Autor: Dan Cruz

  • Resenha | As Tiras Clássicas do Pelezinho – Vol. 1

    Resenha | As Tiras Clássicas do Pelezinho – Vol. 1

    Em agosto de 2012 a editora Panini lançou As Tiras Clássicas do Pelezinho – Vol. 1, seguindo o mesmo formato de livros em que publicou as primeiras historinhas da Turma da Mônica quatro anos antes. No mesmo mês, as bancas brasileiras veriam a revista As Melhores Histórias do Pelezinho, republicando mensalmente conteúdo publicado 40 anos antes pela Editora Abril. A proximidade com a Copa do Mundo de 2014, sediada no Brasil, pode ter sido o motivo para que Pelezinho – a adaptação para os quadrinhos do mais famoso jogador de futebol do mundo –  voltasse dos anos 70 em pleno século 21!

    Mas antes de falar sobre a edição em si, vamos tirar o elefante da sala de estar: muito conteúdo desse material seria impensável nos dias de hoje, por conter elementos hoje considerados politicamente incorretos e estereótipos racistas e sexistas. Não que as histórias sejam preconceituosas em si, mas tanto a representação do personagem principal quanto dos seus amigos coadjuvantes negros, estão hoje bastante datados e podem soar até mesmo ofensivos. Logo na primeira página de quadrinhos vemos a expressão “a conversa ainda não chegou na cozinha”. Em outras tirinhas, piadas com os lábios de personagens negros, com meninas que não entendem de futebol, crianças falando palavrões, pessoas armadas, e gags baseadas em características físicas dos personagens (baixinho, gordo, etc.). A própria representação do rosto do personagem Pelezinho – sem nariz e com um círculo ao redor da boca para representar lábios grossos – foi abolida pela Mauricio de Sousa Produções a partir de dezembro de 2013, quando essas características foram redesenhadas nas republicações. Mas é importante lembrar que essas tirinhas são produtos de uma época e, mesmo apresentando tais estereótipos, foi significativo por ter em bancas durante muito tempo histórias em quadrinhos com um protagonista negro (ainda que Pelezinho e sua turma não interagissem com os personagens de Mauricio do Bairro do Limoeiro). Ressalte-se que, ao fim da edição existe um trabalho de contextualização. Dito isso, sigamos para a análise das histórias.

    Pelezinho é retratado como um garoto de sete anos que ama futebol e tem um chute muito potente. É interessante notar o quanto o tema futebol é abrangente o suficiente para se fazer diversas tirinhas humorísticas sem se tornar algo cansativo. Mesmo com a repetição de situações (recurso comum no humor), cada tirinha tem seu jeito peculiar, sua graça, sua beleza e leveza. Pelezinho comemora seus gols (e de outros jogadores, quando ouve a narração em um radinho de pilha colado ao ouvido) com seu famoso pulinho socando o ar. Esse simples gesto gera várias piadas, nas quais o pulo alça cada vez maiores alturas, ou o “soquinho” no ar acerta algo inadivertidamente. O mesmo vale para seus poderosos chutes, que quebram não apenas vidraças, mas muros, paredes, e derrubam até aviões! O chute do Pelé (como ele é chamado nas primeiras tiras, com o tempo mudando para o diminutivo) rivaliza em potência com uma coelhada da Mônica!

    O elenco coadjuvante vai, aos poucos, demonstrando suas características e, lá pelo meio do volume, já sabemos o que esperar de cada um. Frangão, um garoto mais alto e magro que o resto da turma, é o goleiro que nunca consegue segurar uma bola chutada por Pelezinho, e vez por outra é também o árbitro das partidas. Cana Braba é o garoto rústico e um tanto lento para entender as coisas ao seu redor, que fala muito palavrão e leva tudo ao pé da letra. A voluptuosa Bonga é uma garota com corpo um tanto desenvolvido para a sua idade, que chama a atenção dos meninos do bairro com sua aparência sem perceber. Rex é o cachorro semi-antropomórfico e um dos poucos personagens cujas histórias se permitem fugir do tema futebol (geralmente caindo no cliché do cão que foge da carrocinha).

    As tirinhas não apresentam data de publicação, mas é possível perceber a evolução do traço dos personagens, que começam com as famosas bochechas “pontudas” e passam a ter traços mais arredondados ao fim do volume. É possível perceber, perto do fim, a contribuição de diferentes desenhistas – principalmente nas tirinhas que apresentam personagens mais “fofinhos” e com tomadas de cena em ângulos diferentes, típicos do final dos anos 70. Infelizmente, à época da publicação, a MSP não creditava seus artistas em cada história como tem sido feito hoje em dia nas revistas mensais. O prefácio é escrito pelo próprio Pelé, e conta como foi se tornar um personagem de quadrinhos na época. Além disso, há notas explicativas ao fim do volume (poucas, mas necessárias).

    As Tiras Clássicas do Pelezinho é um ótimo material, mas pode precisar de alguma contextualização, principalmente para os leitores mais jovens. Afinal, existem gírias e expressões de sua época, bem como termos e jargões do futebol – e da “pelada” de rua – que podem soar estranhas hoje em dia. Os diálogos foram reeditados para as normas atuais da língua portuguesa, e o trabalho de diagramação não deixa nada a desejar. O álbum tem potencial para agradar fãs de quadrinhos e de futebol de todas as idades!

    Compre: As Tiras Clássicas do Pelezinho – Vol. 1.

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  • Resenha | Universo DC Renascimento: Aquaman – Volume 1

    Resenha | Universo DC Renascimento: Aquaman – Volume 1

    Após o conturbado reboot do Universo DC batizado de Novos 52, a editora das lendas iniciou uma nova empreitada para corrigir desvios que ocorreram no meio do caminho e trazer de volta o clima heroico das histórias de seus personagens. Assim surgiu a linha Universo DC: Renascimento (cuja análise dos primeiros números você pode ler aqui e aqui), trazendo novos ares para os principais personagens da casa sem, contudo, reiniciar tudo novamente. Novas séries mensais foram lançadas para trazer de volta os leitores que se afastaram nos cinco anos de Novos 52. Aqui no Brasil, a editora Panini concentrou suas publicações mensais nos títulos do Batman e do Superman (cada um tendo, agora, dois títulos mensais com a metade do conteúdo das revistas anteriores), enquanto outros personagens tiveram suas histórias lançadas em encadernados contendo o correspondente a seis ou sete edições americanas. É o caso de Aquaman: Volume 01, que traz a primeira parte do arco O afogamento, de Dan Abnett.

    Aquaman – ou Arthur Curry – é retratado como rei de Atlântida nesse arco, onde vemos ressaltado o seu lado outsider em todos os sentidos: os seres da superfície o temem, os atlantes nutrem certa desconfiança e seus colegas da Liga da Justiça não lhe dão o devido valor (“E nem mesmo os peixes falam com ele”, diria o narrador da primeira história). Apesar disso, tenta exercer seu poder monárquico de forma diplomática ao estreitar os laços com o governo dos Estados Unidos, fundando uma embaixada atlante em solo americano. Claro que a desconfiança do governo norte-americano com as intenções do soberano dos mares (unida a um atentado terrorista na embaixada) não iria deixar que a diplomacia de Curry durasse muito tempo. Aquaman se vê em meio a um incidente diplomático de proporções épicas, que pode levar a uma terrível guerra.

    Abnett não foge das questões políticas na história, inclusive retratando o governo americano de forma bastante cínica e prepotente. As histórias anteriores ao Renascimento ainda valem, mas é possível entender a edição sem ter lido a fase anterior – afinal, é feita para ser um novo ponto de início para novos leitores. Toda informação relevante sobre os últimos cinco anos de cronologia é didaticamente explicado, seja em diálogos (como a “catástrofe de 2013”, da saga O trono de Atlântida) ou em flashbacks (como a questão da rivalidade entre Aquaman e Arraia Negra). O relacionamento de Arthur e Mera é um dos pontos fortes do arco: ambos se vêem como iguais, se amam, e ainda assim mantém diferenças políticas na forma de resolver os conflitos.

    Claro que uma ou outra piada de peixe surge aqui e ali, mas no momento certo, sem exageros e, principalmente, sem desmerecer o protagonista. Aquaman é um verdadeiro herói, páreo até mesmo para o Superman (que faz uma ponta necessária no enredo) e sua obstinação em unir seus dois mundos é o mote da hq. A edição da Panini segue os moldes da reedição encadernada americana, e contém apenas a primeira parte do arco – que continua no volume 02. A história tem envergadura o suficiente para segurar um possível título mensal do herói, caso sua popularidade cresça no país com o lançamento de seu filme solo no fim do ano. Enquanto isso, podemos esperar por mais encadernados de periodicidade eventual como esse, que faz justiça ao super-herói mais ridicularizado pelos bazingueiros nos últimos tempos (e pela própria Warner, com as recorrentes piadas em The Big Bang Theory).

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  • Crítica | Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas

    Crítica | Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas

    A história do psicólogo, professor, inventor e autor de quadrinhos Willian Moulton Marson é contada de forma romantizada na cinebiografia Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas. Dirigido por Angela Robinson, o filme apresenta os bastidores das duas criações máximas de Marson (interpretado por Luke Evans, muito à vontade no papel): o polígrafo, conhecido como “detector de mentiras” e a super-heroína Mulher-Maravilha.

    O filme se inicia com uma cena um tanto chocante para fãs de quadrinhos, uma fogueira onde revistas de super-heróis são queimadas. Essa cena não foi colocada no início do filme de forma aleatória. Ao contrário, foi uma excelente escolha que permearia toda a proposta narrativa do filme, que é a de confrontar autor e obra, misturando elementos da vida pessoal de Marston com aquilo que ele expressava em suas histórias em quadrinhos.

    Professor Marston leciona com sua esposa em uma conceituada universidade norte-americana e vê sua vida virar de cabeça pra baixo quando se envolve, junto a sua esposa Elizabeth (Rebecca Hall, excelente no papel), em um relacionamento polígamo com sua aluna Olive Byrne (Bella Heathcote). Em uma trama leve, vemos um tema polêmico se desenvolvendo de forma natural, transformando os defensores da “moral e bons costumes” em vilões, mas sem aprofundar muito no assunto. Robinson parece querer nos prender mais à história em si do que criar polêmicas, tratando tanto a poligamia quando o interesse do protagonista em bondage e sado-masoquismo como algo corriqueiro, apenas criticado por pessoas mesquinhas e hipócritas.

    A história é contada em flashbacks, que se alternam com cenas de um interrogatório no qual Marston explica a agentes do governo sua teoria DISC (na qual a submissão seria um importante fator nos relacionamentos) e porquê decidiu incluí-la em suas histórias em quadrinhos. Os gibis da Mulher-Maravilha, no início, eram recheados de conceitos feministas, mas misturados com mitologia grega (considerada “pagã” para o público mais conservador) e muito, muito soft porn! Por mais forte que a heroína fosse, em toda edição ela aparecia amarrada ou em poses eróticas de submissão, que refletiam o interesse do autor pela prática de BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo).

    A princípio, a vida de Marston com suas duas mulheres (que dividiam o mesmo teto com os filhos que ele teve com ambas) soa como o sonho de ménage a trois de um homem machista, ainda que não deixe de assumir seus próprios desejos, entretanto, durante o desenvolvimento vemos exatamente o contrário, um filme sobre sobre libertação feminina, transparência e bissexualidade, com uma certa dose fetichista. Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas é, afinal de contas, menos sobre seu protagonista e mais sobre as incríveis mulheres que o rodeavam.

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  • Crítica | O Conto de Natal do Mickey

    Crítica | O Conto de Natal do Mickey

    O Conto de Natal do Mickey, também conhecido como A Canção de Natal do MickeyO Natal do Mickey Mouse, foi um marco nas animações Disney nos anos 1980. O curta-metragem produzido e dirigido por Burny Mattinson, marca o retorno do camundongo às telas em 1983, após 30 anos de hiato. Mattinson, que coincidentemente havia começado a trabalhar com animações na Disney exatamente quando o último desenho do Mickey foi lançado, não podia estar mais empolgado com a empreitada que lhe foi confiada.

