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  • O Abismo dos Quadrinhos em 2020

    O Abismo dos Quadrinhos em 2020

    Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.

    2020 ficará marcado na história do mundo como um ano trágico, para dizer o mínimo. Ao longo de doze meses, estivemos próximos de ameaças de guerra, desastres naturais, ascensão da extrema direitae ,claro, uma pandemia em escala nunca antes vista na história.

    No meio disso tudo, em Terra Brasilis, a cultura segue relegada ainda que, mais do que nunca, tenha se mostrado essencial para que o ano se tornasse mais palatável em tempos de quarentena e distanciamento social. Não obstante, o mercado editorial sofreu bastante com o aumento do dólar, falta de insumos, ameaça de taxação de livros por parte do governo federal, recuperação judicial das gigantes Saraiva e Livraria Cultura, além do fechamento de diversas livrarias menores. E o que se avizinha para 2021 não é nada promissor.

    Desse modo, o mercado, aliado também a fatores externos, não colaboraram para que a vida do consumidor se tornasse mais fácil. Pelo contrário, o que observamos foram diversas decisões equivocadas. Ainda que os quadrinhos não girem em torno apenas de problemas, faremos um resgate de publicações decepcionantes e escolhas editoriais desacertadas ao longo do ano passado que pode (ou não) ter relação com o que falamos acima.

    Coleções Eaglemoss e Planeta Deagostini

    Os lombadeiros de plantão sofreram forte revés em 2020 com as coleções capitaneadas pela Planeta Deagostini e Eaglemoss. Se a concorrente Salvat iniciou o mês de janeiro com apenas a coleção Tex Gold (Coleção Definitiva Homem-Aranha planejada com 60 volumes foi prematuramente cancelada no volume 40, em março de 2019) na 43ª pelo preço de R$ 59,90 e encerrou na 60ª no valor de R$ 64,90 – um reajuste razoável –, o mesmo não pode ser dito das outras duas. A Eaglemoss iniciou o ano com três coleções: DC Comics – Coleção de Graphic Novels (iniciado em 2014 e até dezembro de 2020 conta com 128 volumes), DC Comics – Coleção de Graphic Novels: Sagas Definitivas (iniciada em junho de 2018 e com mais de 32 volumes) e DC Comics – A Lenda do Batman (iniciada em outubro de 2018 e 41 volumes). Já a Planeta Deagostini segue distribuindo a coleção A Lenda do Batman da Eaglemoss, além de duas coleções próprias: Príncipe Valente (iniciada em outubro de 2018 e até dezembro de 2020 com 66 volumes até o momento) e Snoopy, Charlie Brown & Friends – A Peanuts Collection (iniciada em setembro de 2020 e com 9 volumes até o momento).

    Já não é novidade que os valores praticados pela Eaglemoss não são nenhum pouco atrativos. Com aumentos frequentes e sem qualquer justificativa, a editora permaneceu com a mesma política de não dar a mínima para o seu consumidor. A Coleção A Lenda do Batman abriu o ano de 2020 com o volume 17º, Batman: Nascido Para Matar (156 páginas), com o preço de capa de R$ 49,99, e chegou em dezembro com o volume 41º, Mulher-Gato: Cidade Eterna (180 páginas), pelo preço módicos R$ 73,99. Em compensação, as coleções Graphic Novels e Sagas Definitivas mantiveram os preços congelados de R$ 79,99 e R$ 139,99. Verdadeiros heróis.

    A Planeta Deagostini seguiu com sua coleção de todas as tiras dominicais de Príncipe Valente, que contará com 82 volumes, e iniciou o mês de janeiro de 2020 com o 20º volume (76 páginas) que reúne as tiras de 1956, no preço de capa de R$ 49,99, e encerrou o ano com o 66º volume (64 páginas) reunindo as tiras do ano de 2002, pelo preço de capa de R$ 78,99. A coleção Snoopy, Charlie Brown & Friends – A Peanuts Collection que reúne as tiras dominicais desde 1950 até o ano 2000 em volumes de 64 páginas manteve o preço de R$ 49,99. Veremos o que 2021 nos reserva.

    A ausência da SESI-SP

    A SESI-SP surgiu como uma editora interessante dentro do mercado, publicando material estrangeiro (em especial, europeu) e nacional em formatos e preços convidativos, e claro, ótima qualidade. Por meio dela fomos apresentados (e em alguns casos reapresentados) às séries Valerian, Verões Felizes, Spirou, Gus, Blacksad, autores como Mathieu Bablet (A Bela Morte e Shangri-Lá), Juan Cavia e Filipe Melo (Os Vampiros), Gabriel Mourão e Olavo Costa (Paraíba), Marcelo Lelis (Anuí), Gidalti Jr. (Castanha do Pará), Orlandeli (SIC, O Mundo de Yang, Daruma, etc), Gustavo Tertoleone e João Gabriel (Nobre Lobo), Jennifer L. Holm e Matthew Holm (Sunny) e tantos outros.

    A publicações minguaram em 2019, se reservando apenas aos materiais já programados e anunciados ainda em 2018 e publicados em sua esmagadora maioria no primeiro semestre do referido ano. Se o ano anterior já foi péssimo, 2020 reservou o total de ZERO publicações.

    A explicação é simples: antes mesmo da posse do atual presidente da República, já havia sido declarado guerra ao Sistema S, conjunto de nove instituições de interesse de categorias profissionais – Sebrae, Senac, Senai, Senar, Senat, Sesc, Sescoop, Sesi e Sest – que promovem atividades sociais e de aprendizagem, e emprega mais de 150 mil funcionários, mantidas pelas contribuições, pagas compulsoriamente pelos empregadores. Em 2019, o governo federal fixou um corte compulsório de 30% no orçamento dessas instituições, e com a pandemia isso se agravou ainda mais com o corte de contribuições. Que dias melhores se anunciem para a editora.

    O descaso da L&PM com as tiras de Peanuts

    Em novembro de 2009, a L&PM publicou o primeiro volume de Peanuts Completo, que reuniu as tiras diárias e dominicais, de uma coletânea de 25 volumes lançada nos EUA pela Fantagraphics. A editora americana tem um planejamento de dois livros por ano durante 12 anos e meio do material completo do clássico de Charles M. Schulz, Peanuts. Um projeto ambicioso sem dúvida. E até maio de 2019 a L&PM seguiu com um álbum por ano, totalizando 10 volumes até então.

    Para surpresa de todos, em 2020 a editora decidiu reiniciar do primeiro volume por meio de outra coleção mais simples da Fantagraphics, o que não seria um problema se houvesse algum indicativo de continuidade da coleção antiga ou sequer qualquer comunicado oficial por parte dos editores do que motivaram tal decisão. Se isso não fosse o bastante, os últimos volumes da coleção antiga esgotaram rapidamente e não há previsão de novas tiragens, de modo que não me parece ser o caso de vendas baixas, como também não se sabe se a série continuará nesse novo formato. Só nos resta aguardar e torcer para que a série não seja descontinuada como já aconteceu com outras tiras (Hagar, Garfield etc).

    A gourmetização dos quadrinhos

    O processo de elitização dos quadrinhos não é algo novo, já se fala sobre esse desenvolvimento há muitos anos. Mas tem acelerado bastante nos últimos três anos. Com a crise do mercado editorial, as editoras perceberam que a idade média do seu leitor aumentou muito. Não se tem mais crianças consumindo como acontecia no passado. Se por um lado esse fator geracional proporciona maior liberdade criativa e variedade de estilos, por outro tem avançado por parte das editoras a publicação de materiais cada vez mais luxuosos, culminando nos fatídicos omnibus em 2020. O que, pra ser sincero, não vejo como um problema, desde que esses materiais publicados nesse formato tivessem opções mais acessíveis em um passado recente. Veja, Quarteto Fantástico do John Byrne é um material pedido por leitores há anos, mas quando colocado no mercado a Panini opta por uma tiragem pequena, com o preço de capa de R$ 349,00, atingindo apenas uma pequena parcela do seu mercado consumidor. Em contrapartida, não vejo problema da editora apostar em materiais de luxo como anunciou com Monstro do Pântano, Miracleman e Noites de Trevas Metal (arghh). Afinal, há pouco tempo atrás tivemos acesso a esses materiais em um formato econômico. Logicamente, o preço praticado é uma outra discussão, que evidentemente, não pode ser separada de temas como aumento do dólar, falta de matéria-prima e problemas de distribuição.

    No entanto, o que se vê entre o mercado consumidor e influencers digitais é um (quase) completo silêncio em relação aos preços, e muitas comemorações com formatos cada vez mais luxuosos. Enquanto isso, nós nos enganamos que existe um processo de democratização da leitura e a Panini, principal player do mercado editorial de quadrinhos, se engana que está renovando seu público com encadernados Kids e Teens por mais de R$ 30,00. A nossa única certeza é que muita gente que lê Turma da Mônica não vai migrar para outros produtos.

    A Maurício de Sousa, o Boldinho e a censura

    E por falar em Turma da Mônica…

    No final de 2020, fomos surpreendidos, negativamente, com a notícia de que a Maurício de Sousa Produções havia notificado extrajudicialmente o cartunista underground Daniel Paiva em razão de sua paródia da Turma da Mônica, por conta de seu personagem Boldinho. Sim, Maurício de Sousa, o homem que tanto parodiou outros personagens, obras e histórias decidiu ameaçar de processo quem o parodiava com base na Lei de Direitos Autorais.

    Segundo a empresa, o personagem Boldinho e os demais coadjuvantes associavam a MSP ao consumo de entorpecentes, entre outras coisas. Sim, o personagem lida com temas voltados às drogas e transversais, em especial, maconha. No entanto, esse material não é comercializado para o público infantil, e sequer circula nesse meio.

    Causa estranheza tais argumentos para quem acompanha a empresa, já que em 2013 o Cebolinha em uma propaganda da AMBEV ensinou as crianças que tomar cerveja era um hábito transgeracional, apenas ensinando as crianças que existia uma idade correta para consumir bebidas com álcool. Em 2018, a parceria se deu com a indústria armamentista brasileira. Pelo visto a preocupação com a defesa da infância se dá em maior ou menor grau conforme os dígitos que entram na conta bancária da empresa.

    As baixas tiragens de mangás da Panini

    Se o aumento de preço frequente já é fator fundamental no dia-a-dia de qualquer consumidor de quadrinhos, os leitores de mangás da Panini ainda precisam se preocupar com as tiragens limitadíssimas da editora. Em 2020, isso parece ter se agravado ainda mais com diversos mangás recém-lançados esgotados em semanas. Isso se deu com títulos dos mais diversos, desde os mais simples até os mais luxuosos. E nós, reles mortais que ficamos equilibrando nossas finanças para poder adquirir os quadrinhos do mês entre uma promoção e outra, ainda nos deparamos com buracos em nossas coleções pela completa falta de planejamento de uma editora que sequer faz ideia do público que possui.

    O cancelamento e adiamento das feiras e convenções de quadrinhos

    Não é novidade que cultura e arte são pouco valorizados por aqui. Com a chegada do governo Bolsonaro e da pandemia, o que vemos é um cenário caótico para muitos artistas. O Fundo Nacional da Cultura seria uma ferramenta para suprir esta demanda em um momento atípico como este parece inexistente, e muitos deles dependem da ajuda de amigos para subsistência. Na área de quadrinhos não poderia ser diferente.

    Após os cancelamentos de boa parte das feiras e convenções o cenário se tornou ainda mais difícil para artistas e pequenas editoras que dependem desses eventos segmentados como importante fonte de renda. Enquanto não existe uma política pública adequada, eles se viram como podem, seja por comissions, promoções, plataformas de financiamento coletivo, e em alguns casos, ajuda de amigos.

    A crise da distribuição

    Já não é novidade para ninguém da crise de distribuição existente em um país de escala continental como o Brasil. Contudo, a pandemia parece ter surgido para acelerar processos, para o bem e para o mal. Em 6 de novembro, a Dinap e a Treelog, empresas integrantes do Grupo Abril, informaram o rompimento de contratos, unilateralmente, com suas editoras-contratantes. O problema de distribuição e consignação tem se agravado nos últimos anos, principalmente com o processo de recuperação judicial do Grupo Abril, mas agora parece que a pandemia colocou a última pá de cal neste sistema.

    2021 será um desafio para as editoras que dependem da do Grupo Abril, como ocorre com a Mythos. Além disso, esperamos que os problemas de consignação não tragam mais problemas ainda para as editoras, como ocorreu com a inadimplência da Saraiva e Cultura, que além de não devolver os produtos consignados, ainda não pagou por eles. Hoje as editoras aguardam na fila de credores para receber uma parte do que é seu por direito.

    O retorno dos mixes

    Após alguns anos sem publicação de quadrinhos no formato mix nas publicações mensais, 2020 também ficou marcado pelo anúncio da Panini em uma live no YouTube na CCXP Worlds sobre o retorno desse tipo de compilação editorial.

    Obviamente, muitos fãs se decepcionaram com a editora (mais uma vez), já que há algum tempo podiam acompanhar seus personagens em revista solo mensais ou em encadernados que reuniam arcos de histórias sequenciadas, e esperavam acompanhar o Thor do Donny Cates, Capitão América do Ta-Nehisi Coates e etc. de forma individualizada. Pelo visto as vendas não estavam agradando e a Panini decidiu retomar a prática do mercado editorial brasileiro durante décadas.

    Aos que seguirão acompanhando, torço para que a editora ao menos faça um bom mix, o que sequer ocorreu na revista Batman & Superman (já cancelada pela Panini) que tinha tudo, menos Batman & Superman.

