Autor: Vortex Cultural

  • Resenha | A Gigantesca Barba do Mal (1)

    Resenha | A Gigantesca Barba do Mal (1)

    Não sou um leitor assíduo de livros, mas busco sempre ler alguma coisa, principalmente autores considerados como clássicos e de destaque. Um desses autores é justamente José Saramago, que é sensacional, leitura mais que recomendada. De sua obra, um dos livros que mais me impressiona é justamente Ensaio Sobre a Lucidez, que mostra que por traz do excesso de regras e de nossa burocracia o caos espreita, basta uma pequena falha para o sistema caia em um imenso efeito dominó.

    Em A Gigantesca Barba do Mal, de Stephen Collins, a temática é justamente como a lógica e o extremamente sistemático encobrem um mundo de caos que está prestes e pronto a emergir de forma gritante e absurda. A temática é sobre Dave, uma pessoa normal em meio a uma sociedade totalmente organizada e padronizada, tudo funciona como deveria funcionar. Até o momento em que a barba de Dave começa a crescer de forma monstruosa e incontrolável, trazendo a desorganização e o caos para o antes mundo perfeito. Parece simples, mas a forma como o autor trata o tema e os seus desdobramentos é impressionante.

    Em primeiro lugar se destaca o extremismo da organização da sociedade, tudo obedece a uma lógica quase que geométrica, a arte do gibi deixa isso bem claro. Imagine como se tudo tivesse um lugar, a sua máxima capacidade de extensão e o seu objetivo. Assim, era o “Aqui”. Exatamente, para deixar bem claro a dicotomia entre o organizado e o caos a sociedade fictícia em questão era uma ilha chamada de “Aqui”, símbolo de organização, e o além mar era o “Lá”, símbolo de caos e o que deveria ser evitado. Para tanto que as casas a beira mar eram viradas para o continente e não existia portas ou janelas que proporcionassem vista para o mar. Curiosamente quanto mais próximo do mar menor o seu valor de mercado. Em outras palavras, o mar e a desordem deveriam ser totalmente evitados.

    Toda essa situação muda a partir do momento em que a barba de Dave começa a crescer de forma rápida e totalmente desproporcional, e para além disso se tratava de uma barba que não poderia ser aparada ou o seu crescimento parado. Essa situação faz com o que o caos passe a surgir naquela sociedade aparentemente perfeita. O primeiro a sentir isso é o próprio protagonista que perde o emprego e passa a não ser aceito em alguns estabelecimentos comerciais. A situação, e o tamanho da barba, chegam a se tornar problema de segurança nacional em que o governo passa a se preocupar e tem de resolver o problema.

    Porém, o mais interessante são os pontos que o autor trata a partir da barba. O primeiro deles é a não aceitação do diferente, que passa a ser discriminado na sociedade por ostentar essa barba. Em que se pode perceber claramente a alusão a vários movimentos de contestação a tudo aquilo que considerarem diferente ou errado. Chega ao ponto de cartazes de grupos políticos e religiosos antibarba.

    Mas também a visão do caos como algo bom. A partir do momento da existência da barba muitas pessoas passam a se questionar do ponto de vista estético e resolvem mudar a sua aparência. Tudo bem que não foi bem uma opção, mas elas mudam o visual e passam a gostar dessas mudanças.

    Também se deve notar a posterior incorporação da barba como um aspecto mercadológico, com o museu da barba com camisetas e souvenir para os consumidores. Além de livros, documentários e filmes sobre o mesmo. É a clara percepção de que uma coisa que era mal vista, passa a ser aceita e até mesmo fruto de incorporação comercial.

    Isso tudo com a barba como símbolo da transgressão, que mostra bem um aspecto da nossa própria sociedade. A barba que era vista como coisa de gente contestadora, hoje em dia é moda e existe até barboterapia, ou seja, foi assimilada pelo mercado.

    Como uma aspecto importante da história a obsessão do protagonista pela música eternal flame, da banda The Bangles cuja letra casa muito bem com a HQ e o clipe é gravado a beira mar, uma clara alusão ao mar de “Aqui” e “Lá”.

    Enfim, obra mais que recomendada, que deve ser lida mais de uma vez, e que faz com que pensemos em muitos temas e na nossa própria sociedade.

    Compre: A Gigantesca Barba do Mal.

    Texto de autoria de Douglas Biagio Puglia.

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  • Resenha | Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda – Howard Pyle

    Resenha | Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda – Howard Pyle

    O leitor Dom Quixote

    Howard Pyle foi um ilustrador americano que resolveu recontar os contos do Rei Arthur com o intuito de desenhá-los. Por conta disso Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda (Coleção Clássicos Zahar), trabalho acabado de Pyle, é primoroso pelo diálogo entre texto e imagens. Vamos a lenda.

    Rei Arthur foi o mitológico rei da Bretanha. O monarca primeiro apareceu nos contos de Geoffrey de Monmouth no séc. XII. Segundo os contos, Arthur seria um rei magnífico que unificou a Bretanha em algum período após a expansão Romana (a data é incerta). Após esse primeiro trabalho, Thomas Malory, autor inglês do séc. XV e Sidney Lanier, um autor americano do final do séc. XIX, também retrabalharam a lenda arthuriana com destaque.

    Em seguida, Pyle trabalhou criando novas histórias para embelezar a lenda do rei e seus cavaleiros. O livro publicado pela Editora Zahar é um compilado desses contos, a saber: A história do rei Arthur e seus cavaleiros (1903), a história da Liga dos Cavaleiros da Távola Redonda (1905), a história de Sir Lancelot e seus companheiros (1907), e por fim, a história do Graal e a morte de Arthur (1910).

    Livro simples com linguagem voltada ao público infanto-juvenil. Frases curtas, descrições não prolongadas e por vezes o narrador onisciente fala com o leitor, seja para destacar algo surpreendente ou para prometer que a narrativa se intensifica por conta dos “prodigiosos” feitos dos cavaleiros da corte arthuriana. Pyle trabalha com linguagem romântica, os cavaleiros são sempre nobres e honrosos, as mulheres imaculadas (exceto as vilãs) e a natureza é um fragmento de Paraíso.

    Num reino de tanta beleza, as disputas cavaleirísticas por vezes envolvem a manutenção dos valores da honra: uma dama foi desonrada? Vamos lutar! Um voto foi quebrado? Vamos lutar! Você afirma que sua dama é mais bonita que a minha (mesmo que de fato seja)? Vamos lutar! Você se acha melhor cavaleiro? Vamos lutar! Quero uma aventura na floresta, vamos lutar? Noblesse oblige.

    Pyle faz um bom trabalho em recontar a gênese do Rei Arthur e os aspectos fantásticos que preencheram sua existência. A morte do pai, Uther Pendragon, a espada na bigorna, a espada no lago (Excalibur), seu conselheiro-mago Merlin, etc. Quanto aos cavaleiros, 49 segundo o autor, Pyle escolhe alguns e conta histórias paralelas de fama e honrarias.

    Por fim, trata-se de um livro introdutório para a literatura fantástica/medieval desses que despertam o Dom Quixote que existe em quem o lê. Fácil leitura, muito bem ilustrado, é um clássico muito bem trabalhado pela Zahar. Ótima leitura!

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda – Howard Pyle.

  • Review | The Flash – 3ª Temporada

    Review | The Flash – 3ª Temporada

    Quando o Flash derrotou o vilanesco Zoom ao término de sua 2ª temporada, tivemos uma pequena cena pós-créditos em que Barry Allen, desolado pela morte de seu pai, toma a impensada atitude de voltar ao passado no dia em que sua mãe havia sido morta, salvando-a e derrotando o Flash Reverso, mudando, portanto, o mundo inteiro daquela data em diante. A cena em questão era o prenúncio de uma das histórias mais aclamadas do Velocista Escarlate, intitulada Ponto de Ignição, o que prometia uma terceira temporada sensacional, causando ansiedade nos fãs de todo o conhecido “arrowverse”. Afinal, que mudanças Barry causaria em Arrow, Supergirl e Legends of Tomorrow?

    Nos quadrinhos e na animação, com participação significativa do Batman e demais membros da Liga da Justiça, após salvar sua mãe, Barry Allen vira o mundo de cabeça para baixo, causando o maior dos efeitos borboletas. Os Atlantis estão em guerra com as Amazonas. Alguns vilões sse tornam boas pessoas e, no caso do Batman, o menino Bruce Wayne acabou sendo morto no beco, fazendo com que sua mãe desenvolvesse problemas psiquiátricos sérios se tornando a Coringa daquela linha temporal e seu pai, Thomas, se tornando o Batman, mas um morcego mais amargurado e que usa, além da violência excessiva, armas de fogo. Obviamente, o desenvolvimento a ser abordado na série passaria longe da ousadia dos quadrinhos, a julgar pelos mais variados fatores. Contudo, o canal CW deixou muito a desejar, com um início de temporada extremamente chato e mal desenvolvido, algo que mudou na segunda metade da temporada. Devemos lembrar que nos quadrinhos, o Ponto de Ignição se encerra com o Batman matando o Flash Reverso e Barry restaurando a linha do tempo, dando início a uma nova fase do universo da DC Comics, chamada de Os Novos 52.

    Por conta da trama principal, o que vimos nesta 3ª temporada foi uma diminuição considerável dos episódios chamados de monstros da semana, que foram incluídos dentro da história principal, fazendo com que um episódio seguinte sempre complementasse o anterior, seguindo assim, praticamente, do início ao final da temporada.

    No primeiro episódio da tempora, após retornar no tempo e salvar sua mãe, Barry Allen (Grant Gustin) vive uma vida feliz ao lado de seus pais, Nora (Michelle Harrison) e Henry (John Wesley Ship). Wally West (Keiynan Lonsdale), o Kid Flash, é o velocista guardião de Central City, sendo que tanto Wally, quanto dos demais personagens que integram o elenco, Joe (Jesse L. Martin) e Iris (Candice Patton), o agora bilionário e egocêntrico Cisco (Carlos Valdes) e Caitlin Snow (Danielle Panabaker), assumindo a alcunha de Nevasca, não conhecem Barry, que foi alertado por Eobard Thawne (Matt Letscher), agora preso, do tamanho erro que cometeu ao voltar no tempo, algo que Barry só passa a reconhecer quando começa a experimentar perda da memória da linha temporal anterior, o que poderá causar também a perda de seus poderes, esquecendo-se de quem ele foi um dia. Após Wally ser gravemente ferido pelo seu maior oponente, o velocista Rival (Todd Lasance), Barry decide soltar Eobard para que ele cumpra seu destino de assassinar Nora Allen e restabelecer a linha temporal anterior. Sim, o Ponto de Ignição só durou um único episódio, o que causou a ira e a decepção de muitos.

    Mas o verdadeiro ponto de ignição da 3ª temporada, na verdade, se dá quando Barry restabelece a linha do tempo original. Linha do tempo bastante modificada, mexendo com alguns personagens e localidades. Os Laboratórios S.T.A.R., por exemplo, estão com novas e melhores instalações. Porém, Joe e Iris não se dão bem e não olham um na cara do outro. Além disso, o irmão de Cisco, Dante, não está vivo e o jovem cientista culpa Barry por não salvá-lo. E para piorar ainda mais a situação, o velocista tem um parceiro no departamento de polícia, o irritante Julian, vivido por Tom Felton, uma ótima contratação para o elenco.

