Crítica | Os Últimos Cangaceiros
Em 1973, Orson Welles, de Cidadão Kane e Tudo é Brasil, lançou Verdades e Mentiras, filme-documentário onde o real e a ficção se confundem, culminando numa linguagem famosa no Cinema, a metalinguagem, que é quando a arte fala consiga mesma. Brinca, abraça e repudia seus próprios traços. Um exemplo explicado disso está num dos depoimentos de Peões, clássico de Eduardo Coutinho, onde um dos funcionários da Volkswagen, discursando sobre a empresa, aponta que quanto mais antiga a história é, mais fácil é pra convencer o outro, podendo até projetar contornos épicos, afinal, quem conta um conto aumenta um ponto. Se é malandragem ou esquizofrenia, esse papo de misturar mentira com verdade, quem garantia até 2011 que o bando de Lampião ainda tem descendentes vivos? É isso que foram investigar – e filmar.
Hoje, falar de Lampião é falar de um mito, de Caipora e Boitatá. Sua história virou símbolo e hoje não passa disso, ícone imortal do nordeste brasileiro, lenda nessa e noutras bandas. A saber que quem fazia as estrelas de seu mítico chapéu, em forma de pastel de flango, era o próprio, e que o perfume que cheirava vinha de sua parceira, unida ao cabra por opção e fiel até a morte, Maria Bonita, são duas das curiosidades divertidas de Os Últimos Cangaceiros, a versão documentada e não encenada do clássico O Cangaceiro, filme-fantasia do mesmo cangaço lendário e aventureiro, palco de amores e horrores, cuja essência e registros reais do grupo de Lampião, sempre com sua protegida, o filme de Wolney Oliveira impõe com orgulho e satisfação, tratando quem a fama é reconhecida do Oiapoque ao Chuí, como grande figura nacional. O que acaba sendo, deveras.
Assistir as reinações da “geração Lampião”, hoje um bando de idosos, é como ouvir no tapete da sala os contos da avó sobre uma vida inteira, vida regada a bala, correria e triunfo para poucos sortudos. Naquela aridez toda, somos convidados a andar com os filhos daquela miséria de Ariano Suassuna, Graciliano Ramos e letra de cordel, carência combatida a ferro e revolta no sangue quente da região. Nas graças do comentário é que Lampião e seus seguidores são reconstruídos, em forma e atitude, com base nos relatos que não encontram contradição, construindo um mural sobre um passado representado, que fez e faz parte de um Brasil ainda recente, de Rocha, Candeias e Nelson Pereira dos Santos, sendo jamais esquecido ou posto de lado. Difícil mesmo é não se emocionar com certas cenas, como o reencontro na velhice de duas sortudas, sobreviventes do sertão, com o tempo marcado na pele de algodão, de rugas. “Tô tão magrinha… cadê aquele bração que eu tinha? Acabou.”
Lampião era cheiroso, sim sinhô, tanto quanto descendente. Filho do país das hipocrisias, fez da sua história rastro dos fins que justificam os meios. Ainda de acordo com um pesquisador, presente em seu discurso na obra, não há grupo social cujo traje rivaliza com o do cangaceiro, dono das veredas que inspiram seu bem-viver, mas cuja vilania não condiz com a fama, e sim sua resistência. Cangaceiro era resistente, vaso que trinca mas não quebra, enfim suportado, em especial, pelo instinto de sobreviver e o olho do urubu que à maioria fez comida, e os que não fez, se reúnem na tela e tornam Os Últimos Cangaceiros um dos manifestos sobre um período do estado brasileiro (a lenda tem contexto histórico) e sobre o mito. Símbolos do Brasil, mais que heróis e mais que vilões, e tão reais quanto a seca, seus feitos, no pesar das verdades trazidas à tona com grande consciência, sem antônimos, afinal, para atingir a essência da realidade que não mudou tanto, de lá para cá.