Tag: quadrinhos europeus

  • Resenha | Asterix: O Escudo Arverno

    Resenha | Asterix: O Escudo Arverno

    Uma certeza? Nunca tire nada de Júlio César, muito menos uma prova de rendição a ele. A busca pelo Escudo Arverno que era de César já começou, e ele vai virar a Europa de pernas para o ar se for preciso, até encontrar esse item perdido da sua valiosa coleção de conquistas. O que a publicação das editoras brasileiras Cedibra, originalmente, e posteriormente, Record, comenta é a ganância de uma figura imperial que de tão desmedida, torna-se motivo de piada nas mãos dos autores franceses Albert Uderzo e René Goscinny. Fora que o escudo nem é tão lindo assim, mas como ele era de um herói gaulês, eis a prova material de que César conquistou até mesmo a enorme região da Gália.

    Só tem um pequeno detalhe: a Gália possui uma pequena tribo resistente, lar dos mais loucos (e eficientes) guardiões que, quando não estão bebendo e festejando como se fossem hobbits, protegem sua terra-natal mais do que qualquer exército sonharia em fazer. É claro que estamos falando de Asterix e Obelix que, ao ficarem sabendo da empreitada atrás do Escudo Arverno, vão fazer de tudo para chegarem nele antes dos romanos – afinal, foi forjado por um conterrâneo deles e derrotado em batalha por César. Assim, a história investiga o paradeiro desse pedaço de metal, desejado por uns como questão de honra, e por outros, por pura soberba de imperador.

    Será possível que uma guerra vai começar, só pelas confusões que envolvem essa busca? Asterix e Obelix não querem saber, e juntos do cãozinho Ideiafix, vão varrer a Gália (e testar sua amizade) para alcançarem a tal da relíquia antes. Uma aventura que não enriquece a mitologia das histórias da famosa dupla, amada mundo afora desde 1960, mas que prova também a magia e a graça de suas peripécias, caricaturas deste período histórico e suas personalidades. Com alguns momentos hilários beirando a histeria de sempre, vale tudo tanto pela superioridade em tempos de conquistas de território, quanto pela preservação dos símbolos nacionais, aqui na forma deste bendito escudo.

  • Resenha | Giovaníssima

    Resenha | Giovaníssima

    Quando Nelson Rodrigues ditou, na famosa citação do gênio brasileiro, que “toda nudez será castigada”, muitos levaram a sério sem saber o mal que estavam fazendo a eles mesmos. Mas na época dos nudes, sites picantes, e aplicativos de “encontros”, quem ainda se importa com esse castigo? Muitos e é por isso que Giovaníssima veio para acabar de vez com os que ainda resistem a libertação sexual, e assim arrastar a todos para esse microcosmo dos prazeres mundanos de se revirar os olhos, cuja punição pode ser muito mais gostosa do que Rodrigues já cogitou. Bem-vindos a dimensão de Giovanna Casotto, a ilustradora italiana que leva até o mais sisudo dos marmanjos a uivar com o simples desenho do pé feminino, da boca vermelha a salivar, e de outras partes que exclamam um desejo sobre-humano de serem deliciosamente degustadas.

    Se as lolitas de Milo Manara transbordam uma sensualidade acidental, as mulheres de Giovanna conhecem muito bem o seu poder de sedução. Assim, suas histórias expõem, sem pudor algum e absoluto refinamento gráfico (seus traços e a escolha precisa das cores são visualmente orgásticos), o quanto de malícia pode existir numa figura feminina dona de si e pronta para o êxtase. Não, elas não são apenas femme fatales: elas são tudo o que elas se permitem Ser, Obter, e Sentir. Arquétipos da libertação sexual e do rompimento da hipocrisia que rege a maioria das pessoas e seus relacionamentos. Pode-se afirmar que as mulheres de Giovanna aplicam o feminismo na entrega da carne, no gozar da vida, na aventura da libertinagem que, ao homem, quase nunca é condenada pela sociedade, mas que à mulher apedrejam há milênios.

    Em Giovaníssima, temos dez contos eróticos recheados de sarcasmo, ora flertando com uma assassina de aluguel, ora nos convidando a uma tarde de puro tesão na praia. É o jogo de se brincar com os regozijos que tantos afogam, mas que agora se tornam uma experiência ultra realista para ninguém botar defeito. Se ao leitor desavisado tudo isso é pornografia, talvez um delírio vulgar com ares de fantasia sexual traduzida em quadrinhos, a arte publicada no Brasil pela editora Veneta (para maiores de 18 anos) serve para explorar, na mais elegante das excitações visuais, a força irresistível e triunfante de uma sexualidade feminina sem amarras para irromper e se encarnar, sempre com a boca bem cheia e lábios bem encharcados, entre quatro paredes efervescentes. Por que se podar? Se as donas de casas têm medo de ser feliz, aqui elas temem o tédio.

  • Resenha | Júlia – Aventuras de uma Criminóloga: O Crime Negado

    Resenha | Júlia – Aventuras de uma Criminóloga: O Crime Negado

    Iniciado em media res, técnica literária em que a narrativa se desenvolve a partir do meio da história, a ação marca o início da 17ª trama de Júlia – Aventuras de uma Criminóloga. Após uma ótima perseguição que se encerra no metrô, o assassino Murphy é pego pela equipe de Garden City. Procurado por uma série de estupros seguidos de morte, o homem nega um dos crimes do qual é acusado, e Júlia será a responsável por descobrir quem imitou seu modus operandi.

    Literariamente falando, a presença de um serial killer sempre é um motivo de destaque na narrativa policial. Em Julia, não poderia ser diferente, já que sua estreia foi marcada por uma assassina, Myrna, grande vilã, presente em muitas narrativas futuras. Mesmo que os roteiros apresentem uma gama de crimes investigados, uma trama com um assassino serial sempre conquista a atenção rapidamente.

    Em Crime Negado, porém, não é o assassino e sua pulsão o grande foco. Mas sim, a procura pelo autor do sexto crime. Em outras palavras, a narrativa demonstra como o senso de justiça não se estabelece por aproximação ou no atacado. Cada crime merece punição específica.