    E ainda temos o excelente Tom Cavanagh, interpretando sua terceira versão do Dr. Harrison Wells, agora vindo da Terra 19. Cavanagh que na 1ª temporada fez um Wells frio e calculista, na 2ª temporada fez um Wells da Terra 2 completamente sem paciência, nestaentregou um personagem extremamente bem humorado e sempre positivo, polido, educado e aficionado por café, já que na Terra 19, café é um produto quase extinto. Novamente podemos saber um pouco mais do passado desse querido Wells, que foi desmascarado tempos depois, uma vez que ele, na verdade, é um escritor em sua terra, que veio pra Terra 1 foragido, em busca de conseguir escrever a maior aventura já escrita. A fuga de Wells é aproveitada para introduzir uma nova heroína na série, a Cigana (Jessica Camacho), que possui os mesmos poderes de Cisco, que viaja pelas terras do Multiverso perseguindo foragidos.

    A primeira parte da terceira temporada, como dito, foi extremamente arrastada e chata, principalmente porque o elenco tentava descobrir a identidade do vilão Alquimia, que estava concedendo poderes para aqueles que eram meta humanos na linha temporal do ponto de ignição em troca da cabeça do Flash,. Essa parte teve pouquíssimos bons momentos, como o episódio Invasion, que fez parte do já tradicional mega crossover da CW, que juntou, desta vez, o elenco de Flash, Supergirl, Arrow e Legends of Tomorrow.

    As coisas começam a melhorar, quando o team Flash descobre que Alquimia, na verdade, é apenas um assecla do perigosíssimo Savitar, o Deus da Velocidade, tido como o primeiro, mais poderoso e rápido velocista. Em uma tentativa de derrotar Savitar, Barry é jogado meses no futuro e acaba por ver Iris sendo morta pelo demoníaco velocista. Começa, então, uma corrida contra o tempo, onde Barry tenta mudar o presente, buscando alterar o futuro e a morte de Iris. E o que se vê a partir daqui são alguns dos melhores episódios da temporada e, por que não, de toda a série.

    Um desses episódios, na verdade um evento duplo, mostra que o Wells da Terra 2 foi capturado pelo Gorila Grodd na Cidade dos Gorilas, o que obriga o team Flash a ir resgatá-lo, causando uma invasão dos gorilas em Central City. Também tivemos um ótimo encontro musical entre os personagens de Supergirl e Flash, com a introdução de um bom vilão, que futuramente poderá incluir o elenco do arrowverse em outros episódios do estilo, além de apresentar um dos vilões mais perigosos mostrados em cena: Abra Kadabra, que veio de muitos séculos do futuro e que causa sérios danos em Caitlin, obrigando a cientista a se transformar em definitivo na heroina Nevasca.

    Mas, sem dúvida, o ponto mais alto da temporada é a revelação de quem é Savitar, na verdade, é o próprio Barry Allen, trazendo ao público outro conceito da física e da ficção científica, chamado de o Paradoxo da Predestinação, utilizado em O Exterminador do Futuro, por exemplo, quando John Connor, diversas vezes, manda Kyle Reese para o passado para que ele conheça Sarah Connor, com o intuito de fazê-la gerar John, o líder da resistência no futuro. Aqui, o Barry que se tornou Savitar é um dos remanescentes do tempo (algo já explicado nas temporadas anteriores) que foram criados para derrotar vilão. Durante a batalha, Savitar eliminou todos os remanescentes, exceto um (ele mesmo), que ao tentar se reintegrar a seus amigos, foi completamente ignorado porque aquela linha do tempo já tinha um Barry Allen. Então, imagine que você foi duplicado por você mesmo, só que seus melhores amigos, sua mulher e tudo que o cerca convive com o outro você, te ignorando por completo. É exatamente isso que aconteceu. Uma decisão bastante ousada e acertada dos produtores. E com os planos de Savitar frustrados graças a genialidade e bom coração do Wells da Terra 19, vimos uma emocionante batalha de todos os heróis da série contra o velocista.

    Tanto Flash, quanto as outras séries da CW, tiveram suas temporadas renovadas e se encontram em filmagem neste exato momento. Sempre soubemos que um dia a ótima série do velocista iria passar por maus momentos, mas percebe-se que essa 3ª temporada, embora tenha ganhado um certo respiro em sua etapa final, serviu de aviso aos produtores que, a partir de então, deverão tomar cuidado para que o show não passe pelos mesmos problemas que Arrow deixando-o à beira de um cancelamento.

    De qualquer forma, a 4ª temporada de Flash, que irá ao ar a partir de outubro de 2017,  parece promissora e pela primeira vez os produtores não usarão um velocista como vilão principal da temporada. Acredita-se que o arqui inimigo de Barry será Clifford DeVoe, o Pensador, um vilão que promete dar muito trabalho ao Flash e os demais heróis, uma vez que seu nome foi mencionado algumas vezes pelos personagens do futuro que apareceram nessa temporada.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Resenha | O Assassinato de Roger Ackroyd – Agatha Christie

    Resenha | O Assassinato de Roger Ackroyd – Agatha Christie

    Poirot aposentado, mas não menos eficaz

    O Assassinato de Roger Ackroyd é o quarto livro de Agatha Christie (escrito em 1926), e o primeiro grande sucesso da autora. Romance policial dos mais assertivos do gênero, a trama funciona mecanicamente impulsionada por pequenas engrenagens narrativas que movimentam as maiores até que o criminoso seja revelado. Na ponta do trabalho, Hercule Poirot, aposentado, mas ainda uma lenda da investigação. Apenas ele para descobrir o assassinato do riquíssimo Roger Ackroyd.

    O famoso detetive utiliza uma mescla entre método dedutivo e analítico para resolver seus casos. Primeiro ele estipula o momento de morte da vítima e cria um intervalo de tempo seguro onde aconteceu o crime. Em seguida  anota todas as pessoas que estiveram ou poderiam ter acesso ao morto e os interroga. Em paralelo, ainda na cena do crime, busca os “pequenos casos”, ou seja, os desarranjos que cercam o crime e que aparentemente não tem ligação com a morte, mas que explicam, aos poucos, como o assassino agiu. De posse dessas informações, o detetive vai testar suas deduções e procurar as mentiras que as testemunhas contam, pois, segundo ele, todos mentem.

    Expliquei o método de Poirot para ilustrar os pontos que movem a narrativa da dama do crime: investigação sobre os personagens ilustres, “pequenos casos” e mentiras. Livro essencialmente trabalhado com diálogos, as descrições são em maiorias curtas e mesmo a natureza fica em segundo plano na comunidade onde se passa o crime. É interessante notar que a autora trabalha com o romantismo tanto nos diálogos quanto nas virtudes ou pecados dos personagens.

    A trama é alimentada por pontos de virada bem colocados. Agatha Christie sabe exatamente quando os personagens têm que descobrir mais alguma coisa para a narrativa não se tornar tediosa. Nós, leitores, somos alimentados parcimoniosamente com informações que revelam os intentos passivos que se escondem por trás do assassinato. As pequenas soluções alimentam as grandes e assim somos fisgados até o fim. Mas…

    O fim não é exatamente o desfecho prodigioso em um gênero policial. Leitores de romances policiais gostam de acompanhar o movimento do investigador e paralelamente identificar as pistas que levam até a resolução do conflito. Contudo, a solução empregada por Agatha Christie é o que se chama “Deus ex machina”. Esse termo serve para expressar, em linguagem de teatro, roteiro e literatura, o surgimento de uma personagem, artefato ou um evento inesperado, artificial ou improvável, de forma repentina para a resolução do conflito final.

    Ao final da leitura fica uma sensação de desapontamento. Mas enfim, talvez não houvesse outra solução tão impactante quanto aquela. Decida-se ao ler. Livro bem recomendado.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: O Assassinato de Roger Ackroyd – Agatha Christie.

  • Review | Samurai Jack

    Review | Samurai Jack

    “Há muito tempo, em uma terra distante, eu, Abu, o grande mestre das trevas, libertei as terríveis forças do mal, mas um simplório guerreiro samurai, empunhando uma espada mágica, opôs-se a mim. Antes do combate final, eu abri um portal no tempo, e o lancei no futuro, onde o mal é lei. Agora o tolo busca retornar ao passado e destruir o futuro que é Abu!”

    Esta é a introdução para um dos clássicos da Cartoon Network, criado por Genndy Tartakovsky, a mesma mente por trás de O Laboratório de Dexter.

    Samurai Jack é uma série animada que conta a história de um Príncipe, filho de um Guerreiro Imperador Samurai, que tem sua terra natal tomada e destruída por um demônio metamorfo, Abu (ou Aku, no original em inglês), o maligno mestre das trevas que havia despertado novamente. Antes que o palácio fosse tomado pela criatura, o Imperador envia o príncipe para uma jornada épica, que havia sido planejada no caso do retorno do vilão, onde o jovem iria aprender a se tornar um verdadeiro guerreiro.

    Viajando por diferentes locais do mundo todo, ao encontro dos maiores mestres nas artes da luta e disciplina, ao longo de anos, o Príncipe conquista os conhecimentos necessários para retornar a sua terra natal e enfrentar o maligno Abu. Portando a espada Mágica entregue por seus pais – a única arma capaz de derrotar a criatura – o jovem guerreiro finalmente se depara com o demônio e, ao enfrentá-lo com todos os conhecimentos adquiridos em sua jornada, tem força suficiente para derrotá-lo. Porém, Abu é ardiloso, e antes que o guerreiro pudesse lançar seu golpe de misericórdia, a criatura abre um portal mágico no tempo e espaço a fim de dar cabo de seu rival, enviando o jovem samurai para um futuro distópico e semi-apocalíptico, no qual Abu reinava tiranicamente durante séculos.

    O futuro é um mundo cheio de caos, onde a magia e a tecnologia convivem. Robôs, extraterrestres, animais falantes, monstros, criaturas mágicas e divindades habitam este futuro. Algumas áreas possuem tecnologia avançada, como carros voadores, enquanto outras parecem cidades antigas ou em ruínas. Criaturas mitológicas e sobrenaturais também fazem aparições normalmente, coexistindo com toda a tecnologia. Ao chegar nesta terra retro-futurística desconhecida, as primeiras pessoas que encontram com o samurai o chamam de “Jack”, que, por fim, adota esse nome. Seu nome real nunca é mencionado.

    Jack agora tem uma nova jornada, a de buscar uma maneira de voltar para o passado, para seu próprio tempo, onde poderá derrotar Abu antes que este domine o mundo. E nessa jornada, Jack precisa passar por vários conflitos, seja enfrentando bandidos, entidades místicas, assassinos, caçadores de recompensa ou apenas por ajudar algum povo ou pessoa em necessidade, assim ganhando novos aliados e sempre contrariando a vontade do maligno Abu. Mesmo assim, sempre quando Jack se encontra prestes a terminar sua jornada, algo sempre faz com que suas chances sejam perdidas ou desperdiçadas, normalmente em troca de um bem maior, forçando assim com que o herói continue em sua jornada.

    Criada originalmente em 2001, a saga de Samurai Jack estreou no Canal da Cartoon Network Norte Americana como um especial em três partes, contando o início da história do jovem guerreiro. Com o bom recebimento da animação, Samurai Jack teve 52 episódios encomendados pela a emissora, sendo exibidos em quatro temporadas de 13 episódios.

