Marco Antonio de Carvalho conta em forma de prosa a vida bucólica do cronista Rubem Braga, destacando sua predileção pelo campo e apresentando a história a partir do primeiro emprego de Braga nos anos 40, época de rendição dos alemães aos aliados, na Itália, presenciada por ele. O biógrafo fez de Um Cigano Fazendeiro do Ar seu último trabalho, e recebeu o Prêmio Jabuti postumamente em 2008. Carvalho já havia registrado a vida do belíssimo coreógrafo Klauss Vianna em A Dança, e fez desta peça uma obra belíssima, apaixonado pelo objeto de análise.
Em seu primeiro capitulo, o biógrafo fala do “herói” de forma literata. O ritmo da narrativa é frenético, em alguns momentos lembra inclusive um thriller. A imersão só é quebrada depois de decorridas quatro páginas, artifício competente e muito bem-vindo, pois introduz o leitor ao estilo de escrita típico de Braga. A história inicia-se com o jornalista começando seu ofício por volta de 194* como correspondente de guerra na SGM, em Florença. A estadia de Braga na Itália o marcou profundamente, não só pelo risco de vida durante o conflito, mas também por seu envolvimento com alguns nativos. Nos anos 1970, voltaria ao local por iniciativa da Revista Realidade e evitou o reencontro com pessoas que conheceu, a fim de evitar reabrir velhas feridas. Sua volta ao Brasil foi em um momento bem diferente ao de quando viajou, com a saída de Vargas (seu antigo empregador) da presidência e a posse de Dutra. O passado como repórter político o marcou profundamente: questões como capitalismo x comunismo o cercariam até o fim de sua carreira. Os três capítulos subsequentes contam um pouco do histórico familiar de Rubem, além de falarem brevemente sobre sua carreira.
O nomadismo de Rubem Braga, especialmente no começo de carreira, pontua bem os diferentes momentos de sua trajetória enquanto jornalista. Ainda nos anos 1930, ele já destacava o extremismo dos comunistas, divergindo das ideias de Luis Carlos Prestes, impedindo-o que o autor se “avermelhasse”. Sobretudo, incomodava-o o fato dos socialistas terem um comportamento extremista de não entender o humor, constituindo um povo sem capacidade de raciocinar de forma leve seus preceitos tão “respeitosos” e preocupados com o bem estar geral.
A escrita de Marco Antonio de Carvalho é muito interessante e a abordagem escolhida é competente, pois faz o leitor mergulhar no mundo do biografado sem uma sequência óbvia de acontecimentos, como “Rubem nasceu numa tarde ensolarada…”. A forma escolhida para contar a trama é feita através de episódios anedóticos, especialmente no que toca as (muitas) experiências profissionais (e, claro, pessoais) do cronista. Textos e cartas de personalidades como Vinicius de Moraes, Danuza Leão, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Antonio Carlos Jobim, Jorge Amado, Gabriel Garcia Márquez, Nélida Piñon, entre outras, também se destacam no livro. Outro bom objeto de análise do biógrafo é a aversão de Braga ao getulismo: seu posicionamento político, cada vez mais crescente, é enfocado de forma muito competente.
“Fidel não raspa a barba porque tem o queixo curto… à Revolução cubana não falta ingenuidade, mas não é com ceticismos que se faz revoluções. Essa se faz com bofes – mulheres feias e feiamente vestidas que aplaudem, muitas vezes histéricas, as palavras ou a simples presença dos jovens líderes cubanos.”
Os dois últimos capítulos são sobre despedidas: Rubem destaca a tristeza de perder Vinicius e outros de sua geração – a morte, antes poetizada, se avizinhava cada vez mais. Em 1990 descobriria o câncer na laringe; ao abrir o envelope e descobrir a doença, só falou: “É de amargar.” Agora o cronista estava enfermo, sem dinheiro – graças ao Presidente Fernando Collor de Mello – e, portanto, sem condições de viajar aos EUA para realizar tratamento médico. Até o simples desejo de ser cremado, ao invés de servir de alimento aos vermes, lhe foi negado. O fim de Rubem era tão lírico quanto seus escritos e igualmente cheio de cinismo. O desespero era tanto que o autor pensou em eutanásia provocada por uso de barbitúricos. Sobre os protestos de Otto Lara Rezende, Braga prosseguia querendo a morte. Vaidoso como era, não aguentava definhar. Como um sopro, deixou a existência, com uma carta à Boni, da TV Globo, pedindo que cuidasse dos preparativos da cremação. Às margens do Rio Itapemerim, repousaram as cinzas do escritor, numa pequena cerimônia às 6:25 da manhã, conforme a vontade do finado.
Marco Antonio de Carvalho bebe na fonte de Ruy Castro, especificamente de O Anjo Pornográfico, através do qual descobriu que há como falar sobre um mito sem transformá-lo no herói sem máculas. Apesar de reverencial, sua abordagem mostra as mazelas e imperfeições do autor, uma busca definida pelo próprio biógrafo como “um fardo e um prazer, uma obsessiva loucura”. Ao folhear Rubem Braga: Um Cigano Fazendeiro do Ar, essa sensação é perceptível.