    Como costumeiro nos roteiros de Giancarlo Berardi, a condução da trama e os personagem em cena são ecos da sociedade. Como Julia sempre traça um perfil psicológico tanto de agressores, quanto das vítimas, o leitor contempla um panorama das relações sociais e lados obscuros de cada um, resultado em narrativas ricas que fogem do escapismo. Nessa trama, os fetiches são combustíveis que tanto podem relevar o crime, quanto esboçam que há sempre segredos guardados na intimidade.

    Essa história foi também o último trabalho desenhado pelo argentino Gustavo Trigo, uma produção inacabada devido a sua morte. Assim, o capista Marcus Soldi e Eni finalizaram as artes para a publicação.

  • Resenha | Asterix: Asterix nos Jogos Olímpicos

    Resenha | Asterix: Asterix nos Jogos Olímpicos

    Ah, a Gália… a  enorme região da Europa conquistada pelos romanos. Isso foi antes de Cristo mas, graças a Asterix e Obelix, ela nunca será esquecida. Palco (ou apenas o início) de suas inúmeras aventuras malucas, a Gália nessas histórias resistiu ao Império pela astúcia e força física das criações dos cartunistas franceses Albert Uderzo e René Goscinny que, desde os anos 1960, vêm ganhando as gerações com o racional Asterix e o impulsivo Obelix, representando o que há de melhor no período do exército romano de Júlio César e os seus absurdos. Loucuras essas que, de tão megalomaníacas, já seriam ridículas por natureza. Asterix e Obelix sempre foi a mais deliciosa das caricaturas desse período histórico, e Asterix nos Jogos Olímpicos, não poderia ser diferente.

    Agora toda a Europa está em polvorosa: em poucos dias, na Grécia, o maior torneio de todos vai acontecer, e a Gália quer mostrar a força e a superioridade do seu povo – como se já não bastasse provar isso sendo o último território contra Roma (!). E enquanto os romanos tem um bonitão enorme para os grandes jogos, para a Gália sobrou… Obelix, com sua enorme pança, mas que com um soco faz o lutador romano subir na mais alta árvore, deixando até suas sandálias no chão. Sentindo esse poder, Roma não vai deixar barato, mas quem pode contra o poderoso (e falastrão) Obelix e um Asterix que, após tomar uma poção mágica do bruxo Panoramix, consegue correr mais rápido que o vento? Está armada mil confusões olímpicas, sendo claro que a rivalidade do Império contra a resistência nunca foi tão divertida assim.

    O estilo narrativo frenético de Uderzo e o visual super expressivo Goscinny consagram-se a cada página como um primor das artes gráficas. Juntos a dupla teceu inúmeros álbuns coloridos de quadrinhos por anos e talvez Nos Jogos Olímpicos seja o mais irreverente de todos. Tal comédia dos costumes ainda arranja tempo para criticar a competitividade, a corrupção política e o etnocentrismo, já que os de Roma sempre se achavam superiores. E os de Gália também! Para todas as idades (e etnias), a publicação no Brasil da editora Record é perfeita aos colecionadores dessa dupla de gauleses e estimulante para o público infanto-juvenil que sempre precisa de um bom motivo para se encantar pela arte da leitura. Nem para isso, Asterix e Obelix falham.

  • Resenha | Júlia – Aventuras de uma Criminóloga: A Sombra do Tempo

    Resenha | Júlia – Aventuras de uma Criminóloga: A Sombra do Tempo

    Republicado pela Mythos em formato italiano em 2019, Julia – Aventuras de uma Criminóloga segue em publicação em lançamento em grupos de cinco edições por vez. Dessa forma, a 16ª aventura ao lado de mais quatro novos números demonstram como uma das melhores séries lançadas no país adquiriu maior destaque a altura das sempre excelentes narrativas de Giancarlo Berardi.

    Em A Sombra do Tempo, o passado é gatilho para as ações do presente ao apresentar uma mulher com visões sobre um assassinato. Sem saber ao certo a origem dessas visões, a mulher pede ajuda ao seu psiquiatra que convida Júlia para analisar o caso. Fatos cuja resposta estão escondidas no inconsciente.

    Há muito dinamismo nas cenas, principalmente na qualidade entre contrapor pequenas cenas que entrelaçam a narrativa. Elementos que trazem profundidade aos personagens, mesmo que periféricos, fortificando a trama como um relato de cunho realista na medida do possível. Enfocando tanto o núcleo familiar da mulher com visões, bem como a narrativa detetivesca com Julia, observamos um equilíbrio narrativo que foge de uma trama meramente escapista. Não há intenção em apressar os fatos, mas apresenta-los com calma, dentro do espaço de páginas da edição, sem acelerá-los, simulando a vida real em que nem tudo acontece de prontidão.

    Sempre que possível, as pesquisas de Berardi feitas para cada número de Júlia são transmitidas aos leitores por seus personagens. Nessa edição, é a definição freudiana do inconsciente, um espaço de afastamento da consciência, que surge como elemento. Em algum lugar do passado, a personagem viveu um possível trauma de morte ou codificou mentalmente alguma ação agressiva a partir da personificação dessa sua visão. É nessa transição da matéria inconsciente para a realidade que reside a grande revelação da trama.

    Como cada edição de Júlia apresenta uma história fechada, novos leitores podem conhecê-la iniciando a leitura em qualquer edição. Sempre com bons roteiros, Julia é sempre uma boa leitura, bem desenvolvida na ação e nas tramas policiais.

  • Resenha | As Aventuras do Califa Harrum Ahal Mofadah: Primeiro de Abril em Bagdá

    Resenha | As Aventuras do Califa Harrum Ahal Mofadah: Primeiro de Abril em Bagdá

    Na mitologia da lendária série Asterix e Obelix, há espaço de sobra para a genialidade do francês René Goscinny, com a parceria do artista sueco Jean Tabary, alcançar novos gloriosos patamares, agora nas histórias do califa Harrum Ahal Mofadah e o seu conselheiro, o grão-vizir Iznogud. Obcecado em roubar o posto de Harrum, e tomar o trono como um bom e velho Judas, Iznogud trama mil peripécias para conseguir seu único objetivo na vida: o poder, custe o que custar. Isso porque o maior inimigo do ganancioso é sempre ele mesmo, e nos quadrinhos do cartunista francês Goscinny, publicado pela editora franco-belga Dargaud, o sarcasmo oferece ótimos exemplos disso, com um senso de humor delicioso e a ironia de sempre, ilustrando de forma surreal o ridículo daqueles que vivem se sabotando.