    A não-tradução do omnibus do Conan

    Neste mesmo ano a Panini decidiu colocar no mercado seu primeiro omnibus – diversas edições que foram publicados separadamente compiladas em um volume único – e o personagem escolhido foi o Conan. A edição de mais de 700 páginas reúne o material publicado pela Marvel Comics nos anos 1970 nas revistas Conan: The Barbarian e Savage Tales.

    Ainda que se trate de um material de luxo, com preço de capa de R$ 249,00 (duzentos e quarenta e nove reais), a editora achou que seria de bom tom não traduzir quase 70 páginas de material extra existente na edição, ou seja, aproximadamente 10% do material não é possível ler em português. Um completo desrespeito ao público brasileiro, mas que diz muito sobre nosso consumidor, já que em poucos dias o material já era impossível de ser encontrado para compra. A resposta da editora foi a pior possível, informando que outros países de língua não-inglesa, como Itália e Espanha, saiu da mesma forma. O que só deixa claro que o editorial da Panini nesses países é tão patético quanto no Brasil.

    É óbvio que os extras de uma edição como essa não seria lido por todos, no entanto, num país de língua portuguesa, o mínimo que se espera é que o material seja publicado em… língua portuguesa. Do contrário, você está segregando leitores. Para piorar, a editora anunciou o volume 2 e disparou que não traduziria todos os extras, mas apenas uma parte deles. O brasileiro merece a Panini.

    Destro

    Sem romantismos do tipo “quadrinhos são uma mídia progressista, criados e consumidos pela classe trabalhadora”. Qualquer discussão nesse sentido ignora o processo de elitização da mídia, não só no Brasil, mas no mundo, e ainda ignora que uma parcela da classe trabalhadora é conservadora. Ora, em um cenário onde o sistema hegemônico é o capitalismo e a filosofia social que rege boa parte do mundo é o conservadorismo ou o liberalismo, não me causa qualquer estranheza que quadrinhos de direita tenham crescido nos últimos anos. E Destro e seu autor é apenas um expoente desse movimento no Brasil. Importante lembrarmos que Stan Lee criou o Pantera Negra antes do Partido dos Panteras Negras e tentou de todas as formas que seu personagem fosse vinculado ao movimento, Steve Ditko era grande apaixonado pela obra e filosofia de Ayn Rand e isso se refletiu até mesmo no sobrenome do personagem Punho de Ferro, Frank Miller despejou xenofobia em um passado recente e criticou o movimento Occupy Wall Street, entre tantos outros autores controversos e de direita que fizeram falas problemáticas, como Chuck Dixon, John Byrne, Bill Willingham etc. Nem todos são Alan Moore.

    No Brasil, Luciano Cunha publicou os quadrinhos do Doutrinador em 2013, início do processo de efervescência política nas ruas e redes sociais. O personagem ganhou filme anos depois e com a crescente polarização o autor foi se movendo cada vez mais à direita no espectro político, deixando de lado o discurso de “Fora Todos” e contra corrupção e se posicionando favorável a movimentos de extrema-direita e ao próprio presidente Jair Bolsonaro. Toda essa mudança culminou no lançamento de Destro, em 2020, ao lado do ilustrador Michel Gomes. Por alguma razão, Cunha optou por lançar meio do pseudônimo Ed Campos.

    Na trama, conhecemos uma São Paulo distópica do ano de 2045 governada pelos comunistas globalistas, onde o “real” foi substituído pela moeda “real rubro”, com a figura de Che Guevara estampadas em suas células e a população precisa caçar ratos para se alimentar. Destro é nosso herói, um vigilante destinado a lutar por nossa liberdade e derrubar esse governo que impõe sua agenda progressista, anti-conservadora, anti-cristã e outras idiotices do gênero (risos).

    O projeto foi financiado pelo Catarse e alcançou uma marca impressionante de quase R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), algo bastante considerável neste meio, mas que não causa espanto para quem o acompanha. Com frequência acompanhamos o público conservador, no Brasil e no mundo, se mobilizando de forma contrária à qualquer menção progressista dentro dos quadrinhos de super-heróis, sendo taxada de “lacração”, “mimimi” e “politicamente correto”. Desse modo é natural que Destro atinja tal público e já tenha sido licenciada em vários países antes mesmo de seu lançamento, enquanto outros artistas ainda lutam por seu lugar ao sol. Talvez isso seja um reflexo de como esses leitores tem uma certa dificuldade em crescerem, como Moore gosta de lembrar.

    Se você acha pouco, o autor está trabalhando em uma sequência de Doutrinador, dessa vez contra o globalismo (e lá vamos nós) e o vírus chinês (Família Bolsonaro e Ernesto Araújo aprovam). Para finalizar, encerro este assunto com duas belas páginas de Destro matando ratos com sua pistola (?!) para se alimentar. Genial!

  • Resenha | Rango 1

    Resenha | Rango 1

    De Edgar Vasques, Rango 1 compila algumas historias do personagem titulo publicadas no jornal Folha da Manhã e diversas outras revistas como Pasquim. Este volume 1, lançado em um tempo longínquo pela L&PM editores possui prefácio de Érico Veríssimo, que adjetiva muito bem as historias do personagem, descrevendo-o como um anti-herói que vive em condições paupérrimas e que se nutre de humor ácido já que comida é algo que falta bastante tanto para si, como para seu filho.

    Cada página possui duas tirinhas. O espírito presente mira a vida de um sujeito sem esperanças, bastante pragmático e muito pobre. Ele tem a companhia do seu já citado filho, além de eventualmente falar com o estrangeiro Chaco e Baba, um sujeito que está sempre bêbado.

    As conversas envolvem problemas universais como a fome, desemprego e pessoas em situação de rua, com um humor ácido e bastante político. A maioria delas é bem espirituosa, toca em feridas, critica principalmente as pessoas mais abastadas e o modo com a burguesia lida com as pessoas em situação de rua e/ou mendicância.

    Rango hoje pode ser considerado como uma obra que trata de questões óbvias, mas em sua época, 1974, não era. Sobram criticas ao capitalismo, concentração de renda, busca por lucro acima de tudo, industrialização e mostra como armas dos pobres a esperança das crianças, o cinismo dos pais e até a bebedeira para ludibriar a fome.

    Em algumas tiras não há como ficar incólume, há uma de cortar o coração, em que o menino diz que raspou o prato, quando está sentado em cima de uma lixeira vazia. Embora a publicação não seja exatamente engraçada, afinal trata de situações bem pesadas, Rango tem muito peso, e aborda uma época do Brasil que se imaginava superada ao menos em grandes cidades, e se torna ainda mais grave por retratar uma realidade que em confins do país ainda se alastra e que também voltou a ser flagrante em metrópoles como Rio de Janeiro, São Paulo e outras grande cidades, piorada a situação ainda mais em épocas de pandemia.

  • Resenha | Assassinatos na Rua Morgue e Outras Histórias – Edgar Allan Poe

    Resenha | Assassinatos na Rua Morgue e Outras Histórias – Edgar Allan Poe

    Como a própria contracapa diz, não fosse Edgar Allan Poe é possível que não tivéssemos toda uma gama de histórias e autores de mistério que o sucederam. Arthur Conan Doyle, Agatha Christie e muitos outros foram influenciados pelo estilo e pelas histórias criadas pelo autor ao longo de sua vida. É interessante ver que até mesmo personagens foram influenciados, tal como Sherlock Holmes é claramente inspirados em August Dupin, detetive que é o protagonista do conto “Assassinatos na Rua Morgue”, história que dá título ao livro e é a grande cereja do bolo aqui.

    A edição de bolso da editora L&PM Pocket reúne seis histórias de Allan Poe: “O Demônio da Perversidade”, “Hop-Frog e os oito Orangotangos acorrentados”, “Os fatos que envolveram o caso do Mr. Valdemar”, “O Gato Preto”, “Nunca aposte sua cabeça com o diabo” e “Assassinatos na Rua Morgue”. A escolha da editora é interessante, pois os contos, ainda que carregados de suspense e mistério, não são tão semelhantes quanto possa parecer. As histórias tratam de diversos temas, desde uma jornada filosófica sobre os instintos e os motivos que podem fazer com que uma pessoa cometa um crime (O Demônio da Perversidade), quanto uma história de um homem que se encontra à beira da morte e aceita se submeter à hipnose para continuar a viver até que uma cura para sua grave doença possa ser encontrada (Os fatos que envolveram o caso do Mr. Valdemar), história essa que flerta com o sobrenatural e o fantástico.

    É notório que ao longo de toda sua biografia e obra, o autor se especializou em retratar o lado negro da humanidade. Os contos presentes no livro não são diferentes. Durante todo o tempo, o leitor é colocado de frente com personagens insanos, autodestrutivos, melancólicos ou completamente desprovidos de qualquer bússola moral. Porém, ainda que de forma rápida, é muito bacana a forma como o autor consegue dar o estofo necessário para cada um deles, sem deixar cair no lugar comum ou mesmo no maniqueísmo de apontar quem é certo e quem é errado.

    Novamente, ainda que seja uma edição de bolso que contenha um número reduzido de contos em relação a outras edições, Assassinatos da Rua Morgue e Outras Histórias é uma ótima opção para quem deseja se iniciar no universo das histórias de Poe, pois a seleção de contos é muito boa. Além de proporcionar uma grande leitura, ainda que breve, faz com o que o leitor fique sempre querendo ler mais.

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  • Resenha | O Exército de um Homem Só – Moacyr Scliar

    Resenha | O Exército de um Homem Só – Moacyr Scliar

    Todo escritor guarda certos aspirações – algo totalmente defensável, em primeiro lugar. Se possível, querem ter em sua autoria seu próprio O Senhor dos Anéis, ou um Madame Bovary, um Cem Anos de Solidão, um Dom Casmurro, ou um Ulysses para chamar de seu, claro. Acontece que a criação máxima de Miguel de Cervantes, Dom Quixote, também entra para o amplo e ainda assim seleto hall de desejos e vaidades que toda mente literária, consciente ou não, carrega em si. Moacyr Scliar, escritor gaúcho ainda pouco reconhecido no Brasil (a sina dos artistas brasileiros que não aparecem na vitrine publicitária chamada de Domingão do Faustão), podia-se dar ao luxo – ímpar – de ter conseguido criar uma versão própria do épico conto do cavaleiro de La Mancha, seu escudeiro, e um mundo que por sua audácia, cega e infantil, ousou decifrar.

    Longe de ser um conto de cavaleiros, damas e moinhos de ventos, publicado nacionalmente pela editora L&PM, Moacyr imprime aqui a essência do heroísmo puro, das diligências utópicas dos grandes homens e mulheres do mundo, e ao mesmo tempo destaca a figura que, de tão destemida e sonhadora, quase sucumbe perante a realidade esmagadora dos fatos. Estamos falando não mais de Quixote, mas do seu primo de terceiro grau, o ótimo personagem Capitão Birobidjan, trinta e cinco anos, cujas virtudes são atemporais.  Tipicamente judeu, e amante dos animais, Mayer Guinzburg (como prefere ser chamado) é também o típico personagem impossível de não se interessar, seja por seus feitos, quanto por seus defeitos adoráveis. Seja ainda por sua moral incorruptível, seus pensamentos, ou até mesmo por sua extrema confiança em si mesmo, e que pode vir a inspirar, em muitos aspectos, os muitos leitores deste ótimo e divertido O Exército de Um Homem Só.

    Ciente da ameaça nazista, em plena começo da década de 40, e cada vez mais alarmado pela ameaça que gradualmente arrebata a Europa, no auge das notícias preocupantes que assolavam o globo (ainda não globalizado) sobre a Segunda Guerra Mundial, Mayer um belo dia resolveu botar em prática o impensável, tamanho foi seu desespero: iniciar uma nova sociedade, no topo de um morro em Porto Alegre onde chega até a hastear uma bandeira junto dos animais que o observam, incrédulos com a loucura humanista de um homem. O fundador da Nova Birobidjan, como ele mesmo apelidou o local onde, neste novo empreendimento em que descobre não estar sozinho, a ameaça externa nazista não teria vez de jeito nenhum. Munido de uma narrativa ágil, compondo em capítulos curtos e ágeis uma dramaticidade satírica deliciosa de se acompanhar, eis o cavaleiro errante que não se aventurou pelo mundo, mas nos seus próprios desejos utópicos.

    Inconcebível como o sol da meia-noite, na sua odisseia o capitão enfrenta todo tipo de desafio rumo a uma vitória ilusória, na qual seus inimigos não são Hitler e seu exército “tão distante”, mas quatro homens que são atraídos pela sandice do pobre coitado que (sobre)vive numa barraca, junto de três fiéis Sanchos Panças (um porco, uma cabra, e uma galinha que ele não gostava, por achá-la reacionária) para quem discursava seus planos e triunfos, todos oriundos dos seus desejos mais profundos. Um belo dia, seus sonhos são interrompidos por forças além de seus ideais fabulosos, e a realidade o assola, impiedosa como sempre, mas incapaz de tornar essa rápida experiência de fundar sua própria sociedade, a quimérica Nova Birobidjan, desimportante em sua vida, quando volta a ser ‘apenas’ um homem de família. O que fazer, agora, seria sua verdadeira empreitada, e com contornos bem mais épicos do que ele poderia supor.

    “Uma vez desorientado quanto as circunstâncias de se obter e levar uma vida plena, um homem alimentado apenas por seus sonhos pode tornar-se um perigo para o que depende dele, para as pessoas ao seu redor, e para si mesmo.” Em momento algum o autor julga seu personagem, dedicando meia história para sua pequena grande jornada, e a outra metade para seu retorno ao cotidiano em sociedade – a verdadeira sociedade na qual sempre pertenceu. Em meras 150 páginas, ficamos cientes da construção e desconstrução das virtudes de um sonhador nato, quixotesco até o talo, e até que ponto elas não são mais conciliatórias e benéficas ao bem-estar de uma pessoa, enquanto animal social como todos nós somos, naturalmente. O Exército de Um Homem Só é uma das peças de ficção mais importantes da literatura brasileira dos anos 70, sendo esta talvez a obra pela qual Scliar, falecido em 2011, sempre será lembrado e consagrado – no mundo e, se possível, até mesmo no seu pais natal.