    Assim, escolheu a dedo um time de animadores de forma com que cada um se sentisse o mais confortável possível com o personagem ao qual iria dar vida no celuloide. Da mesma forma, o elenco vocal original contou com a presença de uma equipe que já tinha trabalhado em uma versão de Um Conto de Natal, de Charles Dickens, em um LP dez anos antes. Para a voz do personagem principal, Ebenezer Scrooge (encarnado pelo Tio Patinhas), Alan Young foi o escolhido e sua interpretação foi tão acertada que, poucos anos mais tarde, reprisou o papel do Pato Mais Rico do Mundo na série animada Duck Tales (e em 2013, no videogame Duck Tales Remastered). Young consegue captar soberbamente os contrastes de personalidade de Scrooge/Patinhas, tanto sua avareza quanto, ao final, sua conversão, além de imitar o sotaque escocês de forma natural. No Brasil, Ebenezer Scrooge foi também brilhantemente dublado pelo veterano Isaac Bardavid, a voz do Wolverine nos cinemas.

    Se o clássico de Dickens tinha como óbvia a escolha de Patinhas McPato para representar Ebenezer Scrooge (inclusive, seu nome original “Uncle Scrooge” o referencia), para interpretar Bob Cratchit ninguém seria melhor indicado do que o próprio Mickey Mouse. Para tanto, o técnico de som Wayne Allwine foi escalado e se tornou a terceira pessoa a interpretar o camundongo (o primeiro, de 1928 a 1946, tinha sido o próprio Walt Disney), e continuou como a voz de Mickey até sua morte, em 2009. A personalidade de Mickey se manteve fiel ao que ele sempre foi, mesmo 30 anos depois: pacato e carismático, e um tanto quanto modesto. Um personagem adorável, que mesmo com todos os problemas que enfrenta na vida se mantém otimista e confiante em um futuro melhor. Cratchit trabalha duro, sendo subserviente ao seu inescrupuloso patrão, para sustentar sua mulher e três filhos, sendo o mais novo, Timmy, muito doente.

    A história, como no clássico conto, gira em torno de Ebenezer e sua avareza se confrontando com os espíritos dos natais passado, presente e futuro. Scrooge demonstra prazer em enriquecer de forma ilícita, e tem momentos de pura crueldade, como quando, no passado, executou a hipoteca da própria noiva. O sovina recebe a primeira visita do além quando o fantasma de seu falecido sócio Jacob Marley surge para alertá-lo do que o espera no pós-vida. Marley, “interpretado” pelo atrapalhado Pateta, tinha sido em vida ainda mais cruel que seu sócio e, na morte, foi condenado a arrastar correntes pela eternidade “ou até mais”. Pateta/Marley o avisa que receberá a visita de três espíritos ainda nessa noite, véspera de natal, e o deixa aterrorizado.

    O primeiro espírito, o Fantasma do Natal Passado é interpretado pelo Grilo Falante, e sua introdução traz uma solução visual no mínimo interessante ao vermos uma câmera em primeira pessoa pulando pelo quarto. O fantasma leva Ebenezer Scrooge a revisitar seu passado, desde quando ainda era um jovem tímido, porém promissor, numa cena onde aparece a maior parte das “participações especiais” do curta (incluindo uma rara presença da Vovó Donalda), até sua transformação em um ser detestável e avarento. Contrastando com o grilo, o Fantasma do Natal Presente é representado por Willie, o Gigante de Mickey e o Pé de Feijão (segmento do clássico Como é bom se divertir). O ator vocal Will Ryan procurou manter-se fiel ao personagem, reprisando frases do gigante do curta anterior. Em um momento marcante e bastante sentimental, o gigante mostra para Scrooge como seu empregado Cratchit está passando o natal.

    Alheio à forma como “pessoas normais” vivem, Scrooge mal conseguia imaginar que o salário que pagava a seu empregado não garantiria sequer uma refeição digna. Scrooge se choca mais ainda ao ver o pequeno Timmy, doente e andando com ajuda de muletas, ter sua vida interrompida precocemente. Numa abrupta mudança de cena, vemos a família do camundongo no cemitério, chorando a morte do caçula. Ainda no cemitério, Scrooge vê seu próprio túmulo junto ao Fantasma do Natal Futuro (Bafo de Onça), sendo enterrado solitário, sem família e amigos, e uma clara alusão ao inferno no fundo de sua cova. Ao acordar desesperado, Ebenezer tem então sua conversão, distribuindo dinheiro aos pobres e fazendo a ceia de natal de seu empregado um momento mais feliz, tornando-o seu sócio.

    É possível ver a leveza do personagem de Scrooge ao fim em comparação com o peso que carregava no começo do filme. Até mesmo na forma de andar, antes com as costas arcadas como se carregasse o mundo em seus ombros com todo o peso de seus pecados passados. Em seu despertar, o peso das costas se esvai e Ebenezer fica visivelmente mais leve e, consequentemente um tanto atrapalhado com a súbita mudança, porém uma pessoa mais feliz e altruísta. Talvez a noção cristã de pecado e remissão esteja presente nesse momento, mesmo não se falando em momento algum sobre religião. O natal, nos desenhos Disney, não é exatamente uma data cristã, mas um momento de celebrar com a família e amigos, de desejar paz na Terra a todos, e assim é o final desse desenho, otimista e reconfortante, agradando crianças e adultos igualmente e principalmente nos fazendo refletir junto ao Tio Patinhas sobre nossos atos e nossos anseios para o futuro.

    Se Um Conto de Natal já foi adaptada para todos os meios possíveis, de peças teatrais a longa animado em computação gráfica, passando por novelas radiofônicas e inúmeras sátiras, O Conto de Natal do Mickey é uma das versões mais acalentadoras do conto de Dickens. A produção prima tanto pela qualidade da animação quanto trilha sonora e interpretações vocais, além de colocar personagens consagrados interpretando outros igualmente atemporais. Um clássico que honra as produções Disney anteriores e deixa um legado para as que vieram depois.

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  • Crítica | Aconteceu no Natal do Mickey

    Crítica | Aconteceu no Natal do Mickey

    Lançado ainda na época do VHS para o mercado de home video mundial em novembro de 1999, Aconteceu no Natal do Mickey logo se tornou um clássico natalino das locadoras. A fita em animação tradicional apresentou três curta-metragens estrelando os personagens clássicos da Disney em contos de natal, não relacionados entre si.

    O primeiro curta apresenta uma história ao estilo “dia da marmota”, na qual Huguinho, Zezinho e Luisinho desejam que todos os dias sejam natal e se veem presos num eterno 25 de dezembro. Os sobrinhos do Pato Donald parecem menos maduros do que suas versões em Duck Tales, de 1987, com suas personalidades assemelhando-se muito aos primeiros curtas em que aparecem. Os garotos aproveitam que já sabem tudo o que vai acontecer durante o dia para aprontar as maiores confusões, principalmente quando o natal diário se torna entediante. Ao fim, como seria de se esperar, aprendem uma grande lição sobre a importância da família. Interessante notar que, na reunião de família, Tio Patinhas surge com um visual mais parecido com sua versão original, com as suíças grisalhas, embora sua personalidade seja muito mais carismática do que o habitual. Também nessa reunião aparece uma tal “Tia Gertie”, que não aparece em mais nenhuma animação ou história em quadrinhos. Seu visual lembra muito a Madame Patilda da série clássica de Duck Tales, embora aparente ter bico de ganso e não de pato – talvez seja do lado da família do Gansolino? – e serve apenas ao propósito da história.

    O segundo curta apresenta Pateta e seu filho Max, em um conto familiar mais intimista, no qual as angústias da infância e as incertezas da vida adulta se chocam. Max, mais novo do que sua versão na série A Turma do Pateta (de 1992), começa a duvidar da existência do Papai Noel quando seu vizinho Bafo de Onça tira suas esperanças de ganhar presentes no natal. Pateta, atrapalhado como sempre, faz de tudo para que esse seja um natal inesquecível, e parece legitimamente acreditar na existência do Bom Velhinho e quer prová-la ao seu rebento a  todo custo ao mesmo tempo que lhe ensina a importância da caridade ao ajudar os menos favorecidos a ter uma ceia de natal. O curta apresenta uma breve aparição dos Irmãos Metralha, além de vários easter eggs do universo Disney.

    O último curta é estrelado pelo Mickey Mouse em pessoa, reprisando mais uma vez o papel de garoto pobre com bom coração. O camundongo pretende presentear sua namorada Minnie, mas toma um duro golpe de seu chefe Bafo de Onça (em sua segunda aparição na coletânea, porém com um visual diferente) e passa todo o episódio tentando arrumar um jeito de comprar uma corrente para o relógio dela. Ao final, mesmo conseguindo comprar a corrente e ganhando também um presente da amada, acaba sendo frustrante. Esse que deveria ser a cereja do bolo da fita acaba sendo o menos inspirado, talvez devido à personalidade insossa do protagonista que, na virada do milênio, ainda não havia encontrado uma maneira de se reinventar.

    Aconteceu no Natal do Mickey não é uma obra-prima como O Natal do Mickey Mouse, de 1983, mas ainda assim diverte e emociona, e pode ser apreciado ainda hoje pelas crianças, que substituíram as locadoras pelos serviços de streamming.

  • Resenha | Pato Donald por Carl Barks: A Cidade Fantasma

    Resenha | Pato Donald por Carl Barks: A Cidade Fantasma

    O quarto volume da série que pretende republicar toda a obra do Homem dos Patos é ao mesmo tempo o maior e o mais fraco que a Editora Abril publicou até agora. Com 252 páginas, Pato Donald por Carl Barks: A Cidade Fantasma corresponde cronologicamente ao volume 15 da coleção, e passa longe da fase de ouro do autor. Embora Barks se mostre muito mais à vontade tanto ao escrever quanto ao desenhar os personagens, algumas soluções de roteiro se mostram muito simplistas e em alguns momentos até mesmo preguiçosas. O traço dos patos está mais simples que nas edições anteriores, e Donald parece mais jovem e menos pesado, com seu bico menos alongado, pescoço mais curto e cabeça mais arredondada.

    As histórias dessa edição são de dezembro de 1953 a junho de 1955, e são mais curtas, sem os grandes épicos das edições anteriores. O foco está mais voltado para o dia a dia do Pato Donald, seus relacionamentos com a família e os vários ofícios que exerce para sobreviver. Embora não apresente histórias épicas, podemos destacar vários clássicos nesse volume, como Puxa-Puxa, que caramelo!, O faz-tudo, e Quem tutu quer, tutu perde. Essa última tem algumas curiosidades, como a aparição de um gato muito parecido com Lúcifer, de Cinderela, ou uma versão meio abobalhada do Professor Pardal bem diferente do que estamos acostumados hoje em dia. Em O preço da glória, Donald cisma que tem o dom cantar e quer participar de um programa de televisão, deixando os sobrinhos enlouquecidos com seus ensaios. Na tradução, todas as músicas cantadas por Donald são da banda Pato Fu, o que soa um tanto quanto anacrônico se lembrarmos da data e país de origem dessa história – talvez o tradutor Marcelo Alencar tenha as inserido para brincar com o nome da banda.

    A história que dá nome ao volume é a primeira a ser apresentada, e é uma ótima peça de comédia que homenageia os filmes de bangue-bangue muito populares à época. Porém, diferente de O Xerife do Vale Balaço, publicada anteriormente na coleção, a história é mais comedida no que se pesa à aventura. Mesmo assim, mostra um Pato Donald decidido a até mesmo pegar em armas para defender sua família de um suposto fantasma! Além de várias outras histórias de dez páginas, vemos duas que foi republicada há pouco tempo, com colorização diferente, no especial Contos de Natal por Carl Barks,  mas que valem a pena serem relidas (Um camelo de graça… é caro e Presentes para todos). Jogo de tênis, gag de uma página só, é um caso curioso: é uma das duas únicas histórias roteirizadas por Barks e desenhada por outro artista (no caso, Tony Strobl). Outro caso curioso é a história Pato Donald fala sobre pipas, que não tem roteiro de Barks e foi distribuída gratuitamente por companhias elétricas para alertar as crianças sobre os perigos de soltar pipas perto de fios e torres de energia.

    Embora não tenha grandes épicos e apresente uma qualidade inferior de roteiro e arte, esse volume ainda assim é bastante divertido e, por conter histórias menores, mais variado que os demais. Vemos um Pato Donald mais humano, um verdadeiro homem comum, que se esforça para atingir seus objetivos mesmo que, muitas vezes, não consiga. Temos, rivalidades, humor  e uma boa dose de inconsequência, além de textos explicativos e excelente qualidade gráfica, que podem agradar tanto o leitor casual quanto o mais exigente colecionador.

    Compre: Pato Donald por Carl Barks – A Cidade Fantasma.