    A série tem como base a fascinação que Tartakovsky tinha quando criança pelas histórias e cultura dos Samurais e seus códigos de honra, o bushido, seguido de seus sonhos recorrentes em que perambulava por uma terra devastada, carregando uma espada e lutando contra criaturas diversas, mas também com influências do cinema e da literatura.

    As cores e o som são elementos importantes para a série, sendo capazes de delinear as situações pelas quais Jack está passando com tamanha profundidade que dispensam qualquer diálogo, e os cortes de cenas com telas divididas ou com apenas afunilando a íris na diagonal e vertical dão a dinâmica e o movimento que o tornam tão especial.

    O show evoca uma cinematografia hollywoodiana anterior aos anos 70, como as dos clássicos Ben-Hur (1959), Spartacus (1960) e Lawrence da Arabia (1962), assim como as obras antológicas de Akira Kurosawa, e um visual estético inspirado nas obras em quadrinhos de Frank Miller, como 300 (1998) e Ronin (1983-1984), e o mangá de Kazuo Koike e Goseki KojimaLobo Solitário (1970-1976), que possuem premissas similares à série, qual seja, um protagonista solitário e sua luta contra poderosos inimigos. Ao longo da série, ela também destaca elementos que mostram inspiração ou até mesmo alusão a diversas outras obras da cultura pop, como os elementos de horror das obras de Junji Ito (Uzumaki, Fragmentos do Horror), conflitos como os das sagas Westerns de Sérgio Leone (Trilogia dos Dólares), o ar distópico e noir de Blade Runner (1982), e Mad Max (1979) ou até mesmo as das fantasias espaciais de George Lucas (Star Wars), algumas das referências que podem ser encontradas. Filmes clássicos de Kung-Fu e obras literárias e mitológicas diversas são bastante exploradas, entre muitos outros gêneros.

    Todos os episódios da série são dirigidos por Tartakovsky, geralmente com a colaboração de outros diretores convidados. A série foi aclamada pela crítica, recebendo quatro Prêmios Emmy, seis Prêmios Annie e um Prêmio OIAF. Em setembro de 2002, a série estreou no Brasil pela Cartoon Network, assim como pelo SBT, em TV aberta. Por fim, a série terminou sem uma conclusão, simplesmente por não terem um final planejado para a saga do samurai, tendo seu último episódio exibido em Setembro de 2004.

    “Cinquenta anos se passaram, mas… eu não envelheço. O tempo perdeu seu efeito sobre mim. No entanto, o sofrimento continua. O alcance de Abu sufoca o passado, o presente e o futuro. A esperança está perdida.

    Tenho que voltar… voltar ao passado … Samurai Jack!”

    Após um longo hiato e promessas de adaptações cinematográficas que nunca se materializaram, em dezembro de 2015, 11 anos após a exibição do ultimo episódio da quarta temporada, foi anunciado que Samurai Jack retornaria. Novamente com a presença de seu criador original, Genndy Tartakovsky, na produção e direção, eles mantiveram uma equipe simples, porém competente e criativa, sendo concedida a série os direitos da produção de 10 novos episódios. Com as mudanças no método de narrativa de animações para televisão desde o término da série, a produção da nova temporada permitiu que o show mudasse seu estilo original de narração episódica, onde cada episódio é mais ou menos independente uns dos outros, para uma história contínua, mas sempre mantendo o estilo da série original. Esta também aborda elementos mais maduros, seguindo uma premissa mais coesa que concluiria a jornada de Jack. O progresso foi gradualmente sendo exibido ao longo de 2016 até, finalmente, ter sua estreia em março de 2017 no bloco Adult Swim, da Cartoon Network Norte Americana.

    A história se passa cinquenta anos após Jack ser lançado no futuro, embora ele não tenha envelhecido um único dia, como um efeito colateral de sua viagem no tempo. Infelizmente, após seu ultimo confronto com Abu, Jack perdeu a espada mágica de seu pai e, desesperado pelos muitos anos de incontáveis lutas contra Abu e da destruição de todos os portais do tempo, ele é assombrado por visões distorcidas de si mesmo e de sua família, provenientes de sua culpa por acreditar ter falhado em sua missão. Mas Abu parece não estar ciente desse fato e, com o tempo, começa a desistir de derrotar Jack por saber que sua determinação nunca se perderia e pelo fato de Jack não poder envelhecer.

    Paralelamente, uma seita seguidora de Abu prepara sete guerreiras assassinas devotadas unicamente a matar o samurai em benefício do déspota demoníaco. Num primeiro ataque, Jack, acostumado a enfrentar as máquinas e robôs de Abu, acaba matando uma das assassinas, o que causa grande abalo em sua psique, pois ao longo dos anos – e da série – ele nunca havia ferido ou matado um ser humano. Ferido e abalado, Jack consegue fugir, caindo em um rio, e acaba sendo salvo por um Lobo, que o ajuda a cuidar de seus ferimentos e a se recuperar. Ao se recompor, Jack reúne suas forças para enfrentar novamente as assassinas de Abu, e apesar da desvantagem, Jack possui mais habilidades que as jovens, conseguindo derrotá-las uma a uma. Por fim, o samurai enfrenta Ashi, a última sobrevivente e prodígio do grupo, em uma grande batalha. Com as guerreiras mortas, menos uma, Jack acaba aprisionando a jovem assassina para tentar entender o porquê de sua devoção ao demônio.

    Convencido de que Ashi teria sido “programada” para acreditar que Abu seria um grande e bondoso governante e que Jack seria o vilão que estaria tentando fazer mal à humanidade, Jack mostra a Ashi todo o mal de Abu, levando-a numa jornada a locais dizimados por seu poder maligno, o que a faz seguir sua própria jornada. Ao encontrar diversas criaturas e povos que foram ajudados pelo samurai, Ashi descobre a real bondade de seu coração e a manipulação de sua mente, o que acaba por convencê-la da realidade. Ashi, então, vaga ao encontro do Samurai e decide acompanhá-lo em sua missão de recuperar a espada mágica e derrotar o maligno Abu.

    Ao tentar recuperar sua espada, que havia caído em um abismo após a última batalha com Abu, Jack descobre que o fato de nunca a ter recuperado era por conta dos conflitos em sua mente, a culpa e o desespero tomaram conta de sua alma e o afastavam da magia da espada. Entrando em meditação, Jack se recompõe e liberta sua mente, equilibrando seu espírito e recuperando sua espada, enquanto Ashi o protegia de um ataque, lutando contra um exército mercenário. Após conflitos com uma espaçonave caída, Jack e Ashi começam a atingir um laço de afeição que ambos nunca haviam sentido anteriormente, e se envolvem romanticamente.

    Quando finalmente a notícia de que Jack havia perdido sua espada chega ao conhecimento de Abu, o ânimo e a vitória iminente acendem sua determinação, o que faz com que o demônio parta em busca do samurai para um novo e último conflito. O que Abu não sabia era que Jack já havia recuperado a espada mágica e estava pronto para enfrentar o demônio, o que quase se concretiza, porém, Abu consegue farejar sua energia maligna dentro de Ashi, descobrindo que seu nascimento não era ocasional e sim ela teria sido criada da essência do déspota e patriarca da seita sinistra. Abusando justamente de seus propósitos, Abu usa seu poder para dominar e controlar a jovem, a colocando em uma batalha contra o samurai. Quando este desiste de lutar com medo de matar sua companheira, Jack é finalmente capturado por Abu.

    Com Ashi sendo controlada e Jack aprisionado, Abu finalmente comemora sua vitória transmitindo o que viria a ser a execução do herói para que todos no planeta pudessem assistir. Por causa do anúncio feito pelo demônio maligno, todos aqueles que já tiveram suas vidas salvas pelo guerreiro samurai partiram ao encontro do herói, na esperança de livrá-lo das garras do vilão. Com a ajuda de seus velhos amigos, Jack está livre para lutar mais uma vez, mas ele não quer ferir Ashi que, ainda sobre feitiço de Abu, parte para matá-lo. Jack, mesmo escapando dos ataques de Ashi, é absorvido pela energia negra controlada por Abu, onde ela lutava para se libertar. Jack, declarando seu amor, faz com que Ashi encontre forças para sair do transe de Abu, se voltando novamente contra seu mestre. Ao descobrir que também possuía os mesmos poderes do maligno demônio, Ashi usa habilidades para abrir um portal no tempo, assim como Abu havia feito anos atrás, e assim levar o samurai de volta para o passado.

    A partida de Jack mal havia acontecido e Abu cantava sua vitória 50 anos atrás, quando o portal vindo do futuro se abre exatamente onde o antigo havia fechado, e Abu se depara com Jack novamente, mais forte e determinado que nunca, usando a espada dada por seus pais. Jack finalmente põe um fim no caos de Abu, e dessa vez, para sempre. Os dois jovens apaixonados estão livres do mal do demônio, e por fim decidem se reunir em matrimônio, porém, como a maldade do futuro de Abu nunca existira, a existência de Ashi se tornara um paradoxo, e se dissolve no tempo diante do samurai. Desolado diante da perda de seu único amor, Jack se sente novamente perdido, mas encontra esperanças na presença de uma pequena joaninha que voa ao encontro do pôr do sol.

    Essa temporada explora bem as faces do herói estagnado que Jack se tornara com o tempo. Suas escolhas ou a falta de escolhas demonstram a maturidade no caráter do herói em retrospectiva as suas ações comparadas aos antigos vilões, que normalmente eram apenas máquinas programadas unicamente para matar, mas que não possuíam nenhuma espécie de sentimento.

    Tartakovsky realmente esperava causar um impacto emocional aos fãs da série, pois com a vinda de Ashi, a série pode explorar os acontecimentos e consequências de uma criatura viva, e ciente de outras ao seu redor, sendo reduzida também a uma máquina, mas com possibilidade de redenção, e assim redimir não somente a ela, mas também a Jack. O cuidado e o carinho da produção em manter as memórias das temporadas anteriores nessa última jornada mostram que nada se perdeu com o tempo, tudo que anteriormente foi criado para a série ainda faz parte de seu universo.

    A crítica aclamou essa última temporada como sendo uma das obras primas de Tartakovsky, ganhando nota 94 de 100 no site Metacritic, e com nota máxima na Rotten Tomatos, deixando no imaginário como seria se toda a série tivesse utilizado do mesmo método para sua produção, desde sua primeira temporada, com uma história única a cada temporada, e abordando esse material mais maduro. Para muitos, a quinta e última temporada de Samurai Jack pode ter terminado em clichês baratos ou até mesmo com suas pontas soltas, mas pela jornada que ela nos leva e pelo que podemos aprender com ela, posso dizer que seu fechamento é poesia, pura e melancólica poesia de um guerreiro eternamente solitário.

    Texto de autoria de Bruno Gaspar.

  • Crítica | It: A Coisa

    Crítica | It: A Coisa

    Pennywise (Bill Skarsgård), o palhaço mais assustador da cultura pop, está de volta em mais uma adaptação da obra de Stephen King (Leia nossa crítica de IT – Uma Obra Prima do Medo). Com roteiro de Chase Palmer, Cary Fukunaga e direção de Andy Muschietti, o filme conta a história do autodenominado “Losers Club” (clube dos perdedores), um grupo de amigos, pré-adolescentes, que moram na pequena cidade de Derry, no estado de Maine, que começa a investigar o desaparecimento de várias crianças e adolescentes.

    Enquanto tentam descobrir o que aconteceu aos desaparecidos, se deparam com Pennywise, o palhaço – uma encarnação do mal que tem espalhado mortes e violência na cidadezinha há séculos, desde sua fundação.