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  • Resenha | Por Que Não Sou Cristão – Bertrand Russell

    Resenha | Por Que Não Sou Cristão – Bertrand Russell

    Certas obras nascem com o propósito nobre, e aguerrido, de serem desacreditadas por seus detratores inevitáveis. Eles certamente aparecerão, na publicação dela, e tratarão de deslegitimar o seu valor – seja em qual mídia essa criatividade se manifestar. Russell tinha como dom a verdadeira provocação sobre tudo aquilo que falava, em plena Inglaterra e Estados Unidos do século XX, e na coragem histriônica que um homem histórico carrega nas costas, libertava suas noções feito ovelhas desgarradas para que o mundo, sempre pronto e ligeiro, entregasse o julgamento, qualquer que fosse.

    Sua maior bravura, entretanto, a mais polêmica e famosa pelo menos, tem nome e direção: Por Que Não Sou Cristão é um conjunto de ensaios, ou melhor, faz-se como uma extensa indagação cujas diversas respostas, desdobradas ao longo de poucas e ousadas páginas, são tão orgulhosamente mundanas quanto estimulantes, em prol da discussão do que é indiscutível para a maioria das pessoas. Aqui, todo tabu seria exterminado pelo escritor, explodindo a zona de conforto que traz a figura de um altar, uma cruz, a fé cega pelo invisível – mais do que em nós mesmos. Talvez Russell enxergava demais, mas para muitos, era certamente míope.

    Questionador, fazia jus a primeira dedução, ainda que duvidosa, ao revirar e explorar o potencial da consciência humana em detrimento da confiança absoluta em Deus, já que todo cego corre o risco de tropeçar. Assim, a fé e seus dogmas são sondados pela luz reconfortante e sempre válida da filosofia, por mais agressiva que ela possa parecer ser, aqui, aos cristãos que se aventuram pela leitura. Aviso: não há ataques, não há a rebeldia que muitos autores poderiam tecer em busca de uma “guerra pelo certo”, com o leitor. Porém, se hoje podemos enxergar sua postura como totalmente crítica, e inquieta, ainda nos anos quarenta isso afetou profundamente a sua reputação pública.

    Numa época em que as liberdades de pensamento ainda passavam pelo filtro da religião, da sua moral e dos seus bons costumes ainda tão zelados pela Igreja, o escândalo das resoluções de Russell, que questionavam explicitamente a moralidade “irrefutável” do que era lei, se fez apenas uma questão de tempo. Não deu outra: foi expulso da Faculdade Municipal de Nova York, difamado e formalmente julgado, até finalmente ser condenado a não lecionar nunca mais em nenhuma escola dos Estados Unidos da América – intolerância esta que o fez retornar a Inglaterra, e, hoje, emblema um dos mais célebres casos de perseguições a filósofo modernos.

    Contudo, nota-se que não há entre os ensaios de Por Que Não Sou Cristão uma última palavra, e sim a existência democrática, e libertária de pensamentos, a respeito dos silêncios generalizados que existem em torno das doutrinas religiosas, e seus amplos efeitos no nosso comportamento individual, e coletivo. Indo muito além de discutir apenas a fé pelo divino, é portanto admirável o quanto Russell se estende em suas reflexões, e analogias, sem jamais perder o fio da miada, ou tampouco parecer um analista severo demais ao cristianismo, e as virtudes das faculdades humanas, uma vez que a dinâmica de sua escrita consegue ser divertida e instigante. Ao mesmo tempo.

    Estamos falando de uma verdadeira coletânea de catorze ensaios, sendo o primeiro datado de 1927, e publicada exatos quarenta e seis anos depois do filósofo vencer o grande prêmio Nobel de literatura, em 1950, ainda em meio à crise envolvendo sua imagem pública e non grata, em muitos lugares. No Brasil, tivemos em 2013 a chance da L&PM Editora traduzir os intrépidos pensamentos do britânico que defendia que “pessoas muito simpáticas são aquelas que têm mentes repulsivas”, a ponto de termos o prazer de acompanhar, em língua portuguesa, o ponto mais alto destes ensaios atemporais do cara: um debate do próprio acerca da existência de Deus com o padre F.C. Copleston, um sacerdote astuto, cujos argumentos certamente lavam a alma de muitos cristãos, até o clímax do livro. Um duelo de titãs que, por si só, já vale a leitura.

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  • Resenha | No Que Acredito – Bertrand Russell

    Resenha | No Que Acredito – Bertrand Russell

     

    “[…] A preocupação da moralidade é com aquilo que o mundo deveria ser, muito mais do que como ele é.”

    Bertrand Russell se fazia entendível aos ouvidos presentes. Com suas palavras acerca da natureza, do homem (coisas distintas), sobre a ciência, Deus, a moral que pode mover ou não o indivíduo e o seu social, do poder dos nossos impulsos e o que são, de fato, as virtudes atemporais favoráveis a uma vida realmente vivida, o filosofo humanista e palestrante, a favor até a morte da emancipação feminista e da globalização, e contra as guerras mundiais e o potência alienante de todas as religiões na mentalidade humana, tinha o prazer supremo de providenciar aos seus leitores e ouvintes, que viam nele uma espécie de sábio, alguns minutos de reflexão sobre os temas mencionados, em busca das verdades que possam vir a ser confirmadas pelo(a) leitor(a), ou não, a partir de um pensamento crítico honesto, livre, e bem articulado.

    Mas elas custam caro, um clichê antigo e atual. Ciente de que um pensamento calado é o combustível da ignorância, e da auto destruição, Russell manteve suas atividades de cunho pacifista, e altamente independente do militarismo logo no auge da Primeira Guerra Mundial. Por conta dos debates encorajados por seus questionamentos, na universidade de Cambridge, demonstrando a verdadeira exuberância de sua dialética, sempre claro e acessível no raciocínio entre leigos e alunos, passou a ser proibido de dar palestras devido sua filosofia política regrada basicamente sobre dois impulsos básicos ao ser-humano: O criativo, que estimula a criação de algo útil sem ninguém sair perdendo com isso, e o impulso possessivo, cujo fim é sempre custoso. Prêmio Nobel em 1950, Russell acreditava na presença de ambos os estímulos em nosso DNA, mas sobretudo, punha toda sua fé nas pessoas – e nenhuma na ideia de Deus.

    Nada é sagrado, quanto mais as noções bélicas, tão presentes ainda em 1925 no cenário político no qual ousava ter voz. Para o galês, o conflito era absolutamente irracional – tiro no pé da humanidade consigo mesma. Noções estas explicitamente bem conservadas neste No Que Acredito, no Brasil pela famosa Editora L&PM. Eis aqui um compêndio literário que visa reunir cinco capítulos curtos, originalmente publicados em formato de panfleto, e que tratam de maneira magistral temas de interesses universais: a natureza e o nosso papel nela (destacando que o homem faz parte intrínseca dela, e por isso não pode a ela se opor), ou ainda, através de uma prosa de extrema elucidação, que não se pode levar uma vida virtuosa se a mesma não for inspirada pelo amor, e guiada pelo conhecimento. Nisso, porém, Russell não propõe melhorar a conduta dos homens a serviço de nós mesmos. Isso seria moralismo.

    A fim de expandir nossa consciência, o livro guarda aos seus momentos finais uma das frases mais célebres de um filósofo no século anterior: “A coragem deve ser democratizada antes que possa tornar os homens humanos”, diminuindo, neste caso, a influência dos medos sociais a nós, indivíduos. Ademais, Russell não propunha um caminho, mas sua filosofia apontava o estudo sobre possíveis destinos na investigação sobre a(s) múltipla(s) verdade(s) que pode(m) existir. Nesta última afirmação de grandeza incalculável para o empoderamento da sociedade, o mestre expõe sua total falta de empatia para com as regras, o policiamento, a doutrinação, o totalitarismo e as normas que podem limitar a força do pensamento crítico, e os comportamentos humanos.

    Assim, não sendo um sujeito imoral unicamente por enxergar o cinismo e a hipocrisia que se escondem na moralidade cristã, por exemplo, e por isso negando-a como o ateu que foi, Russell seria, hoje, um prato cheio aos moralistas de plantão que resistem, de geração a geração, e julgam os outros com todo o imediatismo covarde de internet que conseguem juntar em seus comentários rápidos, de duas linhas, e mal embasados. Mais um achismo no mar incoerente de achismos que se transformaram as redes sociais do século XXI, fenômeno este (Ágora do pós-modernismo) que Russell não chegou a presenciar – mesmo com ele apostando na ciência como a grande provedora de conhecimento aos seus bisnetos e tataranetos do amanhã (teria ele profetizado o Google?). Com No Que Acredito nas mãos, o(a) leitor(a) precisa estar ciente do valor progressista e reflexivo desta joia da literatura, comensurável portanto em dois sentidos: Pequena no tamanho e descomunal em seu conteúdo.

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  • Resenha | Big Sur – Jack Kerouac

    Resenha | Big Sur – Jack Kerouac

    “Todos nós já lemos Freud o suficiente para entender o que está acontecendo aqui.”

    Deve ser perturbador ser a voz de um movimento artístico. Assim, incumbido a você, reside o peso de todo um ápice artístico musical, cinemático, ou no caso, literário; algo que varia de tempos em tempos, cujo o frescor que uma geração traz depende e pode ser resumido de você, da sua nova visão, dos seus novos temperos, deliciosamente originais e até mesmo ousados, caso um seja confundido com o outro. Jack Kerouac foi a geração beat, sendo o representante mais justo e principal de uma prosa 100% espontânea e real feito a bebida que o(s) alucinava, respeitando somente o fluxo de consciência dos seus autores e autoras inevitavelmente controversos, na época.

    Kerouac foi um dos maiores, senão o grande estandarte americano de um tempo de liberdade a pavimentar, ainda, a vinda messiânica das canções de Bob Dylan e os filmes da Nova Hollywood, tal Sem Destino, M.A.S.H., Caminhos Perigosos e, é claro, O Poderoso Chefão. Foram os tempos de expansão cultural desenfreada e sem culpa cujos ‘diamantes telepáticos’ de Jack, assim como são definidos por Allen Ginsberg os seus livros e ensaios, ainda no começo da edição brasileira da L&PM POCKET, com tradução sublime de Guilherme da Silva Braga, os auxiliaram a ser uma realidade palpável e com um cheiro inebriante de “quero pertencer a ela, também”.

    Narrado com exclusividade por Jack Duluoz, alter-ego do autor, Big Sur é uma ode àquele fluxo de consciência livre, leve e solto que guiou a geração beat americana dos anos 50, orgulhosamente escrachada; expoente dos liberais das décadas a seguir. Aos desavisados, temos aqui a perfeita condição de reclusão social que leva um escritor a se aprofundar em sua existência, seus vícios, levando-o ao caos físico e psicológico em contato com a realidade de uma simples cabana à beira-mar, num lugar retirado e homônimo ao livro, onde logo no quarto dia Jack já está de saco cheio e mesmo assim algo lhe faz fincar raízes sob a missão de escrever o incrível poema ‘Mar’, um triunfo deixado no final do livro após toda a danação e a confusão emocional descrita como um caminho que Jack (o alter-ego) passa na elaboração do seu objetivo para, enfim, poder atingi-lo.

    E para o nosso deleite. Deixa-se claro, também, como os livros de Kerouac jamais foram ou sequer poderiam ser fadados as traças, ao confinamento de páginas fechadas, em estantes ocas,num fim de sessão bibliotecária – muito menos o nosso Big Sur, em absoluto. Na verdade, suas histórias e principalmente a abordagem a essas histórias, contos mundanos rompendo a barreira do tempo e do espaço através de uma narrativa impecável e entorpecida por muita bebida e reflexões da madrugada, constituem um tempo próprio e uma mitologia própria cadenciadas por personagens reais, tidos aqui por outros nomes, em outras praças e situações. Todos eles tiveram vez na eternidade. Nem Ernest Hemingway e Marcel Proust escapam de seus devaneios kerouacianos.

    Nostálgico, constante, grande e sozinho em si mesmo, o cara afirma que ‘não há tormenta tão quieta e tão terrível quanto a tormenta interior’, fato expresso no poema já mencionado, em certo momento, ao evidenciar não só a urgência óbvia na qual o livro foi gestado a duras penas, mas o controle de Jack (o autor) com as peças únicas que com um lápis e papel concebia ao ar livre; essa obra, no caso, sob o barulho das ondas e muita conversa jogada fora, noite adentro. Porque Kerouac era pássaro da noite, da estrada, do mundo, pertencia a ele, e o mundo assim faz o favor magnânimo de não esquecê-lo, jamais.

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  • Resenha | Mulheres – Eduardo Galeano

    Resenha | Mulheres – Eduardo Galeano

    Mulheres (L&PM), de Eduardo Galeano é uma coletânea de textos feita pelo próprio autor onde homenageia diversas mulheres anônimas e famosas da América Latina e Estados Unidos. As histórias alternam-se entre contos, crônicas e pequenas histórias onde as protagonistas femininas estão presentes em sua singularidade e poder. Galeano explora uma diversidade de temas e o resultado são histórias saborosas com uma percepção crítica sobre a posição da mulher na sociedade.

