Tag: literatura policial

  • Resenha | Dexter no Escuro – Jeff Lindsay

    Resenha | Dexter no Escuro – Jeff Lindsay

    Dexter foi uma série bem marcante na TV. O protagonista é um serial killer de serial killers. Algo, no mínimo, curioso. Pena que, após a sensacional quarta temporada, a qualidade decaiu gradualmente, se tornando cada vez mais difícil de acompanhar. O personagem da TV foi uma adaptação da série de livros de Jeff Lindsay, publicado no Brasil pela Editora Planeta, e você pode conferir a resenha do primeiro livro aqui.

    O segundo volume, Querido e Devotado Dexter (Dearly Devoted Dexter, no original) traz casos bizarros de mutilações. O criminoso em questão amputa tudo que é possível de suas vítimas, deixando-as vivas como se fossem obras de arte grotescas. Os embates entre Dexter e a polícia se acirram, com momentos bem impactantes que desembocam neste terceiro volume, Dexter no Escuro (Dexter in the Dark, no original).

    Ainda que a história não seja uma continuação direta do livro anterior, podendo ser lida separadamente, alguns acontecimentos do outro volume retornam aqui. Desta vez, Dexter tem uma grande preocupação: seu casamento com Rita. Nosso herói (?) fará algo comum entre os humanos comuns, e isso o deixa um tanto confuso. Ao mesmo tempo que tenta pechinchar o preço do buffet, Dexter se depara com assassinatos estranhos. A polícia vai investigar, mas Dexter começa a perceber coisas. Ele sente como se houvesse algo sobrenatural e passa a ter sonhos esquisitos envolvendo um deus antigo. Os assassinatos parecem ter relação com uma espécie de seita religiosa, e quanto mais Dexter investiga, pior fica a sua sanidade.

    O ponto crucial da trama é quando o Passageiro Sombrio abandona Dexter. Para quem assistiu à série ou leu os livros anteriores vai se lembrar que Dexter possui uma espécie de consciência interior, um instinto ou sexto sentido que lhe auxilia nas investigações e, principalmente, identifica assassinos. Ele chama essa consciência de Passageiro Sombrio. E aqui ele abandona Dexter. Este livro traz reflexões profundas de Dexter sobre ele mesmo, às vezes beirando o esotérico/religioso, o que causou muitas críticas de leitores da série. Mas isso nem de longe significa que Dexter se tornou um homem de fé, tampouco que a história descambou para o sobrenatural. O autor consegue brincar de forma interessante com esses elementos, fazendo com que fiquemos em dúvida se existe realmente um elemento sobrenatural ou se o que estamos lendo são devaneios de Dexter.

    No final das contas, gostei de reencontrar Dexter após dez longos anos, e certamente não demorarei tanto para revê-lo no próximo livro. Relembrando que as histórias da TV ficaram totalmente diferentes a partir da segunda temporada, ou seja, se quiser algo inédito do assassino de assassinos, busque os livros.

  • Resenha | O Dossiê Pelicano – John Grisham

    Resenha | O Dossiê Pelicano – John Grisham

    Em uma estante de mil cores e rótulos, na qual você poderia achar os melhores livros do mundo e dos mais diversos assuntos, e tamanhos, haveriam exemplares que nos ganhariam fácil por suas histórias, suas polêmicas, seus personagens célebres que superam a distância entre olho e página e se tornam quase tangíveis – até mesmo pelos traços coloridos de determinada capa, neste mundo de leis visuais soberanas. Outros, porém, nos arrebatariam por suas narrativas, igualmente irresistíveis, e tramas entrelaçadas feito nó de marinheiro, de modo que o conjunto que nos guia torna-se sedutor o bastante para prender a atenção de reles mortais – sedentos por novas realidades e, sempre que possível, novos padrões para se agarrar e alojar novas meia-certezas.

    Fica-nos a dúvida, portanto, se John Grisham sabia estar construindo uma trama dessas com seu famoso O Dossiê Pelicano, já adaptado ao cinema pelo grande cineasta Alan J. Pakula, de Todos os Homens do Presidente, e traduzido para inúmeros idiomas desde sua publicação original, em 1992. Mesmo com sua releitura para o Cinema tendo ficado abaixo do esperado, e com uma capacidade de adaptação um tanto fraca e óbvia para o audiovisual, a obra de Grisham cai fácil no batido lema popular de que “o livro é sempre melhor que o filme”. Isso porque é sob a batuta de seu criador que ficamos a par de todos os detalhes que verdadeiramente movem uma trama mais complexa do que parece ser, inclusive após uma primeira leitura rápida a fim de se tirar conclusões imediatistas, sempre errôneas e superficiais.

    Aqui, temos uma jovem e brilhante estudante americana de direito, Darby Shaw, ainda no começo da faculdade, e seu professor e amante Thomas Callahan, cada vez mais apaixonado e envolvido, junto dela, na morte sem motivação aparente de dois famosos juízes da Suprema Corte dos EUA – um deles, o mais veterano em atividade no país, e outro que escondia sua verdadeira identidade gay de todos, principalmente após sua nomeação ao alto grau de juiz do supremo. Nisso, Shaw prova para si mesmo sua genialidade prematura resolvendo escrever um dossiê minucioso sobre a misteriosa morte desses dois homens tão diferentes, e que em comum tinham apenas o ofício e a nacionalidade. Contudo, suas palavras e teorias estão certas, e antes de irem parar nas mãos do FBI, acabam por chegar nos ouvidos de gente que tem muito a perder com o vazamento de verdades de grande impacto nacional.

    Shaw passa a desconfiar até de sua sombra, contando com poucos amigos e lugares para se esconder, enquanto os capítulos do livro comem sua fé nos outros, sua certeza em sobreviver até o dia seguinte, vagando de hotel em hotel com assassinos podendo estar em qualquer lugar, mas jamais em sua inteligência pessoal – curioso como a personagem tampouco se arrepende de ter revelado seu custoso dossiê, pois se desejam sua cabeça em uma bandeja, é porque suas noções estão cobertas de razão – até demais. Sendo um compêndio de momentos tensos e episódios eletrizantes muitíssimo bem traduzido ao português por Aulyde Soares Rodrigues, e publicado aqui pela Rocco, famosa no Brasil por ser a editora oficial dos livros de Harry Potter, Grisham propõe um estudo aprofundado de como a psicologia humana age sob pressão, e acima de tudo, o enorme preço que uma verdade pode ter para aqueles que não podem pagá-lo, afinal, o que mais impressiona numa leitura como em O Dossiê Pelicano é, sem sombra de dúvidas, o inebriante delinear de sua trama.

    O estilo de Grisham, provocador com sua prosa, seus diálogos curtos, ricos e objetivos, e estimulante no que tange a sua refinada e constante construção narrativa, explorando o lado maquiavélico do poder e das influências políticas, e cooperando para que todos os arcos das personagens ganhem sua digna e devida importância no contexto geral da história, é absolutamente inspirador. Tanto para os seus meros leitores ocasionais, quanto aos futuros escritores e escritoras, ávidos não só por novas palavras, mas por novas maneiras e simetrias irresistíveis de demonstrá-las e jogá-las ao nosso colo com essa rara sagacidade e bom gosto, como é exatamente o caso aqui, ao longo de velozes quatrocentas páginas nas quais podemos adentrar, sem receio, num amplo e imprevisível território de perseguição e desconfiança, coletiva e institucional, irremediáveis.

    Compre: O Dossiê Pelicano – John Grisham.

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  • Resenha | Quem Tem Medo do Escuro? – Sidney Sheldon

    Resenha | Quem Tem Medo do Escuro? – Sidney Sheldon

    Em Berlim, uma mulher desaparece em plena luz do dia. Em Paris, um homem pula da Torre Eiffel. Em Denver, um avião se espatifa nas montanhas. Em Nova York, um corpo é encontrado às margens do East River. A princípio, todos os episódios parecem isolados, mas em pouco tempo a polícia irá encontrar uma misteriosa conexão entre as quatro vítimas e o Kingsley International Group (KIG), uma importante empresa de pesquisa de alta tecnologia, envolvida em estratégia militar, telecomunicações e questões ambientais. Kelly Harris e Diane Stevens, jovens viúvas de duas das vítimas, começam a desconfiar de que seus maridos foram assassinados. E, após serem alvo de sucessivas tentativas de assassinato, têm certeza de que “há algo de podre no reino da Dinamarca”.

    A história é interessante, a temática abordada também. Afinal, controlar o clima é algo que a espécie humana deseja desde a “revolução” neolítica, quando caçadores/coletores deixaram a vida nômade de lado e adotaram uma vida agrícola e mais sedentária.

