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  • Crítica | Como Nossos Pais

    Crítica | Como Nossos Pais

    Rosa tem um emprego que detesta, cuida praticamente sozinha de duas filhas pequenas, tem um marido de bons discursos mas de ações rasas, não se dá bem com a mãe, e do pai recebe mais problemas do que soluções. Não tem tempo para fazer o que gostaria – escrever peças de teatro – , não se sente enxergada por ninguém e num belo almoço em família recebe uma notícia que a faz questionar até quem ela é. Rosa é uma mulher e dela só cobram.

    Esse retorno de Laís Bodanzky (Bicho de Sete Cabeças, Chega de Saudade, As Melhores Coisas do Mundo) ao cinema é certeiro e soa tão atual quanto o seu último filme, a diretora escancara em Como Nossos Pais todas as tradições enraizadas na sociedade brasileira, principalmente pela perspectiva feminina, da mulher como esposa, mãe, filha e profissional. O maior trunfo do texto de Laís com Luiz Bolognesi é de colocar a personagem Rosa, interpretada magistralmente por Maria Ribeiro, em situações que nos mínimos detalhes expõem esses problemas, fazendo com que o longa seja muito mais delicado e profundo do que uma simples levantada de bandeira.

    A personagem de Maria Ribeiro é ativa, ela responde a todas as problemáticas que vão surgindo durante as quase duas horas do filme, ela é o centro e nos permite entendê-la e assim refletir sobre todos os temas sociais que Laís toca com tempo e desenvolvimento, porque de fato o longa não é sobre uma coisa só, ele é sobre muitas e se o assisti semanas atrás, tenha certeza que me pego pensando nele até o momento que escrevo essa crítica. Os diálogos ainda ecoam na cabeça de quem o assiste, principalmente aqueles com os personagens do marido (Paulo Vilhena) e da mãe (Clarisse Abujamra), se o primeiro é o retrato perfeito do homem-politizado-ativista que só tem discurso louvável, mas guarda o discurso no bolso quando chega em casa, a segunda é o contraponto de Rosa e quem dá real significado para o título do filme.

    Os diálogos funcionam bem demais na maior parte do tempo e como já dito, nas sutilezas que conseguem maior impacto, mas algumas falas soam mais bonitas no papel do que verbalizadas em alguns momentos e nos tiram da proposta verossímil. Em contrapartida, mesmo sendo um filme de diálogos, Como Nossos Pais tem funcionalidade em todos os setores quando se fala em imersão, em várias sequências o ambiente ajuda a contar a história de forma subjetiva e simbólica, como um reflexo no espelho ou até um leite fervendo.

    Simbolismos esses que não são tão especiais quanto o que representa a mãe de Rosa no filme, a personagem de Clarisse inicia de forma odiosa, mas com o tempo percebe-se sua função, o filme não se chama Como Nossos Pais á toa, Bodanzky nos mostra que o desequilíbrio entre homens e mulheres vem de gerações e mesmo hoje se esconde nas mais diferentes situações, inclusive, ações de mãe e filha são repetidas para dar ênfase nesse tipo de ligação. O mundo foi pra frente, mas de alguma maneira, continua da mesma forma que no tempo de nossos pais.

    Se nesse ponto o longa é bem resolvido, ele não é tão imparcial em seus personagens masculinos, além de todos serem caracterizados como babacas, em um momento do filme uma personagem feminina faz a mesma coisa que um personagem masculino e o filme trata as duas ações de maneira diferente, uma escolha da diretora que teoricamente faz sentido mas que acaba deixando um gosto amargo na boca. Mas, Como Nossos Pais se sobressai de todos suas pequenas derrapadas e nos apresenta um duro estudo de personagem e sociedade, causando uma reflexão pós-filme que o deixa longe da zona de esquecimento, e ser lembrada é o maior mérito de uma história como essa.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Crítica | Getúlio

    Crítica | Getúlio

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    Getúlio Vargas foi um dos maiores nomes da política brasileira e um dos comandantes mais importantes da história do Brasil. O período de quase 20 anos do político no poder transformou radicalmente a face da República brasileira, o que levantou paixões a seu favor e contra, especialmente ao final de sua administração.

    O filme de João Jardim (do excelente Lixo Extraordinário), com roteiro de George Moura, retrata os últimos 19 dias da vida do ex-presidente, quando o governo é acometido por um turbilhão de críticas após o principal rival político de Vargas, o ferrenho anticomunista Carlos Lacerda, sofrer um atentado, descobrindo-se, logo depois, que os mentores do ato eram pessoas intimamente ligadas a Getúlio.

