mais determinante, um senso mais agudo de apontar o problema além do óbvio, uma veia “Spike Lee” de problematização do contexto racial dos EUA. A forma como foi feita possivelmente irá agradar à parcela branca e/ou mais conservadora dos espectadores, pois coloca os personagens geralmente de forma unidimensional.
Algumas tramas secundárias, como o pedido da associação nacional para o avanço das pessoas de cor (NAACP) para Owens boicotar os jogos e assim prejudicar os EUA ao não correr por um país segregacionista, são deixadas de lado frente à dúvida se o Comitê americano iria ou não também boicotar os jogos devido às notícias nada animadoras de perseguições aos judeus naquele país. As relações entre Joseph Goebbels (Barnaby Metschurat) e o membro do comitê olímpico e chefe da delegação Avery Brundage (Jeremy Irons) também são rapidamente passadas, e sempre deixando em uma dúvida conveniente. Já as relações familiares, a questão social, financeira e racial de Owens , são apenas citadas algumas vezes, sempre de forma clichê.
A busca incessante do diretor por causar impactos e recriar momentos memoráveis também atrapalha um pouco. Tirando à parte a retratação dos nazistas como os vilões cartunescos de sempre, se no filme Hitler se recusa a apertar a mão do vencedor Owens sobre o alemão Long, o próprio Owens declarou na realidade que, apesar de o ditador alemão realmente não o ter convidado para cumprimentá-lo, tampouco o presidente americano Roosevelt o fez, o que é deixado de lado no filme, convenientemente. O mesmo acontece com a irritante ovação à cineasta oficial do III Reich Leni Riefenstahl (Carice van Houten).
O que mantém Raça fluindo nada mais é do que a personalidade e incrível história de Owens, que nos atiça a curiosidade de como um homem simples pode muitas vezes deixar uma marca profunda na história. Porém, tamanho personagem merecia uma história mais à sua altura. Sua biografia derrapa na tentativa de criar algo épico em torno dele, enquanto ele por si só foi capaz de fazer isso. E praticamente sozinho, contra um país que o odiava por ser quem era e do jeito que era. Seu maior feito não foi vencer o esporte do regime nazista em seu território, e sim fazer isso nas condições que fez, a favor dos EUA e sendo renegado por ele. Essa é a marca de Owens na história e que o filme deveria ter se esforçado mais para reforçar ao invés de atirar nos nazistas, a mesma vítima fácil de sempre dos filmes americanos, para também não causar um desconforto muito grande no espectador desse país. Tal escolha conservadora se reflete na falta de coragem do filme, que, apesar de ter boa vontade com Owens, tampouco fez justiça e ele.
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Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.