    Grupo de crianças e/ou adolescentes são personagens recorrentes nas histórias de King. Quem não se lembra de Conta Comigo? Não há dúvida que a identificação do público com os personagens é facilitada, ocorrendo de forma mais intensa, pois as situações vividas pelas crianças sempre encontram correspondência na própria vivência do espectador. E, lógico, devido a essa identificação, o público se importa muito mais com o destino dos personagens, com o risco que correm. Em consequência, os sustos e as situações de perigo provocam reações potencialmente maiores.

    O escritor também aproveita suas histórias para falar das dificuldades de ser criança/adolescente, dos percalços que a passagem à vida adulta traz. Em suma, suas histórias tratam basicamente dos ritos de passagem. No caso desta, todos os medos e anseios dos personagens são personificados de forma assustadora nas visões causadas por Pennywise. É um recurso bastante eficiente, que J.K. Rowling também usou – o Bicho-papão assumia a forma do maior medo de quem olhasse para ele. Mas com Pennywise, esse conceito é aplicado de modo exponencialmente mais horripilante, principalmente pelo fato de as visões serem muito mais realistas.

    Bons sustos não faltam ao filme. E, o que é melhor, mesmo para os espectadores de filmes de terror mais “experientes”, nem sempre é possível antever o momento em que irão ocorrer. Muitos filmes o gênero sofrem do que se pode chamar de “clichê precoce”: situações recorrentes em que é quase certo que o personagem tomará um susto e, talvez, o público também. A cena clássica do susto ao abrir a cortina do chuveiro é um bom exemplo disso. Contudo, o roteiro consegue manejar bem os sustos, não só por não deixar óbvio o momento em que ocorrerão, mas também por gerar o susto de formas inusitadas, em locais tão inusitados quanto um ralo de pia.

    Os roteiristas optaram por deslocar a história temporalmente para os anos 80 – no livro de Stephen King, ela se passa em 1958. E pode-se dizer que foi uma ótima escolha, já que essa década certamente gera um saudosismo muito maior do público atual. A reconstrução da época foi muito bem feita, desde o figurino, passando pelo cenário e até os programas de TV e as músicas tocando no rádio. Os espectadores que foram assistir E.T. – O Extraterrestre ou Conta Comigo no cinema se sentirão em casa.

    O elenco infantil é sensacional. A sinergia que possuem faz com que consigam transmitir tanto a força dos laços de amizade quanto dos conflitos entre eles. E vale destacar a atuação de Skarsgård, irreconhecível sob a maquiagem de Pennywise e simplesmente aterrorizante.

    Se você tem medo de palhaços, este filme definitivamente não é para você. E se você não tem, há grande probabilidade de passar a ter.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Baywatch

    Crítica | Baywatch

    Uma das estreias mais curiosas de 2017, Baywatch chegou aos cinemas com a missão de criar uma franquia nos cinemas baseados na popular série de TV dos anos 90.

    Os guarda-costas da praia aceitam novos recrutas indisciplinados enquanto lutam contra traficantes de drogas. O roteiro escrito por Damian Shannon e Mark Swift, com a história de Jay Scherick, David Ronn, Thomas Lennon e Robert Ben Garant, tem como maior mérito a simplicidade da narrativa. Desde a apresentação dos personagens, o conflito com os traficantes de drogas se passando como donos de um clube, às mais variadas situações, tudo é muito claro ao espectador.

    A premissa gira em torno da maturidade de Matt Brody (Zac Efron), ex-campeão olímpico que precisa aprender a trabalhar em equipe, o que por si reflete no líder dos salva-vidas, Mitch Buchannon (Dwayne Johnson). A mensagem é simples: um guarda costas precisa saber se salvar antes de poder salvar os outros.

    O elenco está muito confortável fazendo as atuações mais canastronas possíveis que o filme exige. The Rock mostra porque tem presença e força em Hollywood. A direção de Seth Gordon achou o tom certo de comédia, outro acerto é a falta de pretensão, o filme não se leva a sério em nenhum momento. A fotografia de Eric Steelberg e a edição de Peres S Eliott cumprem o seu papel, deixando uma fotografia naturalista e um ritmo fluido.

    Baywatch deve agradar aos fãs da série como também quem aprecia uma comédia descerebrada.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

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  • Crítica | Um Contratempo

    Crítica | Um Contratempo

    Diversas vezes o audiovisual e a literatura retrataram o crime perfeito, de Agatha Christie a Alfred Hitchcock, e os finais dessas histórias sempre trazem as melhores resoluções, Um Contratempo bebe muito dessas fontes e se torna um dos melhores suspenses do ano passado, mas por conta da ambição e do exagero escorrega no terceiro ato e o crime perfeito acaba perdendo o seu peso.

    O filme, que é dirigido e roteirizado pelo espanhol Oriol Paulo, acompanha um jovem empresário que tenta provar para uma advogada especialista em depoimentos que ele não assassinou a própria amante. O suspeito é interpretado por Mario Casas de forma bastante sutil, o ator passa por vários cenários de cunho interpretativo e dá conta do recado, mas as pedras preciosas do filme são Bárbara Lennie, responsável por dar vida a vítima, e Ana Wagener, a experiente advogada, as duas entregam trabalhos distintos mas recheados de camadas muito complexas e imprevisíveis, no sentido de que suas personagens carregam muito em entrelinhas.

    Entrelinhas essas que vão dando a Um Contratempo uma variedade de perspectivas, como o próprio longa gosta de firmar, é nos detalhes que se escondem as coisas mais importantes, e por isso um detalhe na narrativa leva a outro até que uma rede de versões, histórias e fatos se constrói, sendo o maior acerto de Oriol. A forma com que a trama vai ficando mais complexa a cada diálogo e como as personagens de Mario e Ana jogam um jogo quase palpável para ver quem é mais esperto, provam o excelente roteirista que Oriol é nesse trabalho.

    O cineasta também tem bastante controle de mise-en-scène, a boa ambientação é proporcionada por uma fotografia engenhosa e uma trilha musical levemente ameaçadora, bastante coerente com o caminho que o filme leva. O problema, porém, aparece no começo do terceiro ato, se os dois primeiros são bem construídos e entrega boas surpresas, o diretor parece ansiar grandes revelações finais e acaba levando uma rasteira da própria ambição, ao tentar surpreender com um “sub-plot twist” a cada minuto a narrativa acaba deixando essas tramas sem respirar e de repente o final de Um Contratempo vira uma bagunça anti-climática e, mesmo que em baixos níveis, acaba desrespeitando todo o caminho apreciado pelo espectador até ali.

    O ponto alto de um bom suspense é a relação criada pelo filme com seu espectador, mas infelizmente o novo longa do cineasta perde um pouco disso em seus últimos minutos, mas de jeito nenhum tira todos os méritos conquistados até então, construindo um bom suspense de camadas e tendo em seus personagens ótimas interpretações. Oriol tem talento e criatividade, restou aqui apenas uma filtrada, então fiquemos de olho em seus próximos passos.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Review | Game of Thrones – 7ª Temporada

    Review | Game of Thrones – 7ª Temporada

    Ao término de sua sexta temporada, foi anunciado ao grande público que o desfecho da grande saga criada por George R. R. Martin e que ganhou vida sob os olhos de D. B. Weiss e David Benioff teria somente apenas mais 13 episódios a serem divididos numa penúltima temporada de sete episódios, sendo a temporada derradeira, seis. Os fãs de Game of Thrones receberam a notícia como se fosse um banho de água fria, já que a série é a mais querida e mais assistida da televisão. Afinal, qual seria o real motivo de diminuir a quantidade de episódios logo em sua reta final? Porém, quando os créditos do último episódio desta 7ª temporada começaram a aparecer, teve-se a sensação de que a decisão dos produtores foi acertada.

    Se a ótima 6ª temporada havia sido a melhor de toda a série, sua sucessora tinha a injusta missão de superá-la, ou ao menos, igualá-la. E para isso, Weiss e Benioff tinham em mãos um planejamento certeiro, que acabou por casar a história com a quantidade de episódios a serem distribuídos, sendo que, o que se teve, foi uma temporada com episódios maiores em termos de duração, mas sem nenhuma morosidade, inclusive apresentando certa urgência incomum em seus desenrolares e acontecimentos, deixando um saldo final como a temporada mais regular até aqui em termos de episódios, não cabendo, portanto, espaço para a enrolação tão criticada nas outras temporadas.

    Se logo no começo da 1ª temporada os principais personagens se separaram, mas ainda assim podendo mencioná-los e dividi-los por núcleos (ainda que cada membro de uma determinada casa estivesse um em cada lugar de Westeros), o que se viu aqui foi uma satisfatória mistura recheada de primeiros encontros e vários reencontros. A premissa desta vez foi extremamente simplificada. Enquanto Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) cruzou o Mar Estreito pela primeira vez junto dos Dothraki e os Imaculados nos navios fornecidos por Yara (Gemma Whelan) e Theon Greyjoy (Alfie Allen), trazendo consigo sua mão, Tyrion Lannister (Peter Dinklage) e Lorde Varys (Conleth Hill). O Rei do Norte, Jon Snow (Kit Harington), se preocupa em reunir demais aliados ao Norte para a ameaça dos White Walkers, liderados pelo Rei da Noite, que busca atravessar a muralha com seu exército de mortos. Enquanto isso, a nova rainha, Cersei Lannister (Lena Headey), continua estabelecendo suas alianças e se fortalecendo através do terror e da intimidação.

    Obviamente, a história passa a se converter na urgência maior, obrigando Jon a viajar até Dragonstone, onde Daenerys estabeleceu sua moradia. Sua missão é convencê-la da ameaça dos White Walkers, pedindo para que ela lute ao seu lado e ainda permita que a equipe do Lorde de Winterfell extraia o vidro de dragão, extremamente abundante na ilha e efetivo contra os mortos-vivos. O encontro que foi bastante aguardado, seguindo a tradição de encontros emblemáticos, não sai como esperado, haja vista que a orgulhosa khaleesi ordena que Jon Snow se ajoelhe, jurando servir a Casa Targaryen. O pedido é totalmente negado, mas Snow consegue convencê-la a deixar com que se extraia o mineral.

    Uma das principais deficiências da série sempre foi o fato dos produtores e roteiristas introduzirem sérias ameaças sem justificativa nenhuma, como foi o caso do Alto Pardal de King’s Landing, seus seguidores e dos Filhos da Hárpia, que causaram muitas baixas no exército de Daenerys nas temporadas anteriores. Na atual temporada, o descaso/ameaça da vez é o irritante e cruel Euron Greyjoy (Pilou Asbaek), personagem introduzido na temporada anterior e que consegue tomar para si todo o poder das Ilhas de Ferro. Aliado aos Lannisters e querendo ser casar com Cersei, Euron intercepta pelo mar parte da armada de Daenerys numa sensacional batalha entre navios, sequestrando Yara Greyjoy e as Serpentes de Areia, entregando essas últimas (assassinas da menina, Myrcella) para a rainha de Westeros.