    O escritor uruguaio é mais conhecido pelo livro “As veias abertas da América Latina” onde investiga a história da região desde o período colonial até a atualidade, mostrando a exploração econômica e política do povo latino-americano primeiro pela Europa e depois pelos Estados Unidos. Do estilo presente em “As veias…” entendemos que Galeano, também jornalista, torna o seu texto uma união de investigação jornalística e análise econômica e política. Em “Mulheres”, o estilo também paira sobre uma congruência de informação e análise sobre as personagens femininas.

    Do campo à cidade, do folclórico ao científico, do sonho à realidade, da democracia aos golpes militares, as mulheres que ganham vida nas páginas de Eduardo Galeano são múltiplas, com carências, afetos e falhas partilhadas por toda a humanidade. O estilo do escritor é preciso, sem embaraços de excessos ou carência de informações. Todas as histórias/crônicas funcionam por sua leveza, concisão e boa escrita. Livro excelente para homens e mulheres, e para tomarmos consciência de que a equidade dos gêneros é o mínimo que se pode pedir no século XXI.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • Resenha | Alice no País das Maravilhas – Lewis Carroll

    Resenha | Alice no País das Maravilhas – Lewis Carroll

    Publicado pela primeira vez em 1865, Alice no País das Maravilhas continua sendo até hoje um clássico da literatura infantil, tendo gerado inúmeras representações em diversas mídias, como cinema, televisão, quadrinhos e videogames. Escrito por Lewis Carroll e ilustrado por John Tenniel, a obra já está em domínio público há um bom tempo (tanto o texto original quanto as gravuras) e por esse motivo temos inúmeras traduções e adaptações por editoras diferentes disponíveis no mercado. Essa resenha leva em consideração a edição da L&PM Pocket, facilmente encontrada nas livrarias e com preço bastante acessível.

    O livro conta a história de como Alice, em meio a devaneios de uma tarde de verão, acaba caindo em uma terra onde as leis da física e da lógica não funcionam como deveriam. Após seguir um ansioso e atrasado Coelho Branco por uma toca, Alice se vê em meio a animais falantes, objetos que aparecem e desaparecem do nada, comidas e bebidas que a fazem mudar de tamanho e os mais estranhos personagens que a literatura poderia conceber até então. O que ocorre no assim chamado País das Maravilhas é uma sucessão de cenas desconexas, que não formam um roteiro sólido ou previsível – ao contrário, tudo é caótico. Assim como o leitor, Alice tenta racionalizar o que está acontecendo, mas nem mesmo o pensamento racional faz sentido quando números e palavras mudam de significados. Alice busca respostas com os personagens que encontra pelo caminho, como a Lagarta, o Chapeleiro ou o Gato de Cheshire (em outras traduções, Gato Que Ri ou Gato Risonho). Talvez o único fio condutor da narrativa seja a busca pelo Coelho Branco, que a leva para o julgamento final com a malvada Rainha de Copas. E isso não é nem de longe um ponto fraco do livro, que se sustenta em suas cenas absurdas e diálogos improváveis, com o típico humor britânico. Infelizmente, muitas das piadas e trocadilhos se perdem na tradução, que na edição da L&PM não parecem bem adaptadas para o público brasileiro.

    Se hoje em dia nada irrita mais um leitor do que o manjado final do tipo “foi tudo um sonho”, na história de Carroll esse artifício literário se encaixa muito bem. Desde o começo já está implícito que aquilo que Alice vivia não era real, seja logo no segundo parágrafo onde ela se sente “muito sonolenta e estúpida”, seja quando ela não consegue recitar um conhecido poema ou fazer uma simples operação matemática. A ideia que que tudo era um sonho também é aproveitada na sequência do livro, Alice no País do Espelho, que é praticamente a mesma história com outros personagens.

    Alice no País das Maravilhas é um livro infantil, mas para melhor apreciá-lo devemos lembrar de seu contexto histórico: foi escrito para crianças inglesas do final do século 19. Uma criança brasileira da segunda década do século 21 jamais entenderá a maioria das referências e trocadilhos do livro, como por exemplo a corrida-caucus, a Tartaruga Falsa ou os poemas estranhos. Ainda assim, vale a leitura pelo carisma dos personagens e o absurdo das situações.

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  • Resenha | Memória do Fogo – Vol. 3: O Século do Vento

    Resenha | Memória do Fogo – Vol. 3: O Século do Vento

    O mundo não acabou! Continuou, tipo pedra roliça ocupando dois planos diferentes, para cima, para baixo… Talvez os que viram e lembram-se da virada dos anos 2000 atinam-se ao sentimento de mudança e revolução coletiva que um momento como esse pode causar. Novos ventos para as mesmas cortinas de sempre. A tecnologia não mudou o ser humano, e a parte latina das Américas continua a ser o mesmo ‘arquipélago de pátrias’ submetidas a um poder maior. Chove para baixo, e a cultura latino-americana tenta fazer da chuva uma garoa que não nos molha demais. Mas é difícil, já que os irmãos Wright tiveram mais publicidade que Santos Dumont para serem eleitos os “verdadeiros” pais da aviação. Eis um livro desbravador das verdades de ontem e que não tem medo de ser honesto, e que faz esse ontem parecer o hoje, dada a delícia de uma prosa que ostenta, em ágeis trezentas páginas, uma pura condensação histórica.

    O século XX foi um cenário tanto para incríveis ineditismos quanto para continuações de todo modo, e o escritor Eduardo Galeano teve todo o cuidado do mundo para expressar isso em forma de relatos que formam um mural de eventos tão determinantes, quanto fascinantes para qualquer curioso incurável sobre as engrenagens ancestrais de quem fez e faz o mundo. Presos na nossa ainda recente memória, os resquícios da ditadura militar no Brasil ainda não sumiram por completo, junto da poeira de Hiroshima, lá longe, e são nessas páginas que nós podemos sentir os porquês de tudo isso. Como o foco é a nossa área, cheia de sotaques espanhóis e portugueses, tudo parece mais resumido, ou melhor, encapsulado em um único continente que ao longo do tempo, foi sendo ensinado, desde sua colonização europeia, a se sentir impotente, rebaixado, e a alto degradar os seus próprios valores únicos, em contraponto da velha nobreza que vem lá de cima.

    E é claro que a partir da década de 40, com o grande desenvolver e implantação da segunda guerra, o episódio merece um parágrafo a parte com a visão sul-americana dando o tom não das causas e das consequências do conflito, mas do que nutriu grande parte do arsenal bélico dos EUA. Servimos aos irmãos do norte como a mãe que cede utensílios ao filho que vai morar sozinho. Neste caso, mandando até peões (soldados), comida e matéria prima barata, e valiosa. Pagamos parte da conta do espetáculo mundial pelo poder, mas não necessariamente rachamos a conta, certo? Nossa consideração por isso vem justamente pelo Cinema, pelos papéis amigáveis e engraçadinhos que os latinos faziam nas aventuras norte-americanas em Hollywood, e foi essa a real gratidão deles com a gente: Latinos são nossos amigos, e os japoneses, os amarelos, o próprio diabo a ser combatido.

    Hollywood assim começou a testar seu imenso soft-power, vendendo ilusões para desviar o inferno que os jornais denunciavam, até culminar, através da maioria da sua publicidade tipo exportação, nos blockbusters que nos divertem, de Tubarão aos filmes da Marvel, reforçando os valores, os ideais e as perspectivas socioculturais deles. Tudo foi pensado, e a América Latina sempre foi o mais dócil dos quintais. Os primos pobres e que ainda assim merecem mais atenção que os países africanos que nada aos primos ricos nunca tiveram a oferecer, além de alguns diamantes sujos de lama, é claro, e a certeza de serem animais inferiores para os políticos, ditadores aqui e ali, e os midiáticos homens brancos que excitaram (e excitam) o ódio para manter sua soberania, de geração em geração, envernizando tudo para que os tempos e as novas tecnologias não mudem seus custosos poderes.

    O Século do Vento ilustra cem anos aonde os problemas mais profundos da humanidade, como a intolerância por exemplo, expandiram sua escala ao invés de começarem a sumir, rumo a um novo milênio. Longe de típicos pessimismos, ou de um realismo duro e cruel, Galeano continua a prática que já refinou nos dois outros volumes dessa trilogia Memória do Fogo, que como já foi citado anteriormente na crítica de As Caras e as Máscaras, são memórias cujo ardor é tão enraizado e marcante que não nos deixa esquecê-las. Galeano sabia disso, e num trabalho hercúleo, compilou bases documentadas e fez juntar inúmeros trechos imprescindíveis sobre a história que, se tanto moldou o mundo, também afetou por inteiro as trajetórias de uma América sempre eclipsada e subestimada pelo país que se auto intitula a América inteira, e com letra maiúscula.

    Havia começado então o século do poder do Mickey Mouse sobre o Zé Carioca, o Goku, e qualquer outro símbolo estrangeiro. Eles são o espetáculo, e todos devem assistir, contudo, nem tudo entre 1900 e 1999 foram Eles. Entre grandes personalidades que adiantaram e atrasaram o mundo, e as invasões de território, entre índios contra índios e países versus grandes nações que, ao invés de se juntarem para exterminar a fome e a guerra nesse globo ocupado por nossas lutas, o instinto de ambição e pura ganância dos seus comandantes engravatados fez criar suas bombas e leis internacionais, uma nova lógica se formou. A escravidão dos outros séculos persistiu de modo silencioso, agora, feito o encosto fantasmagórico que é, insuflando o brilhante discurso de Mártir Luther King no gramado que fez de palanque, enquanto no Brasil outro negro, Pelé, brilhava no palanque que fez de gramado, e também entrou para história das coisas.

    Com O Século do Vento, que termina já na véspera da era (em construção) da pós-verdade e das tecnologias onipresentes, Galeano faz por merecer todos os louros de quaisquer leitores(as) por duas razões tão óbvias, quanto inquestionáveis: Seu foco em resumir um século inteiro sem perder o peso dos principais esplendores e vicissitudes do mesmo, e por não apelar nessa odisseia pelo tempo/espaço para a facilidade de um lamento, ou de um sentimentalismo fácil diante da crise de 1929, do holocausto, da chegada à Lua e de outros marcos inerentes aos idos que emoldura, páginas a fio e que chegam a alojar, brilhantemente bem, duas décadas a cabo de dois parágrafos rápidos, mas suficientes, a tanto. Seu interesse, perfeitamente ritmado numa leitura de um fôlego só, é estimular através da imparcialidade, feito um bom e velho jornalista prosaico, o espírito desbravador dos olhos que leem sua fabulosa trilogia literária; genuinamente épica.

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  • Resenha | Memória do Fogo – Vol. 2: As Caras e as Máscaras

    Resenha | Memória do Fogo – Vol. 2: As Caras e as Máscaras

    Existem livros, não necessariamente gigantes na extensão do seu calhamaço, cuja riqueza de seu conteúdo adaptado para o cinema ou para a televisão renderia mais que todas as temporadas juntas de Os Simpsons, ou se preferir, todas as novelas da TV Globo produzidas desde o ano 2000 – em termos qualitativos, pelo menos, isso sem dúvida. Eis então um belo exemplar disso, e ele vem com nome, e autor, muito além de interesses puramente acadêmicos e/ou servindo a historiadores de plantão.

    Dividido em episódios que evidenciam o quanto o continente americano (com grande ênfase substancial a América Latina) foi conquistado e colonizado a bel prazer dos europeus, e como a resistência nativa foi importante para não perdemos nossa essência regional nessa parte do mundo, Eduardo Galeano apresenta As Caras e as Máscaras, conjurando-se no delinear e nas resoluções da obra como o típico escritor latino universalmente recomendado e reconhecido pelo seu poder de constante hipnose e criação literária – página atrás de página, palavra atrás de palavra.

    E veja bem, caro(a) leitor(a), o emprego de uma delas. Galeano tece sem luvas e muito menos papas na língua uma narrativa de vias cronicais, e fabulescas, a respeito de uma veracidade consagrada que se encontra tão presente no período colonial dessas terras sulistas e acaloradas, e ainda por cima, sem jamais perder parte de um encanto épico inebriante, ainda que dramático e trágico, a embalar a alma de célebres menções e desventuras da epopeia americana do tempos dos descobrimentos marítimos.

    Neste segundo volume de sua ambiciosa trilogia Memória do Fogo, grande saga do escritor rumo a alma do nosso passado legítimo, e a mitologia própria que nele reside, nota-se como a América nunca foi derradeira em nenhum sentido, mas sim um meio e um fim nela mesma, e o livro apenas embeleza e refina o seu sagrado percurso lendário, uma vez que, para Galeano, a luta inicial dos índios, dos jesuítas e de todos os personagens e deuses e signos e batalhas é tão ou mais valiosa que os grandes arcos gregos, ou os eventos egípcios que fascinam a todos, incluindo a nós, latino-americanos. Muito mais que nossas próprias marcas, e cicatrizes.

    Por que não tratar, ou pior, tratar com certo distanciamento retumbante, facetas extremamente factuais de um Brasil, de uma Bolívia ou de um Uruguai que não se perderam no tempo e ainda encontram eco, de fato, na lógica latina de hoje em dia? Galeano, uruguaio, malabariza o realismo necessário com uma ficção tão leve que só se percebe na poética da coisa e se mostra sobretudo um grande historiador, estilista por excelência de vários aspectos de sua própria escrita, saborosamente rítmica, concentrando épocas em episódios de uma ou duas páginas, e dispersando a linha histórica dos eventos em rápidas duzentas, ou trezentas delas.

    Falo aqui diretamente a você, mais uma vez, ao retratar nossa estadia no alto da montanha que Brás Cubas, em suas memórias delirantes, foi levado a ver o desfile impressionante dos séculos. Pois os saltos temporais em As Caras e as Máscaras, vasculhando as características de uma América ainda virgem de tudo dão o tom da empreitada de forma quase que imperceptível, numa verdadeira aula de coerência literária rítmica que muito tem a ver com os romances do colombiano Gabriel Garcia Márquez, ou do brasileiro Machado de Assis, famosos por enxergar nos seus livros palcos solenes, e desapropriados, à espera do emanar de suas minuciosas construções artísticas.

