Autor: Vortex Cultural

  • Resenha | Chainsaw Man – Volume 1

    Resenha | Chainsaw Man – Volume 1

    Denji é um jovem que herdou uma dívida gigantesca de seu falecido pai e acaba tendo que aceitar todo tipo de trabalho para focar no pagamento infindável do débito de seu progenitor. Junto com seu mascote demoníaco Pochita, uma espécie de cachorro com forma de motosserra, Denji vive numa situação miserável e tenta se sustentar como caçador de demônios, exterminando os seres sobrenaturais das mais diversas aparências e tipos que surgem cotidianamente. Acontece que Denji e Pochita caem numa armadilha de um demônio e acabam sendo mortos, esquartejados e jogados num container de lixo. A breve história do jovem parece ter sido encerrada, até que Pochita absorve seu sangue e se funde com seu dono, transformando Denji num demônio humanoide com braços e cabeças de motosserra, buscando vingança a quem o matou.

    Assim começa Chainsaw Man, o mangá sensação dos últimos anos da revista japonesa Shonen Jump, lançado de 2018 a 2020, que chegou ao Brasil pela editora Panini. Escrito por Tatsuki Fujimoto, Chainsaw Man tem uma característica comum dos mangás em tratar sobre uma organização antimonstros, mas ganha pontos por abordar um contexto social num Japão fictício horrorizado por uma catástrofe, tendo em Denji, um garoto que sai dos guetos e é conduzido para sociedade média, uma exposição do abismo socioeconômico que estamos inseridos. Além de mesclar vários gêneros, sendo o horror, o primordial e mais característico nas páginas do mangá. Repleto de gore nos seus traços, Fujimoto consegue transparecer seu estilo na violência e sangue através das serras de Denji.

    Após o ressuscitado Denji acabar com o demônio que o matou, ele é encontrado por Makima, a responsável pela 4ª Divisão Especial Antidemônios da Segurança Pública do Japão, sendo acolhido por ela e tendo seu primeiro laço verdadeiramente humano após vários anos. O protagonista, a partir desse momento, começa a criar suas relações na sociedade, interagindo em grupo, além de conhecer o próprio mundo que estava tão distante da sua situação de vida.

    Além de se tornar um caçador de demônios oficial do governo e por meio disso, conhecer os demais personagens recorrentes, como Aki Hayakawa, um caçador que logo se posta como o rival do Denji, e a infernal Power, uma mulher que teve sua cabeça dominada por um demônio. Os três dividem o mesmo apartamento, o que traz momentos descontraídos durante a leitura, entre diálogos sobre o cotidiano, com um toque de humor, com Hayakawa deixando explícito seu ódio por demônios, mas tendo que conviver com dois, Denji e seu despertar sexual e Power aprendendo a lidar com humanos.

    Durante os primeiros sete capítulos que compõem o volume 1 de Chainsaw Man, o básico do que se espera de um mangá da Shonen Jump é apresentado, ao mesmo tempo que somos apresentados a um enredo promissor e subtextos envolvendo geopolítica, armamento e desigualdade social. Enquanto Denji faz suas pequenas missões, Fujimoto vai apresentando o universo ao protagonista e ao leitor.

    Texto de autoria de Wedson Correia.

  • Crítica | Demon Slayer – Mugen Train: O Filme

    Crítica | Demon Slayer – Mugen Train: O Filme

    O sucesso do anime Demon Slayer: Kimetsu no Yaiba foi um fenômeno em 2019, tendo êxito não somente no Japão, mas algo mundial, furando a bolha até de quem não costuma acompanhar as animações japonesas. Foi algo tão grande que anunciaram uma sequência em filme. Demon Slayer – Mugen Train: O Filme estreou em 2020 no Japão e só concretizou a marca do anime baseado no mangá de Koyoharu Gotoge, se tornando a maior bilheteria de todos os tempos dentro da terra do sol nascente, superando sucessos absolutos como A Viagem de Chihiro de Hayao Miyazaki e Your Name de Makoto Shinkai. Chegando ao ocidente e com a escassez de filmes e de salas de cinema abertas devido à pandemia, o longa animado do estúdio Ufotable vem tomando as cabeças das bilheterias por cá e estreia agora no Brasil.