  • Entrevista | Jorge Valpaços, autor de “Pesadelos Terríveis”

    Entrevista | Jorge Valpaços, autor de “Pesadelos Terríveis”

    Jorge Valpaços é o autor de Pesadelos Terríveis, RPG de horror baseado na graphic novel Beladona. O Vortex Cultural conversou com o autor, e falamos sobre seus projetos, o mercado de RPGs e lançamentos futuros.

    Antes de começar, uma dúvida que não me sai da cabeça: por que o título Pesadelos Terríveis, e não apenas Beladona RPG?

    Olá amigos, em primeiro lugar é um prazer trocar ideias com vocês do Vortex Cultural. Muito bom começarmos com essa pergunta. A escolha do título se relaciona ao conceito em torno do projeto, visando ser algo mais amplo que o universo em torno dos quadrinhos. Pesadelos Terríveis trata do universo expandido da HQ Beladona. Em Beladona há a história de Samantha, porém, ao lado da narrativa se constrói um universo ficcional com alguns conceitos-chaves que sustentam a relação com o sobrenatural, sendo possível contar diferentes histórias seguindo as premissas criadas na narrativa de Ana Recalde e Denis Mello. Pesadelos Terríveis (que inclusive é parte da vinheta das primeiras páginas da HQ), encerra enquanto título o conceito de proporcionar histórias em quaisquer cenários, bastando que haja sonhadores, medo, loucura e, obviamente, Pesadelos Terríveis.

    Pesadelos Terríveis não é seu primeiro trabalho com RPG. Conte-nos sobre sua trajetória como game designer.

    Eu integro um grupo de produção de jogos chamado Lampião Game Studio. O primeiro título com publicação editorial foi em parceria com o grande amigo Rafão Araújo, chamado Déloyal. Trata-se de um jogo centrado na experiência de busca pela Liberdade em um território invadido, no qual os jogadores interpretam membros de uma Resistência. Esse jogo foi publicado pela editora Pensamento Coletivo por meio de um financiamento coletivo bem-sucedido. Porém, antes deste título, já esboçava produções em torno de jogos de forma amadora. Paulatinamente, estudei (e ainda estudo) elementos em torno da criação de jogos e me desafio a cada publicação.

    Temos, felizmente, a rotina de criação de diversos títulos, sendo muitos gratuitos sob o selo do Lampião Game Studio. Um elemento que sempre está em minha mente, para além da acessibilidade dos jogos e da clareza ao comunicar a experiência pretendida, é o diálogo com os jogadores, visando incorporar críticas, boas práticas, ouvir o que é proposto e, sobretudo, fornecer material de suporte contínuo aos títulos publicados. Não é em vão que temos aventuras e materiais de apoio para todos os nossos jogos, e isto já se faz presente em Pesadelos Terríveis. Basta acompanhar o blog da Editora Avec e do Lampião Game Studio para baixar estes materiais.

    O que levou à produção de um RPG baseado na graphic novel Beladona?

    Eu sou um fã de quadrinhos de terror e um grande fã das obras da Ana Recalde. Soma-se a isso o traço marcante e inconfundível de Denis Mello. Quando recebi o convite dos autores para produzir o jogo, confesso que houve um misto de euforia e medo, afinal eu não queria estragar tudo. Sim, fiquei bem preocupado no início. Mas foi bom, não é mesmo? Isso me motivou a seguir com muita cautela, buscando fazer o melhor possível. 

    E por jogar RPGs de terror há bastante tempo, tinha de propor algo que fosse simples, adequado a um universo único e que não repetisse a proposta de outros jogos. Foi um pouco complicado o processo, e posso dizer que tive Pesadelos Terríveis criando o jogo (risos). Mas esse desafio foi muito importante para mim, e para repensar a própria relação em torno de produtos culturais nacionais. Temos em Pesadelos Terríveis um incrível ciclo transmídia. Beladona se iniciou como webcomic, houve um financiamento coletivo exitoso, prêmios, adaptação para teatro, mais premiações e um jogo. Tudo isso, com apoio do público e da crítica especializada, demonstrando que iniciativas nacionais, quando feitas com esmero, carinho e atenção, são reconhecidas.

    Como foi o processo criativo durante o desenvolvimento do jogo? Você manteve contato frequente com a Ana (Recalde, autora da graphic novel) e o Denis (Mello, ilustrador)? Eles ajudaram com ideias, trocando de lugar como autores – assim como os Sonhadores do jogo – ou cada um teve seu trabalho bem delimitado?

    O processo foi intenso. Todos nós conversamos bastante durante o processo, havendo feedbacks em cada teste, em cada capítulo que avançava. Foi incrível ter ilustrações novas e exclusivas ao RPG criadas pelo Denis, casando perfeitamente com a proposta do jogo. O mesmo pode ser dito com a produção ficcional da Ana, que narrou comigo o playtest final do jogo, com os apoiadores do financiamento coletivo. A sinergia foi extremamente positiva! Eu trabalhei com toda a equipe, e incluo Vitor Coelho que fez uma diagramação incrível e Artur Vecchi, um excelente editor, nessa trupe!

    Pesadelos Terríveis é um jogo muito mais baseado em narrativa do que regras – tanto que não existe nenhuma tabela para geração de traços, traumas, medos e poderes. Ele também coloca o jogador no lugar do mestre em várias situações. Quais as principais diferenças que o público irá encontrar nele, em relação a outros jogos narrativos?

    Opa, essa é uma questão um pouco complexa. Mas é muito bom abrir a caixa do design. Está sendo uma ótima entrevista, pois é algo muito bacana poder conversar sobre esses temas. Vou tentar explicar com cautela, mas confesso que não é algo muito simples. Vamos nessa?

    Tenho a discordar da afirmação que Pesadelos Terríveis não seja um jogo com um peso sobre suas regras. Na verdade há até um bom número de regras, mas o propósito delas é um tanto distinto do que se apresenta em outros jogos. No lugar de um sucesso em um teste determinar o cumprimento de uma tarefa, ele concede o direito narrativo de encerrar uma Cena. O desenho das regras de Pesadelos Terríveis não se dá no sistema mecânico em torno do lance de dados, mas no método que é proposto para o desencadeamento da narrativa. Podemos dizer que o sistema é todo orientado à condução do fluxo narrativo, gerando suspeição e incerteza aos jogadores, estimulando-os a usar todos os seus recursos para Seguir ou Fugir (como em um Conto de Terror), ainda que isso os exponha aos Medos.

    Uma diferença que se apresenta a outros jogos é a presença de um controlador de fluxo e intensidade da narrativa (os Riscos que são atrelados às Cenas pelo Narrador e ocultados dos jogadores). E, em torno de cada Cena temos uma resolução de Conflitos por meio do acionamento de elementos que atestem a coerência das partes do Conflito em face às intenções propostas. Assim sendo, ao jogar Pesadelos Terríveis, não teremos números nas fichas/planilhas que serão modificadores, mas frases e elementos narrativos que poderão ser utilizados como recursos pelos jogadores. Nesse sentido, a relação entre a personagem com a as intenções propostas pelo jogador (seu ancoramento ficcional), determina a margem de ação em cada Cena enquadrada.

    Ah, e quanto às tabelas pré-construídas de traços, traumas, etc., a ideia é justamente buscar a coerência ficcional ao criar um Sonhador. Como cada protagonista é um alicerce da história de Nosso Mundo (pois trata-se de um jogo de horror pessoal, com enfoque sobrenatural metafórico à psiquê humana), a apresentação de elementos constitutivos de sua existência tornaria a criação de protagonistas despersonalizada, ainda que seja possível tomar um destes elementos como gerador para a história da personagem. Por exemplo, você pode criar uma personagem após consultar uma lista de Medos. E essa lista de Medos é facilmente acessível, sendo um dos materiais de suporte gratuito que disponibilizaremos. 

    Grande parte do horror de Pesadelos Terríveis se dá devido ao contato presencial, olho no olho, entre os jogadores. Com o crescimento das redes sociais e da tecnologia, muitos jogadores de cidades, estados e até países diferentes encontraram meios de jogar de forma não-presencial. Existem planos para levar Beladona para plataformas digitais como o Roll20? É possível manter o clima de horror do jogo em formas não-presenciais?

    O sistema de jogo que faz com que haja Riscos ocultos em cada Cena, a possibilidade da aquisição de Traumas Psicológicos ao usar Poderes e o próprio sistema de progressão (horizontal, baseado em escolhas que podem afundar seu Sonhador em uma espiral de Medo e Loucura) são elementos que tornam a experiência de terror intrínseca ao sistema de jogo, sendo experienciado mesmo em jogos não-presenciais. Durante o processo de desenvolvimento do jogo, foram marcadas sessões não-presenciais com os apoiadores da HQ Beladona justamente para testar esses elementos. O desafio de design era justamente este: muito se fala sobre a questão do “olho no olho” para a criação da experiência de medo em jogos de RPG. Mas isso se deve ao design do jogo ou à performance do condutor do jogo? Criar um jogo que potencialize o temor cada vez que os dados fossem tomados foi uma meta de design, sendo o próprio lance de dados algo que não deveria ser banalizado. Foi justamente por isso que, para além de playtests presenciais, Pesadelos Terríveis foi testado e apurado em jogos apenas por áudio, por áudio e vídeo e até via texto.

    Então, acho que sim, é possível manter o clima de horror em jogos não-presenciais, sobretudo quando houver regras coerentes à proposta, predisposição dos participantes e compreensão pelo Narrador. E sobre levá-lo ao Roll20, uma vez que a planilha é basicamente textual e as paradas de dados são definidas por atalhos simples, já presentes no aplicativo (por exemplo, /roll 2d6k1 seria o atalho para o lance de 2 dados de Traços em Pesadelos Terríveis), a portabilidade é tão simples que já podemos dizer que está feita. 😉

    O gênero horror já foi muito popular no país, principalmente nos anos 90, mas tem perdido espaço nas últimas quase duas décadas após a 3ª edição de Dungeons & Dragons. Com o crescente mercado de RPGs nacionais, Pesadelos Terríveis preencheria essa lacuna?

    Não sei ao certo se o gênero de horror tenha perdido espaço. Pensando em jogos independentes nacionais publicados, por exemplo, temos Abismo Infinito e Terra Devastada, de John Bogéa e A Fita, de Diego Astaurete. São três jogos narrativos de horror com temáticas bem diferentes que foram publicados com sucesso. E há toda a apreensão da comunidade em torno de Belregard: Cinzas de um Mundo Derrotado, título de terror medieval de Jefferson Neves e Rafão Araujo a ser publicado em breve.

    Nestes últimos anos, tivemos a publicação de Chamado de Cthulhu, Rastro de Cthulhu, Kuro, o Compêndio de Horror e o cenário Accursed de Savage Worlds, apenas para comentar os títulos de grandes editoras no Brasil nos últimos anos. E ainda há uma grande comunidade que joga jogos que não foram publicados no Brasil ou tiveram sua publicação descontinuada, sendo presentes até os dias de hoje com grande força, em eventos nacionais (cito o CofD Day – Chronicle of Darkness Day – que ocorre simultaneamente em cidades por todo o Brasil.

    Neste sentido, não creio que Pesadelos Terríveis preencha uma lacuna ou dispute mercado. Temos títulos excelentes e acho que muitos dos jogadores de outros jogos de terror encontrarão uma proposta nova em Pesadelos Terríveis e quem nunca jogou jogos de terror ou ainda quem nunca jogou RPG poderá ter esse como seu jogo inicial. E esse diálogo, essa troca entre diversas experiências possíveis é extremamente positiva para a formação e sustentação da comunidade de jogos com essa temática.

    Existem planos para mais livros ligados ao cenário, como suplementos ou “aventuras” prontas? Quais seus próximos projetos para o RPG nacional?

    Sim! E isso já está acontecendo. Felizmente teremos muito material de suporte aos jogos, com geradores, ganchos, suplementos, etc. E tudo isso é gratuito, basta acessar as páginas do Lampião Game Studio e da Editora Avec. Nos próximos dias, por exemplo, teremos uma adaptação completa para um cenário que… hum… vai agradar bastante a comunidade gamer (mas não posso falar muito por enquanto, rs).

    Quanto aos próximos projetos, para além da dedicação aos títulos do Lampião (houve há pouco a publicação de Causos RPG, um RPG sobre lendas urbanas e folclóricas nacionais), e ao suporte aos jogos, como Déloyal, desenvolvo nesse momento dois jogos. Um deles chama-se Duello (junto ao Diego Bernard e ao Rafão Araújo), e é um jogo ágil da linha independente do Lampião sobre a jornada de autodescobrimento de combatentes.