    Mas nem tudo são flores. A trama não é bem desenvolvida. Em vários momentos, o leitor se vê expulso do universo da história em meio a cenas um tanto inverossímeis, além de improváveis. O uso do deus ex machina é uma constante em todo o livro. Ok, é interessante que as protagonistas não sejam policiais ou investigadoras cheias de recursos. Pessoalmente, gosto bastante de thrillers assim. Meu livros prediletos de Agatha Christie, por exemplo, são aqueles não protagonizados pelos famosos detetives – Poirot e Ms. Marple, ou mesmo Tuppence e Tommy – mas aqueles cujos personagens são pessoas comuns. E, sendo assim, pessoas comuns, é mandatório que elas tenham atitudes de pessoas comuns, algo que, em várias ocasiões, não acontece neste livro. E isso é um problema, pois dificulta a identificação com as personagens.

    Aliás, a construção das personagens também deixa a desejar. Apesar de o autor incluir pseudo flashbacks contando a histórias das personagens antes dos eventos do livro, não é o suficiente para gerar a empatia necessária a fim de fazer o leitor se importar muito com o futuro delas. Além disso, Kelly e Diane escapam tantas vezes durante a história, que quando surge outro conflito ou perigo, o leitor apenas vai lendo, aguardando a solução chegar na próxima página.

    Mas se há algo que desanima a leitura é a baixa qualidade dos diálogos. Nâo sei dizer se é problema do original ou da tradução, mas são diálogos tão pobres que até quem lê descompromissadamente com certeza se sentirá incomodado:

    “As semanas seguintes continuaram com uma série deliciosa de encontros. No fim de três semanas Henry disse:
    — Eu amo você, Lois. Quero que seja minha mulher.
    Palavras que ela pensava que nunca ouviria. Abraçou-o e disse:
    — Também amo você, Henry. Quero ser sua mulher.”

    Enfim, se a intenção é começar a ler Sidney Sheldon, este não é uma boa opção. Melhor dar preferência para O Outro Lado da Meia-Noite.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | E Não Sobrou Nenhum – Agatha Christie

    Resenha | E Não Sobrou Nenhum – Agatha Christie

    Com o título alterado para E Não Sobrou Nenhum (do original O Caso dos Dez Negrinhos), Agatha Christie tem em seu livro mais famoso publicado em 1939 o maior diferencial que tanto a marcou durante sua carreira: um grande mistério dedutivo em uma trama policial recheada de suspense.

    Oito pessoas são convidadas para passar o final de semana em uma ilha na Inglaterra ao lado dos dois criados, e, após serem acusados por crimes distintos, todos são assassinados seguindo os versos de um poema.

    A construção perfeita de suspense de Christie para sua trama policial de mistério se baseia através das sólidas estruturas: uma trama simples e funcional, personagens com fortes motivações e medo da repercussão dos seus atos, o ótimo cenário onde tudo se desenrola, e o seu grande diferencial: o poema que prevê a morte de cada um dos dez
    personagens principais do livro e os soldados de enfeite que vão sumindo a cada morte.

    Christie consegue proporcionar uma leitura rápida que envolve o leitor logo no início com uma breve descrição dos personagens e suas motivações e termina de prender o público ao mostrar o grande mistério que permeia a trama: quem arquitetou a vingança contra os dez personagens acusados de cometer crimes diversos. A partir daí, torna-se cada vez mais prazeroso ver o escalonamento do suspense trazido pelas mortes e a tensão de que um dos restantes seria o assassino.

    O romance ganha ainda mais força quando se completa a história pois revela outras camadas quando se reflete sobre a obra ou a cada releitura. A dedução de E Não Sobrou Nenhum não é o principal alicerce da história, o mistério causado pelo simbolismo do poema e das estátuas enriquece a história trazendo outras discussões para além do usual de um romance policial: a que ponto alguém vai para arquitetar uma vingança e quais significados essa vingança teria.

    E Não Sobrou Nenhum, publicado pela Globo Livros, deve agradar a todos os que gostam de um bom romance que discute outras questões que vão além de uma história policial. A edição do livro só favorece a própria história deixando o texto fluido, direto, sem a necessidade de encher informação inútil com o objetivo de tornar o livro maior do que ele é.

     

    Compre: E Não Sobrou Nenhum – Agatha Christie.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

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  • Resenha | Bem Atrás de Você – Lisa Gardner

    Resenha | Bem Atrás de Você – Lisa Gardner

    Bem Atrás de Você da escritora Lisa Gardner, lançado pela Editora Gutenberg, é um romance policial de dois irmãos separados e novamente unidos pela violência. A autora opta por uma escrita detalhista e descritiva ao acompanhar os motivos que levam até o desfecho da trama, mas a falta de carisma dos personagens e o enredo engessado pela falta de originalidade dão a narrativa um caráter frio, insosso e não-agradável.

    A história começa com o menino Telly de apenas 9 anos matando o próprio pai (que havia matado a esposa), para proteger a sua irmã. Os irmãos são postos para a adoção e um nunca mais sabe do paradeiro do outro. A irmã é adotada por um casal de policiais aposentados e ficamos sem notícia do irmão. Em paralelo, dois assassinatos a sangue frio acontecem em um posto de gasolina e a xerife recorre aos policiais aposentados pais de Sharlah (a irmã de Telly), para ajudar na identificação do garoto que aparece na câmera de vigilância do posto. Como era de se esperar, é Telly quem aparece nas imagens.

    A partir daí, Telly é caçado pelo FBI como um assassino perigoso e os pais adotivos de Sharlah são reticentes em contar a ela o paradeiro do irmão. A trama engessa, os personagens rodeiam entre si e mesmo os diálogos longos são enfadonhos por não adicionarem nada ao enredo. Certo ponto, e isso acontece em outras partes do livro, não há pistas sobre o paradeiro do jovem e no parágrafo seguinte os investigadores pensam no que poderia ser benéfico para eles, e é isso mesmo que acontece. Que coincidência!

    A solução do enredo, portanto, não é feita com as peças que já existem nas páginas do livro, mas com informações que saltam de fora para dentro, sem que a gente tivesse conhecimento antes. Soluções criadas naquele mesmo momento para acelerar a trama. É o tipo de resolução conhecida como Deus ex machina, um crime (o trocadilho foi intencional), quando se trata de narrativas policiais. Além dessa falha, os personagens são previsíveis, com algumas frases feitas tiradas de séries policiais televisivas, e pouco dão vigor à história.

    Na capa é dito que Lisa Gardner é uma das melhores autoras de suspense do momento (talvez por isso seja bestseller), mas não nesse livro. Aqui não há suspense. Há episódios resolvidos apenas porque o tempo é curto e as coisas devem caminhar a um desfecho. Fora isso, não há construção narrativa que nos prenda à atmosfera apresentada. A impressão que fica é que estamos assistindo mais uma daquelas dezenas de séries policiais que repetem a si mesmas só pelo fato de as pessoas gostarem de séries policiais.  Para esse livro, contudo, é melhor mudar de canal.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Bem Atrás de Você – Lisa Gardner.

  • Resenha | Os Cinco Porquinhos – Agatha Christie

    Resenha | Os Cinco Porquinhos – Agatha Christie

    Poirot contra a névoa assassina do passado

    Publicado em 1942, Os Cinco Porquinhos, da dama do crime Agatha Christie, é mais um caso rocambolesco que cai no colo do excêntrico detetive Hercule Poirot. Dessa vez, Poirot é contratado para inocentar a condenada de um assassinado que ocorreu dezesseis anos antes. A reconstrução do passado é o obstáculo para o detetive. Isso o inflama a tal ponto de aceitar o caso.

    O livro começa com a jovem Carla Lemarchant procurando Poirot. Ela conta que seu pai, Amyas Crale, um famoso pintor, foi envenenado e, à época, a mãe dela, Caroline, fora julgada e condenada com prisão perpétua pelo crime. Contudo, pressentindo a morte, a mãe deixa uma carta à filha (com apenas 5 anos na época), onde alega inocência. Poirot se recorda superficialmente do crime, mas é fisgado pelo desafio.

    O principal desafio do detetive é remontar os acontecimentos que culminaram no crime. Para isso, ele delimita os suspeitos as cinco pessoas que estavam no momento da morte do pintor, a saber: a amante dele (a amante morava com o casal), a governanta, a esposa do pintor, e um casal vizinhos que frequentava a casa. A amante fazia-se de modelo, e vice-versa, na casa de Amyas. Ele pintava um grandioso quadro e, às escuras, fazia juras de largar a esposa e fugir com a modelo/amante. A esposa passou a perceber a situação, e, segundo o julgamento do caso, foi isso que motivou a esposa a cometer o assassinato envenenando a cerveja dele entre uma pincelada e outra no jardim.

