Resenha | O Rei de Amarelo – Robert W. Chambers
O livro encadernado em um formato que emula a pele de cobra – como no original -, e que finalmente traz os escritos completos de Robert W. Chambers, representa um protótipo de como seria a literatura de terror ficcional nos Estados Unidos. Chambers apresenta uma Nova Iorque imaginária, um prospeto do começo do século que se aproximava. O autêntico exemplar da literatura americana gótica ainda conta algumas histórias que se passam na Paris da Belle Époque.
Tempo e espaço se misturam e fazem parte desta equação cosmopolita. O atrevimento do autor em fazer mergulhar nas páginas do livro abriu uma “caixa de Pandora”, pois influiu nas obras de autores gabaritados, entre eles H. P. Lovecraft, Stephen King, Neil Gaiman e Raymon Chandler. Nota-se a influência do jornalista Ambrose Bierce, e de seu conto Um habitante de Carcosa, que conta a história de um sujeito ávido por retornar a sua terra natal, Carcosa. Todo o imaginário de O Rei de Amarelo passa por uma variação do conceito da história de Bierce, elevada a uma potência ainda maior.
A atenção do leitor em relação às datas maximiza a experiência de leitura de O Reparador de Reputações, a começar pelas profecias, desde as “menos importantes”, como a anexação do Havaí ao território americano, até as de proporções dantescas, como o anúncio de uma guerra contra a Alemanha, que deixou marcas fortes no país, em um evento anterior aos anos 1920. As primeiras frases do conto reproduzem uma máxima escrita em francês, que, ao mesmo tempo em que é simbólica, também é real: “Não zombemos dos loucos, sua insanidade dura mais do que a nossa, eis aí toda a diferença“. No texto, o narrador declara que ao ler a peça O Rei de Amarelo sua vida foi mudada, e a avidez por alcançar o nível qualitativo da obra deixou um buraco de carência, um alento jamais alcançado e, por isso, tratado como uma maldição. O final da história é representativo, elevando o título do conto a uma máxima e com um surpreendente desfecho para os personagens, flertando com o sobrenatural mas sem assumir factualmente esse cunho.
As referências à “peça” prosseguem nos outros contos, sempre em páginas negras, anteriores ao texto literário. Há quatro histórias que permeiam o universo de O Rei de Amarelo, sendo a terceira delas, No Pátio do Dragão, uma análise, sobre os medos e os temores do mundo, na qual o estudioso Robert M. Price baseou sua teoria, um conceito de que o universo contido de O Rei de Amarelo seria um pesadelo coletivo, um limbo onde existiriam todos os males imagináveis em sonhos e compartilhado por todos os humanos, o que dá uma aliteração interessantíssima sobre o artefato literário. O modo como as histórias se interligam deixa uma dúvida, intensificada por edições antigas do livro que tinham as partes separadas como capítulos, e não como contos. Boa parte dos que analisam o livro e demais obras de Chambers tende a considerar este um romance, mas visto sob óticas diferentes em cada interseção.
A escrita de Chambers possui uma pontualidade fácil de notar, com repetição de alguns elementos que podem significar uma autorreferência voluntária. Tanto em Emblema Amarelo quanto em A Demoiselle d’Ys, a tragédia é seguida de uma declaração de amor, mesmo que o sentimento não tenha visto a luz do sol, evidenciando um modo de encarar uma vida sem garantias de felicidade, nem por meio do valor utópico do sentimento – dito pelos poetas como imortal. Curioso como um espécime que influenciou tanto a fantasia literária seja, em essência, profundamente mergulhado no realismo.
O conto mais controverso da coletânea é também o que contém uma qualidade ímpar; A Rua dos Quatro Ventos é uma história baseada no realismo e que usa avatares pouco usuais para falar sobre a solidão e a apatia, assim como o desejo humano de se livrar do isolamento. O texto põe um homem analisando os movimentos de um felino, imaginando como foram os passos anteriores do gato antes do seu encontro, e também conjeturando quem seria a dona do animal. Severn, o protagonista, é um pintor, o que mais uma vez levanta a questão de que a arte é por si só um trabalho ermo. A avidez do protagonista à procura do seu par – Sylvia – ignora, sobretudo, a morbidez, exaltando o desejo acima de todas as outras coisas. A multiplicidade de temas e de interpretações enriquece muito o cunho narrativo do artigo.
A exploração do modo como os membros das altas rodas parisienses lidam entre eles e com os outros homens é um tema analisado em A Rua de Nossas Senhora dos Campos. A hipocrisia que permeia esses círculos de pessoas é exaltada, apontando o desprezo de seus membros por quem é menos afortunado e, por conseguinte, marginalizado. Além disso, o texto evidencia, claro, o quão pueril é o modo que lidam com o estranho, especialmente com os que aparentam ser bem apessoados. As entrelinhas brincam com referências à libertinagem sexual, tema deveras complicado e fruto de um tabu imenso dentro da contemporaneidade do conto, que, mesmo “futurista”, é bastante conservador e fruto de críticas pelas palavras de Chambers. O sexo e o amor sensual prosseguem sendo o fruto proibido em tempos de pós-modernidade.
Obviamente que toda a narrativa é velada, especialmente em relação às críticas sociais. Talvez um dos poucos momentos em que o texto do autor se permite não ser tão sutil é na hora de transmitir o sarcasmo e o deboche, comuns a muito de seus personagens, entre eles Clifford, do último conto Rue Barrée. O modo com que ele enxerga o mundo emula o desprezo típico de Chambers e de algumas de suas influências, que dentre as mais óbvias há a já conhecida misantropia de Oscar Wilde. O desprezo que o personagem tem por instituições milenares e pelas normas datadas que regem o “bom viver” da época, remete a uma enorme inversão do Contrato Social proposto por Hobbes, Locke e Rousseau. A forma de Clifford enxergar (e julgar) as interações entre os jovens denota momentos puramente tragicômicos, acentuando cada passo da vergonha alheia inerente à condição humana. A vaidade é o principal alvo de seus “gracejos”, e impressiona ver o quão ruim ele julga seus pares graças a esse sentimento. A história finaliza-se com Clifford debochando do moralismo, mas sendo enredado a alguém menos experiente que ele, o que prova que nem uma pretensa superioridade faz dele capaz de passar por cima de seus próprios defeitos.
O terror de Chambers está nas improbabilidades, que beiram o nonsense mas que estranhamente conseguem se ligar com os medos universais humanos, desvendando os temores internos, escondidos atrás de tabus morais e, claro, do ego. Os horrores inimagináveis – os quais também eram comuns aos contos lovecraftianos – que permeiam suas histórias flertam com o grotesco inexorável à existência humana, fazendo deste o principal fator para O Rei de Amarelo ser uma obra tão universal. Ao tecer um interessante e singular comentário social, o livro vai muito além do mito de Carcosa.