    O segundo projeto tem um fôlego maior e é desenvolvido em conjunto ao amigo Bruno Prosaiko, um jogo no qual os protagonistas são membros de uma agência de investigação que trata de fenômenos sobrenaturais. Arquivos Paranormais (este jogo) será modular, então o grupo de jogo criará a Agência, podendo emular jogos mais cômicos e heroicos com uma experiência como MIB – Homens de Preto, algo conspiratório como Arquivo X ou ainda um flerte sobrenatural mais aberto, como proposto em Hellblazer, e é claro, o diálogo é intenso com obras nacionais, como Guanabara Real, de André Cordenonsi, Nikelen Witter e Enéias Tavares.

    Muito obrigado pelo espaço e sucesso a todos do Vortex Cultural!

    O Vortex Cultural agradece a toda equipe da AVEC Editora pela oportunidade e especialmente ao autor pela atenção!

  • Resenha | Pesadelos Terríveis – Jorge Valpaços

    Resenha | Pesadelos Terríveis – Jorge Valpaços

    Roleplaying Game ou simplesmente RPG é uma forma moderna de se contar histórias de modo coletivo que surgiu na década de 1970 inspirado em boardgames de fantasia medieval. De lá para cá, muitos RPGs surgiram, com sistemas de regras e ambientações das mais variadas. Assim, qualquer tipo de história pode ser contada durante o jogo, desde a fantasia medieval até a ficção científica. Um dos gêneros mais populares de RPG no Brasil nos anos 1990 foi o chamado “horror gótico”, que perdeu seu espaço no início do século para o Sistema D20 – do mundialmente famoso Dungeons & Dragons. Com a hegemonia dos sistemas baseados em D&D, o horror e a sua forma narrativa com menos regras e jogadas de dados foi aos poucos sumindo do mercado nacional. O mercado de RPGs  no Brasil, ao contrário do que algumas pessoas chegaram a preconizar anos atrás, apresenta hoje espaço para a mais variada gama de títulos. Com a falta de traduções dos maiores RPGs do mundo (como Dungeons & Dragons), editoras menores preencheram o vácuo deixado e proliferaram títulos cada vez melhores. Mas os títulos de horror ainda são escassos frente à variada gama de RPGs de aventura.

    Ocupando esse espaço, a AVEC Editora lança Pesadelos Terríveis, de Jorge Valpaços, um jogo narrativo muito diferente dos RPGs mais populares do momento. Resgatando a atmosfera dos jogos de “horror pessoal” dos anos 1990, Pesadelos Terríveis não trata de aventureiros em busca de fama e glória, nem de heróis lutando pelo que é certo. Esse é um jogo onde as lutas são pessoais, intimistas e quase sempre impossíveis de se vencer. Os jogadores são convidados a criar personagens que enfrentarão seus próprios pesadelos, sem nenhuma chance de vitória gloriosa.

    Baseado na HQ Beladona, de Ana Recalde e Denis Mello, o livro expande o universo da graphic novel de uma forma diferente do que o habitual: seus cenários e personagens não são exatamente utilizados no jogo. Ao contrário, os jogadores são encorajados a criarem suas próprias narrativas baseado na história de Samantha, mas sem qualquer ligação além disso. Embora o autor deixe claro no início do livro que é possível jogá-lo sem conhecer a história em quadrinhos, durante a leitura fica evidente que é, sim, importante conhecer o universo. Aliás, o título presente na ficha de personagem é “Beladona: Pesadelos Terríveis”, o que nos faz questionar o motivo de não o ser na capa do livro.

    O jogo narrativo pode contar com apenas dois jogadores, sendo um o narrador e o outro o sonhador, embora mais jogadores possam participar como sonhadores também. Juntos, narrador e sonhadores irão construir a narrativa, criar o cenário e desenvolver o conto. Os personagens devem ser pensados de forma a terem um passado, um presente e uma aspiração para o futuro, com seus traços e traumas (psicológicos ou físicos) bem definidos. A ficha de personagem é muito mais do que uma simples tabela com números a preencher: aqui o jogador deve usar sua imaginação e descrever suas características. Não existem tabelas ou listas de traços, traumas ou poderes: os jogadores e o narrador devem entrar em comum acordo sobre sua criação. Por outro lado, existem caixas de texto exemplificando cada detalhe da criação de personagens, resolução de conflitos e inclusive bastidores da criação das regras. As jogadas de dados são muito raras e servem para decidir um “desafio”, no qual o jogador pode controlar a própria trama do conto caso ganhe, assumindo por alguns momentos o papel do narrador.

    A maior parte do livro trata de descrever como funciona o Mundo dos Pesadelos e sua conexão com o Nosso Mundo. Os personagens dos jogadores transitam por esses dois universos, tendo diferentes aparências entre eles. Assim, um tímido funcionário público no Nosso Mundo pode ser um ser terrível no Mundo dos Pesadelos. Os temas são bastante pesados, e recomenda-se inclusive o uso de uma “palavra de segurança” caso alguém sinta-se desconfortável demais. Os temas a se abordar são bastante perturbadores e desesperançosos, o que pode ser um problema para quem não está acostumado com jogos narrativos de horror pessoal. Quem gosta do aspecto game do RPG pode também não apreciar Pesadelos Terríveis, já que seu foco está mais voltado para o roleplay, ou seja, mais interpretação e solução de conflitos através de narrativa e imaginação do que regras e rolagens de dados.

    O livro tem belíssimas – e perturbadoras – ilustrações de Denis Mello, mesclando entre aquelas retiradas da HQ e artes originais para o jogo. Sua capa cartonada com reserva de verniz é muito bonita, e o miolo com gramatura maior que o normal para livros do tipo garantem uma excelente qualidade ao material. Contos da autora de Beladona abrem e encerram o volume, garantindo a atmosfera dos pesadelos na mente dos leitores. Entretanto, mesmo com a alta qualidade gráfica, o livro peca em alguns momentos ao confundir jogador e personagem ou ao sugerir que sejam usados traumas pessoais do leitor na narrativa. Essa forma demasiadamente intimista de se jogar pode agravar ainda mais possíveis problemas que um ou outro jogador possa ter e, portanto, deveria ser desencorajada. Um certo distanciamento entre jogador e personagem deve ser necessário em qualquer RPG, até mesmo para evitar problemas de entendimento do jogo pelo público leigo, que no passado já o responsabilizou por bruxaria, satanismo e até mesmo crimes que nunca tiveram real ligação com o hobby. O discernimento é necessário, e vai muito além da classificação indicativa para maiores de 18 anos na capa do livro. Pesadelos Terríveis é um jogo para quem quer testar os limites de seus próprios medos.

    Compre: Pesadelos Terríveis – Jorge Valpaços.

  • Crítica | Power Rangers (2017)

    Crítica | Power Rangers (2017)

    Quando Power Rangers chegou à TV aberta brasileira, em janeiro de 1995, na programação da TV Colosso, o gênero não era nenhuma novidade para o público tupiniquim. Acostumados com os Super Sentai japoneses exibidos na extinta Rede Manchete desde a segunda metade dos anos 1980, as crianças brasileiras já conheciam os esquadrões coloridos que lutavam contra monstros de borracha em seus robôs gigantes. Changeman, Flashman, Goggle Five e Winspector fizeram grande sucesso no país, mas a chegada de Power Rangers mudaria todo o cenário dos Tokusatsu por aqui. Isso porque a série utilizava as cenas de lutas de Jyu Rangers (que nunca foi exibido no Brasil) mesclando à cenas com atores norte-americanos, e esse se tornou o padrão de exibição para o público ocidental desde então. Uma pena que os tokusatu originais não cheguem mais até nós, graças à incapacidade do público norte-americano (ou mais provável, dos produtores) em aceitar atores não-ocidentais em papéis principais.

    Se hoje o que mais rende blockbusters para Hollywood é a nostalgia e os filmes de super-heróis, nada mais óbvio do que um reboot cinematográfico da franquia. Power Rangers, de Dean Israelite, é um filme que usa a nostalgia a seu favor, embora deslize – e muito – no roteiro e no tom. Como alguém que insiste em chamar seus bonequinhos de “action-figures“, o longa traz um ar de seriedade a algo que deveria, desde o início, ser destinado ao público infantil. Não há nada de errado nisso, e a seriedade que o filme se propõe, em determinados momentos, chega a atrapalhar o ritmo alucinante de uma aventura dos rangers.

    A história começa com a geração anterior dos Power Rangers, lutando na Terra há 65 milhões de anos e, consequentemente, trazendo a extinção dos dinossauros. Somos apresentados a Zordon, o Ranger Vermelho de então e Rita Repulsa, a Ranger Verde que traiu seu grupo. Tudo de forma muito rápida para poder passar à próxima cena, onde somos apresentados a Jason, o esportista do colégio de Alameda dos Anjos, em uma situação bastante constrangedora ao tentar roubar uma vaca de madrugada pra pregar uma peça no time rival. A cena é bastante confusa e resulta em um acidente também confuso, além de uma piada infame. Assim, diferente da série original onde Jason era um exemplo a ser seguido, vemos o jovem jogador de futebol americano sendo punido pela brincadeira de mau-gosto e condenado à detenção escolar. Ali, Jason conhece outros “desajustados” como ele: Kimberly e Billy. Incrivelmente, as atuações dos atores estão bem além do que normalmente se espera de um filme como esse, embora os diálogos soem muitas vezes um tanto forçado. Descobrimos que Billy possui um tipo de autismo e por isso tem dificuldade em entender piadas. A amizade entre eles começa a se formar e, logo, já estão na pedreira da cidade onde conhecem os outros dois futuros rangers (Trini e Zack) e encontram as moedas do poder. Adentrar a pedreira gera uma nova confusão, um novo acidente e, como consequência, o despertar dos poderes nos cinco adolescentes.

    Interessante notar como elementos da série são introduzidos aos poucos no filme, ora dando novos significados e subvertendo o que já conhecemos, ora ajustando elementos absurdos a uma história mais realista, ou mesmo fazendo piadas com esses absurdos. Assim, temos uma pequena troca de etnias entre os personagens principais em relação à série, mas que foi bastante acertada – evitando conotações possivelmente racistas ou ofensivas. A pedreira, palco onde as batalhas  na série clássica eram magicamente transportadas, ganha um pano de fundo e uma conexão com a economia de Alameda dos Anjos, além de ser importante para o surgimento do vilão Goldar.

    A história prossegue como um clássico filme de origem de super-heróis: os cinco aprendem a lidar com seus poderes e buscam conhecer sua origem e missão. A nave de Zordon é encontrada soterrada na pedreira, e ali os cinco são apresentados a seu mentor. Zordon é brilhantemente interpretado por Bryan Cranston, que já dublava personagens na série noventista e aqui ganha muito mais profundidade. O robozinho Alpha (Bill Hader), por outro lado, tem uma aparência horrível e movimentos simiescos que causam muita estranheza. Talvez ao se afastar demais do ridículo conceito original, a nova abordagem acabou piorando o personagem. Os jovens então passam por um treinamento intenso para aprenderem a “morphar” e os Power Rangers propriamente ditos demoram demais para aparecerem em cena. Contudo, há um ótimo desenvolvimento dos personagens e conhecemos um pouco da vida de cada um, com alguns dramas bastante envolventes e que, por alguns minutos, nos fazem esquecer que se trata de um filme de super-sentai!

    Paralelo a isso, temos o retorno de Rita Repulsa, agora como uma terrível feiticeira em busca de ouro para aumentar seu poder. A atuação de Elizabeth Banks chega a surpreender em alguns momentos de forma razoavelmente assustadora. Na construção da vilã, muita coisa foi limada da série para caber melhor no formato de cinema. Assim, ao invés do séquito de monstros que a acompanhava no original, Rita está sozinha e contando apenas com seus poderes – entre eles, o de criar os “bonecos de massa”. Aliás, os bonecos de massa dessa versão cinematográfica estão muito além dos soldados capengas de outrora, todos feitos em CGI e representando uma ameaça real, como grandes golens de pedra dispostos a proteger sua ama com toda brutalidade necessária. Da mesma forma, Goldar é um golem de ouro gigante – daí a importância da pedreira na trama.

