O relato jornalístico do autor emprega verossimilhança à história, dificilmente encontrada em pares semelhantes ou em textos que meramente toquem na temática da máfia italiana. O romance investigativo presente em Gomorra é tão popular em seu país que já ganhou algumas interpretações no audiovisual, como no filme de Matteo Garrone e no seriado encabeçado por Stefano Sollima.
O comércio de bens ilícitos envolve um mercado clandestino de vidas, denunciando as ações da Camorra sob o “país da bota” e expondo uma realidade nada fácil. As fraudulências típicas das transações do chamado “sistema” se confundem ante as posturas estatais, ao mesmo tempo que são glamourizadas tanto pelo circo midiático quanto pela indústria do entretenimento.
De Nápoles, começa a linha criminal, que despeja seus espólios escusos e imundos no solo da Campânia. Nem mesmo a terra dos chefões é preservada ou perdoada: o lucro está acima de qualquer necessidade humana básica, ecos de um capitalismo selvagem que é implacável e imperdoável, além de opressor.
Chega a ser curiosa a sobrevivência de Saviano mesmo após todos os flagrantes registrados no livro. Abaixo do título, há a máxima que já introduz o leitor no que virá a seguir: “A história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana”. Remetendo a Hannah Arendt – que é citada junto a outros clichês filosóficos ou cinematográficos -, o autor decide refletir a realidade de modo despudorado, já que a verdade jamais temeu mostrar-se como ela é aos seus dias dentro da tormenta.
O início do relato é falsamente tímido, registrando a rotineira movimentação mecânica de um porto que recebe mercadorias vindas de terras distantes. O primeiro caso relatado trata de uma conexão Itália-China e que, mesmo em suas partes “inocentes”, já demonstra como é o funcionamento político daquela paragem e o quanto de respeito é depositado nos reais mandantes do lugar – por isso a alcunha de “sistema” é tão presente. A presença dos asiáticos no local é tão constante que não é anormal alguns destes mudarem seus nomes para nomenclaturas italianas. Logo, o status de normalidade é quebrado, ainda que o conceito de normal seja deveras discutível. O disfarçado relator logo se emprega junto aos chineses para realizar o descarregamento de um comboio, algo simples, mas ainda assim perigoso.
Sua temeridade é atroz, diferente da expectativa de quase todos os outros seres que habitam aquele universo. Tão flagrante quanto a tensão típica de quem está em vias de cometer um crime é também notar a incidência de jovens neste mercado; pessoas com quinze anos já são capazes de trabalhar na Itália – é o que diz o pensamento do homem comum, portanto é comum que estes se envolvam com algo natural, como o crime organizado. Um dos fatos destacados por Saviano é a impossibilidade de viver, trabalhar ou se sustentar se não for pela Camorra, onde até os viéses econômicos são pautados pelo crédito de empréstimo dado aos cidadãos, já que sua falta de capital os jogava à margem do que os bancos considerariam mínimo – mesmo que os requisitos fossem preenchidos, havia uma forçação, algo livre de qualquer culpa.
O termo Camorra é utilizado por quem está distante, normalmente por jornalistas e membros da mídia. Os policiais e adeptos até riem da nomenclatura e jamais a citam, algo semelhante ao esforço que Mario Puzo teve ao não cunhar “máfia” em seu romance O Poderoso Chefão. Os membros chamam de Sistema. O clã Sistema de Secondigliasno tomava a periferia de Nápoles, onde era sua base de operações, o coração da hidra que estendia seus muitos tentáculos pela vastidão do país. O ramo têxtil estava sob suas mãos, e a mão de obra era qualificadíssima. O destaque emocional fica por conta do capítulo intitulado Angelina Jolie, que mexe com sentimentos fortíssimos e com os sonhos.