    Um outro ponto que mereceu destaque foi a maneira como os dragões foram utilizados nesta temporada, onde foi deixado de lado seus aparecimentos apenas para salvarem o dia, no melhor estilo Deus Ex Machina, ou “Dragões Ex Machina”, como preferir. Após ser enganada numa bela manobra militar feita por Jaime Lannister (Nicolaj Coster-Waldau), que conseguiu afastar o exército de Imaculados, Daenerys resolve responder de maneira efetiva aos leões, dizimando violentamente parte do exército de Jaime com seus 3 dragões pelo ar e os Dothraki em terra. Jaime que quase não sobrevive e que estava cego pelo seu amor por Cersei, passa a ter lampejos de racionalidade, reconhecendo a supremacia de Daenerys, a força dos Dothraki e o poder dos 3 dragões, demonstrando, por várias vezes, ser contrário aos ideais de sua irmã, dando a entender, ao final da temporada, aparentemente, ter escolhido um caminho a seguir. A batalha em questão teve um escopo maior que a Batalha dos Bastardos, usando mais figurantes, mais cavalos e mais tempo para ser preparada, ainda que, aparentou ter sido filmada com um pouco menos de cuidado em relação ao embate de Jon Snow e Ramsey Bolton na temporada anterior.

    Enquanto tudo isso acontecia, assuntos menores, mas de suma importância desenrolavam em outros pontos de Westeros. Sam (John Bradley), por exemplo, no caminho de se tornar um meistre para ajudar Jon Snow, além de descobrir algumas respostas sobre os White Walkers e sobre o casamento em segredo de Rhaegar Targaryen (Wilf Scolding) e Lyanna Stark (Aislin Franciosi), esbarra, sem querer, numa conveniência de roteiro que levou à Cidadela Sor Jorah Mormont (Iain Glenn), que está num estado degradável com a escamagris tomando boa parte de seu corpo. Enquanto isso, um chato Bran Stark (Isaac Hempsted Wright), agora como o Corvo de Três Olhos, chega a Winterfell que está sendo guardada por sua irmã, Sansa (Sophie Turner), sendo que as reuniões não param por aí, quando a corajosa Arya (Maisie Williams), chega para fazer a maior reunião da Casa Stark, desde o final do 1º episódio da série. Vale destacar que é o cenário perfeito para que o ardiloso Mindinho (Aidan Gillen) continue com seu plano de tomar tudo para si. Acontece que Arya e Sansa não são mais as mesmas garotas de antes e, mesmo que tenhamos uma noção de que apesar de tudo que passaram, elas ainda guardam diferenças e uma certa inveja uma da outra, foi bom poder acompanhar a continuidade do “trabalho” de Mindinho e a maneira como as irmãs Stark lidaram com isso.

    Sem dúvida, o momento mais sensacional de toda a temporada e seguindo a tradição da série do melhor episódio ser sempre o penúltimo, foi quando Jon Snow resolve capturar algum membro do exército de mortos com a finalidade de provar à Cersei que é hora de colocar as divergências de lado em prol do futuro da humanidade. Assim, reúne num só time nada mais, nada menos, que parte dos mais queridos e melhores guerreiros de Westeros, causando furor na internet que, carinhosamente, comparou o time com a Sociedade do Anel, ou com os Vingadores, ou com um nome ainda mais justo: Esquadrão Suicida. Quem se juntou a Snow na empreitada foi o selvagem Tormund Giantsbane (Kristofer Hivju), o Cão, Sandor Clegane (Rory McCanne), Sor Jorah Mormont, completamente curado e novamente integrado à Daenerys, o sumido Gendry (Joe Dempsie), repatriado por Sor Davos (Liam Cunningham), além de Thoros De Myr (Paul Kaye) e Beric Dondarrion (Richard Dormer), a dupla que sobrou da extinta Irmandade Sem Bandeiras. O episódio tem diálogos sensacionais e divertidos, principalmente quando Tormund e Clegane conversam sobre Lady Brienne (Gwendoline Christie). Toda a empreitada teve momentos para prender a respiração e momentos de apresentar baixas significativas, tanto na equipe, quanto no que diz respeito à morte de um dos dragões, demonstrando que o Rei da Noite é muito mais poderoso do que se imagina.

    Além de ter sido o episódio mais tenso de toda a temporada e também foi aquele que bateu recorde de audiência, ainda que a HBO Espanha tenha cometido a irresponsabilidade medonha de passar o episódio dias antes de sua estreia, em vez de passar uma reprise do episódio anterior, fazendo com que tudo fosse disponibilizado na rede muito antes da hora.

    Se o sexto episódio foi um dos top 3 de toda a série e detentor de recordes, o último episódio acabou por superar o recorde antigo no que diz respeito à audiência. Nele, pudemos acompanhar a maior reunião de personagens numa única cena. Junto de Cersei e alguns soldados da guarda real, estavam Jaime, Qyburn (Anton Lesser), Euron Greyjoy e a Montanha, Gregor Clegane (Hafþór Júlíus Björnsson). Do lado de Daenerys, estavam Tyrion, Jon Snow, Davos, Varys, o Cão, Sandor Clegane, Brienne, que foi representar Sansa Stark; Missandei (Nathalie Emmanuel), Theon, Jorah Mormont e alguns Dothraki. A importância dessa reunião foi enorme, tanto para o seguimento da história, quanto para os fãs que aguardaram anos para ver concretizada. Jon Snow, pela primeira vez, desde o primeiro episódio da série confronta os assassinos de Ned Stark. Brienne reecontra Jaime e o Cão que foi derrotado por ela, sendo que o respeito mútuo entre os dois chega a ser louvável. O Cão confronta seu irmão, deixando claro que a história entre os dois, o chamado Clegane Bowl está perto do fim. E por último, Daenerys tendo seu primeiro contato com o reino e a rainha de King´s Landing.

    O episódio, que foi o mais longo de toda a série, teve uma pegada bem cadenciada, mas longe de ser chata, ou cansativa. Contudo, pudemos experimentar detalhes importantes para a trama, primeiro no que diz respeito a Jon Snow, onde todas as teorias a seu respeito foram confirmadas com um adendo especial: seu nome, que poderá, inclusive delimitar o seu destino na trama. Um outro ponto foi a conversa secreta que Tyrion teve com Cersei. O que será que o anão fez para convencer a rainha a apoia-los na batalha contra os White Walkers? E o que a fez desistir tão facilmente do acordo a ponto de Jaime tomar as decisões que tomou? E Tyrion que se demonstrou extremamente desconfortável ao ver Jon Snow entrando no quarto de Daenerys? Essas perguntas só serão respondidas na derradeira temporada da série.

    Afinal, a sensação é que não restará muita coisa, assim como parte da grande muralha, destruída por Viserion, o dragão de Daenerys, ora derrotado e revivido pelo Rei da Noite. O inverno que já havia chegado ao Norte, chegou inclusive na Capital. E na história de Westeros, neve na Capital não é sinal de bons ventos. A previsão é de um longo e tenebroso inverno, porém curto o bastante para os espectadores.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Resenha | Uma Princesa de Marte – Edgar Rice Burroughs

    Resenha | Uma Princesa de Marte – Edgar Rice Burroughs

    O livro conta a história de John Carter, ex-combatente do exército confederado, que tenta recomeçar a vida depois de perder tudo com o fim da Guerra Civil. Inexplicavelmente, o capitão vai parar em outro mundo: Marte. O planeta, mesmo com sua aparência inóspita, possui diversas formas de vida, inclusive, seres inteligentes e desenvolvidos que vivem em sociedade. Contudo, assim como na Terra, vários povos estão sempre em guerra Carter cai – quase literalmente – no meio dessa batalha. E, como todo bom herói, irá enfrentar vários inimigos, fazer muitos amigos e, lógico, se apaixonar por uma princesa que, em algum momento, precisará ser salva.

    Mais conhecido pelo seu personagem mais famoso – Tarzan – em 1912, Edgar Rice Burroughs iniciou a publicação de uma série de contos que posteriormente seria transformada numa coleção de 11 livros, de que este é o primeiro volume. Burroughs publicava as histórias sob o pseudônimo de Norman Bean, pois temia sujar sua reputação contando aventuras sobre marcianos e viagens espaciais. Apenas os três primeiros da série tem como protagonista o capitão John Carter.

    O autor faz uso de um artifício bastante comum pra contar a história. Ele mesmo é um personagem, que recebe uma herança de um tio e, junto com o testamento, lhe é entregue um manuscrito. Nele, o tio, John Carter, contava suas aventuras em Marte. Sendo assim, o livro é narrado em primeira pessoa, o que dá ao leitor apenas a visão de Carter sobre todos os eventos.

    “Não sei por que eu deveria temer a morte. Eu, que morri duas vezes e continuo vivo. Mas continuo tendo o mesmo medo de alguém que, como você, nunca morreu antes. E é por causa desse terror pela morte que, acredito, continuo tão convencido de minha mortalidade.
    Por causa dessa convicção, decidi escrever a história dos períodos interessante da minha vida e morte. Não posso explicar tal fenômeno, mas apenas registrar aqui, com as palavras de um simples soldado, a crônica dos estranho eventos que se abateram sobre mim durante os dez anos em que meu cadáver descansou em segredo em uma caverna do Arizona.”
    (p.14)

    É possível afirmar que Burroughs é tipo um Jules Verne, mas sem se importar muito com a acuidade científica. Sua narrativa é muito mais focada na aventura do que na ciência, por essa razão alguns não classificam seus livros como ficção científica. É uma obra com alto teor imaginativo. Basta ver que a aventura se inicia quando o protagonista é transportado para Marte, assim, sem mais nem menos, numa cena do tipo “mentaliza e vai!”. Não se pode analisá-la, principalmente quanto ao aspecto sci-fi, pensando-se na ficção científica mais recente, que é muito mais “tecnológica” do que fantasiosa. Mas nem por isso, o autor despreza alguns fatos científicos decorrentes da presença de um humano em Marte. Acostumado à gravidade da Terra, cerca de 3 vezes maior que a de Marte, Carter de certa forma ganha superpoderes. Com seus músculos habituados a funcionar em uma gravidade maior, ele acaba se tornando mais leve, mais forte e mais veloz, o que lhe angaria a admiração dos marcianos.

    Burroughs usa e abusa da criatividade ao descrever a fauna e flora que existem em Marte, diferente do conceito atual de que o planeta é apenas um imenso deserto – basta lembrar de Perdido em Marte, de Andy Weir. A riqueza de detalhes dá ao leitor a impressão de que aqueles seres, independente de sua viabilidade biológica, poderiam, sim, existir no planeta (vale destacar que um dos poucos pontos positivos do filme foi a fidelidade às descrições do autor). Além disso, Burroughs dá bastante atenção às civilizações que habitam o planeta, seus costumes, sua organização social, hierárquica e bélica.

    Por ter sido produzido em fascículos, todos os capítulos têm algo que desenvolve a trama e, lógico, uma boa dose de ação. E é com esse olhar que o leitor atual deve se aproximar do texto. A leveza e, talvez, a extrema simplicidade da trama podem parecer pouco atraentes hoje em dia. Mas vale lembrar que são características inerentes ao formato como o livro foi produzido e publicado em sua época.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Doidas e Santas

    Crítica | Doidas e Santas

    Com direção e roteiro de Paulo Thiago, o filme conta a história de Beatriz Lira (Maria Paula), uma psicanalista de sucesso, terapeuta de casais, com vários livros publicados sobre o assunto, vê-se às voltas com uma crise no relacionamento com seu marido, Orlando (Marcelo Faria). Exemplo típico de “casa de ferreiro, espeto de pau”. Ela, que passa os dias no consultório, atendendo e ajudando casais, enfrenta essa crise conjugal que a faz repensar os rumos de sua vida. Além da crise conjugal, tem de lidar com a filha adolescente, Marina (Luana Maia), a mãe que passa a morar com ela, Elda (Nicette Bruno), a irmã ausente, Berenice (Georgiana Góes).