    E nada melhor para conseguir sua vitória que no As Aventuras do Califa Harrum Ahal Mofadah: Primeiro de Abril em Bagdá, quando tudo na cidade fica ao contrário, incluindo os postos das autoridades. A loucura, é claro, come solta por 24 horas, e quem era general vira soldado, e o escravo vira patrão: o momento perfeito para sabotar a todos, e conseguir virar califa antes da meia-noite! Mas nada é tão fácil assim, e ninguém em Bagdá parece ajudar Iznogud, já que todo mundo está interessado no seu próprio umbigo. Resta ao grão-vizir tentar corromper forças políticas no exterior para conseguir dar seu golpe de estado, mas suas aventuras só vão de mal a pior – ninguém o respeita, e muito menos ele. Este conto ilustrado sobre o lado perverso da ambição transmite, em sua autora infantil, um tratado simbólico sobre a natureza do poder, e suas consequências na mente tóxica de um homem.

    Tudo embalado pela graça exuberante das histórias de Goscinny, realmente impagáveis para todas as idades. De quebra, a publicação da Editora Record no Brasil ainda traz outros contos seguindo o conselheiro Iznogud nessa sua saga infinita pelo trono de Bagdá. Talvez a melhor delas, a ótima “O Labirinto”, nos apresenta uma construção impossível de sair e que chega a cidade fazendo barulho, como se fosse um evento circense para o povo. Eis então a isca perfeita para o califa Harrum entrar e se perder lá dentro – mas é lógico que a cobiça desmedida de Iznogud atrapalha tudo, de novo! O autor de Asterix e Obelix tinha o dom de nos encantar e divertir com suas cores e aventuras e, ao mesmo tempo, um convite às reflexões das mais variadas exclama de suas criações, tão vivas e atemporais, nesse mundo das artes. Um mestre.

  • VortCast 97 | Trem Fantasma: De Hugo Pratt a Bonelli

    VortCast 97 | Trem Fantasma: De Hugo Pratt a Bonelli

    Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira), Thiago Augusto Corrêa e Rafael Moreira (@_rmc) recebem Lucas Pimenta da Editora Trem Fantasma e embarcam em um bate-papo sobre a curadoria do (incrível) catálogo inicial da editora, a assinatura do clube do Trem e a elitização do mercado brasileiro.

    Duração: 86 min.
    Edição: Rafael Moreira e Flávio Vieira
    Trilha Sonora: Rafael Moreira e Flávio Vieira
    Arte do Banner:
     Bruno Gaspar

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  • Resenha | Paracuellos

    Resenha | Paracuellos

    Paracuellos é um quadrinho espanhol desenhado e escrito por Carlos Giménez. Na publicação, o quadrinista resgata suas próprias memórias, nos orfanatos da Espanha pós-governo Franco, onde as crianças sofriam com um grave autoritarismo por parte dos seus cuidadores e responsáveis legais.

    Gimenez viveu dos 8 aos 14 anos nesses abrigos, sua historia não é só denunciativa, mas também catártica, exorcizando suas privações e sofrimentos que teve ainda no início de sua vida em um regime castrador. A edição da Comix Zone é caprichada, com um belo acabamento gráfico. Para se entender perfeitamente a potência da história é preciso se ater ao prefácio de Pedro Bouça, especialista em quadrinhos europeus, que ambienta não só as influências dentro da nona arte, como também elucida os meandros do auxílio social da metade do século XX, especialmente pela prática nazista, com ensinamentos dessa natureza por parte dos educadores.

    Os quadros são pequenos e as páginas repletas de pequenos desenhos que demonstram a crueldade com que os órfãos eram tratados. É estranho pois boa parte das crianças ficam nesses orfanatos, mesmo tendo pais do lado de fora, algumas simplesmente não tinham como ser sustentados por suas famílias, daí a figura do Estado com mão forte e intervencionista.

    A história varia entre cenas de brincadeiras dos meninos, onde a diversão e distração imperam, com outras de sofrimento rotineiro, que por sua vez, chegam ao cúmulo de causar nos garotos a vontade e a tentativa de fugir para longe daquele terrível lugar. A sensação para a maioria deles é de que qualquer lugar seria uma alternativa melhor que ficar ali para morrer à míngua, apanhando todos os dias. O fascismo que varreu a Europa produziu consequências terríveis, e isso se reflete nos pequenos cenários, como é demonstrado em Paracuellos.

    A arte de Gimenez é única. Mesmo ao mostrar tantas crianças, cada uma delas é diferente, possui características próprias e personalidades singulares. A narrativa varia entre discussões verborrágicas, uma forma de desabafar a dor e a solidão que o autor e que cada um dos órfãos sofreu, com outras mais descritivas – as que mais machucam o coração são as que descrevem a barganha que os meninos fazem entre si para se ter mais comida. As partes mais tristes envolvem o racionamento de comida, negociando alimento para conseguir gibis ou brinquedos ou mesmo quando comem alimento regurgitado.

    Os instrutores dividem os meninos em falanges, cada uma com um chefe, um garoto responsável por todos estarem em sentido, uma autoridade que deveria servir como voz dos adultos, em um regime que imita o militarismo. Isso mexe com os brios e com o senso de comunidade, deixa-os alerta e faz com que eles sejam autoritários uns com os outros, resultando em brigas entre iguais. Giménez brinca com paralelos de os regimes nazifascistas como da Alemanha, Itália e a própria Espanha franquista.

    Por mais que a história seja simples e direta, há uma bela discussão a respeito da forma de fazer a arte. Ler e escrever quadrinhos deixa de ser algo meramente escapista, vira um artifício de fuga daquele cenário tétrico e triste, não só para Pablito , o alter-ego do quadrinista, mas para outros meninos, é como se o vírus da curiosidade artística pegasse a todos, ainda que nem todos prosseguissem naquilo. Paracuellos é um retrato cruel e triste, ainda que belo, de um período espanhol, uma página turva, que certamente seria conveniente esquecer, mas que precisa ser lembrada como patrimônio histórico que é.