    A cabo de uma leitura elucidativa, entendemos então que a América se fez viva, ativa e operante enquanto um continente consignado, e abusado pelas mais diversas influências estrangeiras, e natais também. Unida senão pelas fronteiras que separam seus povos, as suas línguas, seus credos e as suas culturas que inevitavelmente evoluem e se tornam algo muito diferente em um par de séculos de mutações regionais graças a inquietude e a criatividade da humanidade que (quase) sempre se faz presente. Foram estes fatores que nos fizeram sobreviver às ordens dos colonos, aos chicotes do eurocêntrico e aos aspectos do solo lunar; memórias cujo ardor é tão enraizado que não nos deixa esquecê-las.

    Galeano constrói um manifesto de lembranças vitais com esse segundo volume dessa trilogia vibrante e simbólica ao extremo, pois enquanto ingleses e portugueses riam de nossos costumes primitivos, os deuses dos índios do Brasil, Paraguai ou dos Estados Unidos (já que o livro também dá espaço para a mitologia histórica e complementar dos vizinhos lá de cima) teimavam em ficar e brilhar, mesmo que hoje habitem apenas as páginas dos livros; reservados ao imaginário popular latino-americano, posto que este seja bastante influenciado em tempos globalizados por um norte mais sedutor e mais rico, séculos após a poeira das grandes guerras locais entre os povos de lá, e de cá, ainda não ter abaixado completamente. Longe disso, diriam muitos. Longe disso.

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  • Resenha | Desejo de Status – Alain de Botton

    Resenha | Desejo de Status – Alain de Botton

    A obra Desejo de Status do autor Alain de Botton é um “simples” manual explicativo das causas e soluções da obsessão contemporânea, o desejo de  status em sociedade. Publicado pela editora Rocco, a edição a ser resenhada é da coleção L&M Pocket com texto integral. O autor é o escritor Alain de Botton com formação nas áreas de Historia, Literatura e Filosofia.

    Percebemos em uma leitura prévia que o autor divide a obra em duas partes, as causas de um desejo de status e as soluções do que as causas podem provocar. Botton começa definindo e diferenciando o que é o status e o que seria o desejo de status. Conforme o autor, dentro dos motivos primogênitos das causas, poder-se-ia dividir os sintomas da ambição em subgrupos: A falta de amor, o esnobismo, a expectativa, a meritocracia e a dependência. Essas causas levantadas pelo autor ocuparão boa parte da obra de forma explicativa com dados históricos, políticos, religiosos e filosóficos.

    Botton aprofunda a questão de causas de forma detalhada, trilhando o caminho originário das pressões sociais e nos leva a entender como essas afetam a psique de forma involuntária. A segunda parte é clara quanto  ao que seria segundo o autor as soluções para os males que o desejo de status pode trazer, que também é dividida em subgrupos: filosofia, arte, política, Cristianismo e boêmia.

    A falta de amor, segundo Botton, está profundamente ligada ao desejo de status. Somos seres morais e sentimentais em busca de amor, de forma que nosso desejo é intensamente ligado à esse grito desesperado pelo amor total e absoluto. O autor escreve, “Pode-se dizer que a vida adulta é definida por duas grandes histórias de amor. A primeira – a da busca por amor sexual – é bem conhecida e bem representada, suas peculiaridades formam a matéria-prima da música e da literatura, ela é socialmente aceita e celebrada.” (de Botton, Alain; Desejo de Status; p.16)

    Em seguida o autor entra na causa da sede de desejo de status, o esnobismo. Vemos que o esnobismo é comum e parece invencível dentro do meio social, uma espécie de doença coletiva. A frustração e a incompreensão diante do esnobe parece fomentar nossa vontade de parecer melhores, de uma forma totalmente inconsciente.

    Segue o autor no que seria a terceira causa, a expectativa. Aqui Botton inicia com o fato ocorrido em 1959, onde o vice-presidente americano, Richard Nixon, viaja a Moscou para uma exposição tecnológica, demonstrando a busca pelo progresso material, após explicar como seria o modelo moderno de cozinha. Aqui ele estaria relatando não só a realidade que os EUA estavam vivendo nesse período, mas também o restante do mundo Ocidental, que vinham buscando modernidade e facilidade nos vários segmentos do cotidiano, aprofundado muito a busca por tecnologia. Todo esse contexto histórico em busca de uma vida mais superiormente confortável e de certa maneira invejável, provoca, segundo Botton um aumento nos níveis de preocupação com o que se tem. “É o sentimento de que podemos ser um pouco diferentes do que somos – um sentimento transmitido pelas realizações daqueles que consideramos nossos iguais –  que gera desejo e ressentimento. Se somos baixos e vivemos entre pessoas que são todas do nosso tamanho, não seremos perturbados pela nossa altura. Mas se os outros em nosso grupo crescem e ficam um pouco mais altos, ficamos sujeitos a um desconforto súbito e podemos ficar insatisfeitos e sentir inveja…” ( Botton; Desejo de Status; p. 42-43).

    No capitulo seguinte, Botton adentra ao tema sobre ao mito da meritocracia, abordando algumas fábulas que são muito úteis para o entendimento do que sugere esse fator social. Enquanto, no último capítulo, o autor desenvolve sobre as causas dessa dependência, exemplificando os tantos motivos de sermos escravizados por uma dependência social em vários âmbitos no mundo contemporâneo.

    A partir daí Botton aborda oque poderia ser as soluções para todas essas causas sociais, e então é um mergulho nos fantásticos universos que não são explorados pela mídia, pelos coachings e pelos messiânicos, os caminhos da filosofia, política, espiritualidade e o mundo recluso dos boêmios.

    A leitura de Desejo de Status é extremamente prazerosa e viciante, apesar da complexidade do livro em atrelar dados e fatos históricos, mas não é um livro para ser lido apenas uma vez. De certa forma ele nos alivia e nos ajuda a entender como é complexo nosso mundo atual e como muitos acontecimentos considerados normais e obrigatórios não são simples e tem um fator muito explicativo do por que ocorrem. Certamente ao chegar no fim do livro percebemos que a opinião do senso comum diante de tantos fatos relevantes da nossa trajetória pode ser uma maldição. Botton é recomendadíssimo nessa obra não só para leitores de filosofia e psicologia, mas para todos que estão em busca do verdadeiro autoconhecimento.

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    Texto de autoria de Ana Oliveira (Críticas de Livros).

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  • Resenha | Notas do Subsolo – Fiódor Dostoiévski

    Resenha | Notas do Subsolo – Fiódor Dostoiévski

    Resenhar Fiódor Dostoiévski é ingrato. O que ainda se pode falar sobre esse que é considerado por muitos o que chegou mais perto de entender o Humano? Notas do Subsolo (L&PM Pocket) foi publicado em 1864 e rende venerações e interpretações diversas até hoje. Um livro provocativo e perturbador, no mínimo, e que tenta desvendar a “eterna contradição humana”, como sintetizado por Machado de Assis em A Igreja do Diabo, o nosso Machado, por sinal, lia muito Dostoiévski.

    Notas do Subsolo é um monólogo dividido em duas partes onde o narrador é um ex-funcionário público que, após ganhar uma herança, resolve se mudar para os subúrbios de São Petersburgo. Ao adotar o novo modo de vida modesto e por ocasião dos quarenta anos (uma longevidade surpresa), resolve defenestrar contra tudo e contra todos os inconformismos que ficaram presos na garganta.

    Sozinho, mas escrevendo a todos os homens sobre as qualidades podres do “homem do séc. XIX”, mostra a razão na insanidade, a felicidade na infelicidade, o amor no desamor, o prazer na dor, etc para nos vender a ideia de que o homem do séc. XIX é no mínimo desonesto para com os demais. E para ilustrar esse homem, ele mesmo, do subsolo, conta seus prazeres niilistas, sombrios, mas também frágeis, de quem sobreviveu com carências à face.

    O subsolo é sua base. Ele escolhe descer no menor degrau possível para observar toda a pirâmide social que tem diante de si; os aristocratas, os funcionários públicos, os burgueses, o clero, os militares, todos escondem parcelas degeneradas desse homem do Séc. XIX. Sua motivação em escrever parece ser a própria antítese em sobreviver, pois se por um lado afasta o sombrio ao escrever (ou pelo menos tenta iluminar qualquer escuridão), por outro é como se cortejasse a própria ruína em suas palavras.

    Isto é o que ele nos vende: a sensualidade da contradição entre o falar e o agir. Ficamos fascinados por seu ódio, sua violência cotidiana, sua grosseria que nos esquecemos de sua baixeza ética e moral. Nos concentramos nas palavras de um narrador que tem por única qualidade não mentir, e deixamos de lado seus desvarios para com o outro, “A violência é tão fascinante e nossas vidas são tão normais”, já cantava Renato Russo.

    Cada qual fará o seu julgamento, esta é a certeza do homem do subsolo. Cada qual fará a sua leitura deste que é um dos livros mais recomendados possíveis. A edição pocket da L&PM é boa, agradável e realmente cabe no bolso. Deixemos a superfície por um momento, vamos ouvir o homem do subsolo.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Notas do Subsolo – Fiódor Dostoiévski.

  • Resenha | Memórias do Esquecimento – Flávio Tavares

    Resenha | Memórias do Esquecimento – Flávio Tavares

    Memórias do Esquecimento - Flávio Tavares

    Narrado em primeira pessoa pelo ativista, preso político em três oportunidades, comunista “subversivo” e banido junto ao grupo de 15 prisioneiros trocados pelo embaixador americano que foi raptado pelo movimento MR-8, Memórias do Esquecimento serve como desabafo literário do escritor que só retornaria a sua terra natal dez anos depois de exílio, só angariando coragem para escrever suas memórias após 30 anos de todos os acontecimentos e sofrimentos impingidos a si. Flávio Tavares não poupa seu leitor da crueza e crueldade dos torturadores e nem salva seus colegas de expor as suas tolas e irreais ilusões de mudar o mundo.

    Antes de começar seus capítulos, falando franca e diretamente ao leitor, ele se preocupa em sempre deixar uma citação de algum pensador ilustre, para embasar e testificar o seu testemunho. Já na introdução ele contesta qual a real necessidade de retomar as memórias daquela vivência marginal, e a resposta para tal indagação é respondido ao longo dos capítulos. Parte do que ele lamenta é ter de enfrentar toda a avalanche de emoções, pela qual ele passa, em silêncio absoluto, sem voz ativa, castrada da possibilidade de contestar seu estado.

    A imersão no cotidiano de Tavares é muito fácil de ser estabelecida, pois sua escrita é docemente envolvente, repleta de situações rotineiras que facilitam a identificação, além de demonstrar facilidade do autor em transmitir sentimentos e sensações. Seu sofrimento é passado ao leitor, e um exemplo disto é como Tavares descreve uma tremedeira, não causada pelo frio, mas pela temeridade em repetir os maus agouros que já tinha vivido. Rememorar era exercício de dor e a empatia gerada por seu “relatório” é muitíssimo exitosa em causar desconforto no analista. A temeridade e o medo são tão grandes que qualquer som estranho o faz remeter aos torturantes momentos de cárcere, os quais viveu e dos quais jamais esquecerá, mesmo com o título da publicação – o esquecimento certamente seria um alívio para a mente cansada e para a sua alma aflita. Tais episódios servem de aliterações, nas quais o autor conta, em detalhes desagradáveis e por vezes escatológicos, os meandros de suas estadias na prisão política, assim como os detalhes das sessões de tortura que sofreu. A ideia das torturas, segundo o jornalista, era triturar física e emocionalmente o preso, destruí-lo e chegar muito perto da morte, mas sem alcançá-lo, de um modo que o sujeito envolvido até desejasse que sua vida findasse.

    Os detalhes do embate ideológico que viria a rachar o PCB (Partido Comunista Brasileiro) são explicitados, inclusive sendo citadas as saídas de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira por estes optarem pela luta armada ao invés do engajamento mais teórico.

    Apesar de muitas dificuldades em conseguir informações dentro dos presídios, havia formas de conseguir ouvir os noticiários, que davam conta do rapto do embaixador americano Charles Elbrick. A fonte de informações também trazia maus agouros, como a morte de companheiros de luta. Mesmo com toda a truculência e violência que sofriam e que os tornava mais cascudos, os militantes ainda sentiam demais a queda de seus semelhantes, também por temerem que aquele destino fosse o deles..

    Por estar entre o grupo de libertados, chamados de os “15”, ele tinha informações privilegiadas sobre os segredos e meandros do rapto do embaixador. As informações registradas evidenciam o baixo nível de organização dos grupos, além da clara falta de estrutura destas células. O embaixador declarou que foi muito bem tratado pelos capiturantes e que eles eram “jovens idealistas”. Nas entrelinhas há uma afirmação de que os militantes estavam muito mais preparados para morrer do que para matar. Esse ponto de vista certamente não era somente dele, mas de muitos dos analistas da ação dos revoltados.