Os detalhes do modus operandi da organização, bem como a rotina dos seus dias, são feitos de modo rico e detalhado. Notável e consequentemente lamentável é perceber que os setores comuns e civis da sociedade só agiam após as autoridades que combatiam a ação mafiosa em campo nacional. Não poderia haver de modo algum uma intervenção ou reclamação que não tivesse eco junto às autoridades instituídas de modo democrático, já que as famílias também eram uma autoridade, mas combatidas à força, algumas vezes com mais ingerência que o Estado.
A interação entre a Camorra e os carabinieri – uma ramificação da polícia ora oficial, ora não oficial que trabalha nas imediações italianas – é mostrada em todas as suas ligações escusas, desde a perseguição até a colaboração mútua. Chega a ser engraçado notar o quanto o tráfico de drogas é um tabu mesmo na contemporaneidade, inclusive quando os clãs trabalham com ele. O receio, motivado pelas penas maiores, de que a Lei do Silêncio fosse quebrada é enorme. Mais assustador ainda é notar que a escrita de Saviano, com o passar do tempo, vai se tornando mais fluida ao se referir aos assassinatos, como se emulasse a naturalização dos crimes em sua rotina. Crimes que deixam de atemorizá-lo para transformarem-se em algo natural, ou ao menos não tão incomuns.
Os apelidos infantis e pueris de alguns soldados – como Pikachu e Kit Kat – fazem um belo contraste com a loucura obsessiva e violenta de suas rotinas, vivências repletas de medo, sempre no fio da navalha, com a morte e truculência como parte de uma linguagem universal. A simplicidade ainda os toca, já que grande parte dos adeptos é ainda adolescente. Sua alimentação, desregrada e à base de pizza, quase sempre ingerida de modo errático e rápido, denota pressa pela ação, em pôr em prática o que se quer.
Uma citação interessante sobre a ética e moral dentro da cabeça de um camorrano:
“Estar no centro de cada ação, o centro do poder. Usar tudo como meio a si mesmo como fim. Quem diz que isso é amoral, que não pode haver vida sem ética, que a economia possui limites e regras a serem seguidas, é simplesmente quem não conseguiu comandar, quem foi excluído do mercado. A ética é o limite do perdedor, a proteção do destronado, a justificativa moral para aqueles que não conseguiram jogar tudo e conquistar tudo. A lei tem os seus códigos estabelecidos, mas não a justiça, que é outra coisa bem diferente. A justiça é um princípio abstrato que todos têm, suscetível conforme se interpreta, de absolver ou de condenar os papas, culpados os santos e os ateus, cupaldos os revolucionários e os reacionários. Culpados por terem traído, matado, errado. Culpados por terem envelhecido e morrido. Culpados por terem sido ultrapassados e vencidos. Culpados perante o tribunal universal da moral histórica e absolvidos pelo da necessidade… Não são os negócios que os camorristas perseguem. São os negócios que perseguem os camorristas.”
Ao mesmo tempo que evidencia a ideia, Saviano destaca o número de mortos na Camorra (140 e pouco), maior do que os da Cosa Nostra, Nhandragueta, IRA e Máfia Russa juntos, e contra tal afirmativa não há sequer resquício de plausibilidade em qualquer negação ou corruptela. Seu testemunho inclui as inconvenientes perguntas de colegas comunicólogos, que queriam saber ser necessário usar colete à prova de balas para simplesmente fotografar um evento de arte em Nápoles. O folclore tomou a cidade, tornando-a por vezes uma paródia, uma paragem tragicômica que não comporta personagens, e sim pessoas.
Chegava ao cúmulo de Saviano receber ofertas vantajosas financeiramente para andar com escuta, ou com uma câmera sob a orelha, para que passeasse pelos lugares que somente ele conhecia, pelos becos onde a ação ocorria, para registrar o modo de operar da cidade, que tinha mais armas do que garfos, num reality show que exporia o lado que a Omertá protege.