    Compre: Paracuellos.

  • Resenha | Júlia – Graphic Novel: O Caso do Criminólogo Assassino

    Resenha | Júlia – Graphic Novel: O Caso do Criminólogo Assassino

    Publicado pela Editora Mythos desde 2004, a série Júlia ou J. Kendall – Aventuras de uma criminóloga é uma das séries de maior qualidade em publicação no mercado editorial brasileiro. Desde o ano passado, a HQ tem ganhado um merecido destaque em uma reedição em novo formato e novo papel. A iniciativa dá prosseguimento a um investimento feito pela editora para popularizar títulos da editora italiana Bonelli. Saem o formatinho e o papel jornal, e entra o formato italiano e papel offset. Inicialmente, Dylan Dog e Martin Mystere foram lançados no formato, em seguida uma edição limitada de Tex, pavimentando o espaço para Júlia.

    Júlia Graphic Novel é mais um desdobramento do sucesso da republicação da personagem. Uma edição de luxo, parte do selo Prime, que dá sequência à série de aventuras especiais publicadas originalmente na revista italiana Julia Almanacco Del Giallo. Depois de dez especiais em preto e branco – alguns publicados no país em edição extra e outras na edição bimestral – a série finalmente ganhou uma edição especial colorida na Itália em 2015.

    O espaço-temporal é o que diferencia as aventuras especiais de Júlia da tradicional. Nessas narrativas especiais, a personagem central ainda é uma estudante de criminologia, revelando um brilhantismo precoce em suas participações investigativas ao lado do mentor, o professor Cross. Porém,  a estrutura narrativa em que a personagem descreve parte da ação como um diário e os roteiros apurados de Giancarlo Berardi se mantêm constantes.

    O caso do criminólogo assassino expõe uma das vertentes mais tradicionais da narrativa policial: a investigação de um crime de assassinato. Embora Júlia não seja limitada a apenas esse estilo, fator que sempre traz dinamismo às varias vertentes abordadas, sem dúvida o assassinato é uma das mais cativantes.

    Convidada por seu professor a uma convenção de criminólogos, Júlia é posta no centro da ação quando um dos participantes é assassinado. A trama expõe a clássica estrutura do caso do crime do quarto fechado. Formalmente, o estilo infere um crime relativamente impossível, mas também se desdobra em assassinatos que envolvem um grupo específico de pessoas que estão presas ou situadas em um mesmo ambiente. A intenção é ampliar o mistério e instigar o leitor. Afinal, um dos presentes na narrativa é o culpado. No caso dessa trama, os personagens estão em uma vila para a conferência de criminólogos e não podem sair do local enquanto o culpado não for descoberto.

    Após mais de 200 roteiros de Júlia na época da publicação desse especial, o roteirista Berardi não perde a mão. Trabalha cada caso com afinco, desenvolvendo tramas críveis e soluções possíveis para as tramas. Seus personagens, mesmo aqueles que entram em cena brevemente, parecem fundamentais. Se destacam em cena como se fossem reais devido a verossimilhança, transformando as investigações em grandes narrativas sobre o gênero.

    Embora as narrativas utilizem recursos que se desdobram sempre com Júlia no centro da ação e da resolução do caso, não há desequilíbrio nas bases investigativas, dando vazão a uma tradição narrativa policial que preza pela credulidade. Aos poucos, a trama vai apresentado cada personagem que poderia ter alguma rusga com o assassinado, revelando motivos escondidos por detrás da civilidade das aparências, sem exageros.

    A edição faz parte do Prime Edition da Mythos com capa dura e papel de qualidade. Como as tramas são auto-contidas, a narrativa funciona tanto para novos quanto cativo leitores. Na Itália, há mais cinco edições no formato. Sem dúvida, se a edição for um sucesso, haverá também continuidade em nossas terras.

    Compre: Julia Graphic Novel – O Caso do Criminólogo Assassino.

  • Resenha | Alena

    Resenha | Alena

    O mais legal dos quadrinhos, de uma forma talvez até mais acentuada que o cinema, devido toda a expressividade estática que os quadrinhos gráficos oferecem aos nossos olhos, é como essa mídia consegue acomodar em toda sua linguagem e glória os mais diversos gêneros em suas páginas. Alena está ai para provar isso, sendo nada mais que uma história de terror romântica no melhor estilo de Carrie: A Estranha, do superestimado Stephen King. É a adolescência começando a provar, de forma surreal e sangrenta, os dramas da vida adulta através dos olhos de uma jovem, assombrada e terrivelmente empoderada pelo amor de sua vida.

    Alena nunca superou a morte de sua namorada, Josefin. Um amor que nunca se foi, sendo uma sombra presente em todos os momentos mais particulares ou sociais da pobre Alena. Assim, o amor é visto como um fantasma, o brilho que restou de uma estrela já falecida. Uma vez que o amor verdadeiro nunca acaba, Alena é um conto de uma colegial cujo passado semi encarnado a obriga a fazer coisas tenebrosas, em especial, viver no macabro e assassinar todas as pessoas que não a deixam em paz por ela ser tão introvertida, traumatizada, e lésbica – características que, social e infelizmente, pesam nos passos de qualquer um.

    É claro que a jovem e tímida Alena é atormentada por suas colegas insuportáveis de escola, que a querem estuprada e humilhada diante de todo mundo – chegando a trancá-la com um garoto para “virar mulher”. Em oito capítulos, a publicação da Avec Editora ilustra com total intensidade o peso do preconceito nas memórias e nas ações de alguém que não é considerado normal, sobrevivendo entre pessoas sempre prontas a infernizar quem não se parece com elas. Kim W. Andersson, autor também da ótima série Love Hurts, de 2009 (ainda não publicada no Brasil), aproveita seu melhor trabalho gráfico para nos chocar em um conto de justiça, e injustiça, banhado no sangue de adolescentes…

    … e puro instinto de vingança, toda vez que atestamos o contato sobrenatural de Josefin, com “sua” perturbada Alena. Como um anjo da guarda as avessas em seu comportamento, Josefin influencia sua namorada para cometer as maiores atrocidades contra quem nunca as deixaram ser feliz, fazendo-as pagar entre facas e tesouras, entre lágrimas de saudade e lágrimas de rancor. Andersson é o tipo de autor que não poupa seus personagens, e joga a todos num inferno de ações e danação delicioso de se acompanhar, também devido suas ótimas ilustrações e o dinamismo da narrativa. O amor machuca, com certeza, e em Alena ele cumpre o seu papel das maneiras mais diversas e visualmente chocantes possíveis.