    Os Power Rangers finalmente conseguem “morphar” e os vemos em apenas cerca de vinte minutos de tempo de tela. Porém, o terceiro ato é simplesmente recheado de fanservice, mas que funcionam. Desde a descoberta dos zords até a luta contra o monstro gigante, passando pelo tema clássico revigorado, tudo é empolgante e faz o espectador na casa dos trinta anos lembrar de como aquilo tudo era divertido na sua infância. Assim, o sentimento de nostalgia pode afetar a percepção da qualidade real do filme, e temos noção de que tudo parece muito melhor do que realmente é.

    Entre boas atuações, diálogos fracos, mudanças de tom, reviravoltas na trama, bons e maus momentos, Power Rangers é um filme que incrivelmente não é ruim, e já teve sua sequência garantida – embora motivada pelas altas vendas de bonequinhos e não pela qualidade do longa. As cenas de lutas com os zords bebem da fonte de Transformers, e o surgimento do Megazord ao acaso soa forçado demais até para os padrões estabelecidos pelo roteiro. No fim das contas, o filme parece ser mais sobre a interação entre os personagens do que sobre os Power Rangers como heróis, e isso não é nem de longe um defeito. E a cena no meio dos créditos deixa a dica do que vem por aí na sequência ao citar um dos personagens favoritos dos fãs que ficou de fora do filme. É bem provável que nos próximos anos a fórmula seja usada até a exaustão, com mais sequências sendo lançadas enquanto estiverem vendendo brinquedos.

    https://www.youtube.com/watch?v=5rOxrAaVTu8

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  • Resenha | Pato Donald por Carl Barks: Em Busca do Unicórnio

    Resenha | Pato Donald por Carl Barks: Em Busca do Unicórnio

    Terceiro volume publicado da série (e oitavo editorialmente), O Pato Donald por Carl Barks: Em busca do unicórnio segue a qualidade gráfica de seus antecessores, e apresenta histórias sensacionais. Barks parece estar mais à vontade com os personagens, principalmente os recém-criados por ele, como Gastão e Tio Patinhas. Esses dois apresentam algumas características que foram aos poucos se perdendo nas histórias mais recentes. A história-título, Em busca do unicórnio, apresenta algo impensável para o Tio Patinhas dos dias de hoje: o velho sovina oferece uma gorda recompensa em dinheiro ao seu sobrinho caso ele cumpra a tarefa de capturar o último unicórnio vivo na Índia. Roteiristas mais novos costumam fazer com que Donald receba apenas 30 centavos por hora de seu tio, ou acabe até devendo algo a ele pelo uso de equipamentos. O Patinhas ainda embrionário de Barks não toma a dianteira da expedição, como faria em futuras obras do autor, terceirizando a ação. O Gastão, também embrionário, não é apenas um ganso sortudo. Ele “faz” a própria sorte, através de meios muitas vezes escusos, enganando e trapaceando seu primo para conseguir encontrar o unicórnio antes dele, e de forma menos trabalhosa. Assim, ao final das histórias com a dupla Donald/Gastão, nem sempre o primo ganso leva a melhor e a justiça poética parece funcionar. Donald pode, vez por outra, usufruir de uma parcela da riqueza de seu abastado tio, afinal!

    Em outra história apresentando a relação entre o pato e seu tio rico, Carta para Papai Noel, vemos um Patinhas menos avarento esbanjando seu rico dinheirinho para presentear seus sobrinhos-netos no natal. Essa história formidável (com direito a uma luta de retro-escavadeiras) já tinha sido republicada recentemente no especial de capa dura Contos de Natal, mas aqui apresenta a paleta de cores original, como todo o volume.

    Talvez o maior destaque da edição seja a história O felizardo do Pólo Norte, na qual Donald arma um esquema para se livrar do seu primo esnobe Gastão, mandando-o a uma infrutífera expedição no gelo polar. As cenas em que o pato sente o peso na consciência de sentenciar o ganso a uma morte glacial são de uma genialidade característica de Barks, e um dos momentos mais humanos do volume.

    A terra dos ídolos é mais uma daquelas histórias que se utilizam dos estereótipos raciais da época ao retratar os nativos americanos. Guardadas as devidas precauções para que não haja um julgamento anacrônico de valor, a história é sensacional! Donald arruma um emprego como vendedor de bugigangas e procura os povos mais isolados da América para empurrar suas quinquilharias. A transformação dos ídolos do título (totens, na verdade) em um enorme órgão à vapor é uma das cenas mais divertidas da edição!

    O volume apresenta Carl Barks bastante à vontade e em sua melhor fase. A qualidade das histórias é muito superior à edição que veio logo a seguir – que seria, cronologicamente, o volume 15 – , e merece um lugar de destaque na coleção de qualquer fã de quadrinhos Disney.

    Compre: Pato Donald por Carl Barks: Em Busca do Unicórnio

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  • Crítica | Cinquenta Tons Mais Escuros

    Crítica | Cinquenta Tons Mais Escuros

    Após o estrondoso sucesso de bilheteria de Cinquenta Tons de Cinza adaptação do primeiro best-seller de E.L. James, era evidente que sua continuação, Cinquenta Tons Mais Escuros, continuaria a arrebatar fãs para as salas de cinema. Assim, o filme dirigido por James Foley não seria nem de longe uma aposta no escuro. James assumiu o cargo após diferenças criativas entre a autora do livro e a diretora do primeiro filme, Sam Taylor-Johnson, e transformou o que deveria ser um filme erótico em uma espécie de suspense sem sal.

    A história de Anastasia Steele (Dakota Johnson) e Christian Grey (Jamie Dornan) segue de onde parou em Cinquenta Tons de Cinza. Separados, Grey continua sua obsessão por Ana, a mulher sem-graça que teve a ousadia de lhe dizer “não” (por pouco tempo). Logo no início, Ana cede às investidas de Grey fazendo o “jogo-duro” mais previsível de todos os tempos. Christian demonstra ter sentimentos verdadeiros por ela, mesmo não conseguindo deixar pra trás seu lado sombrio. No jogo da sedução entre o casal, em nenhum momento o espectador duvida do que vem a seguir e toda a cafonice do filme anterior se repete. As cenas de sexo são tímidas, embora a ótima trilha sonora de Danny Elfman tente dar um tom mais sério e perigoso ao ato. Ana já está acostumada aos fetiches de Grey e, estando mais segura, faz com que a violência sado-masoquista não passe de uma transa corriqueira. Não existe aqui o despertar da novidade de outrora, apenas sexo rotineiro.

    Em uma trama em que tudo ocorre dentro do esperado, Foley consegue achar lugar para um pouco de suspense, seja no flashback inicial mostrando a infância de Christian, seja na aparição perturbadora de uma estranha garota no quarto. A cena em que Ana encontra essa garota chega a ser tensa e pode até arrancar um susto, e seu desenrolar poderia ter dado outro rumo ao relacionamento do casal. Mas nada acontece, mesmo Ana descobrindo mais segredos da vida de Grey. O perigo de se relacionar com um psicopata é apenas um lampejo, que desaparece ao frequentar bailes de gala na alta sociedade. Aos poucos, Ana vai deixando de lado seu medo de ser apenas uma sombra de Grey (sem trocadilhos com o título original) e se assume como a alpinista social que realmente é, sempre dependendo do sucesso e prestígio de seu parceiro para conseguir se destacar.

    Os momentos de tensão e perigo são facilmente resolvidos, tendo dois destaques bastante importantes. No primeiro, Anastasia sofre assédio sexual. O tema que renderia boas discussões sobre o papel do machismo na cultura do estupro é apenas vagamente explorado, e tudo se resolve com uns telefonemas. Num segundo momento de perigo, um grave acidente aéreo acaba levianamente bem, sem causar graves arranhões nas vítimas. A tensão que deveria percorrer as cenas a seguir não chega a parecer uma grande ameaça. Tudo acaba bem, sem grandes e reais perigos, mas com um gancho para o próximo filme que pode ou não ser finalmente um grande conflito a se resolver. Mas a julgar pela trama sem graça e previsível, tudo vai ficar bem de novo.

    Cinquenta Tons Mais Escuros não funciona como soft porn, passa uma péssima mensagem para as mulheres e desperdiça grandes talentos, mas tem seu lado positivo: além de ser mais curto que o primeiro filme, apresenta algumas cenas de humor não-intencionais que podem arrancar alguns risos constrangedores.

  • Crítica | O Chamado 3

    Crítica | O Chamado 3

    Quinze anos após o primeiro filme da franquia, O Chamado 3 parece uma grande oportunidade desperdiçada. A história de Samara Morgan (a contorcionista Bonnie Morgan), explorada na estreia do diretor F. Javier Guetierrez, pode até ser interessante, mas peca pela falta de ritmo e indecisão na escolha do tom. A cena inicial no avião não se conecta com o resto do filme, servindo apenas para introduzir a maldição dos “sete dias” e frustrar o espectador, que não verá algo tão grandioso durante o restante da projeção.

    Talvez o problema dessa terceira incursão seja a expectativa criada e não aproveitada. O primeiro filme é extremamente dependente de tecnologias já ultrapassadas nos dias de hoje. A fita VHS com falhas no tracking e a estática dos televisores de tubo davam a atmosfera tensa que essa produção não consegue reproduzir. Criar um arquivo no computador está longe de ter o charme quase que fetichista de copiar uma fita no videocassete, e o toque do celular está longe do mistério de se atender a um telefone sem identificador de chamadas.

    Na trama, Johny Galecki interpreta Gabriel, professor universitário que compra um antigo aparelho de videocassete que contém a fita amaldiçoada, cujo antigo dono havia morrido no acidente de avião do começo do filme. Gabriel, uma versão mais séria de Leonard – personagem de Galecki em The Big Bang Theory – desenvolve uma pesquisa através do conteúdo da fita que deveria provar a existência da vida após a morte, desenvolvendo uma rede de alunos universitários que voluntariamente assistem a fita (agora um arquivo de vídeo), fazem uma cópia e passam a um “seguidor”. Paralelamente, conhecemos o casal protagonista. Julia (Matilda Lutz) e Holt (Alex Roe), que tentam manter um relacionamento à distância enquanto o rapaz vai para a faculdade em outra cidade. Após certo tempo sem receber notícias do namorado, Julia vai até o campus investigar e descobre que Holtz está envolvido na pesquisa de Gabriel. A garota também assiste ao vídeo, mas a princípio se recusa a passá-lo a um seguidor. Ela acaba tendo visões que revelam o passado da garota morta no poço e o casal segue uma linha de investigação até encontrar o verdadeiro vilão da história, digna de um episódio de Scooby Doo.

    A impressão que se dá é que cada um dos três atos são filmes diferentes, colados para dar forma a uma história mais ou menos razoável. O final, estragado tanto pelo trailer quanto pela premissa que não cumpriu, daria uma excelente história de terror caso houve maior ousadia do diretor espanhol ao invés da aposta no mais do mesmo que se tornou o miolo do filme. Sustos previsíveis, casal de protagonistas sem química nenhuma e um roteiro arrastado e fortemente calcado em coincidências para fazer a história andar, fazem do filme uma verdadeira decepção. A história da gestação de Samara e a identidade de seu pai biológico torna-se algo interessante em meio a tanto marasmo, mas não o suficiente para que o terror ou o suspense decole.

    O Chamado 3 é claramente um caça-níquéis que não se importa em manter a qualidade e aposta que seus fãs sejam o suficiente para gerar uma boa bilheteria. Para aqueles que realmente gostam da franquia, seria melhor assistir ao crossover japonês O Chamado vs O Grito – pelo menos a diversão (e alguns sustos) parece mais garantida.

  • Resenha | Pato Donald por Carl Barks: O Segredo do Castelo

    Resenha | Pato Donald por Carl Barks: O Segredo do Castelo

    Segundo volume publicado da coleção dedicada a trazer para o leitor toda a obra do Homem dos Patos (e cronologicamente, anterior ao primeiro volume), Pato Donald por Carl Barks: O segredo do castelo nos brinda com o que que há de melhor nos quadrinhos Disney de todos os tempos. Para o leitor e fã brasileiro, essa edição tem uma importância histórica, já que O segredo do castelo foi a primeira hq Disney publicada pela Editora Abril, em O Pato Donald nº 01, em julho de 1950 (dois anos após sua publicação original). A edição segue o padrão da anterior, com papel fosco e de gramatura maior que o normal e mantendo a paleta de cores próxima do original – com um restauro de verdade, não o que vem ocorrendo com as revistas Disney mensais que mais parecem xerox mal feito. A qualidade gráfica é bastante superior a qualquer obra publicada recentemente, o que prova que é realmente uma coleção à parte dos outros encadernados em capa dura da editora.

