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  • Crítica | A Festa

    Crítica | A Festa

    E no começo, tudo é festa. Eles e elas chegam em casa com flores, sorrisos, comida no forno, drinks pra lá e pra cá na iniciação de uma tarde amistosa que tem tudo pra dar certo, afinal, entre amigos está tudo bem. A gente já viu esse filme, essa estória um milhão de vezes (ou mais), principalmente em belas casas inglesas onde quase tudo rola por trás da serenidade aparente. Mesmo assim, A Festa não parece ter vontade alguma de reciclar conceitos narrativos e de aproveitamento da mise-en-scène criativa tão antigos quanto o próprio Cinema, quanto a própria arte de reunir meia dúzia de pessoas naturalmente diferentes em uma mesa sala, sob o mesmo teto, e ver o circo pegar fogo devido a própria natureza conflituosa que surge entre um, e outro.

    Para comemorar a nomeação como Ministra da Saúde, Janet chama os amigos mais próximos a sua casa, afinal é uma data especial que não rola todo dia, só que a cineasta Sally Potter não tem O roteiro em mãos para ao menos conseguir brincar, decentemente, de Mike Nichols e Roman Polanksi. Até mesmo a escolha da imagem gratinada em preto e branco, nos dando o deleite de ver todas as matizes de prata que surgem dessa escolha estética, nos remetem ao desejo de recriar parte do clima, do charme e da força acachapante de um Quem Tem Medo da Virgínia Woolf?, conseguindo, no máximo, comparações honestas e mais humildes com Deus da Carnificina, o bom e “contido” filme esquecido de Polanski.

    Duas características que francamente tem muito a ver com A Festa, uma vez que revelações começam a surgir entre suas personagens que parecem pertencer com suas raízes aos cômodos e aquela mobília, por onde dançam suas paranoias, seus vícios e o cansaço que começa a tomar conta dessa tarde coletiva, tal um demônio sorrateiro embaixo da cama fazendo um casal brigar ao invés de transar a noite. O filme é um verdadeiro show de atuações, da calmaria a flor-da-pele, e merece a alcunha de ser um palco dramático para um grande elenco, em especial o velho mestre Timothy Spall, impressionantemente magro, em fascinante e silenciosa presença em cena.

    Ele é o velho sol no qual todos gravitam em volta, e quando anuncia ter prazo de vida, o filme de Potter, um elegante turista pela terra do banal e do lugar-comum, vira uma catarse semi esquizofrênica onde ninguém sabe o que fazer, e muito menos o que há para se perder. Assistir a adultos e idosos convidados por Janet agindo de forma cada vez mais inconsequente, voltando a essência da adolescência que cabe em suas ações, é divertido por demais, e apenas por isso a sessão aqui vale a pena – Potter tem um ótimo ritmo narrativo. A ironia e o absurdo de certas situações casa-se perfeitamente bem com o julgamento do personagem de Spall, sempre em sua poltrona e que começa a ser interrogado por suas ações que começa a confessar; um Dionísio arrependido a caminho da cova, fazendo sua esposa se revirar e se morder no túmulo antes dele.

    Contudo, com os préstimos devidos, porque o banal A Festa não decola a ponto de extravasar o ótimo filme que existe, em todo o seu potencial embrionário? Talvez haja uma categoria cinematográfica (e que certamente pode se estender para outras formas de arte) de certas obras que não precisam ser monumentais; nascem e veem a luz de um projeto para serem miniaturas, não grandes estátuas. Não há erro algum nisso, numa bela catarse simplista e produzida para ser assim, por mais que aqui fique na boca um gosto forte de quero mais, e uma sensação suspeita que Potter não soube extrair do seu projeto, sucesso no Festival de Berlim de 2017, nada de fato marcante para se destacar entre tantos outros murais sobre as relações humanas que nos guiam, rumo ao céu, rumo ao inferno que está nos outros. Não só nos outros.

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  • Crítica | Acertando O Passo

    Crítica | Acertando O Passo

    Comédia leve, Acertando o Passo mostra Sandra Abbott (Imelda Staunton), uma mulher casada com o mesmo homem por quarenta anos. Em uma festividade, ela por acaso descobre que ele a trai com sua melhor amiga por cinco anos, e isso a faz mergulhar em um estado profundo de melancolia. Apesar dessas condições, esse realmente é um filme com caráter positivo e que mira um astral alto para seu espectador.

    Richard Loncraine recentemente fez Ruth e Alex, um filme que reflete sobre pessoas de idade mais avançada, assim como também fez Wimbledon: O Jogo do Amor, uma comedia romântica que usa a temática do tênis em alto nível. Seu exercício aqui é o de mostrar uma mulher em reinvenção, que frequenta aulas de dança com sua irmã atrás de um novo motivo para sorrir, tendo atenção à época em que fazia ballet, no passado, quando podia dizer que era feliz.