    A segunda parte começa com duas citações das mais emblemáticas no sentido da luta entre esquerdistas e militares: “Aquele que se opõe a uma ditadura tem de aceitar a guerra civil como meio de derrubar a ditadura. Aquele a quem repugna a guerra civil deve desistir da oposição e aceitar a ditadura” a frase de Arthur Koestler mostra como funcionava a cabeça de muitos opositores do governo, a outra, “Um dia vai haver uma guerra grande neste sertão. Uma guerra sem a cegueira de Deus e do Diabo“, do cineasta Glauber Rocha seria profética. Em Brasília, Tavares acompanharia em 1964 a saída de Jango do Palácio do Planalto sem conseguir sequer preparar suas malas decentemente, amedrontado e sem o mínimo de dignidade. Suas afirmações vai na direção de desmentir o argumento de que a tomada do poder foi leve e tranquila, afirmando que já de início o tratamento dado para quem discordava destes era truculento, violente e sem espaço para dignidade. Depois disso, “a rosca do parafuso enroscaria ainda mais”, segundo o autor. O cerco aumentava cada vez mais, gradativamente as reprimendas tornavam-se mais e mais humilhantes e agressivas.

    Com 30 anos de idade, o autor não via nenhuma saída que não incluísse uma postura contestadora mais firme, chamada por este de “reação moral”. O capítulo Os Conspiradores ganha como introdução uma emblemática frase de Gaston Bachelard: “Querer o esquecimento é a maneira mais aguda de se recordar“. O escritor discorre sobre a ideia, ainda em 1964, de derrubar o recém instituído poder, mas todo o planejamento era tosco, mal organizado e nada profissional. Os militantes deveriam viajar para a URSS, para fazer cursos – de alcunhas curiosas como Curso Stálin e Curso Lênin – mas não o faziam até por falta de verba. Os contatos com os exilados eram complicados: Jango no ano de 1965 residia em Montevidéu e somente se envolveu na militância ajudando a alocar os exilados. Leonel Brizola manteria uma granja onde os rebeldes plantariam tomates e receberiam uma preparação psicológica para mais tarde serem instruídos em combate. Implantar o foco guerrilheiro consumiu dois anos.

    A tortura é relembrada em muitos momentos, e no capítulo O Atentado é discorrido o absurdo de tratar tal postura como invenção e em incorrer a culpa desta aos vitimados, que receberiam o tratamento graças a sua insubmissão. A lógica seria “destruir o prisioneiro e tornar natural o medo”. Primeiro se tortura ou se ameaça, o que vai contra o atual discurso de alguns de que os militares só teriam “quebrado umas unhinhas” dos comunistas.

    A parte em que Flávio descreve a dor de sua filha Isabela é absolutamente emocionante. A dor causada pela separação do exílio só não era maior que a dúvida a respeito de qualquer retaliação a si que envolvesse a sua herdeira, visto que, em uma das torturas, tal possibilidade foi cuspida por seus agressores. A distância entre uma bravata dita simplesmente para amedrontar, em comparação com uma séria ameaça, não era totalmente clara na cabeça de Tavares, já que a situação mexia com a parte passional de sua mente, combalida demais para raciocinar tranquilamente a despeito de toda essa situação.

    O exílio marcou muito a vida  do autor, desde o início deste período e a vontade de retornar a sua terra, até o sequestro que sofreu em terra estrangeira. Apesar de todo o cunho pessoal em seu livro, o jornalista diz que em seus últimos capítulos não tentou fazer qualquer julgamento meritocrático nas ações suas e de seus “inimigos”; seu papel era só relatar suas vivências.

    Em determinado ponto ele assume que a sua linha de pensamento era utópica demais, e que a luta dos manifestantes jamais viria de encontro à realidade. Já terminando o livro, o autor assume que a sua revolta começou ao conhecer Che no Uruguai, em 1961. Lá em Punta Del Leste, ele fotografaria um frágil asmático que trajava uma jaqueta verde-oliva e que teria em seu semblante muito significado, mais do qualquer tanque do regime brasileiro. Seria naquele mesmo Uruguai que o jornalista “cairia” e consequentemente veria sua primeira morte, e onde começaria as memórias que ele tanto queria esquecer.

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  • Resenha | Peanuts Completo: 1957 a 1958

    Resenha | Peanuts Completo: 1957 a 1958

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    Vamos direto ao ponto: vale a pena ler apenas um volume dessa obra monumental que é Peanuts Completo? A resposta é: com certeza! Difícil é não querer ler os outros volumes…

    Peanuts Completo é uma coleção que se propõe a publicar da primeira à última tira de Charles M. Schulz, cada volume correspondendo a dois anos de publicações diárias e dominicais (exceto o primeiro volume, que abraça três anos). As tiras diárias diferenciam-se por serem, via de regra, de apenas quatro quadros, enquanto as dominicais possuem três linhas com oito ou mais quadros. No Brasil, a L&PM Editores já lançou sete dos vinte e cinco volumes previstos, com uma qualidade e acabamento bastante superior a outros produtos da casa (que é especializadas em livros de bolso).

    O volume quatro da obra registra todas as tiras publicadas entre os anos 1957 e 1958. Os personagens mais conhecidos de Schulz começam a ganhar os traços e contornos com os quais ficaram conhecidos até hoje. Lá pela metade do livro vemos Snoopy ganhando algumas de suas principais características (no primeiro volume ele aparenta ser um cãozinho beagle normal), principalmente andar sobre duas patas.

    O estilo aparentemente inocente das histórias de Schulz contrasta em muito com o de outros autores que utilizam a infância como temática de suas tiras. Enquanto a Mafalda do argentino Quino é altamente politizada e preocupada com questões globais de sua época e Calvin, de Bill Watterson, é extremamente criativo e agitado, Charlie Brown está muito longe disso. Questões políticas são tratadas de muito leve (quando tratadas!), e a imaginação exacerbada de Calvin contrasta com a dura realidade do bom e velho Charlie Brown. O garoto lida diariamente com frustrações, decepções e o peso de suas próprias limitações. Cobrado constantemente pelos seus amigos por coisas que ele supostamente deveria dominar, Charlie Brown está menos preocupado com a fome no mundo (como Mafalda) do que com que cara vai aparecer na escola amanhã após ter perdido o jogo de beisebol.

    As piadas recorrentes ganham bastante espaço durante a construção das personalidades de cada criança. Lucy se afirma como a maior implicante do mundo, ganhando inclusive troféus para provar. Linus não consegue se separar de seu cobertor – objeto de transição entre sua primeira e segunda infância. Schroeder, que era um bebê no primeiro volume, passa a ser religiosamente devotado à vida e obra de Beethoven, ignorando todas as investidas românticas de Lucy. “Chiqueirinho” (sempre grafado entre aspas) tem um espaço considerável também, estreando nas tiras alguns anos antes do brasileiro Cascão, de Mauricio de Sousa. Snoopy rouba a cena cada vez que aparece, e vai se tornando mais humanizado pouco a pouco.

    Mas são os fracassos de Charlie Brown (ainda sem seu apelido “Minduim”) que nos fazem ao mesmo tempo rir e se identificar com esse universo. O leitor sabe que Charlie Brown vai se dar mal, mas espera e torce por ele mesmo assim! Esse sentimento de empatia nos faz lembrar de nossas próprias frustrações, e de como rir disso nos ajuda a deixá-las para trás. Tanto que o próprio Schulz já disse que suas épocas mais produtivas eram as que ele estava passando pelos piores problemas pessoais! Charlie Brown não é um garoto perfeito, não é audacioso, não é sequer inteligente. Mas é por ser um garoto comum que temos essa empatia quase que imediata com ele.

    Das personagens retratadas na edição, Violet é a única que tem tão pouco destaque que quase não aparece. Além disso, figuras mais conhecidas como Patty Pimentinha, Marcie, Sally e Woodstock ainda não tinham sido criados e portanto não são vistas no volume.

    Não é necessário ter lido os três livros anteriores para apreciar Peanuts Completo Volume 4, que funciona independentemente das outras edições. Mas a vontade de ler os outros certamente será maior ao terminar a última tira!

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  • Resenha | As Veias Abertas da América Latina – Eduardo Galeano

    Resenha | As Veias Abertas da América Latina – Eduardo Galeano

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    A leitura de um manuscrito – no caso, um livro – é para Eduardo Galeano um exercício tão raro quanto o encontro de uma mensagem engarrafada, jogada ao oceano, com mínimas chance de ser cooptada por alguém. Passeando pelos territórios latino-americanos de um modo coloquial, As Veias Abertas da América Latina é um exercício de estudo do autor, que exibe algumas das figuras mais importantes no continente e que comumente são esquecidas, incluindo o sistema educacional brasileiro.

    O início da narração é lúdico, passando pelos percalços de Colombo e pela inspiração de Marco Polo, em terras onde ainda não haviam visto a dita civilização dos brancos/europeus, os “donos do mundo” daquela época. O desejo por bens perecíveis, como noz-moscada, gengibre, cravo e canela era enorme, só não superando o desejo por metais preciosos.

    A aura em volta dos colonizadores ganhou uma interpretação semidivina, graças a uma terrível mistura, na qual se juntou o misticismo de alguns locais e o modo como os exploradores pousaram naquelas terras habitadas. O “endeusamento” favoreceu o trabalho de escravização, invertendo o que deveria ser pautado pela empatia e transformando isso, de modo vil, em uma obediência sem discussões ou critérios. Os “paladinos” que desfilavam pelos Eldorados de Potosí (atual Bolívia) e Cuzco (Peru), tinham na ostentação um dos modos de coagir quem quer que fosse, com lendas que atravessaram as gerações ao afirmar que até os pisantes de seus cavalos eram de prata. Havia o bochicho que, se fosse somada toda a prata que havia sido transportada de Potosí à Espanha, daria para “fazer uma ponte de prata, desde o cume da montanha até a porta do palácio real do outro lado do oceano. Os exorbitantes lucros dos espanhóis são expostos em números gritantes, que se tornam ainda mais aviltantes e dignos de revolta quando se é analisada a condição miserável em que os colonos subsistem, sem qualquer sinal de retribuição às especiarias que migravam e atravessavam o oceano.

    O comércio de caráter moral discutível se agravou com o comércio de mão de obra aborígene, tendo na justificativa religiosa da “ausência de alma” dos índios a maior prerrogativa do comportamento. Mesmo após o gradual processo de desescravização, permaneceu um residual e incômodo modo de encarar a população indígena, com um claro desprezo racial pelos que permaneceram no seu país e constituíram família e vida. Mesmo a classe que não a explorava os via com bons olhos, igualando aqueles que deveriam ser os herdeiros legítimos daquelas terras e de seus bens a párias, objeto de rejeição do povo que deveria ser seu cúmplice.

    A primeira contribuição de contos brasileiros ocorre ainda pela corrida de exploração de metais, exemplificando como a febre do ouro em cidades de Minas Gerais deu vazão ao torpor relacionado ao regime escravagista, e a quanto os servos de pele negra entretinham os senhores de engenho, fosse por trabalho braçal, como em apostas esportivas, ou por mulatas que se prostituíam, se entregando a inúmeros prazeres proibidos pela religião, o que não impedia sequer a igreja de lançar mão do dinheiro e benefícios provenientes de mercado de escravos. O lucro que o império britânico e a Holanda faziam com o ilícito tráfico de carne negra só não era maior que o enriquecimento via acúmulo de ouro e especiarias que estes faziam. Pelos anos 1700, o transporte de metais favoreceu demais a existência econômica da Inglaterra, lotando suas fileiras.

    O apogeu da América Central é muito bem retratado, primeiro ao exibir os contornos do imperialismo norte-americano, ao considerar a parte baixa do continente como seu território – nem o “justo” Lincoln fugiu das comparações – até a segunda independência, o grito extravasado pelas quebras das amarras do segundo explorador, o país que não os colonizou, mas que prosseguia fazendo dos seus bens, a base barata de seu mercado.

    O modo como as antigas colônias sofriam exploração é mostrado em detalhes, com número precisos, que assustam o público pela forte crueldade dos países matrizes. O autor não deixa qualquer dúvida em relação ao seu posicionamento político, explorando ao máximo os defeitos que o culto ao capital gera nos países subdesenvolvidos, reforçando a ideia de que o sistema falhou mais do que a implantação do socialismo.

    Galeano inicia um minicapítulo afirmando que qualquer chance de desenvolvimento sustentável foi completamente aniquilada pela chamada guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, onde Brasil, Argentina e Uruguai, apoiados financeiramente pela Inglaterra, praticaram o genocídio no país afrontado. O presidente Francisco Solano Lopez resistiu até onde conseguiu, tendo de se entregar para que o morticínio de homens não fosse tão grande. Os motivos do embate são discutidos até hoje, com uma grande adesão de teorias da conspiração; no entanto, o país em frangalhos após o confronto é um fato irrefutável, pois até rodízio de genitores masculinos foi uma das atitudes emergenciais tomadas, dada a quantidade de “machos” assassinados.

    A declaração de Simon Bolívar sintetiza toda a obra de Eduardo Galeano: “Nunca seremos afortunados”. A sina dos latino-americanos não era causada por caprichos do destino, mas sim por uma intensa e desonesta exploração de suas riquezas naturais e mão de obra, que geraram um povo cujo engajamento varia de país a país, tendo no Brasil talvez o povo mais alienante e pouco combativo ao comportamento opressor e recrudescido, refletido até nos resultados das eleições de 2014, com a elevação popular de defensores do regime ditatorial militar instituído dos anos 60 a 80.

    O autor usa suas últimas páginas para grafar a diferença entre as colonizações de exploração, predominantes no sul dos EUA e em todo o continente latino, e as de habitação, na parte dos Estados Unidos que dominou todo o território, não esquecendo claro, dos aspectos herdados de um comportamento fascista, que ignora ferozmente aspectos de cunho social para supervalorizar o capital. Para Galeano, o legado a seguir na América Latina era sim o social, na tentativa de frear o alastramento do “progresso”, que tem suas aspas justificadas pelo corrimento também da miséria nos pedaços de terra conquistados pelo primo rico, localizado mais ao norte.