    Além da história que dá título ao volume, temos mais algumas aventuras longas, outras histórias de dez páginas e várias gags de uma página só. Em qualquer uma delas, vemos a arte de Barks de forma quase que cinematográfica, e painéis estáticos nos passam a noção de movimento necessária para que, em determinados momentos, tenhamos a sensação de estar assistindo um desenho animado. A maestria do roteiro de Barks pode ser percebida pelo tour que ele faz ao redor de vários gêneros literários, seja a aventura de exploração em “Os caçadores da borboleta perdida”, a ficção científica em “Corrida fórmula lua”, o faroeste de “O xerife do Vale Balaço” ou as sitcoms das gags de página única.

    Interessante notar como os personagens coadjuvantes ainda não apresentam as características que conhecemos hoje. O Ganso Gastão, por exemplo, embora rivalize com seu primo e se mostre um folgado convicto, ainda não tem a sorte como elemento chave de sua personalidade (sua história de estreia consta nesse volume, mesmo tendo sido republicada há pouco tempo em Contos de Natal, mas dessa vez com as cores originais). Os sobrinhos Huguinho, Zezinho e Luisinho ainda não são os Escoteiros Mirins que seriam mais tarde, e embora já não sejam mais os pestinhas das tiras dominicais de Al Taliaferro, tomam atitudes bastante questionáveis. Tio Patinhas é uma figura distante, longe do protagonista que se tornaria mais tarde pelas mãos do próprio Carl Barks, digno de estrelar sua própria série animada nos anos 80.

    Se há algo no volume que não agrada o leitor é o preço: 60 patacas é bastante salgado, mesmo pra um volume de qualidade como esse. Talvez compense esperar por promoções em sites especializados.

    Cada história – inclusive as gags – é analisada ao fim da edição por vários estudiosos de literatura e quadrinhos, que dão um gosto ainda melhor pra cada uma delas ao situarem o contexto histórico em que estão inseridas, bem como o momento da vida do autor que refletem. O trabalho de restauro é muito bem feito, principalmente em “Os caçadores da borboleta perdida”, cuja arte original havia se perdido há muito tempo e foi redesenhada em 1982 pelo artista holandês Daan Jipes. Nesse volume, ela teve seu restauro com base em uma edição italiana de 1950 e finalmente a vemos com a arte de Carl Barks novamente. Aos fãs, resta torcer para que a coleção seja publicada até o fim, mantendo a qualidade que vem se mostrando até agora.

  • Crítica | Moana: Um Mar de Aventuras

    Crítica | Moana: Um Mar de Aventuras

    Em uma ilha no Pacífico vive uma comunidade tribal, cuja principal fonte de alimento é o coco. A tribo tem uma vida harmoniosa e feliz, e sua principal regra é não se afastar da ilha. Moana (Auli’i Cravalho), filha do chefe local, sonha com o além-mar e é impedida por seu pai de se aventurar além dos recifes. Porém, desde criança, o oceano parece chamá-la para o desbravamento, e a filha do chefe cresce com esse ímpeto em seu coração – principalmente por ter ouvido histórias de sua avó sobre um semideus destemido que podia se transformar em qualquer animal e que estaria perdido em alguma ilha oceano adentro.

    Esse é o princípio de Moana: Um Mar de Aventuras, dirigido pela dupla John Musker e Ron Clements (A Pequena Sereia, Aladdin, Hércules, A Princesa e o Sapo), e nova empreitada da Disney em longas animados. A história é inspirada em lendas polinésias, e desde o início já se viu envolta em polêmicas. A empresa foi acusada de apropriação cultural por representar  a cultura maori, principalmente o semideus Maui (Dwayne Johnson), que é tido como uma ancestral real desses povos. A isso se somou um isolado episódio no Dia Das Bruxas, em que uma fantasia do personagem continha também suas tatuagens, algo que foi considerado um desrepeito, pois, as tatuagens maorio são pessoais e intransferíveis. Um pequeno erro da Disney que, de qualquer maneira, tomou o cuidado necessário para respeitar a fonte de inspiração. Ainda que para parte do público ocidental pareça irrelevante, as críticas talvez tenham sido exageradas, já que até mesmo The Rock foi criticado pelo sotaque e pronúncias de palavras regionais, mesmo sendo ele descendente da família real de Samoa.

    Na trama, The Rock interpreta Maui, que embora seja apresentado a princípio como um herói destemido, mostra-se uma pessoa bastante arrogante ao se encontrar com Moana, personagem-título e exemplo dessa nova safra de princesas que tomam o protagonismo de suas vidas sem esperar por um príncipe encantado. Aliás, princesa não, afinal Moana faz questão de deixar claro durante o filme que não é uma princesa, e sim uma líder, destacando o girl power.

    Para salvar sua ilha do definhamento pelo qual está passando – falta de alimentos, desde o coco até os peixes – Moana descobre que precisa seguir as antigas lendas e procurar Maui para juntos devolverem o coração de Te Fiti, a deusa que criou a ilha. Assim, desobedecendo seu pai e a tradição que deveria manter, ela decide se aventurar pelo oceano. A protagonista ajuda Maui a encontrar seu anzol mágico, e em contrapartida, Maui a ajuda a restaurar a natureza em sua ilha. Dentre as aventuras, a dupla enfrenta piratas pigmeus em forma de coco conhecidos como Kakamora, em uma parte do filme que definitivamente não acrescenta nada à trama. Dentre os alívios cômicos (obrigatórios em filmes Disney) temos o galo Hei Hei, um ser absolutamente descerebrado que sabe-se lá como ainda se mantém vivo, e as tatuagens animadas de Maui, que não só contam sua história como também interagem com os personagens. A avó de Moana, Tala (Rachel House), faz o papel da velha sábia que conduz a protagonista ao seu destino, tal qual Rafiki em O Rei Leão ou o Mestre Yoda em Star Wars.

    A qualidade dos gráficos é realmente impressionante, principalmente no relevo das tatuagens e na animação das águas. Se alguns anos atrás os animadores evitavam representar água em CGI, o novo longa da Disney prova que essa é uma barreira já ultrapassada. Os personagens são carismáticos e até mesmo o vilão Tamatoa (Jemaine Clement), o caranguejo gigante, gera empatia com os espectadores em seu número musical (aliás, as músicas da versão dublada não perdem em nada para o original). Se os próximos filmes do estúdio continuarem seguindo essa qualidade, a ideia de que estamos vivendo uma nova renascença Disney pode se confirmar, sem sombra de dúvidas.

  • Resenha | Lobo Sem Limites

    Resenha | Lobo Sem Limites

    Lobo, o Maioral, o Flagelo da Galáxia, Aquele Que Devora Suas Entranhas e Se Diverte Com Isso, o Último Czarniano Vivo. Quem leu quadrinhos da DC Comics nos anos de 1990 deve estar familiarizado com esse nome. Lobo foi criado por Keith Giffen e Roger Sliffer em 1983 para a revista Omega Men, mas logo ganhou seu espaço próprio em aparições na série cômica da Liga da Justiça Internacional, especiais e minisséries até ganhar um título próprio em 1993 que durou 64 edições e foi encerrado em 1999 (por aqui, tivemos as primeiras 24 edições dessa revista publicadas em 12 números pela extinta editora Brainstorm). Lobo surgiu como uma paródia aos anti-heróis ultra violentos de sua época, mas cresceu tanto em popularidade que superou o escracho inicial e tornou-se importante dentro de seu nicho.

    Infelizmente, como tudo que é usado à exaustão, sua fórmula se diluiu e sua graça se perdeu em meio às revistas mensais. Lobo funciona bem como personagem esporádico, mas seu humor grotesco e politicamente incorreto não cabia mais nas páginas mensais, e acabou se tornando uma auto-paródia – principalmente ao rejuvenescer como Lobinho e integrar as fileiras da equipe Justiça Jovem. O vigor havia há muito se perdido.

    Foi então que em 2003 a DC lançou Lobo Sem Limites, uma minissérie em seis edições que tratava justamente disso: restabelecer o Maioral no Universo DC e resgatar aquilo que fez dele o que era: humor escrachado e violência gratuita! Para isso, Keith Giffen retornou ao roteiro (há tempos nas mãos de Alan Grant) e sugeriu ao ilustrador Alex Horley um visual parecido com o de Rob Zombie. Assim, o estilo que emulava o da banda Kiss ficou pra trás e temos um Lobo muito mais assustador e menos falastrão. Parece realmente que ele envelheceu durante esse período de ausência, e está com pouca paciência e muito mais rabugento do que antes. Logo ficamos sabendo que aconteceu algo a ele que tomou seu posto de “Maioral” da galáxia.

    Lobo é então contratado por “chatos” (os carrapatos, que na tradução da Panini tinham virado “caranguejos”, e a Eaglemoss consertou na nova tiragem) para fazer um serviço que lhe renderia meio bilhão de créditos. Ele deveria ir para o planeta Y’abbah Dhabba Dhu (sim, é isso mesmo!), uma sátira ao Oriente Médio, onde todos os habitantes são homens-bombas por nascimento e explodem ao acionar o detonador que é sua cabeça e pescoço. Ofensivo? Sim, bastante. É um gibi do Lobo, afinal. Nesse planeta, ele teria que matar o “nabob”, o rei local, para ganhar sua recompensa. Acontece que, pelas leis de Y’abbah Dhabba Dhu, quem mata o nabob assume irrevogavelmente seu lugar, e assim Lobo se naboba todo!

    Em paralelo, temos uma trama contada em flashback com arte totalmente diferente, mostrando a infância e adolescência do Maioral, além de uma história paralela do Besouro Bisonho. Conhecemos então Bling Bling, ex namorada do Lobo e rainha do hip-hop que derrotou o último czarniano e acabou com sua reputação ao matar e cozinhar seus preciosos golfinhos intergaláticos.

    Sim, existe uma trama por trás de toda violência gratuita do gibi, mas que os próprios artistas responsáveis fazem questão de ridicularizar. O importante aqui não é saber que Bling Bling é a verdadeira responsável pela situação “nabobesca” de Lobo, tampouco a nulidade do contrato de meio bilhão de créditos. O importante mesmo é rir das situações em que Lobo se encontra, seja ela uma clara referência à política norte-americana e suas relações com o Oriente Médio, seja o puro nonsense de uma raça de seres diminutos que emboscam o Maioral para cozinhar seu prepúcio! Lobo sem Limites é tudo que um gibi do Último Czarniano tem que ser: violento, agressivo, engraçado e (obviamente) sem limites!

  • Resenha | Hellblazer: Morte e Cigarros

    Resenha | Hellblazer: Morte e Cigarros

    hellblazer_capa_vortex-culturalÉ possível lutar contra o próprio destino e ludibriar a Morte? Talvez, se seu nome for John Constantine e se você tenha em seu currículo trapaças vencidas contra o próprio Diabo!

    A mais longeva série do selo Vertigo chega ao fim em terras brasileiras com a publicação de Hellblazer: Morte e Cigarros, e a sensação de que isso já foi melhor é o que paira na cabeça do leitor ao terminar de ler a revista. O volume reúne as três últimas edições antes do cancelamento, além de um especial que abre o encadernado. John Constantine está velho – o tempo cronológico nesta série correu normalmente com os anos no mundo real – e sabe que seu fim está próximo. O que fazer? Claro, sendo o mesmo trambiqueiro de sempre, o mago faz de tudo para que seus dias não estejam contados para sempre, e cerca-se da ajuda de sua jovem esposa Epiphany para tentar se safar.

    O arco final da jornada de Constantine leva apenas três histórias para se desenvolver, o que parece ser muito pouco. Muita coisa fica jogada no ar e até mesmo leitores que o acompanha há muito tempo podem ter certa dificuldade de entender todas as reviravoltas da trama. Claramente vemos um reflexo dos bastidores da própria Vertigo, com a saída da editora Karen Berger, substituída por Shelly Bond e derrocada do selo, além da volta do personagem para a linha principal da DC Comics, rejuvenescido e reformulado. Não teria sentido mantê-lo em duas linhas simultaneamente.

    Morte e cigarros amarra algumas pontas soltas dos últimos anos. Vemos tudo que tem sido importante na vida de John nos últimos tempos: seus parentes próximos, amigos, esposa, inimigo, fantasmas, sexo, bebidas e cigarros. A edição tem um clima bastante pesado e depressivo, e com um final aberto, que leva a discussões se foi real ou um exercício de metalinguagem que o roteirista Peter Milligan quis entregar a seus leitores.