    Compre: Alena.

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  • Resenha | Garras de Anjo

    Resenha | Garras de Anjo

    A dupla formada pelo finado Jean “Moebius” Giraud e pelo chileno Alejandro Jodorowsky marcou época na Bande Dessinée franco-belga com O Incal, trabalho que potencializou de diversas outras obras de curta duração. Em 1994, contudo, os dois talentosos autores desenvolveram o álbum erótico Garras de Anjo, que trafega entre os limites da história em quadrinhos e do livro ilustrado.

    O traço do artista francês continua esplendoroso como de costume, mas a narrativa de Jodorowsky causa incômodo em grande medida, uma vez que o autor chileno se coloca no papel de um eu lírico feminino e se propõe a discorrer sobre as reminiscências da jovem Garra de Anjo, em um olhar pretensamente poético e erotizado sobre seu passado.

    Cabe aqui uma pequena consideração: ao longo da literatura e da história dos quadrinhos como um todo, diversos homens obtiveram êxito ao emularem a voz feminina, captando detalhes do imaginário feminino com grande precisão. Tal tarefa, ainda que possível, torna-se cada vez menos estimulável, haja vista toda a justa luta por empoderamento feminino e pela ascensão da causa feminista na contemporaneidade. Mal posso imaginar como podem se sentir algumas mulheres ao se depararem com a representação de feminilidade escolhida para esse álbum.

    Em que pese o olhar histórico (uma vez que estamos aqui falando de uma história concebida há cerca de 25 anos atrás), Jodorowsky pesa demais a mão nesse trabalho, e erra demais ao propor uma representação feminina sob uma ótica completamente distorcida e por vezes doentia. Completamente edipiana, Garras de Anjo enxerga em todas as figuras masculinas, reflexos de seu pai.

    Passando por recordações perturbadoras, que evocam um aparente caso de abuso infantil, com reverberações na adolescência da jovem, o autor chileno concebe o monólogo interior da jovem protagonista, em uma espiral surrealista que demole as barreiras entre as camadas de realidade e imaginação, contando com o traço de Moebius para conceber metáforas visuais perturbadoras, misturando a sensualidade das personagens femininas com a bestialidade das figuras masculinas.

    O artista francês desenha mulheres sensualíssimas, dando expressividade e lascívia para olhares, sorrisos e gestos, em cada painel que produziu para acompanhar os textos de seu parceiro chileno. A obsessão fálica que permeia a história é flagrante, com o traço de Moebius contrapondo representações ultrarrealistas para as figuras femininas, enquanto toda e qualquer representação de um pênis acabe descambando para o grotesco, para o exagero em tamanhos e formas. Não podemos atribuir tal característica obsessiva somente a Jodorowsky ou Moebius, o que nos leva a creditar tal necessidade perturbadora à dupla em igual medida.

    Ao longo da trajetória da personagem, que busca tortuosamente alcançar a maturidade, nos deparamos com a glorificação do abuso, da violência sexual como medida de transcendência identitária, em um delírio freudiano que coloca toda e qualquer vontade feminina girando em torno do falo. Para alcançar sua elevação, Garras de Anjo precisa adquirir um falo para si, para conservar sua feminilidade com a autoridade inerente ao aspecto fálico. Por fim, a permissividade às bizarras maneiras de penetração acabam resultando em um incompreensível.. coração. Repugnante, definitivamente.

    A obra, celebrada por muitos e demonizada por outros, foi publicada aqui no Brasil pela Editora Nemo em um luxuoso e belíssimo álbum de 76 páginas, em capa dura e envernizada, no mesmo formato da Coleção Moebius, da própria editora.

    Compre: Garras de Anjo.

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  • Resenha | Cinco Mil Quilômetros por Segundo

    Resenha | Cinco Mil Quilômetros por Segundo

    As comédias românticas e os romances de folhetim nos condicionaram, ao longo dos anos, a esperar pelos coloridos e retumbantes “felizes para sempre” em suas tramas românticas. Contudo, essa expectativa esbarra na dura e cruel realidade de que nem sempre as coisas dão certo e muitas vezes pessoas que se amam seguem caminhos diferentes, sem que haja nada que possa ser feito para evitar o fim. É desse lado triste das relações que a narrativa gráfica em questão trata. Em Cinco Mil Quilômetros por Segundo, o italiano Manuele Fior versa sobre relacionamentos frustrados e a natureza caótica das conexões que estabelecemos ao longo da vida.

    Atravessando diferentes períodos das vidas de Piero e Lucia, a narrativa fragmentária e dispersiva de Fior conduz o leitor pela trajetória dos personagens, passando pela infância, pelos desencontros da juventude e pela enfadonha vida adulta. Os protagonistas têm sua vida destrinchada através das páginas, em um jogo de expectativas acalentadas e subitamente frustradas pelo autor, que trafega por passado e presente na narrativa com maestria, se utilizando da paleta de cores para transmitir a sensação que aquelas memórias evocam.

    Quando trabalha com o passado idealizado no qual os jovens vizinhos se conheceram, Fior faz uso de tons ensolarados, em sua pintura aquarelada, da mesma forma que a paleta azulada é empregada quando a intenção é transmitir a sensação de tristeza e frustração de Lucia, após se mudar para a Noruega, em busca de refúgio depois do término da relação com Piero. Ao mostrar que Lucia enxerga em Sven uma chance de esquecer o ex e seguir sua vida, o autor pincela as páginas azuladas com crescentes tons de amarelo, principalmente quando a amável e futura sogra Hilde aparece em cena.

    Com Piero, a paleta de cores quentes se confunde com a apatia dos tons pastéis, em uma representação da fuga do jovem em busca da realização profissional no Egito, após a frustração da relação com Lucia, o grande amor de sua vida.