    O filme adapta o anunciado arco do Mugen Train (algo traduzido como trem infinito) e segue exatamente do mesmo ponto que a primeira temporada do anime acaba, colocando os irmãos Tanjiro e Nezuko Kamado e seus amigos Zenitsu e Inosuke numa missão em que eles devem embarcar no Mugen Train e encontrar Kyojuro Rengoku, o Pilar das Chamas, elite dos exterminadores de demônios, para desvendar o mistério sobre os assassinatos que vem ocorrendo no transporte. Enquanto isso, Tanjiro quer saber mais sobre a Respiração do Fogo e seu Hinokami Kagura (Dança do Deus do Fogo), habilidade do seu pai que ele acaba usando na sua última batalha e vê Rengoku como alguém de habilidade semelhante que possa ensiná-lo algo.

    Antes de a história de fato começar, há um prólogo com o Mestre do esquadrão de exterminadores, em que ele caminha em um cemitério e fala serenamente um pouco sobre sacrifício, em como os jovens entram para a organização e têm suas vidas ceifadas há gerações na luta contra os demônios. O Mestre acaba tendo esperança que essa guerra acabe na sua geração, para que o ciclo se encerre. Sacrifício é um ponto em destaque nesse filme, mas é algo para tratar posteriormente.

    O carisma é algo que Demon Slayer sempre aborda em seus personagens, tentando fazer personagens amigáveis que conquiste o público, mesmo sendo algo superficial, é direto e orgânico, e em Mugen Train, Rengoku é mais uma abordagem atrativa, trazendo um personagem típico dos animes de luta, o comilão super forte e alegre. Tanjiro, Zenitsu e Inosuke se encantam pelo Pilar das Chamas, pedindo para serem seus seguidores, que os deixem mais fortes e tudo mais. O que coloca Rengoku ligado ao grupo principal e com um papel vital na trama.

    A história se divide basicamente em duas partes, o mistério do Mugen Train e a luta final, com a primeira sendo o plot mais trabalhado e com mais nuances. Toda a construção de personagem é dada a partir do poder de Enmu, demônio pertencente às Doze Luas de Muzan, o demônio original. Enmu usa uma habilidade com sonhos, que projeta os desejos dos alvos e os humanos por ele controlados entram nas projeções para poderem derrotá-los enquanto dormem. O grupo de protagonistas agora tem um empecilho, além de lidar com os demônios, devem lidar com humanos se opondo a ele, algo difícil para Tanjiro, que tem por aspecto, hesitar ao máximo o confronto, agora tem de saber como lidar com pessoas manipuladas.

    Os sonhos fazem com que os protagonistas revejam suas vidas e passem para o público suas origens, dando um background para quem desconhece o anime e não viu a primeira temporada do anime. A vida de Rengoku é mostrada a partir dessa situação e sua motivação vem a partir de sua força de nascença, ganhando a responsabilidade de como saber usá-la. Tanjiro se vê em sua antiga vida pacífica, com sua falecida família e uma Nezuko humana no seu sonho. Nezuko se torna a chave em despertar o seu irmão para o mundo real e figura participativa nessa parte do filme, elencando junto com todo o elenco na ação. Enmu acaba sendo algo mais um obstáculo usando como ferramenta para dar a dinâmica do filme do que um vilão bem trabalhado. Seu confronto com Tanjiro tem uma função de fazer com que o protagonista persevere na sua problemática.

    Em suma, o espetáculo se dá pela luta final, uma batalha que envolve a grande figura de Rengoku e outro membro das Doze Luas, Akaza. Mais uma vez a equipe de animação do Ufotable guiada pelo diretor Haruo Sotozaki, brilha. O estilo de combinação 2D e 3D no filme ganha uma escala maior do já ótimo trabalho visto no anime, fazendo que as habilidades do Pilar das Chamas e do demônio compunham algo magnífico tecnicamente. Uma batalha longa que não cansa pela beleza da ação, além da construção do personagem que faz o filme ser mais interessante, que acaba num fim melancólico para todo o grupo principal.

    A resposta no fim é sobre heroísmo, em como Rengoku salva as pessoas no trem enquanto seus colegas agem desvendando o mistério do trem, da maneira que motiva e encoraja os outros, se tornando símbolo a ser seguido e a forma que se entrega num ato maior, assim como Tanjiro que lida com os passageiros sem ter medo de ser escudo, e também em decidir sacrificar o seu desejo de ficar com seus entes queridos na ilusão sabendo que era confortável. Uma resposta simples, mas que cativa, algo que Demon Slayer consegue fazer de forma honesta e usa como fórmula de sucesso.