    Contando com fotografia e design de produção excelentes, o filme consegue reproduzir toda a ambientação da época e fazer o espectador se sentir naquela primeira metade da década de 1950. O Palácio do Catete também contribui enormemente nesse sentido, tendo em vista que o local se manteve praticamente inalterado desde os eventos retratados.

    Optando por uma ótica mais intimista e com toques de thriller psicológico, o diretor tenta mostrar o lado humano do presidente, já idoso, sofrendo todas as pressões políticas em um momento diferente do país, pois se na década de 30 Getúlio conseguiu impor seu modelo, já na democracia, durante a ascensão da Guerra Fria e da influência dos EUA  na América Latina, Vargas sofre a oposição dos setores da sociedade alinhados aos interesses americanos, enquanto sua postura nacionalista, outrora tão eficaz, agora atrai cada vez menos adeptos. O enfoque intimista e pessoal por vezes se torna desnecessariamente lento, e o uso da metalinguagem para explicar os pesadelos do personagem também se mostra repetitivo, dando ao filme um certo tom novelístico característico da TV brasileira.

    Essa pressão se manifestava na figura de Carlos Lacerda (Alexandre Borges), governador da Guanabara e principal porta-voz do udenismo. Suas ferozes críticas ao presidente iam desde o moralismo simplista de acusá-lo de causar todos os problemas do país, até o de culpá-lo pela degeneração da democracia e pela explosão endêmica da corrupção, discurso este muito usado até hoje pelos setores herdeiros do udenismo contra governos que não conseguem vencer no jogo democrático.

    A figura de Carlos Lacerda no filme é mostrada de forma distante, com discursos inflamados, transmitidos na televisão, exigindo a renúncia de Vargas  uma escolha estranha, pois naquela época a TV não era utilizada como meio de comunicação em massa, pois havia poucos aparelhos no país. Esse papel era desempenhado pelo rádio. No entanto, uma construção maior desse personagem poderia tornar a trama menos maniqueísta.

    Maniqueísmo este que se manifesta o tempo todo ao focar a figura de Vargas de forma uníssona, em dúvida apenas quanto ao que mostrar em relação a sua honestidade em lidar com o problema. O presidente é retratado como uma pessoa íntegra que desconhecia absolutamente tudo o que se passava com sua guarda pessoal. Ainda que não soubesse sobre o atentado propriamente dito, para alguém tão centralizador como ele, torna-se um fato que, se não impossível, bastante improvável. No final, tendemos a nos simpatizar com Vargas e antagonizar Lacerda de maneira simplista em razão dessa abordagem.

    O que é muito bem retratado é a relação ambígua com os militares, que já se mostravam descontentes com a democracia e ávidos por terem uma participação maior no poder desde a Era Vargas. Enquanto alguns militares lutavam para manter o legalismo, grande parte se organizava para exigir a renúncia do presidente e preparar o terreno para um golpe militar, o que não seria novidade nem no Brasil, nem na América Latina no período.

    Também merece destaque a atuação de Tony Ramos no papel do presidente. Apesar do exagero do tamanho da barriga e do pouco trabalho com o sotaque gaúcho, o ator transmite ao personagem todo o peso dramático que os eventos narrados impuseram a Vargas.

    O suicídio do ex-presidente no filme também possui parte de seu impacto retirado por não ter sido bem construída a cadeia de eventos que levou a esse fato. Quando a situação se torna insustentável, após Vargas ter abdicado de tomar qualquer posição ofensiva em sua defesa, a única saída possível ao presidente parece ter sido o suicídio, sozinho em seu quarto com seu revólver. O ato, mostrado de forma engrandecedora, oculta os relatos de que, após o tiro, Getúlio sobreviveu ainda por algumas horas. Também oculta, dentre a comoção popular por sua morte, a ira de parte da população que depredou sedes e carros de jornais opositores, caso de O Globo, que teve papel chave na oposição ao governante, ausência essa convenientemente deixada de lado no filme.

    Dessa forma, Getúlio opta conscientemente por construir um personagem que é fruto de escolhas da direção, excluindo algumas informações e exaltando outras. Apesar de ter sucesso em compor um personagem forte mostrando seus dilemas internos e pesadelos, falha em dar a profundidade necessária a seus algozes e aos eventos que levaram a escolha pelo seu suicídio. Talvez por isso, o filme se mostre interessante somente a quem já conheça os fatos e pessoas ali descritos, se mostrando uma experiência não muito agradável ao espectador tradicional.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.