    A abordagem do autor logra êxito ao se empenhar em mostrar seus personagens, humanos e falhos, se reinventando a partir das frustrações e revezes que a vida lhes impõe. A decisão de Lucia pelo regresso à Itália, divorciada e mãe solo, ansiando por mais um recomeço, a motiva a ligar para o ex, em busca da memória de seu antigo amor, perdido pelo tempo. Piero, já em uma nova etapa da vida e também com uma família constituída, atende a ligação e ambos trocam figurinhas sobre suas vidas até aquele momento, após anos de afastamento.

    Ao se contatarem, ela de Oslo e ele de Assuão, a cinco mil quilômetros de distância um do outro, mesmo em rumos diferentes da vida, ambos restabelecem conexão com uma parte tão decisiva de suas trajetórias.

    Após uma passagem de tempo de oito anos, Fior retoma os tons tristes e azulados para representar o clima melancólico no qual Lucia se encontra, envelhecida e frustrada com o rumo que sua vida tomou após o fracasso de seus relacionamentos e de sua carreira profissional. Piero, ainda casado e com filho, encontra-se bem sucedido na carreira e em sua relação conjugal, mas tendo em Lucia seu eterno amor de juventude e ponto de fuga de uma vida que muitos julgariam como perfeita.

    Esse capítulo final, dedicado a mostrar o jantar dos dois ex-namorados em um breve retorno de Piero à Itália, demonstra em seus diálogos um grau de verossimilhança impar dentro das histórias em quadrinhos, ao trabalhar as perspectivas de ambos os personagens após tantos anos terem se passado desde o fim de sua relação.

    A melancolia inerente ao encontro dos dois encontra seu auge na frustrada tentativa dos dois em transarem no banheiro do restaurante. O constrangimento de ambos é quebrado por uma derradeira conversa sobre pertencimento e frustrações, em uma análise franca dos personagens sobre os rumos que suas vidas tomaram e em como são, de diferentes formas, infelizes com o caminho que seguiram, encontrando um no outro a nostalgia de tempos passados, mais simples e idealizados, diante do inexorável peso do tempo e das intrincadas conexões que compõem as relações humanas.

    Cinco Mil Quilômetros por Segundo se trata, dessa forma, de uma análise contundente sobre resiliência e amadurecimento pelas quais todos nós passamos em algum momento da vida, ao termos o coração partido.

    Em termos técnicos, podemos tecer alguns comentários. O traço minimalista e, por vezes simplório, de Manuele Fior, é potencializado por seu deslumbrante trabalho em aquarela, criando uma ambientação confortável para sua trama. Vale também ser discutida a inventiva representação do caos linguístico na comunicação dos personagens em diferentes línguas, na qual a manutenção do idioma original de cada língua estrangeira ali falada dentro dos balões tanto gera um impacto estético interessante dentro da proposta narrativa, quanto quebra o ritmo de leitura, ao forçar o leitor a fugir o olhar dos limites do quadro para ler a tradução do que está sendo falado em cada balão.

    A narrativa gráfica, premiada em Angoulême no ano de 2011, foi publicada em 2018 aqui no Brasil pela editora Devir, em capa dura, lombada arredondada e papel off-set, em 144 páginas.

    Compre: Cinco Mil Quilômetros por Segundo.

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  • Resenha | Dylan Dog: Horror Paradise

    Resenha | Dylan Dog: Horror Paradise

    Em 1986, o jornalista e escritor Tiziano Sclavi e o ilustrador Claudio Villa criaram Dylan Dog, o Investigador do Pesadelo. A ascensão foi meteórica e o personagem inspirado nas feições do ator britânico Rupert Everett se tornou um dos mais populares dos quadrinhos italianos. Ao longo dos tempos, o personagem teve suas histórias publicadas em várias editoras no Brasil e após um hiato, está de volta sendo impresso pela Editora Mythos.

    Na história Horror Paradise, originalmente publicada em Dylan Dog n. 48, de setembro de 1990, o Investigador do Pesadelo se vê obrigado a enfrentar os grandes monstros do Cinema após acordar sem memória em uma estranha espaçonave. Ao longo de flashbacks, vamos descobrindo que o ponto de partida pra que Dylan fosse parar ali se deu quando ele começou a investigar um bizarro caso onde diretores de cinema apareceram mortos tal e qual as vítimas dos filmes que dirigiram e as únicas pistas encontradas por Dog foram fitas VHS de películas que jamais foram filmadas.

    Os roteiristas Michele Medda, Antonio Serra e Bepi Vigna criam uma divertida história lotada de referências cinematográficas, utilizando-se de trocadilhos e corruptelas com nomes de grandes cineastas, até paródias de personagens de filmes como Hellraiser: O Renascido do Inferno, Alien: O Oitavo Passageiro, Procura-se Susan Desesperadamente e inúmeros outros.

    Auxiliado pelos ótimos desenhos de Claudio Castellini, a história não é somente um emaranhado de referências. O trio de roteiristas cria uma trama de mistério que envolve o leitor, com um tom que emula tanto o seriado Supernatural (ainda que tenha sido concebida bem antes da criação da série) quanto o clássico Scooby-Doo, com o mistério se revelando ao mesmo tempo pro Detetive e pro leitor.

    A única ressalva fica por conta da nada atraente capa, que ainda que mostre algumas das criaturas do cinema que desfilam na história, acaba por preterir o protagonista, mas para o reinício das publicações do personagem aqui no Brasil, a Editora Mythos acertou em cheio com uma ótima história para resgatar os antigos leitores e cativar novos.

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  • Resenha | Pequeno Pirata

    Resenha | Pequeno Pirata

    Lançado pela Barba Negra – selo de quadrinhos da Editora Leya – em agosto de 2011, Pequeno Pirata é a segunda obra de David Beuachord a chegar ao Brasil (a primeira foi Epilético pela Conrad em 2007-08). Conhecido como um importante integrante da nova geração de quadrinhos franceses, o autor resgata uma conhecida fábula infanto-juvenil de Pierre Mac Orlan para esta obra indicada em 2011 ao Eisner na categoria Melhor Edição de Material Estrangeiro e destacada em diversas listas de melhores quadrinhos em 2010.