    O formato de filme talvez não seja o melhor para contar esse arco específico, sendo serializada a melhor opção, porém agrada a sua base e tem suas táticas em atrair um público maior, como vem conquistando. A franquia Demon Slayer: Kimetsu no Yaiba continua ainda esse ano de 2021, com a segunda temporada do anime, sem data específica para estrear.

    Texto de autoria de Wedson Correia.

  • Crítica | Milagre na Cela 7

    Crítica | Milagre na Cela 7

    Costumo dizer que se um filme causa diversas sensações naquele que assiste normalmente significa que a película cumpriu com o seu papel de entreter. Desde que as sensações, obviamente, sejam condizentes com a proposta apresentada. Se você riu em um filme de comédia, vibrou em um filme de ação, morreu de medo em um filme de terror, bem, a missão foi cumprida. Milagre na Cela 7, uma produção turca que fez um sucesso estrondoso na Netflix, fará você chorar com quase toda certeza, seja de tristeza, seja de raiva ou seja de alegria (ainda bem).

    De tempos em tempos somos apresentados a um específico tipo de filme em que o protagonista é especial mas sempre tem alguma coisa a nos ensinar, como é o caso de Rain Man, Forrest Gump: O Contador de Histórias e À Espera de Um Milagre. Filmes certeiros na combinação de roteiro, direção e atuação de seus protagonistas, que levaram os espectadores às lágrimas.

    Em Milagre na Cela 7 acompanhamos a história de Memo. Vivido pelo astro turco Aras Bulut Iynemli, Memo possui uma deficiência mental e é quase tão criança quanto sua filha Ova (Nisa Sofiya Aksongur). O personagem é dotado de uma inocência e ingenuidade que o torna não só incapaz de entender algumas coisas da vida, mas incapaz, também, de fazer qualquer tipo de mal. Tanto Memo quanto Ova moram juntos da avó Fatma (Celile Toyon Uysal) e vivem uma vida muito simples em um vilarejo.

    Assim como toda criança, Ova é fanática por uma personagem de desenho animado e fica alucinada com uma mochila que está sendo vendida em uma loja da cidade. Memo, junto de Fatma, resolvem fazer quitutes para vender em um desfile que será realizado na cidade, o que faz com que o rapaz consiga dinheiro suficiente para comprar a mochila para sua querida filha. Porém, para a tristeza de todos (o espectador incluído nessa), o personagem chega tarde demais e a mochila acaba sendo vendida para a filha de um militar.  Não demora muito para tempos depois a menina ser encontrada morta após ter interagido com o protagonista. O protagonista é levado para a prisão, mais precisamente para a cela de número 7, e é a partir daí que sua vida muda para sempre junto com a vida das pessoas que estão ao seu redor.

    O filme guarda muitas semelhanças com o clássico À Espera de Um Milagre, mas tem algo na produção turca que faz com que o espectador se entregue muito mais às emoções e podemos dizer que isso é mérito da direção competente de Mehmet Ada Öztekin, que traz uma fotografia totalmente inspirada nos filmes do diretor Terrence Malick. Mas ainda que não tivesse uma beleza estética, a performance dos atores presentes no longa é um destaque. Não há uma atuação ruim e a química de Aras Bulut Iynemli com os demais atores (que não são poucos), principalmente com aqueles que estão em sua cela, é incrível. Sem contar que quando Ova está em cena, a menina não fica para trás. Vale também destacar que a produção é praticamente uma refilmagem de um filme coreano, além de também contar com outras adaptações cênicas do cinema estrangeiro.

    Podemos dizer com certeza que, além de ser lindo, o filme cumpre com aquilo que promete. A jornada de Memo é emocionante em muitos sentidos. A carga dramática é alta, forte e implacável, o que talvez não seja recomendável a todo tipo de público.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Raia 4

    Crítica | Raia 4

    Premiado no Festival de Gramado de 2019, Raia 4 ganha a estreia nos cinemas e nas plataformas de streaming quase dois anos após sua finalização. É irônico que um filme que trate tanto de contatos físicos e isolamentos emocionais seja lançado num dos piores momentos da pandemia de Covid-19.