    Poirot está com sorte: todos os suspeitos e ainda alguns magistrados que participaram do julgamento ainda estão vivos. Com esse benefício, o desenvolvimento da história flui com entrevistas do detetive com os suspeitos daquela época. A surpresa é que cada suspeito e advogado têm opiniões diferentes sobre a esposa do pintor, dificultando que Poirot determine a personalidade da condenada. Para driblar isso, Poirot se concentra no exame minucioso de fatos paralelos, chegando até a pedir que cada entrevistado escreva os acontecimentos que culminaram na morte do pintor. O detetive recebe essas descrições e a partir do exame de peculiaridades ao longo daquele dia, consegue dar um parecer diferente do proferido dezesseis anos antes.

    O estilo de Christie, ou pelo menos o que ela imprime enquanto é a títere por trás de Poirot, é essencialmente minucioso e dialogista. Ela trabalha com diferentes personagens e consegue imprimir personalidades distintas em cada um deles. Um trabalho notável que desenlaça alguns perfis que faziam parte da sociedade do início do século XX. Em Os Cinco Porquinhos temos o artista obstinado e cheio de vícios, a esposa fiel e resiliente, a jovem paixão que confunde-se com poder financeiro, novos burgueses, ciúmes entre casais, a governanta severa que preza pela solidez das instituições básicas, etc.

    O que talvez torne enfadonha a leitura é a vagarosidade pela qual os detalhes importantes são apresentados. Diferentemente de outros trabalhos, nesse, Poirot não é tão veloz quanto antes, ele dá tempo ao entrevistado/suspeito e os interrogatórios por vezes se desenrolam em minúcias aparentemente sem importância, mas que para a mente tétrica do investigador, carregam a solução do caso. Por fim, é um belo livro, os desenlaces finais são fiéis a lógica interna da narrativa e conferem um ótimo desfecho – uma característica de todos os livros de Agatha Christie.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Os Cinco Porquinhos.

  • Resenha | O Assassinato de Roger Ackroyd – Agatha Christie

    Resenha | O Assassinato de Roger Ackroyd – Agatha Christie

    Poirot aposentado, mas não menos eficaz

    O Assassinato de Roger Ackroyd é o quarto livro de Agatha Christie (escrito em 1926), e o primeiro grande sucesso da autora. Romance policial dos mais assertivos do gênero, a trama funciona mecanicamente impulsionada por pequenas engrenagens narrativas que movimentam as maiores até que o criminoso seja revelado. Na ponta do trabalho, Hercule Poirot, aposentado, mas ainda uma lenda da investigação. Apenas ele para descobrir o assassinato do riquíssimo Roger Ackroyd.

    O famoso detetive utiliza uma mescla entre método dedutivo e analítico para resolver seus casos. Primeiro ele estipula o momento de morte da vítima e cria um intervalo de tempo seguro onde aconteceu o crime. Em seguida  anota todas as pessoas que estiveram ou poderiam ter acesso ao morto e os interroga. Em paralelo, ainda na cena do crime, busca os “pequenos casos”, ou seja, os desarranjos que cercam o crime e que aparentemente não tem ligação com a morte, mas que explicam, aos poucos, como o assassino agiu. De posse dessas informações, o detetive vai testar suas deduções e procurar as mentiras que as testemunhas contam, pois, segundo ele, todos mentem.

    Expliquei o método de Poirot para ilustrar os pontos que movem a narrativa da dama do crime: investigação sobre os personagens ilustres, “pequenos casos” e mentiras. Livro essencialmente trabalhado com diálogos, as descrições são em maiorias curtas e mesmo a natureza fica em segundo plano na comunidade onde se passa o crime. É interessante notar que a autora trabalha com o romantismo tanto nos diálogos quanto nas virtudes ou pecados dos personagens.

    A trama é alimentada por pontos de virada bem colocados. Agatha Christie sabe exatamente quando os personagens têm que descobrir mais alguma coisa para a narrativa não se tornar tediosa. Nós, leitores, somos alimentados parcimoniosamente com informações que revelam os intentos passivos que se escondem por trás do assassinato. As pequenas soluções alimentam as grandes e assim somos fisgados até o fim. Mas…

    O fim não é exatamente o desfecho prodigioso em um gênero policial. Leitores de romances policiais gostam de acompanhar o movimento do investigador e paralelamente identificar as pistas que levam até a resolução do conflito. Contudo, a solução empregada por Agatha Christie é o que se chama “Deus ex machina”. Esse termo serve para expressar, em linguagem de teatro, roteiro e literatura, o surgimento de uma personagem, artefato ou um evento inesperado, artificial ou improvável, de forma repentina para a resolução do conflito final.

    Ao final da leitura fica uma sensação de desapontamento. Mas enfim, talvez não houvesse outra solução tão impactante quanto aquela. Decida-se ao ler. Livro bem recomendado.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: O Assassinato de Roger Ackroyd – Agatha Christie.

  • Resenha | Investigação Olímpica – Fernando Perdigão

    Resenha | Investigação Olímpica – Fernando Perdigão

    A narrativa policial brasileira sempre foi tímida se comparada a outros gêneros. Se analisarmos o topo da pirâmide literária, a partir dos canônicos, observaremos que certos autores flertaram com o estilo, sem a consagração de obras inseridas no gênero por completo. Ainda que o Brasil conte com uma diversificada produção em vertentes distintas, há ainda uma pequena parcela de autores que escreve literatura policial e, simultaneamente, se consagra como um bom literato.

    Lançado pela editora Oito e Meio em maio do ano passado, Investigação Olímpica é o terceiro livro de Fernando Perdigão, o segundo romance focado no Detetive Andrade, um bom personagem criado no romance anterior, A Pedido do Embaixador, com grande potencial para estar na pequena (e boa) galeria de detetives made in Brazil.

    A trama se constrói a partir do fato real dos Jogos Olímpicos realizados no país em Agosto de 2016. A narrativa destaca em maior potência a personagem e suas ações do que a trama envolvendo possíveis enigmas, demonstrando que, neste caso, o como se narra é maior do que a descrição e posterior resolução de um crime em si. Sob este aspecto, Andrade é um personagem excepcional. Distante de qualquer espelhamento com grandes detetives internacionais, trata-se de um personagem rude, vacilante entre uma inteligência mordaz e um cinismo irônico, politicamente incorreto. No físico, reflete a construção de um esteriótipo policial: o homem gordo, amante da boa comida, que se destaca a partir de sua particularidade física como exceção dentro do grupo policial. Fator que encontra pares semelhantes como, apenas para nos mantermos em dois exemplos, o rotundo Nero Wolfe do americano Rex Stout e, recentemente, Cormoran Strike de Robert Galbraith (pseudônimo de J. K. Rowling). Uma composição descritiva que contraria a excelência física, potencializado um contraste que será evidente por sua inteligência.

    Andrade parece mais uma paródia do policial do que um detetive, de fato, ciente de todas as estratégias para realizar uma boa investigação. Neste aspecto, Perdigão demonstra seu domínio narrativo e o apreço pela literatura policial. Afinal, é necessário conhecer os clichês do gênero para poder parodiá-lo e, simultaneamente, enganar o leitor com a dúvida de estar diante de um genuíno detetive ou um impostor. A narrativa se fundamenta a partir da personalidade de Andrade, rude, agressivo, preconceituoso e, através de um riso grotesco, estabelece a dúvida se, de fato, haverá um crime ou se tudo não passa de teorias de um personagem afetado, um policial em terra brasilis que embebido de nossa brasilidade justifica arroubos de inteligência sem de fato tê-la.

    Submerso à investigação policial envolvendo uma possível sabotagem dentro dos Jogos Olímpicos, a trama se destaca também na destruição das aparências, e usa com adequação um evento de alto custo, não por acaso responsável por protestos por parte da população do país, como um contraponto para apresentar o conhecido status quo do país, em que, naturalmente, o popular jeito brasileiro se destaca e permeia as ações da trama.

    A prova de que as personagens e a condução narrativa é a linha principal da obra se solidifica no desfecho quando Perdigão manda as favas um ato final com a revelação do enigma, encerrando qualquer descoberta do culpado de maneira anticlimática como se fosse apenas um caso qualquer (e de fato, o autor afirmava tal feita desde o título da obra). Sem, com isso, destruir a narrativa, afinal, Andrade é a grande história e se revela um personagem autêntico daqueles que parte dos leitores terão uma relação definida entre amor e ódio, mas composto com vigor para se tornar inesquecível.

    Investigação Olímpica – Mais um caso ordinário do detetive Andrade é um respiro favorável a nossa literatura policial, com um bom personagem autêntico em um estilo tragicômico que se alinha com os contrastes de nosso próprio pais-natal.

    Compre: Investigação Olímpica – Fernando Perdigão

  • Resenha | Achados e Perdidos – Stephen King

    Resenha | Achados e Perdidos – Stephen King

    Achados e Perdidos - Stephen King

    Na longa carreira de Stephen King, iniciada em 1974 com o lançamento de Carrie – a Estranha, com inúmeras histórias de horror e personagens ilustres, faltava a presença de um detetive clássico, evidenciando uma investigação tradicional, aos moldes de outros americanos do gênero. Em Mr. Mercedes, publicado em Junho de 2014, nascia o detetive aposentado Bill Hodges para preencher esta lacuna. Diante do sucesso do livro, o autor desenvolveu uma trilogia com a personagem, ainda em publicação nos Estados Unidos e no Brasil.

