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  • Crítica | King Cobra

    Crítica | King Cobra

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    A vida é um jogo. E se Pedro Almodóvar tem razão em nos dizer que ser diretor de cinema é o mais parecido com Deus, o cineasta norte-americano Justin Kelly, em seu segundo longa-metragem King Cobra, nos apresenta uma intrincada partida de xadrez. O filme é baseado no livro Cobra Killer: Gay Porn, Murder, and the Manhunt to Bring the Killers to Justice de Andrew E. Stone e Peter A Conway, que remonta a história por trás de um crime que abalou os bastidores da indústria pornográfica gay em 2007.

    Apresentando o cavalo: Carl Jung, em O Homem e os seus Símbolos, afirma que o animal, que no homem é a sua psique instintiva, pode tornar-se perigoso, quando não é reconhecido e integrado na vida do indivíduo. E exatamente assim nos é apresentado o jovem Brent Corrigan, interpretado pelo ator Garrett Clayton, conhecido por papéis em filmes da Disney como Teen Beach e pela série The Fosters. Um dos pontos mais interessantes de King Cobra está na escolha do roteirista em utilizar um recurso característico do cinema pornográfico para nos apresentar a personagem do Corrigan. Na primeira cena do filme ele está num estúdio, sendo convidado a se acomodar num sofá. Respondendo com pequenos risos envergonhados às investidas do diretor que lhe instiga a retirar calmamente suas peças de roupa enquanto nos conta um pouco sobre sua trajetória. Brent Corrigan é um rapaz que quer se dar bem na vida; sabe que o sofá da casa da sua mãe não irá lhe render fortuna alguma.

    O roteiro nos entrega uma série de passagens em que a vaidade e ambição desta personagem são evidenciadas, como acompanhar sites dedicados exclusivamente à sua atuação na indústria pornográfica e até mesmo um desejo que nos é sutilmente revelado: montar cavalos. Um ponto positivo da construção desta personagem está nesta associação com a imagem do cavalo, um símbolo que aciona uma libido instintiva ligada ao tema da sexualidade. Em um determinado momento deste jogo, Brent Corrigan se encontrará impedido de qualquer tipo de movimento. E seguindo as palavras do citado psicanalista suíço, prender este cavalo “pode tornar-se perigoso”.

    Compreendendo a torre: a personagem do produtor de cinema pornô Bryan Kocis, no filme denominado apenas por Stephen, fora interpretado pelo ator norte-americano Christian Slater. Acho, que de certa forma, estamos em paz com o Christian Slater após a aclamada série Mr. Robot; portanto, não vou me ater ao fato dele ter sido tão superficial numa personagem que exigia um grau de interpretação mais complexo.

    Stephen vive enclausurado numa torre; não há possibilidade de desejo para ele fora dela. Ele é um respeitado produtor de vídeos pornográficos voltados para o público gay, porém não abre mão de manter o seu anonimato. Assim, feito uma cobra, essa personagem rasteja por todo o filme adulando suas vítimas com presentes e promessas de uma carreira vindoura; e sua fome falará mais alto. Quando a estrela mais rentável de seus filmes, Brent Corrigan, alerta sobre o fato de que não está satisfeito com seu cachê e que irá procurar uma nova produtora, Stephen dá seu bote e proíbe que sua presa fuja da torre: o nome de Brent Corrigan está registrado em sua produtora e o ator não pode usá-lo em qualquer outra. Uma das cartas mais temidas do tarô, a Torre, significa uma mudança radical, o rompimento de formas aprisionadas. Conseguirá Stephen manter seus segredos sexuais confinados no porão de sua aparente residência familiar num bairro suburbano da cidade de Dallas?

    Analisando o bispo: James Franco é um ator que tem se engajado na visibilidade de personagens homossexuais na indústria cinematográfica norte-americana; inclusive, interpreta um ativista dos direitos homossexuais que se tornou pastor no primeiro longa-metragem do diretor Justin Kelly, Eu Sou Michael. Além deste filme, o ator também fez parte do projeto de Interior. Leather Bar, uma recriação dos 40 minutos cortados pela censura do filme Parceiros da Noite de William Friedkin (produção em que Al Pacino interpretou um detetive que se infiltrou no submundo gay de Nova York).

