Resenha | Coração das Trevas
O ar denso da neblina esconde o terror do desconhecido, onde vivem criaturas sem nome e esperança, à beira da agonia. Nas margens do rio, a violência de quem sofreu a alma arrancada sem dar licença. No coração das trevas não habitam seres humanos, mas humanos que sobrevivem.
Publicado pela editora Veneta, baseado no romance de Joseph Conrad, com roteiro de David Zane Mairowitz e ilustrações de Catherine Anyango, Coração das Trevas apresenta em uma graphic novel o diário de bordo de Charlie Marlow, capitão de um barco a vapor que conta a própria história na trama. Anos antes, viajou com destino à capital da República do Congo encarregado pelo transporte de marfim, na costa do rio Congo, cenário da aventura, relatando as impressões pessoais sobre o itinerário num misto de fascinação pelo horrendo e o medo da morte. Além do objetivo mercantil, o capitão deve encontrar o chefe de posto Sr. Kurtz, um dos funcionários mais brilhantes e lucráveis da companhia, e para isso precisa adentrar o coração da selva africana. Assim, narra a peregrinação no longo e estranho caminho.
Como uma narrativa moldura, em que uma história encontra-se dentro da própria história, o roteiro de Mairowitz utiliza-se das descrições do local para conduzir o leitor numa aventura amedrontadora em que se divide o mesmo assombro de Marlow. Mantendo a base argumentativa da trama, o estilo do texto de Conrad, porém, é restringido a balões que retratam o percurso relatado no texto original mas sem a mesma profundidade da novela. No entanto, como adaptação em quadrinhos de um livro canônico, de linguagem rebuscada e com uso demasiado de adjetivos e descrições, além da introspecção diante de uma situação limite, o roteirista consegue transmitir um pouco do tormento do protagonista durante a viagem.
Os desenhos fantasmagóricos dão a nuance da obra, cujo uso de sombras e tons escuros esfumados mescla dia e noite, num estilo cru, como se o relato inspirasse uma falta de acabamento nas formas e detalhes. Inspirando originalidade, o personagem-narrador é fisicamente ilustrado por Anyango como a representação do próprio Conrad, que também viajou, anos antes, ao Congo na função de capitão de um navio. A ideia de simbolizar a imagem do próprio escritor nas ilustrações demonstra o poder metanarrativo da obra, enfatizando o caráter factual da trama e fazendo uma ponte de diálogo entre autor e sua própria composição. Marlow/Conrad dividem a mesma história no coração das trevas.
Ao estilo de uma road trip, em que o percurso é mais importante que o destino final, o capitão avança na jornada seguido por escravos presos em correntes com armas apontadas para eles. Marlow diferencia o colonizador do colonizado, dizendo que, apesar dos estrangeiros enfrentarem toda a sorte de contrariedades no país, como o calor, a sede e a sujeira, ainda assim aqueles homens eram considerados mais dignos que o povo local. Tal é a desprezo pelos trabalhadores braçais que, ao contrário dos brancos, nenhum deles possui identidade, fala ou mesmo um retrato nas ilustrações que os remetesse a qualidade de seres humanos, mas sim a fantasmas cadavéricos perdidos e cansados.
Ao encontrar Kurtz, personagem lendário e famoso por seus grandes feitos, vê um homem fraco, convalecido e dominado pela loucura. O personagem é o retrato do imperialista ambicioso que busca, acima de tudo, o sucesso da companhia. A ironia se observa quando o maior funcionário, à medida que descobrem seu paradeiro, já não serve mais, visto que agora, louco e doente, não é mais rentável.
Parte crítica, parte representação de um conceito europeu vigente no século XIX e início do século XX sobre o imperialismo e a escravidão, Coração das Trevas se traduz como um relato espectral do misticismo envolvendo locais longínquos sem a completa dominação da civilização ocidental. Através do recurso visual, a obra consegue transcender o imaginário sombrio contido no relato, demonstrando o talento da dupla Anyango e Mairowitz. Em capa dura e ótimo material gráfico, a graphic novel consegue com excelência homenagear um dos maiores cânones da literatura inglesa.
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Texto de autoria de Karina Audi.