    O livro em que se baseia o roteiro – best-seller homônimo de Martha Medeiros – é uma coletânea de 100 crônicas publicadas em jornais, sites e livros. As crônicas abordam os mais variados assuntos – problemas da vida moderna, o trânsito, os relacionamentos, os perrengues cotidianos – tudo mixado às loucuras do universo feminino.

    Não é simples adaptar uma coletânea de crônicas, deixando a narrativa coesa. O roteiro tenta concatenar todas essas historietas, fundindo personagens, a fim de criar uma linha narrativa unificada. Mas não é totalmente bem-sucedido. Na maior parte do tempo, o filme parece ser uma sucessão de esquetes encenados pelo mesmo conjunto de personagens. Em vários trechos, essa amarração consegue ser fluida, sem dar a impressão de que os causos “pertecem” a outras pessoas. Porém, em outros, a narrativa mais parece uma colcha de retalhos mal costurada.

    Algo bem evidente é o humor que permeia as cenas, algo herdado das crônicas da autora. O lado ridículo das situações, a preocupação excessiva, o “mimimi” desnecessário, tudo isso é explorado. Como uma das personagens afirma em certo momento, é necessário rir de si mesmo para deixar a vida mais leve.

    Este é o primeiro filme de Maria Paula como protagonista. Percebe-se a falta de naturalidade em várias cenas. A presença de cena de Nicette Bruno faz com que ela pareça ainda menos à vontade. Até mesmo nas cenas com Luana Maia, a adolescente consegue ser muito mais convincente no seu papel. Mas não é algo que prejudique demais o filme.

    O filme claramente não se pretende como um libelo feminista, mas consegue ser um retrato interessante das várias facetas do universo feminino. Por não se levar a sério demais, atinge o objetivo de entreter e fazer rir sem apelar para a comédia escrachada.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | A Verdade é uma Caverna nas Montanhas Negras – Neil Gaiman

    Resenha | A Verdade é uma Caverna nas Montanhas Negras – Neil Gaiman

    Gaiman e os mitos populares

    A Verdade é uma Caverna nas Montanhas Negras, da editora Intrínseca, é um conto do escritor Neil Gaiman baseado em uma lenda popular da Escócia. Este, aliás, talvez seja o assunto principal na obra do autor: o resgate de mitos. Gaiman já declarou que uma função dos escritores modernos é a reconciliação com as histórias populares contadas ao redor do mundo. E ele faz isso com maestria.

    As Montanhas Negras, conforme nota do próprio Gaiman, são as Black Cuillins na Ilha de Skye, também conhecida como Ilha Alada ou Ilha das Brumas, onde, o autor ouviu, contam que há uma caverna cheia de ouro e que aqueles que a saqueiam se tornam um pouco mais malignos. Estes os motes principais do conto: a ganância e a maldade.

    O conto parte da simplicidade: um anão procura um guia que o conduza até as Montanhas Negras. Ele vai à casa do único homem que conhece o caminho, mas a princípio tem a aventura negada. Os homens não tem confiança um com o outro, clima que acompanha toda a história. Mas, por fim, o guia resolve conduzir o anão até as montanhas.

    A partir daí, Gaiman trabalha a informação sobre as montanhas e o passado dos dois homens às migalhas. Tanto a lenda sobre o ouro quanto o motivo deles se estranharem são explicados aos poucos, e sentimos a escalada do conto de forma análoga a um filme ou animação clássica. O autor tem essa sensibilidade para nos dar a informação precisa do momento, nunca mais, nem menos. Em paralelo, o autor desenvolve metáforas rurais para os humores das personagens e faz descrições belíssimas da natureza e da geografia que enfrentam. É um ritmo lento ao leitor mais apressado, mas é necessário para a absolvição de toda a potência da trama.

    As imagens ficam por conta do experiente Eddie Campbell e o que temos não é uma história em quadrinho nem um conto ilustrado, mas um híbrido ainda não catalogado. Motivo: as ilustrações por vezes sustentam a história, às vezes rasgam a mancha gráfica do texto e por vezes surgem entre o texto e novas imagens. Ou seja, apostaram em ferir a linha textual inserindo aquarelas para tornem cada página diferente da outra.

    Por fim temos uma história belíssima rica em forma e conteúdo. Livro mais do que recomendado.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • Crítica | A Economia do Amor

    Crítica | A Economia do Amor

    Produção franco-belga de 2016, A Economia do Amor estreou no Festival de Cannes do mesmo ano com a temática recorrente de Joachim Lafosse sobre a dificuldade de se manter um relacionamento parental. O título equivocado pode induzir a uma comédia romântica quando se trata de um drama denso.

    Após a separação, Marie e Boris são obrigados a conviver juntos com as duas filhas gêmeas enquanto acertam os detalhes financeiros da venda da casa.

    O roteiro escrito a quatro mãos pelo diretor Joachim Lafosse (Os Cavaleiros Brancos), em parceria com Fanny Burdino, Mazarine Pingeot e Thomas van Zuylen, acerta na simplicidade da história. O casal aos poucos vai mostrando ao espectador a sua falta de sintonia, as rusgas do relacionamento vão aparecendo em um diálogo, um olhar, a forma de andar, e, principalmente, como os dois lidam com as filhas.

    A narrativa simples se constrói em sua maior parte em torno dos diálogos. Como o casal já inicia o filme separado, nada mais interessa a não ser mostrar a gigantesca discussão que os levou até aquele ponto e que tenta terminar na partilha da casa, a tal “economia do amor”. Entre uma recaída e outra, o casal ainda tenta uma convivência, mas as rusgas existentes não deixam, como na boa cena em que Marie recebe seus amigos no pátio da casa e Boris aparece e azeda o clima.

    O fato do filme se passar quase em sua totalidade na casa tenta passar reforçar a premissa ao espectador de que a convivência entre as pessoas é complexa quando não há sintonia entre os envolvidos. A única parte do roteiro em que se sai da casa é para demonstrar como o deslize de um dos dois quase causou um acidente fatal com uma das filhas.

    A atuação da sempre ótima Bérénice Bejo é um dos pontos altos do filme. Cédric Khan cumpre o seu papel, porém a química entre os dois poderia ser melhor. As irmãs gêmeas Jade e Margaux Soentjens não comprometem como os filhos do casal.

    A direção de Lafosse é direta, bruta e seca. Como o diretor preza pelo realismo dos tempos mortos em excesso, não há a construção de uma curva dramática, a mise-en-scène que reflete o embate entre os dois protagonistas acontece desde o início do filme e não denota evolução. A escolha por uma única locação em mais de 90% do filme chega a ser claustrofóbica, uma obviedade desnecessária do diretor em manter o foco do espectador para o que acontece sob o teto de um casal. A casa caiu, mesmo permanecendo lá.

    A fotografia naturalista de Jean-François Hensgens está em sintonia com a proposta realista de Lafosse, no entanto, ela poderia se destacar em mais partes além da boa cena de interação com o casal de amigos. A edição do filme de Yan Dedet poderia privilegiar menos alguns dos tempos mortos para deixar o filme com um ritmo melhor e menos cansativo, o que não iria atrapalhar em nada a proposta do diretor.

    A Economia do Amor deve interessar a quem busca temas pesados sobre a dificuldade de um relacionamento adulto.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

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  • Resenha | Sandman: Noites Sem Fim (1)

    Resenha | Sandman: Noites Sem Fim (1)

    Mais uma do Sonhar

    Apesar de uma das maiores histórias dos quadrinhos (tanto em extensão quanto em qualidade), ter sido encerrada em 1996, Sandman ainda continua com um universo gigantesco (literalmente) a ser explorado. Noites Sem Fim (Panini Comics), é outra incursão de Neil Gaiman no cenário que o fez famoso mundialmente. O que torna este trabalho mais ambicioso e especial em relação aos outros é o time escolhido a dedo de profissionais gráficos que ilustram as histórias: Glenn Fabry, Milo Manara, Miguelanxo Prado, Frank Quitely, P. Craig Russell, Bill Sienkiewcz e Barron Storey.

    Cada história de “Noites sem fim” explora um conto dos Perpétuos (a saber, Morte, Desejo, Sonho, Desespero, Delírio, Destruição e Destino). Os Perpétuos, segundo o universo criado por Gaiman, seriam as essências mais primitivas que posteriormente originariam os deuses de todas as mitologias. Então, é claro, milhões de contos poderiam ser escritos sobre eles.

    Mesmo com tamanha vastidão a ser explorada, há certa uniformidade que acompanha os quadrinhos. É muito mais que apenas uma coerência interna ou quase o mesmo número de páginas para cada conto, trata-se de uma harmonia quase subliminar que mantêm as histórias em uma mesma intensidade exploratória. Os traços acompanhando as subjetividades do universo de cada Perpétuo (nem preciso falar que o Manara ficou no Desejo) é outro fator que torna os contos vívidos por si só. Eles compartilham uma singularidade particular fruto do excelente trabalho de cada um dos envolvidos.

    Três histórias merecem especial destaque: Desejo, ilustrado pelo Milo Manara, Desespero, ilustrado por Barron Storey e Delírio, ilustrado por Bill Sienkiewcz. Pessoalmente foram as que mais gostei. Desejo cai como uma luva ao estilo provocador de Manara; até a protagonista, uma aldeã que é desejada pelo filho do líder da tribo, mas que não cede aos caprichos dele porque é ambiciosa, parece ter sido decidida em comum acordo entre ilustrador e escritor.

    Desespero é um mergulho no caos particular e gore que enreda algumas pessoas. A história, chamada “Quinze retratos de Desespero”, conta com depravações, desejos ocultos, infortúnios malévolos e todo o tipo de coisa que faria o Marquês de Sade sorrir de orelha a orelha. Cada página desse conto é uma obra de arte. Não há uma estrutura fixa de quadro; as marcações de leitura são irregulares; há diversas intervenções em cada imagem como se um grupo de psicóticos tomasse conta da finalização dos grafismos. Uma mixórdia de desesperança, abominações e irregularidades (principalmente corporais), toma conta do texto e dos quadrinhos. Pode funcionar como teste de Rorschach se você quiser.

    Delírio é outra obra de arte. Enredo não-linear, grafismos invadindo outros grafismos, panorâmicas multicoloridas com predominância do avermelhado típico da insanidade, figuras humanas disformes e por vezes apenas em preto e branco (sempre em contraste com a pluralidade de cores da página), Freud, misticismo, teses tresloucadas, e uma história de amigos tentando resgatar a “menina” Delírio de um machucado (pesadelo?) íntimo. Não procure respostas nesta história, assim como em Desespero, neste conto é o Perpétuo que dita a inexatidão do enredo.

    Não vou dar o currículo dos ilustradores por conta da extensão de cada um deles e porque o livro conta com dois apêndices bem explicativos sobre todos os envolvidos. Um adendo importante: você não precisa ter lido Sandman para apreciar esse livro. E apenas o conto do Sonho expande o universo comum aos Perpétuos, mas nada demais. Um livro excelente tanto em texto, quando diagramação, quanto grafismo, um deleite sem fim aos olhos e à imaginação.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Noites Sem Fim.