    A  trama retoma a lenda do famoso navio Holandês Voador e de seus tripulantes condenados a vagar sem descanso pelos mares, procurando redenção pelos crimes. Enquanto não conseguem quebrar a maldição e se entregar a derradeira morte, os piratas continuam pilhando navios e, em uma dessas investidas, encontram um bebê no meio dos destroços e decidem leva-lo ao navio amaldiçoado.

    Explorando a criação de um humano fora de seu ambiente natural, em uma ideia semelhante ao menino Mogli em O Livro da Selva de Rudyard Kipling, a narrativa apresenta uma história simples, composta para promover a reflexão sobre a mortalidade. Vivendo como o único vivo entre os mortos, o garoto não compreende a diferença entre seus semelhantes. Acredita ser um pirata como eles, apenas com breves características diferentes, motivo pelo qual é chamado de o Rei Rosa pela tripulação. Porém, conforme cresce, os piratas reconhecem que é impossível mantê-lo no navio para sempre, elaborando um plano para que ele possa viver na Terra com seus iguais.

    O autor trabalha com qualidade o universo dos piratas, apresentando divertidos personagens marginalizados com a liberdade a seus pés. O ambiente marítimo promove bonitas cenas visuais em que se destacam a variedade de tipos na tripulação, bem como um uso sóbrio de cores. Os traços de David B. se adequam a ideia de uma história de aprendizado, com um visual mais cartunesco, típico de ilustrações em livros para jovens leitores.

    A narrativa infanto-juvenil deseja, ao mesmo tempo, apresentar uma trama leve que contenha uma mensagem profunda e reflexiva. Mesmo em um cenário tipicamente hostil, a trama apresenta os piratas como um grupo sensível que, mesmo na contradição de serem pilhadores de navios, possuem tanto sensibilidade para saber que o garoto não deve ficar no navio como sensibilidade para reconhecer que, por amor, é necessário deixa-lo ir para a Terra.

    A reflexão promovida estabelece a noção da mortalidade bem como a compreensão diante de situações naturais aos homens, de qualquer maneira, difíceis de serem aceitas tanto por jovens como adultos. Embora todos caminhem rumo ao fim, a percepção da perenidade humana é um tema sensível, bem explorado pela trama. Sob o viés de uma história leve, Pequeno Pirata comove pela mensagem universal em sua trama fabular.

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  • Crítica | Valerian e a Cidade dos Mil Planetas

    Crítica | Valerian e a Cidade dos Mil Planetas

    Luc Besson é um operário do cinema e seu trabalho tem muitas vertentes. Ultimamente, seus esforços incluem muitas produções executivas de blockbusters de alcance mediano, além de ser roteirista de algumas novas franquias de ação como Busca Implacável, Carga Explosiva, Táxi, etc. Em seu trabalho anterior, Lucy, Besson se dedicou a revisitar sua própria obra Nikita, de 1990, o que gerou muita discussão no que diz respeito a falta de originalidade do autor. Talvez por isso, o cineasta decidiu filmar Valerian e a Cidade dos Mil Planetas, um clássico do quadrinho francês, escrito por Pierre Christin e desenhado por Jean-Claude Mézières.

    Os icônicos personagens centrais são interpretados por dois astros em ascenção: Dane Dehaan e Cara Delevingne. Porém, Dehaan tem feito filmes cujo sucesso é irrisório, apesar de já ter apresentado bons desempenhos anteriormente. Seu Major Valerian não é de todo mal, no entanto algo pesa muito contra si, que é a completa falta de química com seu par,  e Delevingne, também uma atriz cuja fase em blockbusters esta em baixa. Laureline apesar de ter tempo em tela não apresenta qualquer momento onde tenha a mínima nuance comportamental, tampouco há possibilidade de explorar a intérprete dramaticamente, sua figura está lá unica e exclusivamente para decoração e para apresentar alguns figurinos que deixam sua pela à mostra.

    Ainda que o entorno seja ruim, seria injusto julgar o produto do Besson pelos fracassos de seus protagonistas, no máximo há de se lamentar as péssimas escolhas de elenco, mas a realidade é que não se cria dentro do período de mais de duas horas qualquer empatia com os protagonistas, tão pouco há como torcer por eles, já que em todo momento eles parecem incapazes de correr perigo.

    Os efeitos visuais são bonitos em alguns pontos, mais grotescos em tantos outros. Há uma confusão tão grande na concepção desse universo que mesmo ideias desbravadoras, como a da cidade interplanetária comercial soa vazia. O restante do elenco é sub-aproveitado, desde Clive Owen, até Ethan Hawke e Rutger Hauer. A participação de Rihanna é reduzida em tempo, mas sua importância para a trama é bastante relevante, sendo um dos poucos momentos realmente emocionantes quando sua personagem tem seu apogeu, no entanto, sua conclusão resulta em uma cena boba de lamentação de Dehaan.

    Se Lucy é comparável a Nikita, Valerian e a Cidade dos Mil Planetas certamente tenta se posicionar na esteira de O Quinto Elemento, ainda que não entregue quase nada da ambição atingida pelo jovem clássico dos anos noventa. Não há qualquer profundidade no drama exposto, tampouco há qualquer conexão dos personagens entre si ou o público. Ao fim da projeção fica a sensação de que esse seria um herdeiro espiritual de Avatar e John Carter, ainda que a comparação com esse primeiro seja tão pejorativa que soe injusta. Se a ideia do diretor era começar através desse uma nova cinessérie de adaptações dos quadrinhos franceses talvez fosse melhor uma auto-análise do realizador, já que ultimamente tem escolhido projetos bastante questionáveis

    Compre: Valerian: A Coleção Completa (Vol. 1)

    https://www.youtube.com/watch?v=BtSjVcAN8Qo

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  • Resenha | A Garagem Hermética

    Resenha | A Garagem Hermética

    Uma das obras primas do quadrinista Moebius (Jean Giraud), falecido em 10 de março de 2012, A Garagem Hermética foi originalmente publicada na revista francesa Metal Hurlant entre 1976 e 1980 em episódios de duas a quatro páginas. Foi republicada no Brasil pela editora Nemo, com nova tradução e um belo trabalho editorial. Portanto, hora mais propícia para uma resenha de um dos maiores clássicos dos quadrinhos europeus provavelmente não haverá. Embarquemos, então, nessa viagem lisérgica de Moebius.