    Em King Cobra, ele dá vida ao também produtor de cinema pornô gay Joseph Kerekes, chamado por Joe no filme. Em contraste com a introspecção da personagem de Stephen, Franco carrega nas tintas para apresentar um Joe exagerado, sem limites para agradar seu namorado e estrela de sua produtora. Acredito ser essa a personagem mais interessante da história e de longe a menos trabalhada. Pouco de sua vida passada é explorada na tela, mas a informação de que ele fora um pastor evangélico nos dá uma dimensão para entender seus arroubos de fúria e insensatez. Há uma luta sendo travada nesta personagem que o roteiro não dá conta. Em uma cena chave para entender a sua psique, Joe diz a seu protegido que ele deveria encontrar seus pais na igreja; e há um lampejo de redenção em sua fala. Ainda haverá céu para este bispo?

    Observando peão: Oscar Wilde fora categórico: A cada bela impressão que causamos, conquistamos um inimigo. E, assim, observamos Harlow Cuadra, interpretado com competência pelo ator Keegan Allen de Pretty Little Liars, assistindo a um vídeo pornográfico estrelado pelo astro do momento Brent Corrigan. Seu olhar é inveja pura. Ele implora para que seu namorado o transforme num fenômeno muito maior que o próprio Corrigan. Harlow é uma personagem melancólica. O roteiro nos indica algo sobre um abuso sexual que este sofrera na infância por um parente próximo. E ele joga com este fator; tem toda ciência de que não é uma torre, não é um bispo e muito menos o cavalo que almeja ser. Há cenas interessantes em que sua instabilidade emocional se mostra um empecilho tanto na gravação dos vídeos da produtora de seu namorado como prestando serviços sexuais a alguns clientes. Isso tudo torna ainda mais agressiva e dependente a relação do casal. Nesse ínterim, é na porta da produtora de Joe que Brent Corrigan irá bater em busca de emprego. E o nosso peão, será que aceitará o cavalo em seu tabuleiro? Completando o pensamento do escritor inglês: para ser popular é indispensável ser medíocre. E isso é algo que Brent Corrigan não é.

    As peças estão no tabuleiro; alguma delas irão cair. E poderia ter caído uma certa timidez ao contar uma história passada nos bastidores da indústria pornográfica gay norte-americana. Todo esse esboço que tracei destas personagens soa mais como uma potencialidade da obra; muitos foram os movimentos destas peças que se mostraram decepcionantes enquanto cinema ao longo do roteiro. Não é necessário, por exemplo, um tribunal para avaliarmos se há grande cinema ou pura pornografia em cenas de Boogie Nights do Paul Thomas Anderson; pois o que não nos falta é prazer em assisti-lo! King Cobra desperdiça toda essa possibilidade de sua história ao nos entregar um roteiro morno, impotente. A sensação ao terminar é de que fomos obrigados a assistir 91 minutos daqueles diálogos de filme pornô que apertamos forward para ir direto ao que importa. E aqui não há nada disso.

    Texto de autoria de Heitor Benjamin.

  • Crítica | Eu Sou Michael

    Crítica | Eu Sou Michael

    Eu sou Michael - poster

    Panfletário, e baseado em fatos ocorridos na biografia de seu personagem-título, Eu Sou Michael explora algumas linhas temporais ao exibir a trajetória confusa e polêmica de Michael Glatze. O filme de Justin Kelly se inicia em uma sessão religiosa informal, com James Franco, intérprete do protagonista, recebendo um confuso menino homossexual, acalentado pelo homem mais experiente que tenta mostrar, através da fé, que é possível “curá-lo” daquele comportamento.