    Lançado pela Suma de Letras no final de junho, Achados e Perdidos teve a publicação estrategicamente atrasada para que o terceiro livro, O Último Turno, saísse meses depois, em sintonia com a edição americana (a edição brasileira chega um mês depois do lançamento oficial). Nesta segunda narrativa, a literatura é o ponto de partida que impacta duas personagens em tempos distintos.

    Como em obras anteriores as quais referenciava a literatura como estrutura modificadora – e matéria para obsessão como em Misery – o autor promove nas entrelinhas de seu novo romance um tratado sobre a importância da arte, sem nunca inseri-la como superior aos próprios homens que a leem. Tanto na obra, quanto em entrevistas, faz questão de ressaltar a importância da leitura mas nunca a sobrepõe a importância de sua família, fator que demonstra como King amadureceu durante os anos e, mesmo mais manso, continua afiado na narrativa.

    O mestre do horror tem capacidade extrema ao dilatar os tempos das ações, situando-a em dois espaços temporais distintos, entrelaçando duas tramas que, em algum momento, o público reconhece que entrarão em conflito. O estilo é fluído e as personagens cativam por se assemelharem com os próprios leitores: dividem bons e maus pensamentos, ações boas e ruins, na mesma medida. São humanos vivendo dilemas comuns, exceto pelo fato de que King é naturalmente um autor endiabrado e suas personagens tendem a seguirem um caminho brutal.

    O futuro conflito que eclodirá no desfecho é bem construído e tão esperado que a participação do detetive Bill Hodges é menor neste segundo volume da trilogia. De fato, a personagem e seu grupo entram em cena somente após um terço da leitura. Tem-se a impressão que, após o sucesso do ótimo Mr. Mercedes, a intenção de promover outra aventura com o detetive foi composta a partir de uma história anterior. Sendo Hodges inserido em um contexto prévio. A personagem funciona como um bom apoio para o conflito, entregando aos leitores a mesma química da história anterior, porém, em uma participação diminuta que, diante da força da história sobre a potência da literatura, permanece em segundo plano.

    Sem apresentar detalhes do enredo, que poderiam estragar a leitura, afinal, trata-se de uma obra de suspense, King desenvolve um interessante autor fictício considerado canônico pela crítica. Sua história de distanciamento da sociedade, aproxima-o da vertente de escritores reclusos como o grande J. D. Salinger (tema de um Vortcast sobre O Apanhador no Campo de Centeio) e, no Brasil, Rubem Fonseca e Raduan Nassar. Ao pontuar dois personagens leitores de uma mesma obra, em épocas diferentes, a metanarrativa demonstra como a literatura é capaz de tocar diversos estilos de leitores e produzir um significado diferente dentro de cada um. Mesmo um único objeto literário se transforma ao adquirir leituras múltiplas que, nesta narrativa, carregam-se pela obsessão e o desejo de possuir o autor como se ele fosse um amigo íntimo do leitor.

    O espaço para desenvolver o conflito entre os personagens leitores é amplo, desequilibrando a inserção do detetive conhecido do autor. Por um lado, King entrega uma obra que foge de uma continuação tradicional, como se negasse o protagonismo ao seu carismático detetive de terceira idade, porém, tratando-se de uma trilogia, sua presença poderia ser mais significativa. Conforme a trama chega ao seu desfecho, o autor pontua o gancho para o último romance da série, retomando o grande conflito do primeiro romance que, esperemos, retorne o velho Kermit Hodges na posição de personagem principal.

    Compre: Achados e Perdidos – Stephen King

    NEW YORK, NY - JUNE 03: Stephen King attends Meet the Creators at Apple Store Soho on June 3, 2013 in New York City. (Photo by Jim Spellman/WireImage)

     

  • Crítica | Mr. Holmes

    Crítica | Mr. Holmes

    Sr. Holmes 1

    Baseado na velhice e extrema misantropia do personagem-título, Mr. Holmes é uma aventura capitaneada por Bill Condon, que usa o talento de Sir Ian McKellen para dar substância a um roteiro confuso, atrapalhado e bastante genérico. A história se situa 35 anos após a “real” aposentadoria do Detetive, excluindo, claro, as mortes que forjou, com um Holmes que do alto de seus 93 anos tenta reescrever o seu último caso.

    O agravo que o roteiro propõe é que Sherlock já não tem todas as qualidades necessárias para relembrar seus próprios atos, graças à senilidade que se aproxima e aplaca sua inteligência e memória conhecidamente irretocáveis. A problemática não está nisso, e sim no drama genérico, que se encaixaria com qualquer personagem, não somente com o investigador de Baker Street.

    As licenças poéticas são muitas e não chegam a comprometer a qualidade do filme, mesmo que soem incongruentes, como o fato de ignorar-se que ao menos um dos 56 contos canônicos ter sido “escrito” pelo próprio agente, a despeito do médico/escritor que o acompanhava. A atribuição de elementos básicos, como uso de boné e cachimbo à imaginação de Watson, varia dentro do texto fílmico entre uma charmosa negação do herói e exageros do escritor original, que fantasiava demasiadamente, fatos reclamados já nos primeiros contos depois de Um Estudo em Vermelho.

    O enfoque no enferrujamento do detetive poderia ser mais interessante, mas é diluído por todo o entorno familiar, o que torna o drama cafona, banalizando até seu exílio com a pasteurização conservadora de humanizar o personagem, aspecto aliás completamente desnecessário. A mensagem interessante fica por conta da solidão dele, que não tem mais seus amigos, parentes e antigos colegas policiais, uma vez que somente os mitos sobrevivem eternamente – inclusive sobre mal engendradas produções cinematográficas.

  • Resenha | A Garota Na Teia de Aranha – David Lagercrantz

    Resenha | A Garota Na Teia de Aranha – David Lagercrantz

    images.livrariasaraiva.com.br

    É importante ressaltar que este livro não veio do manuscrito inacabado que a esposa de Stieg Larsson possui, mas uma história nova licenciada pelos herdeiros: o pai e o irmão do falecido autor.

    A Garota Na Teia de Aranha é talvez um dos maiores lançamentos literários de 2015. Quase 10 anos depois do lançamento da trilogia Millennium original, o livro vem cheio de expectativas, não só por causa das novas aventuras policiais de Lisbeth Salander e Mikael Blomkvist, mas para saber se o novo autor, David Lagercrantz, estaria à altura do criador da série, o falecido Larsson.

    Após o assassinato de um cientista e a tentativa de rapto de uma criança autista superdotada, os dois protagonistas se veem no meio de uma guerra cibernética entre hackers ativistas, a NSA e uma rede criminosa russa que conta com assassinos profissionais.

    É satisfatório poder ler mais uma história com Lisbeth e Mikael. Os personagens carismáticos criados por Larsson ainda mantêm o charme dos livros originais, embora uma leve diferença nos diálogos e ações possa ser sentida quanto ao novo autor, mas nada que desabone a história ou cause desconforto nos fãs.

    Mikael continua um repórter investigativo obstinado e um homem teimoso, além de ter caráter incorruptível. Lisbeth, apesar de sumida na maior parte do livro, continua a manter todas as qualidades que a fizeram ser enigmática e roubar a cena sempre que aparece: fala pouco, se esconde, não deseja se abrir com ninguém, quanto menos ter uma relação. São dela as ações que fazem a história iniciar e ter a grande reviravolta do meio para o final.

    A narrativa é bem construída, mas pode causar estranhamento no leitor ao inverter os dois temas principais dentro do universo criado por Larsson: este livro prefere focar no ambiente tecnológico dos hackers e da computação e um pouco menos nos casos de abusos de direitos humanos. No entanto, o autor deste novo romance fornece alicerces fortes para que a história faça sentido e as principais ações estejam onde devem estar. Em suma: é uma história redonda e não há muitos erros perceptíveis para o grosso do público.

    O maior problema da narrativa se encontra na estrutura. A introdução prolonga-se mais do que deveria ocupando um terço do livro, o que acaba comprometendo um pouco o desenvolvimento da trama. Sempre que a história parece que vai engrenar, o clima morno volta como se fosse o início do livro. Os variados pontos de vista aliados às minibiografias de personagens secundários e sem importância acabam trazendo excesso de informação, ajudando a travar o andamento da narrativa.