    A intenção presente em As Veias Abertas da América Latina de discutir fatos normalmente ignorados pela história oficial é alcançado. O fato do livro ter sido proibido de circular no Uruguai – país do autor – Argentina e Chile causaram no escritor uma alegria tremenda, de que suas palavras não foram emudecidas, e a certeza de ser a presunção, dita pelos soberanos a respeito do tom narrativo, findar-se na verdade como uma semente de esperança de revidar o golpe que o povo recebia por parte dos que secularmente o agrediam, claro, contado de uma maneira não acadêmica e sim poética, fluida e dramática.

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    Eduardo-Galeano

  • Resenha I Um Conto de Natal – Charles Dickens

    Resenha I Um Conto de Natal – Charles Dickens

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    Charles Dickens havia lançado algumas coletâneas de contos e trabalhado em cinco romances seriados – publicados semanalmente ou mensalmente em revistas de sua época – quando, em 1843, precisamente em 19 de dezembro, lançou o famoso conto de Natal. A obra foi relevante para sua carreira, e o sucesso permanece ainda hoje. Uma história tão conhecida, reinterpretada e apropriada por outras mídias que a personagem central, o sovina Scroodge, e os espíritos dos natais se tornaram tanto representações simbólicas da data comemorativa como também adquiriram status universal.

    O sucesso de Um Conto de Natal proporcionou ao autor inspiração para que escrevesse outros contos temáticos sobre a festividade. Nenhum, porém, adquiriu a mesma fama e sucesso. Compostas por cinco contos, incluindo o referido, suas histórias foram chamadas de “Contos de Natal”. Incrivelmente, a produção desta primeira famosa narrativa foi feita graças a uma dívida adquirida por Dickens. Motivado pela necessidade, o autor produziu um bonito retrato natalino com os contrastes da sociedade e uma moral que ultrapassa a concepção de uma análise religiosa sobre a festa cristã.

    Ao lançar a obra em plena Revolução Industrial inglesa, Dickens escolhe a festividade natalina para realizar uma contraposição de uma era mecanizada, que perdia os contornos sensíveis de uma sociedade. Não se trata de um texto cuja intenção é pregar a religiosidade, mas o conto aproveita-se da data e da maioria dos britânicos que a comemoram para analisar as relações e o distanciamento que há entre as classes sociais.

    A figura de Ebenezer Scroodge é a personagem que se transforma durante o enredo. Inicialmente, representa o patrão que não reconhece os serviços de seu empregado e, acima de tudo, revela-se um homem voltado ao dinheiro, tornando-se um símbolo contemporâneo do sovina, inclusive fonte de inspiração para a caracterização de Tio Patinhas, da Disney. Porém, definir Scroodge apenas como uma representação arquetípica é diminuir as nuances deste como personagem central. Em sua viagem no tempo, observamos tempos mais brilhantes na vida de Scroodge, constatando-se que sua personalidade foi moldada pela própria vida.

    O encontro com o espírito do falecido amigo Marley e a consequente viagem ao passado, presente e futuro são uma segunda chance para a personagem. Um elemento metafórico que explicita as reflexões que deveriam ser feitas no decorrer da vida de todos. Afinal, se o tempo é uma abstração criada pela humanidade com o intuito de organizar e ordenar eventos para, assim, compor uma linha de atividades, é dedutivo que seja necessário um momento para reflexão. Uma pausa em que possamos observar os passos dados até o presente a fim de que o futuro seja, ao menos em parte, planejado por nossa vontade. Dessa forma, o Natal como evento pontua este momento de reflexão. Tradicionalmente, carrega, além do nascimento de Jesus Cristo, o costume arraigado de união familiar, um momento em que diferentes núcleos tornam-se novamente unos. Talvez esta seja a justificativa para usar uma data universal como ambientação narrativa.

    A representação descritiva escolhida para cada espírito dos natais é também um bonito símbolo passível de interpretação. O passado é representado por uma figura reluzente e sem forma, uma referência óbvia à própria chama da memória e da percepção nostálgica de que aquilo que foi vivido anteriormente é sempre mais iluminado. Desta maneira, o gigante gentil demonstra simultaneamente o quanto o presente é difícil de ser dimensionado e capaz de causar medo, mesmo que, aparentemente, não seja assustador. Esta dualidade também se mantém no Fantasma do Futuro. Um personagem que permanece a maior parte do tempo em silêncio – talvez pelo futuro não ter sido escrito, de fato – e descrito como a figura mais popular da morte. As vestes escuras e a postura taciturna remetem-se à indefinição do tempo futuro, ao mesmo tempo que simboliza o próprio fim, o ceifador que nos acompanha para outra trajetória.

    O apelo sensível da obra é invejável, assim como as composições narrativa e descritiva são suficientemente capazes de evocar no leitor a percepção de cada espírito. A simplicidade narrativa amplia este sentimento natalino, e Dickens não tem vergonha de utilizar personagens carismáticos e com potencial dramático para elevar a emoção e a reflexão para o leitor. Talvez esta obra seja uma das mais universais da literatura, por ser capaz de promover, através da trajetória de um homem ficcional, a importância da reflexão interna e da compaixão e compreensão com outros membros da sociedade. Uma narrativa que talvez nunca perca sua força presente.

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  • Resenha | Cartas Na Rua – Charles Bukowski

    Resenha | Cartas Na Rua – Charles Bukowski

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    Poucos escritores têm prosa consistente para se tornarem referência na literatura e uma influência narrativa para gerações futuras, que permanecem à mercê do estilo do escritor. Um aspirante que lê Charles Bukowski pode se influenciar facilmente ou sair ileso de sua narrativa; uma sorte oportuna.

    Cartas na Rua é o primeiro romance da carreira daquele que é conhecido como Velho Safado e exibe um excelente vigor narrativo. O estilo histriônico e seco, apoiado em mentiras plausíveis de um homem sincero demais, se baseia nas próprias vivências cotidianas do autor em histórias episódicas narradas por um alterego.

    A simplicidade aparente da narrativa é uma armadilha para leitores desprevenidos que não dão credibilidade a uma história sobre um quarentão beberrão, bêbado e atraído por mulheres em geral. Um erro grosseiro. Bukowski e o alterego Henry Chinaski são personagens marginais que não têm vergonha de se exporem ao ridículo com sentimentos, porres e dores de corno. Homens que não deixam o choro preso na garganta, expelindo-o em palavras e acessos de raiva. Uma poesia raivosa que surge nesta obra a partir de histórias de um homem avesso a regras de costume e convenções sociais e que trabalhou miseravelmente durante anos para a empresa americana de serviços postais.

    Como carteiro, Chinaski narra uma América desencontrada e ri de si mesmo e das instituições a todo momento. Esta seria uma das explicações plausíveis para o reconhecimento do público perante o autor e o martírio de escritores tentando imitá-lo: sua prosa é um retrato real de uma vida comum, estagnada por desafios e preguiça. Um desalento que conquista leitores porque, em maior ou menor escala, reflete a sua própria insatisfação. A maneira de observar a vida passa pelo filtro da ironia e pelo desequilíbrio da consciência, transformada em doses de mal humor e de uma percepção de que o universo conspira contra o personagem.

    Se Bukowski é referência literária com muitos fiéis, o autor também possuía seus deuses. Assim como aos canônicos Ernest Hemingway e Fiodor Dostoiévski, Buk nutria grande devoção a John Fante.  Citado como uma das grandes inspirações, o ítalo-americano foi responsável pela maneira franca de narrar a própria história. O Velho Safado admirava a capacidade de Fante criar homens que não têm medo de demonstrar sentimentos. À sua maneira, compõe um perfil parecido: um homem modesto, sem muitas posses, que dedica boa parte de sua renda à bebida e mulheres, entregando-se de corpo e alma às suas experiências, sem medo de demonstrar vergonha ou insignificância.

    É a sinceridade dilacerante que atrai leitores e outros escritores a imitá-lo. Em vez de esconder defeitos, seus personagens expõem as incongruências sem medo, pecando pelo excesso de ser irresistivelmente sincero. Nesta vida ébria, sustenta-se o escritor e poeta, que não vive sob máscaras de eu-lírico ou personagens, mas sim cuspindo dores do coração, entre versos bêbados sob influência das bebidas mais baratas que podia comprar. Um humano miserável que vê a poesia oculta no ordinário.

    Bukowski fez de sua própria história a matéria para seus romances e ainda compôs contos e uma vasta carreira poética. Cartas na Rua representa o ponto de partida deste senhor, que paradoxalmente desistiu de uma vida ordinária para tornar-se um escritor que tratou feitos ordinários. Um dos motivos pelos quais sua narrativa permanece rica de interpretações.

  • Resenha | Devoradores de Mortos – Michael Crichton

    Resenha | Devoradores de Mortos – Michael Crichton

    Em Devoradores de Mortos, Michael Crichton (1942-2008) nos presenteia com o relato de Ahmad Ibn Fadlan, contando as diversas aventuras vividas por ele junto a um grupo de nórdicos no ano de 922.

    Fadlan foi enviado como embaixador de Bagdá ao rei dos búlgaros, missão essa que não chegou a se concretizar, pois, durante a trajetória, encontrou um grupo de vikings, uma experiência que, depois de relatada, se tornou o documento mais antigo que se tem notícia, escrito por alguém que testemunhou um pouco a cultura e sociedade viking.

    Este documento tem um valor histórico inestimável, pois podemos ter uma clara ideia da visão que os povos civilizados tinham dos ditos bárbaros e o choque cultural que havia no convívio entre eles. Assim que Fadlan encontra o grupo de nórdicos, logo embarca a contragosto em uma missão de socorro a um reino que está sendo assolado pelo Wendol, a névoa que encobre os demônios comedores de mortos.

    É no desenrolar dessa missão que mergulhamos de cabeça na cultura nórdica, pois Fadlan é minucioso em relatar todo o modo de vida de seus novos companheiros de viagem, desde os costumes mais triviais, como a higiene duvidosa, o trato com suas esposas e escravas, até o seu modo peculiar de encarar vida e morte, mas, principalmente, sua religião. O árabe é questionado diversas vezes pelo fato de ser monoteísta com diálogos como este: “É arriscado demais. Um homem não pode depositar demasiada fé numa coisa só, seja uma mulher, um cavalo, uma arma, qualquer coisa única”.

    Obviamente, o manuscrito não atravessou mais de mil anos intacto, restando apenas versões e trechos aleatórios em diversas línguas. E é aqui que entra Crichton (autor de O Parque dos Dinossauros) que se utilizou da versão do Professor norueguês de literatura Fraus-Dolus, o qual compilou todas as fontes conhecidas do relato. Crichton admite que fez poucas alterações no texto original, suprimiu passagens desnecessárias e deixou-o com uma sintaxe contemporânea mais dinâmica e inteligível. Alguns dos pontos altos do livro são as ricas notas de rodapé, que denotam um trabalho de pesquisa hercúleo.

    Não há como o leitor passar incólume por essa leitura, Devoradores de Mortos não nos faz apenas viajar no tempo a bordo de um barco viking empunhando um machado e desejando o Valhalla. Aprendemos, através da leitura, uma lição de tolerância de mil anos de culturas opostas que, por um breve período de tempo, souberam aproveitar o que havia de bom uma na outra.

    Vale lembrar que Crichton foi um dos mais talentosos roteiristas de cinema americano e trabalhou como produtor e roteirista na adaptação deste livro para o cinema, que ganhou o nome de O 13° Guerreiro, estrelado por Antonio Banderas no papel de Ibn Fadlan. Em comparação com o livro, a adaptação para as telas é rasa, mas não chega a ser desprezível e vale a pena conferir.

    Texto de autoria de Fabio Monteiro.

  • Resenha | Memória do Fogo – Vol. I: Os Nascimentos – Eduardo Galeano

    Resenha | Memória do Fogo – Vol. I: Os Nascimentos – Eduardo Galeano

    A literatura latino-americana tem como um de seus primeiros registros formais as crônicas de viagens compostas por conquistadores, catequizadores e outros navegantes que chegaram até a América como parte da colonização européia. Um conjunto definido como a primeira literatura produzida no continente, ignorando que, antes da invasão européia, a população natural do continente possuía história e legado.

    O registro feito por tais conquistadores é apenas parte dos acontecimentos. Apresenta a visão do colonizador sobre os nativos selvagens, sem deus, maltratados e sacrificados pelos colonizadores que consideravam a extinção dos povos um processo necessário para a conquista e a descoberta de ouro, prata e outros bens palpáveis para suas coroas.

    Graças ao registro de navegantes como Cristovão Colombo, Hernán Cortés, Cabeza de Vaca e de religiosos como Frei Bartolomeu de Las Casas – que defendeu a causa do índios – é possível compreender as motivações da conquista da América e como seu processo foi cruel.

    Nega-se toda cultura e a tradição indígenas existentes no continente anterior à conquista, como se as diversas tribos não tivessem suas próprias histórias, lendas e costumes. Uma tradição própria que explicava as condições da natureza, dos animais e de outros elementos que conviviam diariamente com esses povos.

    Na vasta fragmentação historiográfica e literária, Eduardo Galeano compõe uma trilogia que resgata um pouco de brilho desta cultura massacrada. Uma trilogia que parte de momentos anteriores à colonização, como uma espécie de gênese da literatura indígena até os tempos modernos.

    A intenção do autor não é meramente historiográfica, apresentando datas e acontecimentos formais através dos séculos. Mas fazer deste cenário matéria para compor uma prosa poética capaz de resgatar os elementos tradicionais destas culturas, alinhando-as e mantendo-as vivas. Sob este aspecto, nada mais coerente do que o título Memórias do Fogo como uma chama que, mesmo com a violência das conquistas, não se apagou integralmente.