    A câmera retorna ao passado, em uma colorida São Francisco, onde o personagem principal é editor de uma revista para nicho, de temática gay. O grave problema já no início é a dificuldade que o filme tem em retratar assuntos polêmicos, cujo conteúdo de contestação é alto. Glatze tem uma teoria plausível para a época, sobre a construção social da sexualidade, mas que é maltratada pelo argumento, caindo em desimportância pelo enfoque raso dado a esses aspecto. As mudanças de território funcionam como limiares, pontuando a mudança de espírito, com saltos cronológicos complicados e mal pensados.

    A impressão de que o texto gosta de generalizar é justificado pelo modo como os homossexuais são retratados, sempre como pessoas dispostas a relações abertas, com um descuidado ímpar em não mostrar que a “semi-poligamia” não é artigo obrigatório. O discurso religioso vai tomando a proximidade de Michael, tanto em sua psique quanto no roteiro de Kelly, Stacey Miller e Benoit Denizet-Lewis. Há a artificialidade desse alastrar, pecando em dois sentidos, através da condescendência junto ao preconceituoso, bem como a desistência do personagem principal, em doses homeopáticas e forçadas.

    Eu Sou Michael 2

    O flerte com o cristianismo conveniente ocorre através da sedução pela normalidade, aproximando o drama de uma Síndrome de Estocolmo que é sugerida e não desenvolvida. Aos poucos, Mike se “endireita”, tornando-se cada vez mais frágil, se igualando aos argumentos que agora abraça.

    Zachary Quinto desenvolve um Bennet muito mais profundo que todos os outros personagens, o que ajuda a assinalar o quão raso é é Eu Sou Michael. O filme soa claramente ofensivo para a plateia específica – leia-se o espectador gay – por conter nas palavras uma forte alusão à falta de identidade de gênero, associando de modo escuso a prática sexual entre homens do mesmo sexo a algo pecaminoso, tão simplista que se iguala em preconceito a tudo que Michael antes refutava. O erro do filme é em não tomar partido.

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    O declínio intelectual do personagem tenta ser associado a um novo patamar de espiritualidade, o que piora ainda mais o caráter expositivo, que insiste em tratar o sofrimento do biografado como tentação de crença. Especialmente ao chegar no estado do Colorado, onde a transição já está “assumida”, pontuada por argumentos baratos e reacionários.

    Eu Sou Michael retrata uma trajetória de um homem confuso, que acredita estar evoluindo ao negar seus desejos, associando-os a símbolos falaciosos, de fácil digestão para o binarismo conservador, mas intragável para um progressista. A ode ao discurso excludente só piora o grau ao explorar a nova faceta de sua sexualidade, sempre como um coito interrompido, justificado claro pela imbecil falta de conteúdo relevante em sua nova postura. Mesmo nas palestras em que ouve, Mike é deslocado, e ainda assim não consegue compreender que todo o esquematismo da história é mais um engodo, mais uma manifestação mentirosa do destino que o aguarda.

    A união com Rebecca (Emma Roberts) é mais uma das evidências de que os dois mundos não se encaixam, especialmente pela ignorância gritante de quem deveria ser sábio por ser a “imagem e semelhança” de alguém perfeito. O escavar de sua própria dignidade piora, assumindo cada vez mais que o medo é o estopim da graça, criando seus próprios sofismas. Toda a real sabedoria é concentrada em Bennet, que segue sua jornada como o personagem que não se perverte, ou se permite mentir para si mesmo. Suas últimas palavras ao ex-amante são quase como um clamor, uma última súplica para a coerência, do personagem e do roteiro, não atendida até o final.

    O resultado do filme de Kelly é nefasto. Se analisado sob o ponto de vista de igualdade sexual, é um espécime de cinema fraco, covarde e sem ousadia, desfenestrável por prestar um desserviço a discussões mais acaloradas, pela vertente da defesa dos direitos iguais, e gera ainda mais debate graças à vexatória abordagem utilizada, servindo como contra-exemplo de como gerar um filme de história polêmica.