    É uma tarefa árdua falar do plot de Garagem Hermética, tanto pela estrutura da história – com idas e vindas que saem do desconhecido e te levam para pontos que “desconhecido” não é o suficiente para definir – quanto porque, notadamente, talvez o último interesse do autor fosse realmente contar uma história quadrada, fechada, seguindo uma estrutura narrativa comum, com início, meio e fim. Ele próprio descreve um pouco do desenvolvimento da história de Garagem Hermética: “Todo mês eu tentaria recriar uma trama coerente, com os elementos já existentes na história. E então separaria tudo para me sentir inseguro novamente, e então no mês seguinte unir os pedaços pra começar tudo de novo”.

    Com esse espírito de liberdade de desenhar e criar universos e deixar que o leitor os complete em sua própria experiência, Moebius continua a contar a história de Major Grubert – e digo “continua” pois era um personagem já existente em Major Fatal, e publicado pela primeira vez em A caçada ao francês de férias. Dessa vez, Major Grubert e seu antagonista, Lewis Carnelian, protagonizam uma trama transcendental, mística, em que adentram um planeta com diferentes níveis de realidade, cada vez mais complexos e distantes da nossa própria realidade, deixando o leitor sempre um passo atrás da compreensão de tudo aquilo que está acontecendo, mas ainda assim envolto e imerso naquele universo de nonsense, belas imagens e criatividade quase infinita.

    Sobre a arte de Moebius: eu compararia sua arte e os planos que ele apresenta em Garagem Hermética ao Cinema Scope dos quadrinhos. Planos abertos, às vezes até ocupando uma página inteira, com detalhes suficientes para que o leitor dê uma pausa na leitura e na evolução da trama apenas para analisar cada trecho e minúcia desenhada. Observar e apreciar cada referência e inspiração que o quadrinista deixa ali em seu traço: por exemplo, uma cena em que Major e Lewis estão voando, o próprio autor cita como referência direta ao Homem de Ferro. Como se já não fosse o bastante, alguns dos ângulos de observação daqueles planos já seriam muito inovadores nos dias de hoje. Considerando então a época em que Garagem Hermética foi escrita e desenhada, podemos com certeza considerá-la um marco que viria a influenciar quase toda, se não toda, a produção de quadrinhos subsequente.

    Fora que toda essa arte remete, é claro, ao nosso mundo real, mas ainda assim cria um universo próprio, com suas regras particulares, o que dá ainda mais liberdade e criatividade para suas criaturas, paisagens, construções, todas belíssimas e únicas. Os desenhos em preto e branco conferem ao leitor o uso da imaginação para que aquilo tudo se torne ainda mais vivo e real, sem perder, porém, um aspecto de sonho e imaginação que muitas obras em preto e branco sugerem.

    A Garagem Hermética, mesmo que não agrade àqueles que preferem uma estrutura narrativa mais linear e fechada, com certeza vale por seu desenho.Em muitos momentos ele é a motivação para a continuidade na saga que, por suas idas e vindas, muitas vezes sem muito nexo e lógica, dá a impressão de que a história não sai do lugar, e que cairá para algo em que não há solução possível. Portanto um clássico como esse, quase uma experiência, é obrigatório para todos os fãs de histórias em quadrinhos, e também como uma introdução a esse mestre da nona arte, Moebius, junto com suas histórias iniciais do Major Grubert.

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  • Resenha | Três Sombras

    Resenha | Três Sombras

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    Confesso que enveredei relativamente tarde no mundo dos quadrinhos, e talvez seja este justamente o fator que me faça apreciar mais os trabalhos alternativos, em detrimento da convencional história de super-herói.

    O ponto é que a cada obra alternativa que me deparo mais cresce a minha admiração por este seguimento.  Com Três Sombras, não foi diferente.

    A premissa é singela. Joachim vive com seus pais (Louis e Lise) em um local recluso, seguem uma vida de campo modesta, simples e feliz. Tudo corria perfeitamente até que um dia os nossos personagens notam três sombras, paradas no horizonte.  Eis que a trama se inicia.

    A simbologia e a representação metafórica destas sombras ante a vida da família é imensa, e Cyril Pedrosa discorre muito bem ao longo da HQ manifestando os mais primários e complexos sentimentos que tais sombras causam em cada um deles (e também em cada um de nós).

    Entre eles estão a mudança, a inconstância da vida e de tudo ao nosso redor. O pai de Joachim reage em um primeiro momento da maneira mais previsível e ineficaz possível, ou seja, cede à negação de tais entidades ou do que elas podem representar.  Não consegue aceitar a mudança e toda a corrente de eventos trazidos com ela.

    Joachim, ironicamente acaba tendo (a seu tempo) a visão mais madura de toda a situação, talvez justamente por não estar tão carregado dos temores dos adultos, nem da carga que os anos da vida trazem, seja ela boa ou não.

    Tudo isso é representado com maestria no traço de Pedrosa. Vale dizer que a HQ tem pouquíssimo texto, sendo talvez a sua arte o que mais lhe dá força e simbologia.

    O traço é fluído, contínuo, alongado, natural e terno. Casando perfeitamente com a temática central da obra: não se para o tempo, não se consegue fugir do seu destino, e o preço ao se tentar tal empreitada, pode ser caro demais. O desenho percorre as páginas como um rio fluindo através do tempo. O leitor, apenas mais um apreciando esta vista transitória, mas não por isso menos especial, ao contrário, exatamente por isso  extremamente especial.

    Há muito mais de significado nesta obra do que eu discorri aqui, valores e temores que afligem muitos de nós, mas creio que parte do prazer em lê-la seja justamente cada um assimila-la de maneira particular. Trazer para si o significado que Cyril Pedrosa transmitiu com o seu trabalho.

    O filósofo pré-socrático Heráclito (para quem a natureza está sempre em constante fluxo/mudança) com certeza apreciaria esta obra.

    Para finalizar, atente para o poema no final, simplesmente tocante dentro do contexto.

    Texto de autoria de Amilton Brandão.

    Compre: Três Sombras.