    Os momentos agridoces são cortados por recusas de Sandra em se reinventar, ou ao menos se deixar levar pelos sentimentos inerentes a perda de uma relação, como foi com ela. O fato dela ter um título portentoso, dado a consorte de seu antigo marido não justificaria sequer essa atitude de arrogância. No entanto o que mais irrita no filme é que ele é longo demais para apresentar questões que seriam muito facilmente resolvidas, além do fato de que coadjuvantes como Charlie (Timothy Spall), que possui um plano de fundo bem mais carismático e sedutor aos olhos do espectador do que a história da protagonista e de seus parentes.

    O fim do filme tenta consertar essa problemática, fato que faz tudo soar muito corrido, e em se tratando de uma mudança radical de uma personagem que tenciona parecer real, isso é complicado, mesmo com o trauma de uma outra perda. Há pouco o que se salvar em Acertando o Passo, que mais parece um filme de Sessão da Tarde feito em 2018.

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  • Crítica | Negação

    Crítica | Negação

    Dirigido por Mick Jackson e adaptado para o cinema pelo escritor David Hare, baseado no livro Negação (History on Trial: My Day in Court with a Holocaust Denier), o filme conta o embate legal entre Deborah E. Lipstadt (Rachel Weisz) e David Irving (Timothy Spall). Irving acusou Lipstadt – assim como a editora britânica da autora, Penguin Books – de difamação por denegrir seu trabalho acadêmico de negação do Holocausto. Diferente da maioria dos países, em que cabe ao querelante provar sua acusação, no sistema legal britânico, não há presunção de inocência, recaindo o ônus da prova sobre o acusado. Sendo assim, cabia à equipe de advogados contratados pela Penguin – encabeçada por Richard Rampton (Tom Wilkinson) e Anthony Julius (Andrew Scott) – provar que a queixa de Irving era infundada.

    Irving, sendo um estudioso da Segunda Grande Guerra e principalmente de Hitler, acusou Lipstad de ter afirmado que ele manipulara e distorcera evidências a fim de isentar o Reich e, por conseguinte, Hitler de ter matado judeus deliberadamente. Enquanto a maioria de nós, leigos, ou melhor, não-advogados pensaria que o melhor argumento seria confirmar a ocorrência do Holocausto, os advogados de defesa optaram, sabiamente, por combater a difamação que Irving dizia ter sofrido. Deborah deixa claro que sua intenção era reafirmar o Holocausto, dando voz aos sobreviventes e aos que pereceram nos campos de concentração. Contudo, os advogados a convencem, muito a contragosto, de que a estratégia planejada por eles era a melhor opção. E, ao final, do julgamento, em um veredito de trezentas e poucas páginas, o juiz Charles Gray (Alex Jennings), dá ganho de causa à defesa por ter efetivamente provado que Irving, sim, distorcera evidências a fim de defender seus pontos de vista e que, portanto, o que Lipstad dissera não configurava difamação.

    A história, em si, é bastante direta. O que chama a atenção são as questões suscitadas pelo evento. Como é possível que existam pessoas capazes de colocar em dúvida um evento histórico dessa magnitude? Simplesmente por não haver fotos que o comprovem, como diz Lipstad a seus alunos? O quão fácil é distorcer a verdade, usando apenas palavras, falácias e argumentos tendenciosos?

    É o trecho de Denying the Holocaust: the Growing Assault on Truth and Memory, em que Lipstad descreve os métodos de Irving, que ele usou para acusá-la:

    “Irving é um dos mais perigosos porta-vozes do negacionismo do Holocausto. Conhecedor da evidência histórica, ele a distorce até que ela se adapte a suas inclinações ideológicas e objetivos políticos. Um homem convencido de que o grande declínio da Grã-Bretanha foi acelerado pela decisão de entrar em guerra contra a Alemanha, ele é muito hábil em pegar informações corretas e moldá-las para confirmar suas próprias conclusões. Uma resenha de seu recente livro, Churchill’s War, publicada no New York Review of Books, analisa corretamente sua prática de tratar as evidências de forma parcial. Ele exige “prova documental absoluta” quando o assunto é provar a culpa dos alemães, mas se baseia em evidências altamente circunstanciais para condenar os Aliados. Essa é uma descrição correta não apenas das táticas de Irving, mas das dos negacionistas em geral”.
    (p.181)

    Conciso, de abordagem simples, trata o assunto de forma direta, sem floreios ou melodramas desnecessários. E, apesar de parecer muito um telefilme, tem aquele “quê” a mais que faz o espectador continuar pensando a respeito das questões levantadas durante a exibição do longa-metragem. Ainda que em termos de produção, o filme não possua nada de excepcional, além de seu elenco, Negação se mostra um daqueles filmes importantes e necessários em nossos tempos.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Mr. Turner