    A escrita de Lagercrantz não compromete. Habituado a escrever livros policiais, o escritor não falha na tentativa de contar uma boa narrativa policial. O autor também tenta emular a escrita de Larsson, o que ajuda a manter uma certa linearidade na agora quadrilogia Millennium. Porém, dois fatores que merecem crítica é o fato do autor manter um pouco da verborragia do escritor da trilogia original (quem aguentava as descrições de todas as vezes que os protagonistas foram a cafeterias ou ao mercado fazer compras?) e a confusão gerada pelo excesso de informação pela quantidade de personagens e suas inúteis minibiografias.

    A edição do livro poderia ser sido mais eficiente. A leitura, que já é fluida, tornaria o livro melhor nas partes verborrágicas. As 464 páginas poderiam virar 400 facilmente e a história ficaria melhor.

    A Garota Na Teia de Aranha é um livro que deve agradar aos fãs da trilogia original, e que pode ser interessante aos fãs de romances policiais ou a quem não gosta de histórias fantásticas.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Os festivais que nunca tivemos

    Os festivais que nunca tivemos

    presentacio

    A literatura não acontece só quando os olhos de alguém percorrem as páginas de um livro. Ela vai além das abarrotadas prateleiras e dos silenciosos gabinetes de leitura. A literatura também se materializa em ocasiões agitadas, onde as pessoas se encontram, se confraternizam e compartilham paixões iguais e interesses diferentes. Esses espaços privilegiados são as feiras e festivais que reúnem escritores, editores, capistas, tradutores, ilustradores, distribuidores, vendedores, mídia especializada e públicos. Alguns desses eventos assumem a condição celebrativa e adotam o nome de “festa”, como é o caso da Flip, que se firmou como um dos mais importantes momentos do ano literário no país.

    A questão é que esses festivais são peças necessárias para a engenharia de uma cena cultural. Diversas razões apontam pra isso. As feiras literárias permitem que leitores tenham contato com escritores, e que editoras exibam seus autores e catálogos, buscando fidelizar públicos. Esses eventos costumam despertar a atenção de outros públicos e ajudam a formar novas gerações de leitores. Além disso, geram mídia espontânea para o setor, alavancam vendas e ainda atraem realizadores de outras mídias, como a TV e o cinema, interessados em adaptações e produtos derivados. Ganham o mercado editorial, os criadores e os leitores. Se por um lado quem lê pode trocar ideias com grupos de interesses comuns, assistir a palestras e conhecer grandes autores, por outro as editoras têm a chance de conhecer seus públicos, divulgar coleções e pesquisar diretamente a opinião dos leitores sobre seus produtos. Quer dizer: eventos literários movimentam a economia, valorizam a escrita e a leitura, e expandem a presença da literatura na vida das pessoas.

    Para os fãs de romances policiais e de suspense, há várias feiras todos os anos. É uma pena que não no Brasil. Com exceção de participações isoladas de autores em festivais mais amplos, não se criou ainda um evento totalmente dedicado à literatura policial do porte dos que existem na França, Inglaterra e Estados Unidos, por exemplo. De olho nessa receptividade, os mercados locais não pensam duas vezes em investir para fomentar produção e vendas.

    Sangue na Europa

    Na Inglaterra, um dos mais interessantes festivais é o Harrogate Crime Festival, que acontece em julho e dura quatro dias. Com jogos investigativos, premiações e palestras, já reuniu nomes como Ian Rankin e Tess Gerrintsen. O público elege o melhor romance do ano, e o vencedor recebe 3 mil libras como incentivo. Uma curiosidade: é justamente em Harrogate que fica o Old Swan Hotel, lugar usado por Agatha Christie para desaparecer misteriosamente por 11 dias em 1926!

    Ainda na terra da rainha, em Bristol, acontece sempre no mês de maio a CrimeFest. Considerado um dos 50 melhores festivais literários do mundo pelo jornal The Guardian, teve a primeira edição em 2008, com jantares, mais de 40 mesas de discussão com autores e editores, workshops e apresentações variadas.

    Não poderia faltar um evento em homenagem à Rainha do Crime. O International Agatha Christie Festival acontece em setembro em Torquay, onde a escritora nasceu em 1890. A celebração dura em torno de uma semana, reunindo fãs de todo o mundo desde 2004. Um dos pontos mais visitados pelos participantes é Greenway, a famosa casa de verão onde Agatha escreveu muitos de seus sucessos.

    Na Escócia, há o Bloody Scotland (Escócia Sangrenta), que movimenta o mês de setembro na cidade medieval de Stirling. Durante uma semana, tradutores, leitores e escritores reúnem-se para discutir a diversidade do gênero e o festival apresenta os melhores romances policiais publicados no país de Arthur Conan Doyle.

    Os festivais criminais atravessam o Canal da Mancha e invadem a parte continental da Europa. Entre março e abril, Lyon, na França, sedia o Quai du Polar Crime Festival, um dos mais prestigiados do gênero. Por lá, já passaram Patricia Cornwell, Henning Mankell, P. D. James, Harlan Coben e Gillian Flynn, entre outros. Na última edição, mais de 65 mil aficcionados visitaram a cidade.

    Se os nórdicos são a nova moda criminal, não poderiam faltar nessa lista. A Islândia promove o Icelandnoir, e a Noruega, o Krimfestivalen. Na Suécia há o Crime Writing Festival, que acontece em agosto na ilha de Gotlândia. O slogan é “para quem ama suspense em livros e filmes”, e o evento apresenta trilhas investigativas, exibição de filmes, peças de teatro e cinquenta autores participando, com nomes da casa como Lars Kepler e Anne Holt.

    A Espanha também merece destaque, pois tem um mercado muito ativo no que se refere à literatura policial. Há dez anos, Barcelona promove entre janeiro e fevereiro a BCNegra, reunindo 60 autores em mais de 20 atividades. Charme adicional é o prêmio de melhor romance – Pepe Carvalho Award – homenagem ao detetive criado por Manuel Vasquez Montalban.

    No mesmo país, há a Semana Negra em Gijon. A edição deste ano teve 120 autores, 20 deles vindos América Latina. Foram 100 atividades culturais gratuitas para o público durante nove dias de festival. É no evento que são concedidos o Dashiel Hammett Prize!

    No resto do mundo

    Os alemães têm o seu Krimifestival e os nova-iorquinos, o ThrillerFest. Argentinos realizaram a quarta edição de sua Buenos Aires Negra (a BAN!), e os uruguaios dedicaram uma semana de seu mês de agosto para a Semana Negra de Montevidéo. Foram painéis literários, simpósios, dezenas de atividades e entrada gratuita para o público. Jornalistas, criminologistas, especialistas forenses, policiais, e – claro! – autores do gênero trocaram ideias e experiências sobre violência, corrupção e criminalidade na literatura.

    No Chile, desde 2011 acontece o Festival Iberoamericano de Novela Policial “Santiago Negro”. Com autores da Argentina, Chile, México, Venezuela e Espanha, um dos objetivos é incentivar o intercâmbio cultural entre os participantes, qualificando a produção e difundindo novas expressões do gênero.

    Como se não bastasse a Feria Internacional del Libro de Santiago (Filsa), marcada para outubro e novembro, vai homenagear a literatura nórdica com ou devido destaque para Sissel-Jo Gazan (Dinamarca), Kjartan Fløgstad (Noruega), Tove Alsterdal e Johan Theorin (ambos da Suécia).

    Esses são apenas alguns dos festivais mais reverenciados do noir no mundo. Com uma produção de qualidade cada vez mais crescente, um mercado leitor gigantesco e editoras que nada devem às estrangeiras, por que não temos um festival do tipo no Brasil? Falta coragem ou ousadia? O que impede que uma cena cultural dessas aconteça pra valer? Quando chegará a nossa vez? Com a palavra, editores, livreiros, escritores e agitadores culturais…

    Chris Lauxx

     Texto de autoria de Chris Lauxx, pseudônimo dos jornalistas Rogério  Christofoletti e Ana Paula Laux, autores da enciclopédia Os Maiores Detetives do Mundo e editores do site literaturapolicial.com

  • O Caso dos Mais Vendidos

    O Caso dos Mais Vendidos

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    Há um grande mistério na prateleira dos romances policiais, e não se trata de uma nova onda de crimes ou de mais um serial killer. A questão está mais ligada a títulos, autores e editoras do que propriamente aos atos ilegais e aos corpos espalhados pelo caminho. Se o leitor se dispuser a olhar as listas dos mais vendidos dos gêneros Crime-Suspense-Mistério, vai certamente notar que a esmagadora maioria vem de autores estrangeiros.

    Se espiarmos a lista na Amazon, encontraremos Agatha Christie, Ian Fleming, James Paterson, Stieg Larsson, Patricia Cornwell, Nora Roberts, Harlan Coben, George Simenon e Arthur Conan-Doyle entre os primeiros. Bem depois, esbarraremos em alguns conhecidos locais. Tal observação permitiria constatar que esse tipo de literatura só sobrevive à custa de escritores norte-americanos, ingleses, escandinavos, franceses… Mas rezam as cartilhas do romance policial que as primeiras pistas não são suficientes para solucionarmos o caso.