    O primeiro longa-metragem do gaúcho Emiliano Cunha é situado em sua maior parte na capital Porto Alegre. Num tradicional clube de natação da cidade, a adolescente Amanda (vivida pela estreante Brídia Moni) encontra nas águas o vórtice entre refúgio e desamparo que a idade proporciona. Dos olhares atravessados com os colegas às falas interrompidas pelos pais, a desconexão da jovem se põe a todo momento como um teste de extremos, entre ternura e violência.

    O filme é feito pela e para a atriz. Além de toda a perspectiva da produção ser mediada pela personagem, o rosto fechado e a expressão confusa são os pontos de foco que conduzem o espectador no turbilhão de sentimentos indefinidos e nunca verbalizados por Amanda. A intérprete vagueia por toda essa correnteza sem recorrer a facilidades de atuação, escondendo do público o que há por trás do pequeno corpo e até mesmo subvertendo algumas expectativas em nuances.

    Dessa forma, o longa é inteligente ao trabalhar sua narrativa em diferentes campos de gênero. A espera por um típico coming of age é superada pelo pulsar de Amanda, que encara situações semelhantes de variadas formas num passeio entre o drama, suspense, romance e horror. Os elementos temáticos trazidos pelo filme reforçam a ideia de intergenericidade ao explorarem essa difusão tonal na fotografia e na trilha sonora, especialmente. A rigidez da câmera ganha movimento nas maiores interações da protagonista com o grupo de amigos, ao passo que as músicas variam de sons estridentes a uma calmaria harmônica ao longo dos 90 minutos. Cabe observar que as emoções pautadas nesses exemplos tomam forma nas atitudes da jovem, embaladas por uma lógica própria e que escapa ao julgamento de quem está em frente à tela.

    Especializado em cinema de fluxo, o diretor e roteirista de Raia 4 se apropria de códigos dessa vertente cinematográfica para construir um universo particular para os limites de tempo e espaço moldados em torno da personagem principal. A abordagem não descaracteriza o filme dos gêneros já citados, mas encarrega seus desdobramentos de um sentido muito próprio e atrelado à protagonista e que devem conversar pessoalmente com cada espectador. Embora a visão do público seja a mesma de Amanda, as noções morais entre os dois polos são conflitantes e resultam numa experiência dirigida por corpo e alma.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Resenha | Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País – Alexandre Meira

    Resenha | Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País – Alexandre Meira

    “O seu país, o nosso país, é racista, misógino, homofóbico e, principalmente, covarde”. A excelente frase faz parte do Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País (Editora Penalux), do escritor Alexandre Meira, um livro com cinco potentes crônicas que destrincham as origens do cotidiano político medíocre que impera no status quo nacional. Ambicioso, Alexandre estima em suas crônicas monólogos com informações preciosas para outros brasileiros que também se sentem reféns da necropolítica federal. Além da natureza urgente do assunto em si, grande parte do sucesso do livro está na forma como o autor maneja bem a produção das próprias crônicas.

    Crônicas, por onde começar? A crônica é um gênero híbrido por excelência, engloba tanto informações de caráter não-ficcional, jornalístico, quanto momentos de beleza literária, herança da Literatura e dos primeiros cronistas nacionais que também eram escritores de mão cheia, como Lima Barreto, Machado de Assis, João do Rio, só para citar alguns. No meio desse tempero encontramos ironias, provocações, variedade de referências (Alexandre vai do Futebol a Nelson Rodrigues, de Pizarro ao tribunal da Lava Jato, por exemplo), informações históricas (sobretudo dos anos de 1990 ao tempo atual), fatos jornalísticos, tudo muito bem costurado por eloquentes e claras frases.

    Sobre as cinco crônicas, são elas: O golpe na amendoeira; O gol da Alemanha e a revanche dos vira-latas; Pizarro, cavalos, ovos e o fim da Lava Jato; Por que eu matei Marielle?; Chão de Amêndoas. Quero destacar alguns pontos de três delas. Em “O golpe na amendoeira”, o cronista toca em primeiro plano o processo de impeachment sofrido pela presidenta Dilma por conta das “pedaladas fiscais”. Mas em segundo plano, o que chama atenção é a disputa acirrada entre dois amigos que discutem se ela cometeu ou não os crimes econômicos. “Disputa” e “Discussão” porque, como o cronista bem observa neste e em outros pontos do livro, estamos em uma época que o diálogo está morto por uma corrente política que chegou ao poder pregando a polarização dos discursos. Isso não é diálogo, é discurso com a intenção de calar correntes opostas, e Alexandre explica como esses golpes duros contra o diálogo matam também a própria ideia de democracia, que pressupõe, por excelência, o espaço para todas as pessoas dialogarem pelo bem público.

