Em 2018, um número considerável de denuncias surgiram contra a figura de João Teixeira, o médium que fazia operações sem anestesia sob o pretexto de estar incorporado por um espírito. O sujeito que usava a alcunha de João de Deus e que tinha sua base na pequena cidade de Abadiânia no estado de Goiás obviamente negou tudo e, aos poucos, as denúncias se avolumaram contra ele, ao ponto de ser preso e, além disso, acusado de ocultamento de armas nos terrenos onde ocorriam os seus cultos. Em Nome de Deus mira a desmistificação da figura de João, investigando mais crimes cometidos pelo sujeito e dando voz as pessoas que o denunciaram.
A série documental em seis episódios possui um ritmo e formato que imitam as séries documentais de sucesso mais recentemente: A Máfia do Tigre, Wild Wild Country e OJ: Made in America. Seu início estrutura vozes em off, de mulheres com sotaques diferentes, algumas em português e outras em inglês, afirmando certo incômodo ao chegarem na cidade em que João realizava seus cultos, quase um prenúncio do que ocorreria a cada uma delas.
Não demora a aparecer a figura de análise, João de Deus, tão próximo da câmera que a embaça. O homem que muitos julgavam ser a reencarnação de Jesus Cristo tem uma presença pacífica, é amigo de gente famosa e importante, tanto que foi motivo de um documentário – João de Deus – O Silencio é Uma Prece de Candé Salles – e quase foi biografado em longa metragem. Sua postura e comportamento o deixam em uma posição de tanta perfeição que se torna difícil imaginar um sujeito daquela idade, idolatrado, sendo capaz de assediar e vilipendiar tantas pessoas. O poder blindava João. Estranho que um homem autointitulado como canalizador da fé tivesse capangas e tanta intimidação, além de contato com gente de garimpo e outras pessoas em ilegalidades.
A produção é uma parceria entre o Canal Brasil e a Globoplay com argumento de Pedro Bial que co-apresenta o documentário junto a roteirista Camila Appel. Dirigido por Monica Almeida, Gian Carlo Bellotti e Ricardo Calil, os episódios são cuidadosamente pensados e montados para revelar os segredos de maneira vagarosa, sempre terminando cada episódio de maneira a causar curiosidade no público. Não fosse a temática pesada e os relatos tão pessoais seria fácil maratonar os capítulos em uma noite livre.
Bial traça um perfil sobre Teixeira, mostra sua proximidade tanto de presidentes, como Lula e Michel Temer, quanto de grandes celebridades como Oprah Winfrey. O projeto inicial seria uma simples entrevista do médium para o Programa do Bial, mas o apresentador desistiu de ir até Goiás para conversar com o curandeiro. A descoberta dos casos de assédio ganhou corpo quando Appel entrou em contato com a coreografa holandesa Zahira Mous que, depois de muito pensar, expôs sua própria historia, virando alvo de especulações sobre sua vida sexual após vociferar contra o sujeito que a agrediu. A postura da figura publica e de assessores ou advogados foi sempre negar quaisquer denuncias, tanto a de Zahira quanto as posteriores que se avolumaram após a aparição da holandesa no programa de entrevistas da Rede Globo.
No estúdio do programa, as vítimas se reuniram para compartilharem seus casos. Até mesmo uma de suas filhas o acusa de abuso em tenra idade. A descrição pura e simples desse fato pode parecer sensacionalista mas se trata de uma visão injusta. Mesmo os depoimentos de pessoas próximas, como os políticos de Abadiânia, ou de pessoas midiáticas como a apresentadora Xuxa Meneghel são extremamente discretos. Os fatos se sobrepõem a qualquer caráter fantasioso ou especulativo. São bem plausíveis e, de certa forma, influenciam em sua culpabilidade. Afinal, movimentar R$ 34 milhões após mais de cem denúncias soa suspeito. Assim como uma rápida fuga para um aeroporto de Anápolis, cidade onde Teixeira parece exercer influência.
De todos os relatos, é o de sua filha mais velha, Dalva, e seus filhos (os netos de João) o mais assustador. Desde o início se estabelece que o médium não era um santo, e sim um homem obsessivo, manipulador, que em alguns pontos se valia da condição de um homem místico para exercer influência. Coagir pessoas era comum mesmo entre as pessoas de sua família. João era um homem poderoso ciente de seu poder.
É assustador perceber como, a partir das denúncias, tantos outros crimes foram descobertos. João fez de Abadiânia o eldorado da pseudo medicina. Aos poucos são mostrados pequenos negócios locais sofrendo cobranças quase mafiosas por parte de seus capangas. Há até mesmo uma acusação de contrabando de urânio. Tudo tão bizarro que soa irreal. Além disso, qualquer pessoa que tentasse denunciar seu charlatanismo era rapidamente calado, por violência ou ameaça.
A série também traça críticas aos métodos de higiene do sujeito, colhendo depoimentos de médicos famosos, e de inúmeros médiuns que citaram o Dr. Fritz, médico alemão cujo espírito, supostamente, incorporou-se em diversos psíquicos brasileiros. O material jornalístico é muito acurado, traça um perfil quase enciclopédico da figura, trazendo respostas que João negava. Muitas de suas falas em cena serviriam como um banquete para um diagnostico de psicopatia. O documentário também reconstrói sua trajetória, desde a perseguição que sofreu das juntas médicas nos anos 70, até a sugestão para ir até Abadiânia. São mostradas algumas entrevistas televisivas que ajudaram a fortifica-lo como uma figura querida pelos famosos.
Appel é muito assertiva nas acusações e na exposição dos fatos investigados, trazendo verdade ao documentário. Há em sua expressão uma vontade de mostrar o quanto tudo é agressivo e real, um contraste significativo com a fé que as maiorias dos fiéis tinham ao se aproximar da casa Dom Inácio. A coragem em expor tais questões é enorme, tanto da vítima quanto da produção que foi pioneira em apontar algo de podre naquele império místico. Nem mesmo ao se expandir para a América do Norte e Austrália, o império foi alvo de críticas tão vorazes, que dirá de autoridades de justiça.
A edição é bem cuidadosa ao mostrar diversos motivos para sentir repulsa por quem foi e o que fez João Teixeira. Os momentos finais de Em Nome de Deus variam entre o atual, refletindo sobre a prisão domiciliar de João, e o famigerado direito de resposta do médium que, em Maio de 2020, entrou em contato com a produção do Programa do Bial para dar a sua versão dos fatos, ainda que sem oficializar uma data. Todo o trabalho de pesquisa não precisa depender da boa vontade do réu em apresentar sua defesa e a produção acerta em cheio ao investigar tudo em detalhes. O trabalho jornalístico e detetivesco é acompanhado de uma estética e um ritmo bem orquestrados, fazendo deste especial um objeto potente, tornando-se ainda mais importante ao falar de uma figura pública com tanto contato com poderoso e que ainda, infelizmente, se mantém poderoso mesmo que famigerado.