    Crítica | Mr. Turner

    mr. turner

    O Cinema está muito mais para a cozinha que para a pintura. É que assistir a um filme e analisá-lo remete, muito mais, ao exercício gourmet que as pinceladas e ao mero observar de um painel, até porque só observar Era Uma Vez no Oeste, por exemplo, não é o bastante: É preciso degustar a obra de Sergio Leone, aliás sua filmografia inteira se possível. Mas e o fazer Cinema? Nisso, talvez, seja possível juntar as duas artes. Cinema é tempero, é ponto certo, ou ponto propositalmente errado, pode ser ebulição, mas também é cor, é visual, é harmonia pictórica e o escambau. Tudo junto e misturado, no que compete aos grandes filmes, mas não no caso de Mr. Turner.

    O filme de Mike Leigh é de uma beleza acachapante, tanto que é possível até sentir o cheiro de uma direção de arte e belezas naturais que explodem na tela. Mas se o Van Gogh de Robert Altman se assemelha ao valor estético de uma obra do genial pintor dos girassóis, o filme de Leigh, no erro de separar o homem do seu ofício, não consegue se apropriar ou sequer plagiar a graça de A Erupção do Vesúvio, de 1817, um dos quadros mais célebres de um grande artista. Grande demais para ser estudado a partir do homem, e não da riqueza que se esconde por trás da obra.

    Quando Timothy Spall, soberbo e vencedor de Cannes pelo papel, olha pela janela de seu ateliê quente e terminal, em busca d’um raio de inspiração, a cena sintetiza, por ironia, a maior deficiência do filme: A incapacidade de olhar para dentro de si mesmo, do que comandava as mãos daquele pintor, e apontar a direção certa para o degustar de uma cinebiografia insegura, com muito para dizer, mas que se apoia mais na dialética não-crítica do mostrar. É o exato oposto de filmes como Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, que, por mais interesses que carregava, falou mais do que mostrou, e também naufragou, feito outro dos quadros de Turner. Cinema é equilíbrio.

    Já a encarnação de Van Gogh por Maurice Pialat, em 1991, seja, talvez, o melhor “filme de pintor”. Acontece num espaço-tempo quando uma leve fidelidade aos fatos reais encontra uma condução perfeita, sem agressividades de nenhum tipo às vericidades do que é original, a fim de realçar tons e dar a outros um caráter mais abstrato, inclusive libertino. O bom gosto jamais é afetado pela vida inquieta do artista, mas pela interpretação livre tanto do homem quanto do seu ambiente – um trabalho europeu dos mais eloquentes, na razão de que qualquer arte submetida ao Cinema é naturalmente subvertida a sétima-arte, dado o poder de uma câmera diante de pincéis ou instrumentos musicais.

    O filme de 2014 muitas vezes não resiste e entrega quadros em movimentos, tamanho o espetáculo dos planos guiando-nos por uma visita ao museu das vaidades. Sim, pois é triste ver como Leigh deixa suas presunções dominarem momentos onde a liberdade criativa confunde-se com a ostentação de um cineasta já experiente, inclusive de suas manias, mas que deixa o filme à mercê de suas pompas e outros vícios. Cineasta ama brincar de Deus, e Mr. Turner não tem tempo pra transar; ele precisa criar e pintar quem está na cama o esperando; o mesmo diz-se de Leigh: não há tempo oportuno para cozinhar propostas na exposição de uma vida bem vivida. O diretor de Segredos e Mentiras é rápido e foca no icônico, e quando gira sua câmera ao coração e às artérias do artista, o filme perde totalmente seu fôlego. Foca tanto no expôr, de novo e de novo, que esquece o sugerir, o caro e valioso elemento do “pode ser”. E do jeito que foi feito para ser, Mr. Turner só não é um filme acadêmico dos mais caros porque Leigh, sabiamente, deixa Turner falar mais do que fala por ele.

    Eis a maior qualidade de uma cinebiografia, bem representada aqui. Seja como for, a meia hora final é como assistir, em slow motion, a alguém jogar baldes de leite em quadros de cores quentes. Nada se decompõe, mas a percepção emocional do “quadro geral” avisa-nos que, no contraste com a vida do pintor, não há muita energia restante na linguagem perto do fim. Estimular percepções é trabalho de mestre, triunfo que artistas do nível de Leigh ou do pintor britânico já atingiram, sem comparações de habilidade, mas pelo tempo de serviço, cada um em sua arte, cada um na sua época. O Cinema deve muito a Pintura, em especial ao pós-impressionismo de Gogh e Cézanne, mas pelo que de mais imensurável habite os painéis (nada gratuitos nas intenções) do nosso conturbado William (e que de fato se esconde), o visualmente belo Mr. Turner, tal várias teorias de comunicação e o cubismo cafona de Romero Britto, já nasceu ultrapassado.