    “Por que eu matei Marielle?” é outra crônica com um assunto mais evidente, a saber, a morte da vereadora Marielle Franco em março de 2018 (até hoje ainda sem mandantes conhecidos), mas com dois assuntos secundários importantes para discussão: a banalização da violência (seja ela contra as mulheres, minorias, ou por conta de sexualidades), e como há um sistema perverso no país que trabalha incansavelmente para exterminar representantes de camadas menos privilegiadas (Marielle era negra, homossexual e de pobre origem) do país. É um sistema que tem ojeriza à mudança do status quo, que luta para manter tudo como está, com elevadores de serviço e piadas homofóbicas e racistas em cada esquina. Como bem escreve o cronista: “Nunca houve nada mais perigoso para quem tem medo de uma verdadeira mudança do que algo que abra a fórceps sua estreita visão de mundo ante um futuro viável e livre de seus preconceitos. (…) Ela [Marielle] representava justamente essa verdadeira mudança.” Quem mandou matar Marielle?

    Última crônica do livro “Chão de Amêndoas” acompanha as mudanças políticas, econômicas e sociais desde a primeira eleição democrática brasileira, em 1989, pelos olhos do autor, intercalando com a própria infância e crescimento dele. Alexandre colhe fatos históricos ao seu lado, desde a TV de tubo onde acompanhou os primeiros horários políticos em 1989, às transformações no próprio bairro e no novo cotidiano do país. Uma crônica potente que abarca história nacional, o ponto de vista humano, as transformações políticas e sociais, o nascimento de um poder paralelo na Zona Oeste carioca (milícias), exemplos de fundamentalismo religioso, entre outros pontos. Um verdadeiro exemplo de narrativa, informação e texto em sincronia.

    Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País consegue atingir o que almeja: um manual atualizado para quem se propõe deixar o obscurantismo de lado e dialogar com os principais acontecimentos que nos trouxeram até o pessimista momento político atual. Este livro não possui apenas crônicas, mas monólogos que buscam fortalecer diálogos nesse espaço (em tese) democrático da política nacional. Leitura muito recomendada.

    Compre: Guia de Sobrevivência do Exilado no Próprio País.

    Texto de autoria de José Fontenele

     

     

  • Crítica | Vicenta

    Crítica | Vicenta

    Uma jovem, com deficiência mental, é estuprada por seu tio. O crime gera uma gravidez, e a situação sequer é compreendida pela vítima. Amparada pelo Código Penal da Argentina, país em que vive, a mulher leva o caso à Justiça a fim de realizar o aborto. O que seria o cumprimento da Lei acaba esbarrando em burocracias judiciais e em dogmas morais e religiosos, levando Vicenta, a mãe da vítima e personagem que dá nome ao filme de 2020, a enfrentar o sistema judiciário do país e o estigma da sociedade argentina.

    O filme de Darío Doria foi lançado poucos meses antes da aprovação do aborto legal na Argentina dentro das primeiras 14 semanas de gestação. Vendo-o hoje, na edição deste ano do festival É Tudo Verdade, com tal perspectiva histórica, não é estranho perceber o tom difuso que o documentário animado assume. Parte lamento, parte celebração, Vicenta se encarrega de analisar os sintomas criminosos de uma sociedade conservadora, mesmo que sem pretensão de fornecer um diagnóstico para além do debate que cerca a interrupção da gravidez.

    O espectador brasileiro não precisa dos fatos tratados no filme, ocorridos em 2006, para que tenha seu próprio julgamento sobre o caso. O Brasil de 2020, assombrado pelo de 2018 e amaldiçoado até sabe-se quando, passou por uma repercussão semelhante ao da argentina Laura, mas tratando-se de uma menina pernambucana de 10 anos. As manifestações de cunho religioso de cada situação podem evocar seu par, da mesma forma que os entraves judiciais, que até então eram previstos no ordenamento jurídico, emperraram devido ao debate público acalorado.