  • Crítica | Colossal

    Crítica | Colossal

    Há quem diga que usar o adjetivo “desconstruído” em um trabalho é apenas uma maneira bonita de dizer que o trabalho está uma completa bagunça. Colossal pode ser facilmente confundido com algo assim, um filme indie que mais parece com um kaiju movie e no fim se encaixa em um drama pesado; mas fico feliz de dizer que não é uma bagunça, é um longa que desconstrói os gêneros para construir uma das melhores surpresas do ano no cinema.

    Anne Hathaway interpreta Gloria, uma alcoólatra que depois de ser mandada embora de casa pelo namorado, vai para a cidade onde passou a infância em busca de autoconhecimento e de um lugar para dormir. Logo ela reencontra um amigo antigo do colégio, interpretado por Jason Sudeikis,  e esse passa a ajudá-la com um emprego em seu bar e com móveis, até que uma criatura gigantesca ataca uma cidade no outro lado do mundo e Gloria descobre que ela e esse monstro têm uma estranha ligação. É isso mesmo, vamos de um plot típico de dramédia para cidades sendo pisoteadas por monstros em questão de segundos, e o responsável pela proeza é Nacho Vigalondo que escreveu e dirigiu o filme.

    O primeiro ato de Colossal cumpre muito bem o papel de criar uma espécie de base com seus cenários e suas personagens, tudo tem um tempo de tela muito significativo e a impressão que fica é de que o terreno está sendo preparado para algo maior, e quando vem o filme passa a soar como uma fábula, os elementos fantásticos que acompanham a narrativa parecem anteceder uma “moral da história” que a cada cena fica mais clara.

    Mas escondida no segundo ato está a maior qualidade do longa, o filme toma caminhos inesperados e ao mesmo tempo que a trama fantástica fica maior, as relações entre as personagens ficam mais delicadas e dúbias, em certo momento a obra de Vigalondo soa como um thriller pesado e até assusta. É um prazer em tempos que trailers entregam tudo e mais um pouco, encontrar um filme que abriga tantas camadas, onde nem 1/3 delas foram mostradas nos materiais de divulgação, por isso escolho não usar palavras chaves que poderiam diminuir a experiência ao assistir o longa.

    A atuação de Hathaway é funcional e deixa espaço para o espetáculo que é o trabalho de Sudeikis, ele soa seguro em todos os temas que Colossal aborda e surpreende em estar tão bem mesmo fora da comédia – gênero que o consagrou. Porém, o resto do elenco não tem muito com o que trabalhar e sofre com escolhas ilógicas do roteiro, inúmeras situações no filme poderiam ter sido diferentes se os dois amigos do personagem de Jason fizessem o que provavelmente qualquer pessoa faria; é uma atitude preguiçosa no texto do filme e infelizmente tira um pouco do mérito de algumas sequências do terceiro ato, assim como algumas ações injustificáveis – ou sem explicação básica – que rodeiam o ponto de virada do filme.

    Sabendo dosar corretamente tantos gêneros, Vigalondo e seu longa desconstrói todos eles para contar uma história muito mais real do que fantástica e entrega um longa que mesmo com um final mais hollywoodiano do que prometido consegue fazer refletir sobre suas nuances. Inclusive, o filme é tão interessante nesse ponto que daqui alguns anos ele pode estar passando tanto numa Sessão da Tarde como em um Super Cine de um sábado chuvoso, e eu vou ver nos dois.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Crítica | Humano: Uma Viagem Pela Vida

    Crítica | Humano: Uma Viagem Pela Vida

    “O sorriso é a única língua que todos entendem.”
    (citação de um entrevistado)

    Logo nos 20 minutos iniciais de Humano: Uma Viagem Pela Vida, é possível perceber que a pluralidade será uma constante na obra, abrangendo pessoas de diversos credos, idades, gêneros, etnias e assim por diante. Claro, logo se faz notório que essa opção multifacetada e como ela nos é exposta está dentro da programação da obra, o intuito é realmente demonstrar o quão diversificado somos, no entanto manter-se apegado “apenas” aos diversos arquétipos imagéticos em instância alguma corresponde ao cerne da questão implícita no filme. Assim que vamos tomando ciência dos depoimentos expostos no vídeo, começamos à notar que a diversidade visual que tanto nos salta aos olhos, só se faz coerente quando se vê complementada pelo que é dito pelos indivíduos, quer sejam elas expressas em palavras ou não, estando em harmonia ou convergindo de um quadro ao outro.

    Focar-se unicamente na fórmula técnica adotada pelo cineasta, é redundante. Ainda que o diretor emule belíssimas imagens de caravanas aglutinadas de beduínos deserto afora, ruínas, paisagens naturais, tempestades em constante turbulência, seu palco é delimitado na face do próximo, focando-se nos relatos de seus entrevistados, nas histórias e em tudo àquilo que compõe a humanidade em sua mais sincera essência – a vida.

    O diretor Yann Arthus-Bertrand não tenciona fazer um mapeamento geográfico, ele necessita do individualismo, porém não irá se prender em dizer se o ser humano que estamos vendo e ouvindo é um latino-americano, um asiático, especificar sua deficiência física ou de qual cultura tanto homem ou mulher em questão são pertencentes, porque isso acaba se tornando secundário diante o verdadeiro foco, tanto que nenhum nome é dito ao longo do processo. É evidente que isso não anula o fato de que o espectador por si só identifique tais aspectos nos entrevistados. A massa que inicialmente se faz disforme, sem perder sua peculiaridade vai aos poucos se revelando sob miríades e utopias, vai se transformando em uma forma composta por milhares de rostos e que, no entanto ou sobretudo, almeje apenas o elementar.

    Preceitos básicos como o trabalho, amor, conquistas, descobertas, escolhas, dores e sorrisos, são uma recorrente e toda essa amálgama que indubitavelmente se faz regente é compartilhadas sob diversas camadas, o que muda de verdade são as histórias e seus ângulos quase sempre tão distintos. A intensidade ou alguma situação pode destoar em segundos, porém, aos poucos compreendemos que relativizar algo, algum relato, alguém ou mesmo um fato dentro da obra, é um erro. Nos damos conta de como qualquer relativização aqui seria estúpida, quando notamos às variáveis da psique humana. Por exemplo: em determinado momento somos confrontados com verbalizações de pessoas que sofrem por viver em condições precárias e já no depoimento seguinte somos apresentados há tantos outros seres que mesmo vivendo em abundância material, sofrem e padecem por outros motivos que não estão necessariamente correlacionados ao dinheiro e de como ambos estados mesmo que paradoxais, por si só não diminuem o peso de uma lágrima ou angústia, não se anulam. Toda essa montanha russa de emoções e de desnudamento é pronunciada ipsis litteris diante a lente da câmera que apenas registra o instante.

    Essa imparcialidade na narrativa é uma grande virtude do documentário, que em momento algum almeja colonizar o pensamento de quem assiste. Cada ser assume o caráter de trazer consigo um universo à parte, cada relato exposto mereceria por si só um texto, portanto há medida que a obra avança e se aproxima do fim, é praticamente improvável não se pegar refletindo sobre algum depoimento ou alguma semelhança vivenciada por algum relator. Seria o homem realmente totalmente responsável por sua natureza, suas escolhas? Bem, pode-se dizer que talvez o maior trunfo desse projeto seja justamente suscitar reflexões e perguntas em seu público. Já as respostas, interpretações, julgamentos ou o que cada um levará de verdadeiro pra si após o término do filme, é algo impossível de se definir, afinal as possibilidades são múltiplas.

    Texto de autoria de Tiago Lopes.

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  • Crítica | A Espera

    Crítica | A Espera

    O roteiro, de Giacomo Bendotti e Ilaria Macchia, é uma adaptação bem livre de uma peça de Pirandello. Anna (Juliette Binoche) mora numa vila da Sicília, cuja manutenção é feita pelo capataz faz-tudo, Pietro (Giorgio Colangeli). Jeanne (Lou de Laâge), namorada de seu filho Giuseppe (Giovanni Anzaldo), chega para passar alguns dias ali, até o feriado de Páscoa. Mas Giuseppe não está lá. A pedido de Anna, que afirma ter sofrido uma perda recente, Jeanne acaba ficando à espera do namorado, que não aparece nem responde às suas mensagens no celular. Com o passar dos dias, as duas vão se conhecendo e se tornando mais íntimas. Ao mesmo tempo vai ficando mais claro – ao menos para o público – de que Giuseppe nunca chegará.

    E é isso que gera incômodo no espectador, pois tem-se a impressão de que o título refere-se à espera – forçada – pelo momento em que Jeanne entende o que houve. Quem está assistindo, mata a charada em menos de 10 minutos. Algo que Jeanne vai demorar praticamente os 90 minutos de duração do filme para concluir: Giuseppe não vai aparecer e o que ela tem a fazer é pegar o próximo avião e voltar para Paris. Some-se a isso o fato de que praticamente nada ocorre na trama. Ok, é uma villa no interior, não uma metrópole. A fotografia é linda, há planos maravilhosos, daqueles que dá vontade de emoldurar. Contudo, por mais belas que sejam as paisagens e os enquadramentos usados no filme, é frustrante para o espectador ficar olhando para o céu ou para o lago esperando que algo aconteça.

    Apesar de o diretor, Piero Messina, tentar criar um clima intimista, com longos silêncios e diálogos enxutos, essa tentativa é frustrada pela falta de empatia com Anna. Até faz sentido que ela, de luto, veja um alento na chegada inesperada de Jeanne. De certa forma, a ignorância de Jeanne sobre o que houve, chegando à vila pensando que o namorado está esperando por ela, é uma maneira de Anna prolongar a presença do filho. Mas há um ranço de egoísmo nessa atitude que impede o espectador de se identificar com sua forma de agir. O que gera, em vez de empatia, vontade de obrigá-la – assim como Pietro tenta – a contar tudo a Jeanne e acabar logo com essa espera. Pois, com que direito ela priva a moça da verdade, por mais dura que seja?

    Espera-se por Giuseppe, assim como se espera Godot na peça de Beckett. Os personagens evoluem a partir dessa espera por Giuseppe, que não chegará assim como Godot nunca chega. E a vida continua.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Resenha | As Horas – Alex Andrade

    Resenha | As Horas – Alex Andrade

    Livro para dias chuvosos

    A Literatura é um universo paralelo ao nosso. Não por acaso, a boa escrita tem esse poder magnífico de nos transportar a outra versão de mundo, com situações que alteram o humor de quem o lê. As Horas (2016, Editora Penalux), do escritor Alex Andrade, é um desses livros que nos inundam com uma carga emocional potente ao longo das páginas.

    A meu ver, os treze contos de As Horas, orbitam entre melancolia, raiva e ingenuidade. Talvez não sejam as emoções mais cômodas a qualquer leitor, mas a leitura do conjunto cumpre expressivamente uma das funções mais importantes da literatura: o desenvolvimento da empatia. Ou seja, Andrade encadeia de tal forma os contos que somos fisgados pelas situações dos personagens e nos colocamos no lugar deles. A inversão nos faz experimentar as mesmas emoções, e somos pegos, desprevenidamente, pela pergunta capciosa: “Eu faria algo diferente?” Essa simples pergunta transmutada em escrita já eleva a reflexão sobre todos os contos do autor.

    Em termos de técnica, Alex demonstra experiência. Notamos claramente que ele tem domínio de uma voz própria na escrita (algo raro entre os escritores), com preferência por períodos longos, pouquíssimos diálogos (ao menos nos contos selecionados para o livro), tempo retardado, e recorrentes fluxos de consciência entre os (quase maioria) narradores em primeira pessoa.