    Deixemos de lado a hipótese derrotista (“autor policial brasileiro não vende”) e arrisquemos uma pergunta em forma de paradoxo: os estrangeiros aparecem mais na lista porque vendem mais, ou vendem mais porque aparecem mais na lista?

    A pergunta se justifica por um dado. Dos quase 61 mil títulos lançados no país em 2014, apenas 9,7% foram traduções. Quer dizer: nove em cada dez livros no mercado são assinados por autores brasileiros. Os dados são de uma pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), encomendada pela Câmara Brasileira do Livro e pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros. O estudo não detalha se essa proporção se mantém em Crime-Suspense-Mistério, e se isso acontecesse, aí sim, teríamos um resultado alarmante para os escritores nacionais: venderiam muito pouco se comparados aos colegas gringos.

    Mas não se pode afirmar isso por causa de outro fator: nos catálogos das editoras, raros são os autores nacionais nos gêneros em questão. Claro que essas informações não estão reunidas e sistematizadas, mas podem ser facilmente acessadas nos sites das editoras. Não são muitas as casas que se dedicam a esses livros (Record, Cia das Letras, L&PM, Benvirá, etc.), e elas têm historicamente priorizado a compra de direitos de tradução em vez de apostar em talentos locais. Na Suma de Letras, por exemplo, estão nomes como Michael Connelly e Stephen King (mesmo que este esteja mais para o terror que o policial). A Editora Record investe em Jo Nesbo, Andrea Camilleri e James Ellroy, e até mesmo reedita os suecos ancestrais Maj Sjöwall e Per Wahlöö. Para julho deste ano sai o novo livro de Marcos Peres, ganhador do Prêmio Sesc de Literatura e finalista do Jabuti e do Prêmio São Paulo de Literatura, o romance policial Que fim levou Juliana Klein?. Para além de Peres, André Amado e Al Gomes, quais são seus principais nomes nacionais no gênero?

    A Cia das Letras dedica fatia um pouco mais generosa às apostas brasileiras com Luiz Alfredo Garcia-Roza, Jô Soares, Raphael Montes, Tony Bellotto. A Intrínseca tem a série com o jovem Sherlock Holmes, e a Arqueiro prefere os best-sellers: é assim com os carros-chefe Dan Brown, James Patterson e Harlan Coben. Ano passado, a Arqueiro também organizou encontros de literatura policial pelas livrarias do país para promover as obras de seu catálogo.

    Outras editoras criam selos e coleções que só publicam autores não-brasileiros e ignoram a produção local do gênero. Nova Fronteira, Zahar, Globo Livros, Alfaguara e L&PM se concentram em títulos clássicos (com séries belíssimas de Agatha Christie, Raymond Chandler e Conan Doyle), e a Vestígio, do grupo Autêntica, investe em nomes mais contemporâneos. Na Rocco, há nomes estrangeiros e poucos nacionais no catálogo: de Benjamin Black, passando por Sophie Hannah, JK Rowling e Ruth Rendell a Patricia Melo, Luís Dill e Flávio Carneiro. A editora Planeta publicou o primeiro policial de Mario Prata (que escreveu mais um pela Leya) e um livro do paulista Roger Franchini. E pela Belas-Letras saiu, neste ano, Pólvora, do cantor Tico Santa-Cruz. Finalmente, na Editora Draco encontramos uma seleção de autores nacionais com romances e contos policiais comercializados, como Carlos Orsi e Cirilo L. Lemos. A maioria está disponível apenas em formato digital, e quem não tem um e-reader acaba não descobrindo o catálogo.

    As editoras brasileiras não abrem tanto espaço para autores nacionais por questões estéticas? Isto é: o gênero policial não funciona por aqui? As obras de Rubem Fonseca, Patrícia Mello, Marçal Aquino, entre outros, já mostraram a que vieram. Foram reconhecidas pela crítica e pelo público, e encontraram um lugar na literatura urbana contemporânea.

    As editoras brasileiras não publicam autores nacionais por razões mercadológicas? Quer dizer: o gênero não vende? Besteira. Leitores brasileiros continuam a consumir casos e mistérios, tanto em versões impressas quanto eletrônicas, apesar de estarem soterrados sob toneladas de filmes, seriados, programas de TV e outros produtos que nos impelem a descobrir os culpados dos crimes. Dias Perfeitos, de Raphael Montes, por exemplo, já foi editado em diversos países e, em breve, deve sair em Taiwan e Hong-Kong. O Matador e Elogio da Mentira, de Patricia Melo, já têm edições romenas!

    Raphael Montes

    Raphael Montes, autor de Suicídas e Dias Perfeitos

    Voltemos ao paradoxo, o mistério que nos trouxe até aqui: os estrangeiros aparecem mais na lista de best-sellers porque vendem mais, ou vendem mais porque aparecem mais na lista?

    Arriscamos dizer que as editoras brasileiras têm investido menos do que poderiam na safra de autores nacionais do gênero. As razões para isso estão mais nos temores financeiros que estéticos. Os motivos estão mais no conservadorismo e no oportunismo de mercado do que propriamente na qualidade dos originais recebidos. Afinal, para qualquer empresa, é menos arriscado vender um produto que fez sucesso lá fora ou foi agraciado com algum prêmio do que lançar um novo nome, oferecer um título inédito e original. É mais fácil pegar carona no sucesso internacional do que fomentar uma cena criativa local, que também pode ser bem lucrativa.

    Estamos tratando aqui de uma categoria específica de livros, os de Crime-Suspense-Mistério, que não é tão marginalizado quanto o Terror, por exemplo. Produções do cinema e da TV enxergam no gênero um terreno fértil de novos produtos e experiências. Não se trata de um fenômeno como o dos livros para colorir, um ponto fora da curva do mercado que já vendeu neste ano quase um milhão de exemplares, se contarmos apenas dois títulos, Jardim Secreto e Floresta Encantada, ambos de Johanna Basford, conforme dados da PublishNews. É uma raridade, um evento isolado. Estamos tratando de um gênero que existe e persiste há décadas, que está estabelecido, e que não demonstra cansaço ou perda de fôlego.

    Acreditamos que títulos de autores nacionais poderiam ter performances de vendas melhores se houvesse mais recepção de originais; se existissem mais lançamentos do gênero; se fossem investidas mais verbas de marketing e promoção; se fossem estimuladas produções derivadas das obras na TV e no cinema. Enfim, se os escritores locais tivessem mais espaço e visibilidade. Acreditamos que uma cena literária policial possa ser fomentada, já que existem muitos criadores do gênero no país. Prova maior está na quantidade de títulos lançados nos últimos anos na internet ou em formato impresso, sob o signo da autopublicação.

    Se a fresta estivesse menos estreita, poderíamos sonhar com embriões de uma geração criativa e produtiva no gênero policial. Clássicos e cânones como Agatha Christie e Simenon continuariam a frequentar as listas dos mais vendidos nas livrarias, mas poderiam ter vizinhos com o nosso sotaque e que narram crimes nas nossas paisagens.

    Texto de autoria de Chris Lauxx, pseudônimo dos jornalistas Rogério  Christofoletti e Ana Paula Laux, autores da enciclopédia Os Maiores  Detetives do Mundo e editores do site literaturapolicial.com

  • Resenha | Bellini e o Labirinto – Tony Bellotto

    Resenha | Bellini e o Labirinto – Tony Bellotto

    O titânico Tony Bellotto iniciou sua carreira literária em 1995 com um romance policial que originou a personagem Remo Bellini, um improvável investigador particular residente na cidade de São Paulo, ouvinte voraz de blues e – como uma espécie de requisito exigido pelo gênero – um homem incompreendido e desejado por diversas mulheres.

    Três de seus oito romances apresentam o detetive Bellini. Uma dedicação comum aos escritores da narrativa policial que escolhem uma personagem-chave para suas histórias e, romance após romance, aprofundam suas dimensões, ampliam o universo que os envolve, não raro apresentando visões diferentes de pressupostos que o leitor imaginava imutáveis.

    Distante de seu personagem há mais de cinco anos, Bellotto foi convidado para escrever um roteiro de duas histórias em quadrinhos para o álbum Bellini e o Corvo, um projeto a ser lançado pela Quadrinhos da Cia, selo da Companhia das Letras, responsável pela edição de sua obra. Em textos publicados no blog da editora, foi este o estímulo que o impulsionou a retornar ao universo da personagem, como se reencontrasse  um velho amigo. Motivação suficiente para elaborar um novo romance.

    Neste hiato entre um Bellini e outro, o autor escreveu dois romances oscilantes fora do âmbito policial. Mesmo distante deste universo, a ironia da personagem e o estilo narrativo pareciam vazar para estes outros livros, como se não houvesse limitação aparente ou um apuro consciente que produzissem vozes diferenciadas a cada romance.

