Apesar de ter um conteúdo de Universo Expandido muito mais antigo que o de sua franquia rival Star Wars, a utopia de Gene Ronddenberry é bem menos popular em materiais adicionais excetuando o áudio visual. Star Trek – Portal do Tempo talvez seja a principal exceção a esta regra, tendo sido lançada no Brasil nos anos noventa, pela mesma Editora Aleph, que costumava lançar adaptações de episódios clássicos de Jornada nas Estrelas Série Clássica e A Nova Geração. O romance de A. C. Crispin é focada em uma questão delicada envolvendo a federação e os romulanos, próximos de Gateway, o referido no título, portal do tempo.
Crispin já teve experiências extras em Jornada, tendo executado o livro Sarek, Cemitério Espacial além de material adicional no selo Legends de Guerra nas Estrelas, episódios literários de V: A Batalha Final e a versão romantizada de Alien: A Ressurreição. Tal currículo o credenciava para inaugurar as histórias literárias que englobavam Kirk, McCoy e Spock, além de outras gerações da franquia.
O livro foi publicado ainda em 1983 nos Estados Unidos, com apenas dois filmes lançados no cinema, e foi concebido pela autora após rever o episódio da serie clássica Todos os Nossos Ontens (All Your Yesterdays), onde o Spock de Leonard Nimoy vai até o planeta alienígena Sarpeidon, através de uma viagem no tempo, que o faz regredir a um estado emocional extremo, diferente do que era comum aos vulcanos, chegando ao ponto de se apaixonar pela bela Zarabeth, interpretada por Mariette Hartley, retornando assim a um regresso milenar equivalente ao estado de sua raça naquele tempo passado, dando assim vazão a sua faceta mais selvagem, igual a um Vulcano decrescidos 5 mil anos de evolução. Este é o ponto de partida para a premissa do livro. A história se passa dois anos depois da visita a Sarpeidon, e compreende um jogo entre o dr. McCoy o Vulcano de xadrez bidimensional, no modelo antigo, equivalente ao jogado no universo comum.
Spock está resignado, e retorna a Vulcano pedindo autorização a T’Pau – a mesma que encabeçou sua luta com Kirk pela execução do Pon’Farr – para pedir que ela intercedesse a um desejo seu, de tomar parte em uma viagem no tempo, para se encontrar com Zarabeth no passado, uma vez que ela tinha em posse seu filho. O apelo foi feito a ela por motivos óbvios, já que sociedade vulcana dava muito valor as tradições familiares, que seriam certamente uma boa desculpa para Frota, caso fossem pedida por alguém superior. Kirk insiste em acompanhar seu amigo, mesmo que o alienígena declare que será perigoso e sem garantias de retorno.
O artifício escolhido para tentar retornar ao tempo é o Guardião da Eternidade, o mesmo que fez o triunvirato da Enterprise ao passado em A Cidade a Beira da Eternidade, que estava agora protegida por um pequeno grupo, liderados pela Doutora Vargas. O livro ignora a passagem ocorrida em Jornada nas Estrelas: A Série Animada, no episódio Yesteryear, onde Spock viaja para assistir sua contra parte infantil. Curiosamente muitos dos elementos no episódio estão presentes no espírito aventuresco proposto por Crispin, ainda que o cunho neste volume seja mais sério, referenciando uma boa e filosófica discussão ética a respeito da viagem para resgatar pessoas do passado, mesmo que o tal planeta já esteja extinto e que ambos estivessem isolados da civilização de Sarpeidon.
Não demora até o trio convencer Vargas e embarcar enfim para a tal desventura. Ao chegar ao seu destino, Spock automaticamente passa a ser um sujeito calado, receoso pelo encontro que está prestes a acontecer. Não demora para os viajantes encontrarem Zar, o mesmo vulcano que aparecia nas paredes das paredes pré-históricas, presente nos volumes da biblioteca do planeta extinto. Zar era emotivo, comia carne e estava sem a companhia de sua mãe pelos últimos cinco verões. Seus hábitos envolviam o uso de roupas de couro, fato que o diferenciava demais dos terráqueos, e que junto aos seus hábitos rotineiros, faziam difefenciar demais de seu pai. Aos poucos, McCoy investiga se Zar possui poderes telepáticos como seus antepassados, e o jovem não demora a se adaptar a rotina da nave.
A escritora consegue captar muito bem o clima aventuresco, escapista e o caráter do seriado. A história, que se passa no quinto ano de missão – aludido na apresentação narrada por William Shatner em Star Trek The Original Series – não só se preocupa em apresentar a química entre os personagens, mas também a introdução a curiosidade das novas civilizações encontradas, e Zar é a síntese disto, com seu conhecimento tardio a respeito da cultura vulcana, tentando equilibrá-la com seu instinto selvagem, que era exigido no seu planeta natal.
A edição possui um capricho enorme com os extras, desde o prefácio de Salvador Nogueira, editor do site Trek Brasilis (e autor do Almanaque de Jornada nas Estrelas), que elucida muito sobre os livros complementares, além de uma introdução tanto de personagens quanto do maquinário da USS Enterprise, situando naquele universo mesmo o leitor não conhecedor do canône, além de notas de rodapé e um mini glossário sobre os assuntos recorrentes da tele série.
Há dois dramas interessantes e paralelos dentro do romance, primeiro com a difícil situação de adaptação de Zar aos noves moldes de cotidiano em exploração estelar, mostrando em conflito inclusive com Christine Chapel, que tinha sido muito simpático com o rapaz no início, e que depois passou a discutir seus modos, além da estranha descoberta dos romulanos a respeito do Guardião da Eternidade, informação que antes era sigilosa e parece ter sido vazada por meio de traição.
A invasão dos romulanos faz abrir velhas feridas, introduzindo o comandante Tal, o mesmo personagem que teve uma aparição no episódio Incidente Enterprise, sendo ludibriado nessa oportunidade por Kirk Spock. Tanto este fator, quando a relação conflituosa do vulcano e filho fazem valorizar ainda mais a história, assim como esse período semelhante a um limbo, compreendido nos últimos dois anos da expedição inicial da Enterprise, que permanecem inacabados via produção televisiva.
A. C. Crispin tem um cuidado especial com seu Star Trek Portal do Tempo, de fechar seu drama de maneira emocional, com possibilidade de gancho – e explorado em um livro futuro – e que fizesse sentido até dentro do Universo Prime, ainda sabendo que os momentos ali compartilhados não eram canônicos. As situações pensadas pela autora são tão boas e razoáveis que fazem até lamentar a não utilização de muitos de seus fatores nos filmes e séries vindouras, explorando o drama de Spock enquanto homem solitário, incapaz até de sustentar um núcleo familiar, fadado a um destino inexoravelmente trágico, como em inúmeras peças shakespearianas, fazendo valer mais uma vez uma das bases de toda a mitologia trekker, tendo em si uma conclusão tocante, fugindo de qualquer pieguice típica dos produtos de Jornada nas Estrelas nos anos oitenta.