    Contudo, senti falta de certa ousadia com o não dito para incrementar a fidelidade dos contos. Explico: a utilização de períodos longos, que por vezes se confundem com o fluxo de consciência ou o fluxo das ações dos personagens, diz muito sobre a cena e entrega facilmente ao leitor uma conclusão ou um estado de espírito que permeia as situações abordadas.  Faltou, portanto, o não dito ou a descrição do momento sem a interferência do narrador, para que o leitor também possa tirar uma própria conclusão sem sofrer a interferência de outros. É a regra do “Narre, não conte”, da escrita.

    Outros pontos poderiam incrementar a experiência de leitura: em vez de optar pelos períodos maiores, alternar com mais frequência trechos curtos e longos a fim de imprimir um ritmo mais harmônico de leitura; em alguns contos, as personagens não ficaram tão nítidas porque não houve diálogo que os diferenciasse, pois a falta de dialogismo nivela com opacidade todos os integrantes do conto para, mais uma vez, ficarmos reféns da análise do narrador; alguns contos que exploraram a melancolia pareciam histórias de diferentes fases de um mesmo personagem, ou seja, senti falta de individualidade entre os narradores.

    Dos treze contos, “A menina nua” é o melhor. Supera a amplitude dos outros contos com originalidade e adiciona períodos não ditos que enriquecem a interpretação do leitor. Por fim, As Horas é um livro para ser lido com cuidado porque carrega esse poder de exercitar a empatia de cada um; exige silêncios, trás reflexões. Livro para ser lido em dias de chuva.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: As Horas – Alex Andrade.

  • Crítica | Neve Negra

    Crítica | Neve Negra

    Neve Negra estreou em 2017 com expectativa por ser um dos filmes argentinos mais bem criticados do ano, além é claro de ser estrelado por Ricardo Darin.

    Marcos e sua esposa Laura retornam à Patagônia para enterrar as cinzas do pai na propriedade da família administrada pelo irmão mais velho, o sinistro Salvador, e um segredo do passado ressurge no meio da discussão sobre a venda da propriedade.

    O roteiro escrito pelo diretor Martin Hodara e Leonel D’Agostino tenta discutir a brutalidade humana. A Patagônia fascina o imaginário popular mundial por ser um lugar selvagem, mas na Argentina, que se orgulha tanto do seu viés civilizatório perante os vizinhos sul-americanos, como se dá essa relação? O choque entre o selvagem, o bruto e a emoção contra o civilizado, o refinado e a razão permeiam a premissa do roteiro ao colocar Marcos, o único de quatro filhos que conseguiu sair de lá, em choque com Salvador, o primogênito e único filho que ficou para administrar as terras da família, já que a irmã foi internada e o caçula morreu na infância.

    A discussão a cerca da venda da propriedade milionária se torna um reflexo do trauma do passado. Marcos se sente culpado ao pedir que o irmão mais velho aceite vender o lugar que ele cuidou por anos como se o próprio Marcos não tivesse direito, já que no passado Salvador foi responsabilizado pelo pai por conta da morte do caçula.

    O sempre bom Ricardo Darin dá vida ao sombrio Salvador. Com poucos diálogos e ações contidas, a sua construção denota um personagem ainda mais ameaçador do que descrito nos diálogos entre os outros personagens. Laia Costa está bem como Laura, uma esposa preocupada, mas que tem a sua própria visão dos fatos. Leonardo Sbaraglia poderia ter se saído melhor como um culpado Marcos, já que seus vacilos destoam das demais atuações, soando em certo momentos um tanto canastrão.

    A direção de Hodara busca os tempos mortos o tempo todo em uma tentativa forçada de mostrar o bruto enquanto estado natural, seja da passagem do tempo com as ações completas dos personagens ou as carcaças de bichos mortos no meio da neve. A opção estética de mostrar as cenas do passado em paralelo poderiam ter sido melhor trabalhadas e não tem o impacto que se pretendia. Se a edição de Alejandro Carrillo Penovi não tivesse tantos tempos mortos, o filme ganharia em fluidez. Assim como, a fotografia naturalista de Arnau Valls Colomer poderia ter um toque diferenciado nas cenas do passado, uma dose onírica traria ainda mais drama e peso ao filme.

    Neve Negra deve agradar aos fãs do cinema argentino e de Darin, mas pode cansar devido ao problemático ritmo do filme.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

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  • Crítica | Frantz

    Crítica | Frantz

    François Ozon compete sua composição fílmica a criação de relações a partir de um evento amplamente íntimo e pessoal. Criadas estas relações, a fórmula inexiste, permitindo que seus filmes transcorrem impulsivamente, de acordo com os elementos mais diversos – compostura, contexto social, geográfico -, e também na proximidade das similaridades – o elo criado a partir do evento -, onde se intensifica o reflexo de cada indivíduo, se opondo, forçando os conflitos para entregar e relembrar que o que os coloca ali, buscando sair do breu usando a mesma passagem de luz, foi o mesmo sequestrador.

    Especificamente, no caso de Frantz, novo filme do diretor francês, o sequestrador é o nome do filme. Soldado da Primeira Guerra Mundial, morto. Alemão. Quieto e voraz, tempestivo. Mas romântico, doce, poético. Com sua família e com sua noiva, Anna (Paula Beer), que manifesta a dor pelas idas em preto ao seu túmulo, carregando as flores brancas. A luz que repousa na negra terra. No entanto, outra lâmpada, mais nova e recente aos olhos claros que transbordam amor e carinho pelo amado ceifado, também está ali encostada ao chão preto.

    Há um francês. Um pária, praga. “Assassino”, grita o velho germânico com a cerveja chorando caneca afora, na mesa do bar do hotel em que o francês repousa, apenas para conhecer o novo mundo. O mundo Frantz. Conhece sua lua, Anna, os criadores Ernst e Magda. A partir do desbravamento, as relíquias, as armadilhas e o determinismo desenvolvem a interação entre Anna e Adrien (Pierre Niney), este último, sob juras de amizade ao amigo alemão.

    O que nem sempre acontece realmente são os dizeres sobre as histórias. O que um diz ou deseja evitar dizer, e o que acreditam ter ouvido, desejam não ser a realidade, então, a deforma e transforma. Mas por quem? Para o mundo Frantz não desalinhar. Para que a lua e todos os astros singulares de tal mundo não saem da órbita e vagam sem honrar memórias, passados, desrespeitando a identidade que a vida fez questão de deixar uma porção em cada ação.

    A história do Sol que se apaixona pela Lua, que só se tocam e se vem quando o teatro orquestrado pelo cosmo opera e os faz dedicarem poucos momentos a suas ações em conjunto. Quando a fotografia em preto e branco é esvaecida aos poucos, quando a sobriedade não possui mais sentido, entram as cores. O forte tom amarelo e caloroso abraça a alma de Anna; O vermelho, o azul, vestem o traje elegante e fino de Adrien. Uma burguesia-realeza que corresponde ao ar banhado no garbo, mas que aparenta pela fragilidade de sua personagem, dúvidas que quase assumem o controle, a baioneta.

    Diversos tiros disparados acertam e derrubam alvos. Já caídos, sangram e derramam cicatrizes inóspitas, que perduraram. No entanto, sob apenas os olhos de quem as viu pedir perdão nos segundos finais, que carregarão os fatos ditos e sua concreta resolução. Os violinos tocam em funerais, celebrando o clássico e o eterno, preservando diversas histórias sobre a mesma pessoa. No tocante, seu nome é o que o levará a ser mais do que um ser.

    Texto de autoria de Adolfo Molina.

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  • Crítica | Transformers: O Último Cavaleiro

    Crítica | Transformers: O Último Cavaleiro

    Existem franquias que conseguem o feito de dividir quase que perfeitamente a opinião do público. Velozes e Furiosos, por exemplo, é odiada por muitos que criticam a falta de originalidade do enredo, que reflete em personagens mal construídos e arcos dramáticos muito frágeis. Ao mesmo tempo, os números estrondosos de bilheteria não deixam dúvidas de que os filmes de Vin Diesel e companhia respiram muito bem obrigado e não têm previsão (e pretensão) alguma de chegar a um final definitivo.

    A mesma coisa acontece com Transformers. A série de filmes chega ao seu quinto episódio ainda deficiente em seus pontos mais criticados. A ausência de uma história a ser contada é tão notória que, em determinado momento já no segundo ato do longa, nos perguntamos o que de fato está acontecendo com os personagens. Na trama, Optimus Prime é dominado por uma força mística oriunda de Cybertron, seu planeta natal. O robô esquece então de sua lealdade aos humanos e dá início a uma empreitada em busca do cajado de Merlin (sim, Merlin!), que seria a chave para fazer com que a humanidade pereça e Cybertron ressurja no lugar do planeta Terra.

    Se não bastasse uma sinopse extremamente fraca, já habitual dos filmes da franquia, desta vez os roteiristas decidiram enterrar o pouco de credibilidade que ainda restava a história dos robôs trazendo para ela um contexto mágico medieval que simplesmente não dialoga de maneira alguma com tudo o que já foi mostrado até hoje para os espectadores de Transformers. Nomes como Merlin, Rei Arthur, e a famosa távola redonda, são repetidos diversas vezes ao longo do filme e o estranhamento com a falta de conexão entre os temas é garantido. Péssima ideia da equipe de roteiristas.

    Mark Wahlberg retorna ao papel do “inventor” Cade. Longe da filha desde os últimos acontecimentos de “A Era da Extinção”, ele se esconde em um ferro-velho junto com os robôs aliados e também os dinobots (que aliás, pouquíssimo aparecem em cena). São apresentados ao público dois novos personagens bastante carismáticos. Jimmy, interpretado por Jarrod Carmichael e Izabella, vivida por Isabela Moner. A última, lembra imediatamente a personagem Laura (X-23), de Logan. A menina é de longe a melhor personagem em cena e renderia excelentes momentos, caso o roteiro soubesse o que fazer com ela. Subaproveitada, em diversos momentos esquecemos da existência da personagem e fica aquela vontade de conhecer mais sobre ela.

    Por outro lado, se existe uma coisa que a saga sabe fazer bem é o trabalho técnico. Dificilmente este filme saíra com as mãos abanando da próxima temporada de premiações. É de cair o queixo a qualidade de som, mixagem, efeitos especiais e design de produção. Em determinados momentos, é preciso extrema atenção para depreender todos os itens que compõem as cenas. Aliás, aí está algo que funciona na direção de Michael Bay. Muitas soluções são meramente visuais e passam ilesas no roteiro. Seu cinema construído sobre múltiplos cortes pode gerar incômodo em boa parte da crítica e público, mas está longe de ser sofrível. É uma pena que o texto não acompanhe o ritmo da edição.

    A trilha sonora de Steve Jablonsky não empolga. O maestro faz uso excessivo do já clássico “baum”, aquele som de suspense que ficou famoso em A Origem e depois foi repetido inúmeras vezes no cinema de ação. Por mais que o sim dialogue com a trama, é praticamente impossível ouvir este som e não relembrar ao menos uma dúzia de filmes que fazem uso do mesmo recurso. Transformes: O Último Cavaleiro conta ainda com a participação de Anthony Hopkins, no papel do excêntrico Edmund Burton.

    Texto de autoria Marlon Eduardo Faria.

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