    Bellini e o Labirinto demonstra a evolução narrativa de Bellotto, que finalmente entrega um romance bem executado tanto em sua estrutura policial quanto na narrativa madura e equilibrada. Além de uma história investigativa, a trama utiliza-se de uma vertente comum nas sequências policiais, a de introduzir o próprio detetive como elemento da investigação, não sendo mais o policial um ser à parte que produz luz em acontecimentos de maneira imparcial. Ao dividir o foco entre a investigação padrão e o drama da personagem, a história duplica de intensidade.

    Na trama, Bellini viaja até Goiânia para investigar o desaparecimento de um famoso cantor sertanejo, mas, conforme adentra as investigações, descobre que nem tudo parece óbvio, algo que toda boa narrativa policial carrega em suas linhas.

    Bellini se tornou um personagem mais crível e coerente. Se antigamente sua erudição destoava de um estilo que se pretendia mais próximo da oralidade mas que se revelava sem muito arrojo, o amadurecimento notável da prosa do autor foi suficiente para equilibrar os elementos internos da personagem – divagações eruditas sobre mitologia, música e a vida em si – e o refinamento narrativo, que ainda mantém a intenção da linguagem coloquial mas que produz uma estabilidade que nenhuma de suas obras anteriores foi capaz.

    Aos quarenta anos de idade, a personagem de Bellini, também narrador em primeira pessoa da trama, permanece estagnada. Mora na mesma kitnet das histórias anteriores, ganha o suficiente para sobreviver e faz da música a paixão e objeto de fuga. Sem perder a ironia, sua devastação tem maior reflexo na maturidade natural da idade, que parece ter alinhado melhor as vozes narrativas citadas dentro do texto.

    Dividido em capítulos curtos que cercam os eventos de maneira pontual, o romance foi bem construído entre as filosofias da personagem e a ação da obra em si. O estilo irônico do autor está apurado, mantendo a erudição, sem que isso retire a característica de sua prosa rápida sustentada pela fluidez. Destaca-se também o gosto pela utilização de nomes estranhos que causam desconforto no leitor. Alcunhas vindas de palavras estrangeiras e traduzidas em incômodas grafias abrasileiradas demonstram a tonalidade canhestra de que esta história – e seus personagens – são autenticamente brasileiros (uma das personagem do enredo chama-se Riboquinha, nome originado a partir da marca de tênis Reebok).

    Como um bom romance policial que, até então, fora somente sugerido ou emulado nas obras anteriores, Bellotto insere camadas profundas na história, consciente de que imergirão mais à frente na narrativa com maior potência, conduzindo um ato final espetacular entre o desfecho da investigação, recursos narrativos externos e reflexões inerentes da personagem central.

    Dentro de um labirinto narrativo, esta obra parece o início de uma nova fase, claramente mais madura, do autor, ciente das tensões necessárias para compor um bom romance. Após diversas histórias entre altos e baixos, Bellini e o Labirinto situa-se em seu melhor, ainda que seja cedo demais para batizar esta obra de provável Cabeça Dinossauro – em referência aos álbuns dos Titãs – de sua carreira literária.

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  • Resenha | O Silêncio dos Inocentes – Thomas Harris

    Resenha | O Silêncio dos Inocentes – Thomas Harris

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    Segundo romance com o Dr. Hannibal Lecter e terceiro de Thomas Harris, O Silêncio dos Inocentes, lançado em 1988, narra a história de Clarice Starling, agente em treinamento na Academia do Bureau Federal de Investigações (FBI) designada na investigação do brutal serial-killer Buffalo Bill. Preso em uma clínica, o psiquiatra é consultado para traçar o perfil psicológico do procurado assassino de cinco mulheres mortas em diferentes regiões dos Estados Unidos.

    Encontrados em pequenos espaços de tempo e em diferentes margens de rios do país, os corpos das vítimas têm o mesmo padrão: mulheres grandes e nuas, em estado avançado de decomposição, com cortes nos seios e nas costas e em cujas gargantas foram colocadas pupas de uma espécie rara de mariposa. Quando se descobre que o psiquiatra canibal possui informações sobre o assassino, Starling conta com sua ajuda na investigação em troca de informações pessoais, uma análise psiquiátrica que relembra os tempos em que ele ainda era um profissional conceituado na área e não tinha sua liberdade cerceada pelas grades de ferro da clínica.

    Embora se trate de uma história policial, naturalmente rápida e seca, como o barulho de um tiro, a narrativa de Thomas Harris consegue se impor através da poeticidade das ações dos personagens, principalmente as de Clarice, humanizando-a. Ela é a personagem novata que cativa pela falta de experiência. Ainda que o romance contenha a complexidade de um dos maiores vilões da prosa contemporânea, a história centra-se nela: a “caipira melhorada com um pouco de bom gosto” – assim chamada por Lecter – escolheu a carreira em razão da morte do pai, também policial. O parentesco impulsionou a agente a desempenhar um cuidado preciso com cenas de crime, ainda que não tenha um passado efetivo de atividade policial.

    Compreendemos Clarice porque nos vemos nela e com ela nos identificamos. Starling não é uma agente genial, como a maioria dos personagens da literatura policial. É uma mulher comum, que se coloca no lugar das vítimas, em seus sofrimentos e até nas suas escolhas pessoais de vida para encontrar o atrativo uno que motivou o assassino no momento da captura. Na busca por Buffalo Bill, a protagonista visita a casa das vítimas, observa roupas e sapatos que usavam quando ainda eram vivas, notando características similares: são todas mulheres grandes, bonitas e donas de cútis bem-cuidadas. Também recolhe declarações de seus familiares e amigos para obter o mínimo sinal suspeito, um procedimento comum nas investigações de décadas anteriores quando a visita de casa em casa era fundamental para encontrar pistas ou depoimentos importantes, longe do conforto de escritórios policiais, delegacias e de casos resolvidos pela investigação forense nos laboratórios.

    Ao se colocar no lugar das mulheres sequestradas e mortas, a personagem difere do método de Will Graham, do romance anterior de Harris, Dragão Vermelho. As tramas possuem protagonistas marcantes, porém opostos. Ambos são policiais destemidos e encorajados pela força da lei, mas enquanto Graham, por ser excêntrico, possivelmente insano e extremamente genial, encontra na mente dos sociopatas padrões indiscutíveis que o levam à solução dos casos, Starling chega ao desenlace a partir dos detalhes dessas mulheres. Isso explica por que ela, acreditando que a vítima primordial de Jame Gumb – nome original de Bill – era o seu principal descuido, chega ao louco covil do maníaco antes das equipes policiais, que nesse mesmo momento estavam a quilômetros de distância.

    Com a ajuda de Hannibal, Clarice descobre a bizarra intenção do assassino. Agindo pela cobiça, não por loucura ou puro desejo de matar, Buffalo Bill, um costureiro experiente, ambiciona a pele das vítimas com a finalidade de costurar uma vestimenta com o seu couro, provando seus desígnios grotescos. O personagem é baseado em outro serial-killer de verdade, Ed Gein, o qual colecionava partes dos corpos de suas presas e que também foi fonte de inspiração para diversas figuras de obras famosas da ficção, como Norman Bates de Psicose; Patrick Bateman, de Psicopata Americano; e, claro, Leatherface, de O Massacre da Serra Elétrica, além de muitos outros personagens menores.

    Jame Gumb cobiça a pele das mulheres porque deseja ser uma. Embora não se enquadre na condição da travestilidade – visto que transexuais na maioria das vezes são passivos e sem traços violentos, até mesmo por causa de sua posição oprimida pela sociedade –, ele se mostra feminilizado e com preocupação exagerada com a própria aparência. Uma figura egocêntrica, assim melhor dizendo, que centra em si seus desejos tornando a realidade fantasiosa. Por isso, o maníaco não pode ser considerado um transgênero legítimo. Isso é demonstrado na dinâmica da conceitualização dos testes psicológicos, quando Hannibal questiona o fato do assassino ter sido avaliado para realizar uma cirurgia de mudança de sexo. Um ponto importante, pois produz coerência com a realidade, já que Gumb foi recusado na triagem pelos médicos justamente por ter agredido um deles, o que denota uma personalidade violenta.

    Tal é a confusão psicológica do antagonista que as mariposas em sua vida interpretam papel fundamental. A mariposa se metamorfoseia em fases distintas, assim como ele sonha se transformar em outro alguém. Na sua mente a ideia de fazer um traje com a pele das vítimas – e vesti-lo – é a maneira de aproximá-lo à natureza exuberante do inseto, um bizarro fetiche explicado pelo comportamento narcisista e, contrariamente, pela sua falta de aceitação como pessoa. Além disso, Gumb age somente à noite, o que também é explicado pelo hábito noturno das mariposas. A escolha em colecioná-las não é um acaso sem explicação lógica, mas sim definidora.