    Infelizmente, para continuar essa análise, os parágrafos a seguir deverão conter spoilers. Caso queira evitá-los, pare por aqui e volte mais tarde, quando terminar de ler a edição!

    John morre. De forma absurdamente equivocada, com um tiro no peito dado por um capanga pé-de-chinelo de seu sogro criminoso, Terry Greaves, que interpretou erroneamente uma fala do chefão. O destino dele foi selado tal qual as Moiras previram, mas Constantine já havia se preparado para isso. Claro que Epiphany não sabia, e sofreu seu luto por um tempo até acabar na cama com um demônio se passando por John e, mais tarde, com o sobrinho recém descoberto dele, Finn. O fantasma de Constantine vê tudo isso – e aprova, claro! – mas estava se preparando para voltar. Ele então aparece para o casal e revela seu plano a Piffy, que faz um cigarro com as cinzas do falecido. Ao fumar as cinzas, o fantasma se materializa como o velho Constantine de antes, e após cumprir sua parte num acordo com o Primeiro dos Caídos (o demônio em pessoa), resolve mudar-se com a esposa para uma casa no campo e começar uma nova vida, longe de todas as coisas ruins que o cercam.

    Infelizmente, John percebe que isso seria impossível. Assim, ele vai até sua sobrinha Gemma e entrega a ela o último dardo amaldiçoado com magia negra que ela guardou após matar o Gêmeo Demoníaco de Constantine em O capote do Diabo. Gemma, que credita todos os sofrimentos de sua vida ao seu tio, atira o último dardo em direção a ele. Temos então um desfecho em aberto, no qual não somos informados do que aconteceu. São quatro páginas silenciosas e, no último quadro, vemos John Constantine em um bar, com um semblante estarrecido e muito mais velho do que antes, parado, como se num eterno sofrimento. Ao redor, todos os rótulos de garrafas nas prateleiras trazem os nomes dos autores e artistas que passaram pela revista nessas 300 edições.

    Que John deveria morrer no último número não é algo tão absurdo para o leitor de longa data imaginar. Mas com o fim de Hellblazer temos também o fim de grandes personagens secundários que poderiam ter suas histórias contadas em outro título. O que aconteceu com Piffy, Gemma e Chas após a morte de Constantine (ou desaparecimento, já que ele foi transferido para o universo regular da DC)? Seria Finn um substituto à altura de seu tio? E Gemma, levaria uma vida normal ou andaria às voltas com a magia novamente?

    Essas perguntas podem não ser respondidas, já que para tornar Constantine viável comercialmente, a DC resolveu reformulá-lo e rejuvenescê-lo na linha Os Novos 52, com a revista Constantine e sua participação na Liga da Justiça Dark. Os dois títulos foram cancelados, e posteriormente, na iniciativa DC&Você, tentaram voltar às origens do personagem com a série Constantine: Hellblazer. Mesmo assim, uma nova reformulação está por vir com Hellblazer: Rebirth. Parece que, ao mesmo tempo que a DC não quer deixar Constantine morto, a editora também não sabe o que fazer com ele vivo. Provavelmente, esses problemas editoriais devem ser parte de mais um trambique do mago para manter-se vivo. Que filho da puta!

  • Resenha | Um Brasileiro Chamado Zé Carioca

    Resenha | Um Brasileiro Chamado Zé Carioca

    ze-carioca-vortex-culturalAs edições luxuosas de quadrinhos, com capa dura e impressão em couché, parecem ter mesmo caído no gosto do consumidor brasileiro. Além de uma vasta coleção quinzenal da Marvel e da DC Comics (pela Salvat e Eaglemoss, respectivamente), a Editora Abril tem lançado uma bem-sucedida série de encadernados com os personagens Disney. Embora não seja exatamente uma coleção com numeração ou sequência – na verdade, existem duas outras ramificações, com os Manuais Disney e O Pato Donald por Carl Barks, que seguem diferentes das demais – as edições em capa dura apresentam geralmente um bom material.

    Um Brasileiro Chamado Zé Carioca é a primeira dessas edições com material 100% nacional. Lançado em novembro de 2015, esse volume traz a fase de transição do personagem para algo verdadeiramente brasileiro, pelas mãos de Ivan Saidenberg (roteiro) e Renato Canini (desenhos). Criado em 1942 para o filme Alô, Amigos – parte da política de boa vizinhança dos Estados Unidos com os países latinos – Joe Carioca estreou nas tirinhas americanas ainda antes da película estrear nos cinemas. A transformação de “Joe” em “Zé” passou ainda por Jorge Kato – que desenhou suas primeiras histórias brasileiras e frequentemente adaptava aventuras de outros personagens como Mickey ou Pato Donald, substituindo-os pelo papagaio – mas consagrou-se mesmo no traço de Canini. O desenhista gaúcho retratou o malandro de forma muito mais abrasileirada, livrando-se do terno e gravata e dando a ele um visual mais condizente com o calor tropical do Rio de Janeiro (muito antes da reformulação “radical” dos anos 90). O paulista Saidenberg, por sua vez, pesquisou a fundo os hábitos e costumes do povo carioca e inseriu-os em suas narrativas.

    Assim, temos um Zé mais humano e brasileiro que nunca, que embora tenha fama de malandro está sempre arrumando um jeito de ganhar a vida. O Zé da dupla Saidenberg/Canini não é o preguiçoso que outros artistas costumam representar. Ele aparenta ser mais jovem e cheio de vida, com uma energia imensa para gastar com seus trambiques. Junto dele, seu inseparável amigo Nestor se torna a “voz da consciência”, mesmo não sendo levado muito a sério. A Vila Xurupita ainda não estava plenamente desenvolvida, mas o barraco do Zé no Morro do Papagaio é um retrato exageradamente cômico da vida nas favelas cariocas da década de 70.

    Como contraponto, vemos também seus primos de outros estados brasileiros, cada um representando um estereótipo regional, tal como o próprio Zé Carioca. Ainda vemos as primeiras aparições do vizinho e amigo Pedrão, que ganharia mais importância nas histórias das décadas posteriores. A edição traz também a primeira história do alter-ego do Zé, o Morcego Verde, que da mesma forma que o Capitão Feio da turma da Mônica se transforma após ser soterrado pela sua coleção de gibis.

    As histórias narram as mais diversas aventuras, desde coisas simples como uma feijoada até contos em outros mundos de fantasia, passando por futebol, carnaval e muito samba. Os personagens coadjuvantes por vezes fogem do padrão “ave ou cachorro”, e vemos Zé Carioca interagir com outros animais humanizados pouco usuais nos quadrinhos Disney, como sapos, cobras ou rinocerontes! Além dos trambiques, histórias de mistério também permeiam os 44 contos dessa edição.

    O texto de Ivan Saidenberg é realmente muito engraçado, mesmo nas situações mais absurdas. Junto ao traço caricato, propositalmente desproporcional e fora dos padrões Disney de Renato Canini, temos uma excelente obra que merece muito um segundo volume!

    Compre: Um Brasileiro Chamado Zé Carioca.

  • A volta da Dragão Brasil

    A volta da Dragão Brasil

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    A mais bem sucedida revista brasileira de RPG está de volta. Após uma mini-edição digital gratuita adaptando a série Stranger Things para 3D&T, a Dragão Brasil acaba de anunciar seu retorno definitivo. O novo formato digital, diferente do impresso, possibilita um custo zero de distribuição e impressão, o que reduz seu preço significativamente se compararmos às edições em bancas de outrora.

    A Dragão Brasil surgiu nos anos 90 e foi uma verdadeira febre entre os primeiros rpgistas brasileiros, e por 111 edições esteve sob a responsabilidade do trio de editores Marcelo Cassaro, J.M. Trevisan e Rogério Saladino, conhecidos como Trio Tormenta. Inicialmente chamada de Dragon, mudou seu nome para não entrar em conflito com a Dragon Magazine.  A revista oferecia reviews de jogos de RPG, material de campanha, adaptações e dicas para mestres e jogadores. Durante muito tempo foi a única fonte de informações sobre o hobby no país até que, com o advento e popularização da internet e das redes sociais, as coisas começaram a mudar.

    O Trio Tormenta deixou a revista após “onzenta e uma” edições (como eles gostam de dizer, citando os hobbits de O Senhor dos Anéis) devido a problemas com a editora, e uma nova equipe abraçou o trabalho, de forma turbulenta, por nove edições até serem substituídos novamente. Mesmo assim, a revista sem sua equipe original não convenceu e acabou no número 123.

    Enquanto isso, o Trio Tormenta fundou outra revista de sucesso em outra editora, a Dragon Slayer, que a princípio era especializada em adaptações para o d20 System – sistema de RPG da 3ª Edição de Dungeons & Dragons que era mais ou menos livre de direitos autorais – e posteriormente, com a chegada da 4ª edição de D&D, adota apenas os sistemas “da casa” em suas matérias. A nova empreitada seguiu de 2005 a 2013 e teve 40 edições publicadas, sendo a segunda revista de RPG no Brasil de publicação mais duradoura.

    Com a mudança do título Tormenta – cenário de jogo surgido na 50ª edição da revista – para a editora Jambô, novos nomes se juntaram à equipe original e assim, com Gustavo Brauner, Guilherme Dei Svaldi e Leonel Caldela, surge o Trio Tormenta Ultimate. São esses dois trios de autores que estarão presentes na nova encarnação da revista.

    A nova versão da revista está sendo feita por financiamento coletivo, e pode ser assinada através do link apoia.se/dragaobrasil.

  • Resenha | Superman: Brainiac

    Resenha | Superman: Brainiac

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    Durante grande parte da primeira década do novo milênio, a DC Comics investiu em novas formas de reformular seu universo de super-heróis sem necessariamente zerar sua continuidade, como já havia feito antes com a saga Crise nas Infinitas Terras. Assim, o recurso utilizado com frequência era o retcon, histórias que contavam detalhes “esquecidos” das origens dos heróis ou alteravam completamente alguma coisa que fosse necessária. Com a saga Crise Infinita a editora deu uma explicação de dentro do universo para esses retcons: uma versão do Superboy de uma Terra paralela literalmente esmurrava as paredes da realidade, mudando assim a continuidade de tempos em tempos sem precisar passar uma borracha em tudo. Sim, era uma explicação bem esdrúxula, mas parece ter funcionado. Com isso, Superman teve sua origem pós-Crise alterada várias vezes, tornando a narrativa de John ByrneO Homem de Aço, obsoleta.

    Geoff Johns foi responsável por grande parte dessa fase, deixando sua marca de “reparador de danos” nos gibis do Superman. Assim, dentre muitas coisas que escreveu, o arco Brainiac tem um grande destaque por resgatar elementos clássicos das histórias do herói.

    Assim como a Supergirl havia sido reintroduzida nas histórias do Azulão, com uma história de origem mais próxima da sua primeira aparição, na Era de Prata, Johns reapresenta o vilão Brainiac tal qual sua primeira aparição. Assim, fica estabelecido através da Supergirl que ele já era uma ameaça no passado, e que as outras versões do tirano confrontadas pelo Superman não eram “reais”. Brainiac era um conquistador de mundos, que absorvia toda a informação possível sobre civilizações planetárias, miniaturizava suas principais cidades e destruía o resto. Assim, em uma terrível lembrança de seu tempo em Krypton, a prima do Superman revela como a importante cidade de Kandor foi subjugada e engarrafada, com seus prédios e habitantes em forma diminuta, e armazenada na nave do vilão.

    Quando Brainiac ataca a Terra, diminuindo e engarrafando a cidade de Metrópolis, Superman o enfrenta em uma batalha épica para trazer de volta aqueles que ama. O enredo é basicamente o mesmo da história de 1958 na qual o vilão surgiu, porém trabalhado de forma quase cinematográfica, explorando diferentes facetas de personagens já há muito conhecidos do público.