    O primeiro livro, Os Nascimentos, parte da América pré-colombiana até o século 1700. Galeano utilizou mais de 200 livros em sua pesquisa para compor os microcontos que preenchem este livro. Resultou em um painel denso e descritivo de como viviam as diversas tribos antes da colonização e de como o velho Novo Mundo foi visto pelos estrangeiros.

    Dividido em duas partes, Primeiras Vozes é um compêndio de lendas sobre a criação da Terra. São interpretações ricas e variadas em uma época na qual a ciência não dominava o homem e muitas inferências sobre o funcionamento do mundo eram feitas por observações e composição imaginária de tais feitos. Cada elemento da natureza é justificado com uma história que demonstra que não só na Grécia – dito berço da civilização européia – havia espaço para deuses, lendas e histórias que deixavam lições para os ouvintes.

    Ao alinhar as diversas histórias indígenas, cria-se um gênese apócrifo que situa a América além do criacionismo bíblico, evocando tribos diferentes que foram caladas por outros povos. Uma reconquista da identidade da Latino-América, recuperando a mitologia tradicional do local, equilibrando a história oficial dos colonizadores pela história oprimida.

    A segunda parte do livro, O Velho Novo Mundo, ocupa a maior parte da narrativa, e parte desde que Colombo avistou as terras do continente e se viu maravilhado com sua vegetação e com a simpatia dos povos, até o final do século 18, com a morte do débil rei Carlos II.

    As exuberantes lendas indígenas cedem espaço para uma prosa que se aproxima um pouco da crônica sem perder a poética. Ao contrário do elemento maravilhoso da primeira parte, as viagens de colonização e exploração da América vão carregando-se, pouco a pouco, de um amargor em suas entrelinhas. O deslumbramento romântico de Colombo se dissipa em saques de ouro e prata e nas incursões dos espanhóis para dominar os índios e catequizá-los.

    Ciente de que a história das conquistas é ampla, Galeano pontua o ano e o local em que aconteceu cada momento narrado. A narrativa dramatiza as cenas e não poupa o leitor da violência sofrida pelos nativos. A queda da cidade Maia, as bulas do papa afirmando que os índios possuem alma, para situar dois exemplos, agridem pela crueldade de um época que não parecia haver limites para impor a vontade dos dominantes. Acompanhado de cada conto, há as referências originais vindas da pesquisa de Galeano para que o leitor interessado possa ampliar suas leituras com outros materiais e outras fontes além da narrativa.

    Na composição entre Literatura e História, o escritor promove um extenso panorama de uma época difícil de ser analisada devido a sua multiplicidade cultural antes das conquistas, e sua violência após estas. Pequenas narrativas de grandes momentos históricos que estigmatizaram grande parte da América e que, ainda hoje, são vistos mais comumente pelos olhos dos homens que carregavam espadas e pilharam as riquezas do local.

  • [Ideias no Vórtice] Uma carona com Kerouac: Analisando o Beat

    Na Estrada - capa filme - Keruac

    Jack Kerouac escreve um texto auto-biográfico em On The Road. Os personagens teriam sido inspirados em sua própria vida, utilizando-se da alcunha de Sal Paradise, e na de Neal Cassidy chamava no livro de Dean Moriarty, basicamente a história conta os apuros em que se enfiam a dupla e mais alguns outros amigos, ao fazer uma viagem que começaria na rota 66 e seria cortada por psicodelias, contra-culturas, muitas mulheres, trilhas de jazz aliadas ao asfalto e claro, uma busca espiritual. A história da publicação do manuscrito de On The Road é curiosíssima por si só, somente fora lançada ao público quase dez anos apos ser finalizada. Seu lançamento foi um divisor de águas, pois o mundo era introduzido ao que Jack chamava de Geração Beat, e por mais que contasse em si com uma narração inverídica e inventada, tornava-se uma bandeira para aqueles que compunham aquela geração.

    O Beat, de difícil definição – em virtude dos gracejos evasivos do autor – influenciou uma geração inteira. Hector Babenco fez Pixote, Jim Morrison fundou o The Doors, Bob Dylan fugiu de casa… Francis Coppolla tentou produzir um filme pelos idos de 1992, com Gus Van Sant na direção e estrelado pelo ainda não afetado Johhny Depp, mas o projeto não saíra do papel. O livro influenciou o contingente populacional que viria a se tornar o movimento hippie, e o estereótipo deixaria o autor exausto, e talvez (somente talvez) tenham colaborado para a forma reacionária com que encarava a vida na sua fase idosa. Kerouac morreu em 69, alcoólatra, barrigudo, ainda na casa de sua mãe, e refugava a obra que o tornara famoso. Odiava os “cabeludos drogados” que se inspiraram em Na Estrada, o catolicismo praticante exercido na fase anterior, a juventude psicodélica voltou a si, disfarçado do conservadorismo que cortou sua vida.

    Jack Kerouac in 1967, smiling

    Geração Beat

    Além da óbvia referência de On The Road (lançado em 1957), há dois itens que não devem ficar de fora de uma bibliografia básica, quando se fala do Beat, a saber Howl (1956) de Allen Ginsberg e Naked Lunch (1959) de William S. Burroughs. Os adeptos deste pensamento eram artistas na sua maioria ou simpatizantes da diabrura artesã e levavam um estilo de vida nômade. Junto ao beatnick (termo considerado pejorativo entre alguns subgrupos), aos hippies e a crença no existencialismo, formaram um dos primeiros movimentos contra-culturais da história, refugando o que era dito como correto e normativo, abraçando algumas das minorias secularmente marginalizadas. O compromisso com a política era comum dentro do “grupo”, contendo em si (alguns) comunistas e (esmagadora maioria) anarquistas. O engajamento visceral com ênfase no espiritual era uma das muitas justificativas para o excessivo uso de entorpecentes.

    larrykeenan

    O Livro

    Parte Um: Narrado em primeira pessoa, as grandes partes são divididas em muitos capítulos e de curta extensão. Dean Moriarty, parceiro de jornada do narrador, é descrito por este como um fanático por sexo, prenunciando o que viria nas próximas páginas. Cassidy pretende conhecê-lo, mais não só por ter tantas diferenças (de caráter) entre ele e si, mas também por ver nele uma familiaridade fraternal inesperada – isso lhe dava coragem para enfim concretizar a aventura que o boêmio rapaz lhe propunha, rumo a um mundo até então desconhecido. A areia é como um personagem coadjuvante, acompanhado do fervor típico daquela “geração”, mas diversa do pensamento do narrador. A viagem é crua, o frio desértico, os animais do lugar árido, tudo isso é parte integrante e importante da aventura, Sal aos poucos percebe que deve se soltar, se entrosar, ou ficará sozinho, e para ter a inserção na história que procura precisara… precisaria de mais intervenção e menos observação. Com o decorrer da viagem, Sal vai deixando alguns de seus recalques de lado, se livrando da repressão que seu passado lhe impôs, suas experimentações mudam sua forma de enxergar o mundo, mesmo que ele não assuma tal troca de postura, ao menos não tao imediatamente. O contato com pessoas não semelhantes a ele e de formas diversas de encarar a vida o faz refletir sobre suas posturas e também sobre o modo de vida americano, mas no final do preâmbulo ele quase se arrepende, se considerando inconsequente.

    Parte Dois: Ao relembrar a quanto tempo não vê Dean, aproximadamente um ano, Sal deixa transparecer a falta que sente do companheiro. As pessoas de sua família parecem reféns da rotina, com suas vidas e decisões cada vez mais enfadonhas, em contrapartida, a imprevisibilidade de Moriarty é atraente, o leva a querer se aventurar de novo e mais uma vez se jogar ao acaso – e ele parte, mesmo com as novas responsabilidades que começara a tomar neste ínterim. A mudança do clima árido para o frio típico da viagem serve para exemplificar a distinção de momentos entre a primeira e segunda parte do livro.

    A leitura recomendada para a obra é de total atenção e foco voltado para a trama, mas é ainda mais importante estar inserido na atmosfera certa, de preferência em um momento da vida em que já aja uma mínima bagagem e repertório, não cultural, mas de vivências e experiências, de sonhos já frustrados e possivelmente de porres mal resolvidos. O que Kerouac propõe para si e consequentemente para o leitor é um “abrir mão” de certos valores, especialmente os de maior conservadorismo, a fim de experimentar uma parcela da vida onde a distância do ideal para o tosco (ou grotesco) não é tão óbvia ou evidente.

    Parte Três: Sal parece bem menos arredio com os “seres de classe inferior”, não reclamando nem mesmo da companhia de gigolôs e profissionais do sexo. Seu terceiro encontro com Moriarty, ele vê seu companheiro um tanto pessimista, ainda que ele permaneça com muitos dos seus hábitos boêmios e desvairados. A tristeza dele se deve muito a questão que envolve Maryllou, que parece piorar cada vez mais. Sal e Dean mergulham numa nova jornada, restabelecem seu pacto e partem para novas experiências, ainda mais viscerais e nonsense do que antes, pois se infiltram em círculos ainda mais undergrounds dos que costumavam frequentar. A carona que tomam com as “fags” é o início de uma relação intensa (bem mais do que os dois gostariam) com alguns homossexuais. É interessante identificar os preconceitos ainda mais flagrantes a época em comparação com a contemporaneidade.

    Parte Quatro: Sal Paradise começa a quarta parte vendendo o seu livro, o que lhe garantiu uma tranquilidade financeira um tanto inédita, enquanto Dean Moriarty vivia com Camille, sua nova/velha mulher. Os tempos mudaram, não era somente Dean que sentia o peso do matrimônio de Maryllou, que estaria até grávida de um vendedor de carros – a geração que cortou o país estava desfeita e descaracterizada quanto a rebeldia e ao comportamento de contra-cultura. O uso excessivo de entorpecentes não é freado, mesmo após a paternidade consumada de muitos personagens. Entretanto, os escrúpulos de Dean e Sal mudaram muito, parte em que meninas ainda infantes serviriam como objetos de saciamento dos prazeres carnais dos presentes é chocante aos olhos de ambos, e mexe com muitos dos conceitos dentro de suas mentes. A degradação de outrem os atinge, demonstrando evolução que estes sofreram.

    Parte Cinco: A ideia que Sal Paradise faz de Dean Moriarty na capítulo final é (pedestal), semi-divina, (idealizada sinônimo), como o símbolo daquela geração que deixaram para trás. Sal foi um observador, mas Dean viveu tudo aquilo intensamente, seu estilo de vida dependia disso e mesmo com o tempo passando, e o consequente amadurecimento vindo, ele ainda preservava um pouco da rebeldia daqueles dias dentro de si. O Moriarty verdadeiro era o do deserto árido, das viagens sem rumo pelo interior do país, de caráter experimentador, a figura paterna que ele se tornara era uma jaula para o seu verdadeiro espírito e essa era a sua principal diferença para Paradise, que permanecia o mesmo “moço correto” com alguns desvios na moralidade que foi a tônica em sua vida.

    Na Estrada de Walter Salles

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    A canção, antes dita na tela escura, imediatamente acompanha os passos do andarilho na árida estrada. A forma de Salles filmar emula muito mais uma típica estética estadunidense do que seus filmes do passado, exceto pela paleta de cores, semelhante e muito as tonalidades apresentadas em Central do Brasil. A lente de Walter registra uma beleza que não se notava em Kristen Stewart (exceto talvez por Corações Perdidos), sua Maryllou é completamente diversa da insossa Bella da Saga Crepúsculo. Há muitos easter eggs, como a demonstração do quanto a obra de Proust está no ideário de Dean.

    Após 40 minutos de exibição, o realizador grava imagens de Sal escrevendo, muito semelhantes as de Dora (Fernanda Montenegro) em seu filme mais popular, as sequências na areia repleta de barracas de pano também lembram muito as terras nordestinas que Josué e Dora percorriam, atrás de seus objetivos. Apesar de carecer muito de um bom ritmo, o filme de Walter Salles passa as emoções femininas de uma forma magistral, os ciúmes de Maryllou, a decepção e rompimento impingidos por Camille. Mesmo com o roteiro extremamente fiel ao livro, na película a força está maior nas atuações das mulheres, Kirsten Dunst e Kristen Stewart são mais competentes que a dupla de amigos Sam Riley (Sal) e Garrett Hedlund (Dean).

    Os excessos do diretor fazem de Na Estrada um filme desnecessariamente longo, o que não chega a ser um enorme problema, ainda que incomode em determinados momentos. A escolha de Jose Rivera ao apresentar no seu roteiro uma relação que beira a o homo-atratividade entre Paradise e Moriarty é exagerada e desnecessária, é óbvio que um tinha muitos ciúmes do outro, mas a atração entre eles não era sexual em si, e sim fraterna.

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    Pós-viagem

    A mensagem que Kerouac passou em sua mais ilustre (e famosa) obra é completamente diversa da sua ideia de mundo, visto a sua caretice e postura ultra-conservadora no fim de sua vida. A crença de que a leitura de uma obra torna-se maior do que a ideal que o autor pensa ganhou um capítulo especial em On The Road, onde a apropriação da interpretação do livro é muito mais de direito de seus leitores do que do criador. Por toda a sua importância, seria natural uma enorme expectativa a adaptação para a grande tela, e a consequente decepção geral pelo filme de Salles.  O poder das palavras fez o autor refugar, mas pavimentou o modo de agir não só da geração que viveu toda a efervescência dos primeiros anos do beat, mas quase toda a contra-cultura posterior a ele, vide o movimento punk, a música hardcore, e o grunge de Seattle por exemplo. Na Estrada é um retrato de como muitos da geração que viveu nos anos 1950 agiram em seu íntimo e representa também o sonho de muitos dos que não tiveram coragem de vivenciar tais experiências, além de ser um capítulo muito importante da história americana de contestação do status quo.

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