    A procura pelo maníaco propicia também uma percepção maior sobre os personagens principais, os quais agem de maneira distinta na narrativa ao mesmo tempo em que são unidos por uma força maior. Clarice é a figura central do romance e agente que realiza as ações, e Hannibal, a cabeça pensante, ainda que tenha papel secundário. Essa diferença produz uma duplicidade antagônica que se completa e provoca tensão. A falta de contato físico entre eles, em razão da segurança máxima a qual o canibal foi submetido, com celas que não permitem o mínimo toque, é balanceada por uma espécie de contrato mútuo, uma relação estranha que reverbera na alta intimidade e na possível compreensão dos atos de cada um. Starling tem a confiança de Lecter porque se deixa levar por ele, pelo seu talento de adentrar na mente das pessoas e brincar com elas; ao mesmo tempo, o canibal transparece um tipo de confiança na agente federal, por esta ser uma novata esforçada, além da atração física que sente por sua presença. Juntos possuem o que toda dupla necessita em uma investigação: a química.

    A adaptação do livro para os cinemas, lançada em 1991, dirigida por Jonathan Demme e estrelada por Jodie Foster e Anthony Hopkins, além de Ted Levine como Gumb, é soberba ao captar esta química tão bem. Os olhares que Clarice troca com o psiquiatra, amplificados pelas cenas em close, expressam a confiança mútua sem o uso de palavras. A cena em que Starling conta seus sonhos dos quais é acordada pelo barulho de cordeiros – o que leva ao nome do título original – gera a mesma carga dramática do livro, mostrando que suas memórias podem ser tão aterrorizantes quanto a realidade das vítimas de Buffalo Bill. O filme capta todas as nuances do texto escrito, intensificando-as por meio de interpretações primorosas. Não à toa foi o vencedor das cinco principais categorias do Oscar de 1991 (Melhor Atriz, Melhor Ator, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Filme e Melhor Diretor), a terceira e última película da história do cinema a conquistar o feito, depois de Aconteceu Naquela Noite, de 1934 e dirigido por Frank Capra, e Um Estranho no Ninho, de 1976, realizado por Miloš Forman.

    Jodie Foster, Anthony Hopkins e Scott Glenn em foto de divulgação do filme

    O Silêncio dos Inocentes é um dos thrillers psicológicos mais importantes para o gênero. Um exercício narrativo exemplar que conduz com maestria os aspectos da narrativa policial – drama, suspense e investigação –, dosados de maneira ímpar e intensificados pelo horror que projeta nos personagens, mostrando a essência do que há de pior no ser humano. Mais do que buscar o culpado, a narrativa procura entendê-lo. O resultado é uma leitura fluida e intrigante, equilibrando densidade e tensão até as últimas páginas.

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    Texto de autoria de Karina Audi.

  • Resenha | Acima de qualquer suspeita – Scott Turow

    Resenha | Acima de qualquer suspeita – Scott Turow

    Scott Turow é autor consagrado quando se trata de thrillers jurídicos, best-seller em vários países. O livro que iniciou todo esse sucesso do autor e o primeiro de ficção a ser publicado por ele é o Acima de Qualquer Suspeita (Presumed Innocent), que inclusive virou filme, em 1990.

    A obra trata de Rozat Sabich, conhecido como Rusty, advogado de sucesso e de carreira sólida que um dia é informado da morte de uma colega de trabalho chamada Carolyn Polhemus, que foi vítima de um estupro e depois assassinada. Rusty acaba por ter de investigar o crime, e logo se revela que ele não era só um colega de trabalho da vítima. Rusty e Carolyn tiveram um romance secreto, já que ele sempre foi casado.

    No decorrer da história, Rusty vê a si mesmo envolvido nas circunstâncias misteriosas do assassinato e então é obrigado a provar sua própria inocência, mesmo com todos os fatos, provas e opiniões de amigos dizendo o contrário.

    O livro é daqueles que não se consegue parar de ler, já que sempre há uma mini-reviravolta e tensão no ar. A leitura é fácil e a história é muito dinâmica, sem se prender a jargões e clichês jurídicos. Toda a obra de Turow é muito clara e acessível. Em várias partes da história, temos revelações sobre as personagens no passado e presente e suas intrincadas relações, que, ao passar das páginas, vão deixando o enredo bem mais complexo, o que motiva o leitor querer ler sem parar até o final.

    Por conta de toda o detalhismo do autor, que interliga as personagens e destrincha atos, falas e gestos dos mesmos para revelar suas motivações e suas personalidades, a leitura pode ser um pouco cansativa no começo, mas é parte essencial para o que autor propõe, que é muito mais que simplesmente contar uma história e fazer o leitor passar o tempo. O autor propõe que, com base na caracterização bastante humanizada das personagens, os leitores possam tirar suas próprias conclusões durante a história e descobrir o assassino, dentre aos vários suspeitos que aparecem ao longo do enredo.

    Então, se você quer uma ótima leitura e um ótimo exercício mental, Acima de qualquer suspeita é ideal para você.

    Texto de autoria de Robson Rossi.

  • Você conhece Jack Reacher?

    Você conhece Jack Reacher?

    Criado no final da década de 90 pelo autor Lee Child, o militar Jack Reacher não gosta da alcunha de herói, normalmente atribuída a ele. Nascido em uma base militar em Berlim, formado na Academia Militar em West Point, Reacher serviu durante 14 anos na polícia militar, onde fez parte da 110º Unidade Especial de Investigações, formada para cuidar de casos difíceis envolvendo membros do exército dos Estados Unidos.

    A descrição da personagem pode trazer ao leitor uma proximidade com outro famoso herói fictício. Assim como Jack Bauer, da série 24 Horas, Reacher se dedicou a uma carreira para defender os Estados Unidos e, como Bauer, escolheu viver à margem para evitar o sistema em que outrora acreditava.

    Descrito nos romances como um homem de quase dois metros, porte físico natural e cabelos loiro escuros, a aproximação fica mais evidente: tanto Reacher quanto Jack Bauer representam um estilo de herói americano. O militar que distorce a lei para regê-la. A vantagem de Reacher é que, sendo personagem de diversas histórias, tem uma personalidade melhor delineada do que Bauer, mais direto e plano.

    Ao mesmo tempo em que uma adaptação será lançada no cinema, com Tom Cruise no papel, a Bertrand Brasil lança Alerta Final, quarta obra de Child no país, e relança a obra que originou o filme, Um Tiro, com nova capa. Uma oportunidade para conhecer este interessante personagem.

    A adaptação cinematográfica revela a potência de Jack Reacher. Embora não tão conhecido no país, seus livros atingem altas vendas no exterior, consagrando-se na categoria Best seller. Engana-se quem pensa que tal status faz das obras uma leitura simples e rasteira. Além da complexidade da personagem central, desenvolvida livro após livro, Child é capaz de engendrar uma narrativa policial que tanto explora a investigação do crime como destaca as habilidades da formação de sua personagem.

    Mais do que um lobo solitário, Reacher é um personagem sensível que, pela culpa do que realizou no passado, evita a alcunha de herói. Tem consciência da violência que pode desencadear. Além da natural força bruta, tem o agudo raciocínio de um detetive.

    O filme Jack Reacher, que estreia no Brasil em 11 de janeiro do ano que vem, tem como trama a história de um atirador de Indiana, preso após alvejar cinco pessoas aleatoriamente. Seu único pedido é que chamem Reacher para ajudá-lo no caso. Somente com esse pequeno argumento, Child parte de uma investigação bem conduzida, sem deixar de lado a ação, e apresenta uma intrincada rede de relações que justificam por que os cinco tiros foram disparados daquela maneira. A narrativa cinematográfica do autor permite que, já na leitura do romance, se criem cenários com riqueza de detalhes.

    Tom Cruise personifica Reacher na adaptação. Embora não tendo a mesma descrição, Cruise reconquistou seu prestígio como ator de ação em Missão Impossível 4: Protocolo Fantasma e tem no currículo boas interpretações, sendo possível que consiga compor a personagem com a angústia necessária para ser mais do que um simples herói de ação.

    Já no livro Alerta Final, situado em outro momento cronológico, Reacher vive solitário  quando um ex-militar à sua procura é assassinado. É o ponto de partida para que novamente a personagem saia de seu conforto e descubra quem são os responsáveis por procurá-lo quando deseja ficar em paz.

    Em uma época em que os heróis humanizados se tornaram padrão, um bom elemento que dá mais dramaticidade à personalidade, Jack Reacher precisa ser conhecido como um excelente exemplo deste tipo de herói desencantado que, ao lado da narrativa de Child, bem amarrada e construída, se destaca além de sua intenção de mero entretenimento.

    Os livros de Jack Reacher podem ser comprados aqui e abaixo você confere o trailer da adaptação.