Analisar a complacência do povo com as ações do sistema e não impôr juízo de valor é praticamente impossível, mas analisar o comportamento fora desse intrínseco contexto é desonesto e arbitrário. O que Saviano propõe é a simples exposição dos fatos e falas, do modo mais literal possível, para que o seu leitor tenha as suas próprias conclusões. A realidade é que o Sistema subsiste também com a colaboração do povo, seja por coações da Camorra, seja pelas vantagens que os clãs dão a quem habita aquelas terras. A relação que teoricamente seria de medo é simbiótica. Não que a violência não atinja eventualmente o cidadão dito comum (e civil), mas normalmente a rotina deste não é afetada, já que eles sabem transitar bem entre os pólos, assim como têm consciência de até onde vão os seus domínios – leia-se a última sentença com ressalvas. A relação estranha entre esses pares é que ajuda a propagar a fama da cidade napolitana, uma cidade tão falada que basta citar seu nome que qualquer pronunciamento é simplesmente calado, um lugar onde o bem é totalmente o bem, e o mal é totalmente o mal, sem espaço para nuances ou variações.
Segundo o autor, a morte na Camorra só acontece quando se tem envolvimento em múltiplas suspeitas. A culpa é factual até que se comprove o contrário, numa grande inversão de valores. A teoria do Direito moderno é invertida na terra dos clãs. Ao falar sobre a comparação com os mitos hollywoodianos, Saviano diz que O Poderoso Chefão é eloquente e que até ditou regra entre as famílias, que buscavam se assemelhar ainda mais aos clichês de Don Vito Corleone. O termo usado para indicar um chefe de família sempre foi compare – compadre -, mas, por influência da fita de Coppolla, as famílias ítalo-americanas começaram a tratar seus chefes como padrinhos, ao invés de compare e compariello. Óculos escuros, gestos, frases de efeito, tudo isso passou a ser comum a John Gotti e Luciano Liggio, chefes reais da máfia nos EUA.
Perto do final, Saviano reforça a ideia da Omérta e o quão grave é o delito de quebrá-la. Não é bom para um boss assassinar uma professora, a não ser que ela tenha falado demais. O que deveria ser uma lei somente para os iniciados acaba sendo uma via de regra e conduta para todos no entorno. Claro que isso o encerra em uma perspectiva muito pessoal, visto que seu livro tem um viés denunciativo forte.
Os últimos momentos são dedicados à escrutinação do tratamento do lixo pela Camorra, dos resíduos comuns aos tóxicos. O destaque vai para a Região de Toscana, onde havia o “tratamento” do lixo da maneira mais porca possível, em múltiplos sentidos, por também concentrar grande parte das cabeças pensantes do Sistema. A Campânia, Acerra e Olma têm volumes altíssimos de lixo, tanto que, se os resíduos fossem empilhados, igualariam-se a prédios arranha-céus, como os de Nova York. Os lugares parecem aterros gigantes, sendo sempre queimados, na maioria das vezes por meninos, que, desde cedo, já se acostumam com aquela imundície e com as condições de vida paupérrimas. O solo em volta torna-se infértil, animais morrem, e a incidência de câncer, especialmente nos brônquios e demais órgãos do aparelho respiratório, é altíssima; na Campânia, por exemplo, é de 21%,
As chamas sobre as paragens lembram a desolação que habitaria aqueles lugares. Uma devastação que a natureza jamais conseguiria repor sozinha, pelo contrário, já que os locais continuariam sendo explorados até que o último centavo estivesse nos bolsos dos poderosos mandantes. Chegar à conclusão de que comer, beber, respirar e subsistir de nada valia perto do lucro e da busca incessante por dinheiro, que esmaga a moral, oprime o homem, e faz concluir que ele é um ser subalterno ante as suas próprias criações. Estar como os calcanhares chafurdados no lodo imoral da Camorra causou um mal incalculável à mente e alma de Roberto Saviano, mas, a despeito de tudo isso, seu grito é o de sobrevivência, de quem foi até o inferno e conseguiu retornar, talvez não tão vivo quanto antes, mas ainda capaz de ver, sentir, respirar e ainda falar sobre tudo o que lá viveu.