    A arte de Gary Frank é de uma riqueza de detalhes impressionante. Seu Superman e Clark Kent realmente parecem pessoas distintas, e visivelmente emulam os traços característicos do ator Christopher Reeve, que imortalizou o herói nas telas do cinema por quatro filmes. Sua Lois Lane é uma versão mais jovem de Margot Kidder, que contracenou com Reeve nos filmes clássicos, e os personagens do Planeta Diário também apresentam traços marcantes que refletem suas personalidades. Cat Grant lembra muito a sua representação na série noventista Lois & Clark, com uma atitude ao mesmo tempo sexy e vulgar, muito diferente da mãe solteira que teve o filho de oito anos assassinado, na versão anterior dos quadrinhos. Grant não parece carregar a perda nos ombros como antes, e até mesmo Clark parece perceber isso. Assim, sua nova atitude seria decorrente do trauma, uma forma de abafar a dor. Infelizmente, isso fica apenas subentendido pela fala do repórter e não é explorado na história. Steve Lombard é o repórter de esportes, e se nos anos 70 era retratado como um galhofeiro que vivia pregando peças em seus colegas, aqui ele se torna um “tiozão do pavê”, completamente deslocado com suas piadas sem graça em um mundo que não mais admite seus preconceitos. Ron Troupe, Jimmy Olsen e Perry White permanecem basicamente os mesmos que já conhecemos de versões anteriores. Frank se utiliza de seu fino traço para fazer com que as expressões faciais desses personagens nos mostrem cada sentimento, cada interação entre eles, cada pequeno gesto, de forma a esquecermos um pouco dos vilões intergaláticos e possamos nos identificar com as “pessoas normais” da história.

    A relação de Clark com seus pais é explorada de uma forma como jamais viria a ser novamente nos quadrinhos posteriores. A vida no campo moldou a personalidade de Kent, e vemos em flashbacks momentos de sua educação que o levaram a ser quem ele é. O final trágico da história remete justamente a isso: Superman precisa fazer duras escolhas pelo bem maior, mesmo que isso pese sobre seus ombros por não conseguir salvar a todos ao mesmo tempo.

    Se as cenas de ação são muito bem desenvolvidas, as cenas do cotidiano não ficam longe. Em uma época em que as relações entre os personagens de Metrópolis estavam sendo quase que ignoradas, Superman: Brainiac as traz de volta de forma simples, porém certeira. Talvez seja isso que faz desse arco algo digno de figurar, no Brasil, duas versões encadernadas de capa dura ao mesmo tempo, por editoras diferentes.

    A importância dessa história também está em suas consequências nas revistas do Superman nos anos seguintes, já que o destino de Kandor e de seus habitantes kryptonianos seria o fio condutor da grande saga Nova Krypton, que tomaria as páginas das revistas de aço no meses posteriores. Também virou filme animado da DC Entertainment, com o título de Superman Sem Limites. Ainda assim, Superman: Brainiac apresenta uma grande aventura, com aquilo que pode ser considerado a essência do Homem de Aço, de uma forma moderna e ao mesmo tempo, clássica.

    Compre: Superman: Brainiac

  • Resenha | Pato Donald por Carl Barks: Perdidos nos Andes

    Resenha | Pato Donald por Carl Barks: Perdidos nos Andes

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    A coleção dedicada a republicar todas as histórias do Homem dos Patos começou de maneira sensacional! Pato Donald por Carl Barks: Perdidos nos Andes é o primeiro volume da série a chegar às bancas e livrarias brasileiras – embora seja o sétimo da coleção, que não está sendo publicada cronologicamente, da mesma forma que a editora Salvat faz com sua coleção de graphic novels da Marvel – e não poderia ter começado melhor. Publicada nos Estados Unidos pela Fantagraphics, a série apresenta todas as histórias escritas e desenhadas por Carl Barks, e resgata a paleta de cores originais da época (diferentes das últimas republicações, que tinham as cores remasterizadas) além da arte original, sem alterações. Barks foi o mais importante quadrinista Disney, e esta edição mostra porque ele é tão reverenciado.

    Perdidos nos Andes traz a clássica história homônima, na qual Donald e seus sobrinhos Huguinho, Zezinho e Luisinho encontram uma civilização perdida onde não existe nada na forma circular, chamada de Quadradópolis. A expedição começa quando acidentalmente, Donald descobre que as rochas em exposição no museu eram, na verdade, ovos quadrados! A investigação sobre a origem dos ovos quadrados (cúbicos, na verdade) leva Donald e seus sobrinhos a uma busca pelas montanhas do Peru, em antigo território inca. É interessante notar como Barks representa os nativos de forma a sempre parecerem exóticos e não-civilizados, além de um tanto quanto preguiçosos ou oportunistas. Parece ser a visão que se tinha na década de 1940 dos povos de terceiro mundo. Mas ao encontrar a tal civilização perdida, num local isolado por montanhas e névoas, vemos que a assimilação de hábitos e costumes norte-americanos está representada através da música que os nativos cantam e da língua que falam (inglês, evidentemente perdido na tradução). Assim, a família Pato passa por diversas situações em um cenário deslumbrante, fruto da melhor fase criativa de Barks.

    Além da história-título, ainda vemos na primeira parte do volume – dedicada às grandes aventuras – um outro clássico absoluto: Donald na África. Essa aventura emocionante é também alvo de duas polêmicas. A primeira está na representação dos nativos africanos como figuras sombrias e assustadoras, parte da iconografia estereotipada – e por que não dizer, racista – da época em que foi produzida. Outras edições recentes nas quais essas histórias foram publicadas tiveram sua arte alterada para amenizar o estereótipo. Desta vez, manteve-se todos as caricaturas racistas da época (inclusive um personagem que aparece na primeira página da história, Bop-Bop, que é claramente inspirado nos black faces dos minstrel shows), porém com textos explicativos que contextualizam a obra. Assim, ao invés de varrer pra debaixo do tapete esse momento vergonhoso das representações gráficas de povos afrodescendentes (como fez a Warner com seus desenhos antigos do Pernalonga), a Disney assume seus erros do passado. A segunda polêmica envolvendo essa história é a afirmação do Tio Patinhas de que teria contratado mercenários para expulsar as tribos das terras africanas que ele tomou posse, no passado. São detalhes importantes e com grande significado para entendermos as mudanças pelas quais nossa sociedade passou no último século, mas que não atrapalham ou fazem muita diferença na história em si. Na trama, Donald é perseguido por um zumbi africano que o confunde com seu tio rico e lança nele uma maldição vodu. Donald viaja então para a África pra livrar-se dessa maldição, encontrando o feiticeiro que a conjurou. Interessante notar como o velho Patinhas, em sua breve aparição, faz pouco caso disso, enquanto Donald é movido pelo medo e superstição. Parece que Barks, ao inserir o ceticismo como parte da personalidade do Tio Patinhas, faz uma crítica à credulidade da sociedade.

    Mais duas grandes aventuras recheiam o volume, sendo elas A árvore de natal dourada (que já foi republicada há pouco tempo no especial Contos de Natal, porém com colorização diferente) e Primo, você é que tem sorte, onde Donald e Gastão disputam uma corrida naval para salvar seu velho tio em uma ilha perdida.

    Embora alguns estereótipos salte aos olhos do leitor moderno, as histórias não são pautadas nas polêmicas, e sim nas personalidades de seus protagonistas. Donald, embora um pato, reflete todos os aspectos da personalidade humana. Ambição, desejo, frustração, medo, raiva… Seja qual for o sentimento, não poderia estar mais humanizado do que nas expressões do Pato. Nos identificamos com Donald, pois não temos a fortuna do Tio Patinhas, a sorte do Gastão ou a esperteza dos seus sobrinhos: o Pato é um homem comum como qualquer um de nós. Embora não possua uma mente brilhante, é um trabalhador esforçado que faz de tudo para sobreviver. Seus sobrinhos funcionam ora como sua consciência, como na história principal, ora como antagonistas, como na história em que Donald é um inspetor de alunos que os flagra cabulando aula.

    Além das longas aventuras, temos mais duas partes no livro: uma dedicada a histórias curtas de dez páginas e outra com gags de uma página só. Barks, que trabalhou anteriormente nos estúdios de animação da Disney, sabe conduzir todas elas com maestria. Os personagens aparentam ter volume, peso e ocupar realmente um lugar no espaço do cenário, e a ação ocorre de forma fluida e fácil de acompanhar. Os ricos detalhes dos desenhos não atrapalham a leitura da trama.

    Para encerrar o livro, temos vários textos explicativos, comentando cada uma das histórias, assim como uma biografia de Carl Barks nas primeiras páginas. O papel utilizado para o miolo é diferente do que vinha sendo usado nos outros especiais de capa dura da Abril, mas por um motivo peculiar: para preservar a leitura de forma mais parecida possível com a original. Assim dispensou-se o couché, que deixava as cores brilhantes e optou-se pelo off-white, que é mais fosco e cansa menos a vista. Na verdade, tanto seu formato quanto conteúdo fogem do padrão que a Abril estabeleceu nos últimos encadernados, notoriamente por se tratar de uma outra coleção. O volume tem metade das páginas da edição dedicada aos quadrinhos de DuckTales, porém sua qualidade é bastante superior, tanto nas histórias quanto no material extra. Tanto fãs antigos como quem nunca leu uma história dos patos tem nesse volume uma excelente compilação de histórias do maior artista que passou pelas histórias em quadrinhos de Walt Disney.

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  • Crítica | Grease: Live

    Crítica | Grease: Live

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    Grease é um musical que conta a história de uma garota inocente, bela, recatada e do lar que se apaixona por um delinquente juvenil que tenta abusar sexualmente dela em um drive-in. A garota então percebe que precisa mudar todo seu modo de vida para agradar a seu homem e passa então a assumir comportamentos de risco, sendo submissa aos seus desejos. Vendo dessa forma, não parece nem um pouco com a divertida história que nos vem à memória ao nos lembrarmos do filme de 1978, com John Travolta e Olivia Newton John nos papéis principais. Mas a versão original, apresentada nos palcos de Chicago em 1971, era ainda mais crua e rude. Então, para chegar ao século XXI com uma nova roupagem este ano, Grease: Live teve que se tornar mais “família” do que suas versões anteriores.

    Exibido ao vivo pela Fox no dia 31 de janeiro de 2016, o musical mistura produção cinematográfica e teatral, com cenários móveis e tomadas externas. Embora um ou outro corte de cena pareçam segundos atrasados ou adiantados, em geral temos uma edição muito boa para uma apresentação ao vivo. A cena de abertura, com uma tomada contínua durante a belíssima interpretação de Jessie J. para Grease is the word mostra que problemas relacionados ao tempo chuvoso nas filmagens da externas foram solucionados incorporando o clima à história.

    Com Julianne Hough no papel de Sandy Young e Aaron Tveit como Danny Zucko, a história nos é apresentada de forma mais moderna, não apenas normatizando as relações e papéis atribuídos aos gêneros, mas até mesmo, levemente, questionando-os. Sandy não é apenas uma garotinha ingênua, pois também demonstra ter desejos sexuais durante todo o filme (não apenas no final, como na versão de 78), embora seja bastante reprimida. O comportamento “escroto” de Zucko se mostra mais evidentemente como pressão dos pares, e em alguns momentos fica bastante claro que ele também está apaixonado por Sandy, mas não sabe como lidar com esses sentimentos.

    A peça segue a mesma estrutura narrativa da versão de 1978, porém com alguns acréscimos bastante válidos. Um deles é a representatividade de pessoas negras no elenco –  ausentes na versão original. Duas canções tiveram palavrões retirados de suas letras (o carro Grease Lightening era um vagão de quê mesmo?), o que é compreensível em uma apresentação diurna de classificação livre. Mesmo assim, as menções e piadas de estupro continuam (“se um dos dois quer, então não há problema” é uma frase um tanto quanto ofensiva, e até mesmo a música mais conhecida, Summer Nights, ainda sugere sexo forçado em determinada parte). Keke Palmers faz uma excelente interpretação de Marty Mascarino (a garota que tem vários namorados estrangeiros) e corrige um problema do filme anterior, no qual ela flertava com um apresentador de televisão bem mais velho que ela. Na nova versão, o apresentador Vince Fontaine interpretado por Mario Lopez (o eterno Slater, de Uma Galera do Barulho) é dispensado pela garota, evitando uma possível apologia à pedofilia.

    Vanessa Hudgens faz uma excelente Betty Rizzo, e sua performance se torna mais significativa ainda quando sabemos que o pai da atriz havia falecido um dia antes da apresentação ao vivo. Carly Rae Jepsen interpreta Frenchy e além de ter uma música inédita escrita especialmente pra ela, ainda contracena com Didi Conn – a Frenchy original!

    O filme tem mais canções do que a versão anterior, e o clima geral ao fim é de bastante otimismo. As coreografias estão bastante sincronizadas e a escolha de se filmar com plateia é bem acertada. Embora tenha alguns problemas devido ao formato ao vivo, Grease: Live supera em muito o clássico, por mais que fãs mais acalorados possam negar.