    Vicenta, que se refere à filha doente como “uma criança que cresce, mas não cresce”, não tem seu nome no título principal à toa. É por meio de sua figura e ponto de vista que os 70 minutos de projeção percorrem seus caminhos. Com bonecos feitos de massa de modelar e imagens reais de noticiários da época, o documentário se desdobra numa linearidade simples, indo do ponto inicial ao final sem tomar vias tortuosas. O pragmatismo do filme, guiado pela protagonista e a narrativa, poderia ser o ponto principal de uma potência dramática, mas que se resume ao sentimento dúbio e por vezes conflitante já abordado.

    Não que a tônica seja de fato problemática, mas o documentário soa aquém de alguma intenção de manifesto, reservando-se mais como um retrato histórico de um tempo não tão distante e de uma mentalidade social ainda existente. O quadro é reforçado pelas figuras planas, sem vozes e com poucos nomes, que assumem funções em vez de personalidades. Da mesma forma que os bonecos estáticos, que dependem de seus arredores para que algum movimento seja visto em tela, esses personagens dependem da casualidades de seus ambientes. Meros peões que precisam do movimento de outras peças para que prossiga o jogo de suas vidas, com raras chances de uma posição de xeque-mate.

    A personagem real de Vicenta assume esse lugar no tabuleiro, tal qual sua representação fílmica. Apesar de se resguardar um tanto em seus debates, o documentário tem força suficiente em sustentar a tensão entre a efemeridade e perenidade das causas ali abordadas.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Crítica | Edna

    Crítica | Edna

    O peso do passado sufoca o viver do presente. Asfixiado, tampouco o futuro pode ser vislumbrado. As memórias que carrega há 70 anos fazem de Edna Rodrigues de Souza um mero dispositivo de rememoração de um tempo não tão distante, em exceção aos anos precedidos, mas que se repete desde então, sem perspectiva de fim. Em Edna (2021), Eryk Rocha (Cinema Novo, Campo de Jogo) aborda de forma sutil o elo que sustenta o ciclo de opressões de forças institucionais aos desamparados do Brasil de ontem e hoje.

    Sobrevivente da Guerrilha do Araguaia, a personagem que dá nome ao filme se deixa filmar sem que fale para a câmera a narração que atravessa o off do documentário. A voz é de Edna, mas não necessariamente daquela vista em cena. O invisível toma forma nas letras de um diário quinquagenário e ganha liberdade no recitar da protagonista durante a uma hora de projeção do filme. A vazão que Edna tem em seus relatos diverge da rigidez da câmera que acompanha seu dia a dia às margens da rodovia Transbrasiliana, entre os estados do Pará e do Tocantins.

    O diretor parece estar ciente disso. Ainda que suas lentes permaneçam sempre à certa da distância da personagem, aproximando-se somente em zoom, Edna é permissiva o suficiente para ser seguida na cama, ao tomar banho, ao discutir sobre sentimentos amorosos com seu companheiro. O conjunto que se forma no quadro da precária habitação da protagonista é o de desolação e solidão, contrastado com o fluxo e presença da estrada que atravessa sua vida e os caminhos do país.

    Da mesma forma, a estaticidade das cenas contraria a dinâmica da narração, como num ensaio entre vida e sonho. É desses opostos que Rocha e Edna, a mulher e o longa-metragem, tratam de um Brasil que insiste em renegar o passado e padecer desse erro no presente, numa constante de repressão e massacre. Asfixiado, tampouco o futuro pode ser vislumbrado.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Crítica | História de um Olhar

    Crítica | História de um Olhar

    Como uma necromante, Mariana Otero devolve à vida Gilles Caron e a suas fotografias. Caron, desaparecido no Camboja em 1970, foi capaz de cobrir em pouco mais de três anos alguns dos principais momentos do final da década de 1960. São dele algumas das imagens em que o mundo rememora a Guerra dos Seis dias, em Israel; a Guerra do Vietnã; o conflito civil de Biafra e a revolta estudantil de Maio de 68, na França. Em História de um Olhar (2019), mais que relembrar, a diretora francesa exercita uma construção particular da vida de Caron e dos eventos por ele registrados, numa tentativa de entender a história que levou a seu desaparecimento.

    O fotógrafo é encarado de duas formas a partir dessa perspectiva: um homem comum e um memorialista de seu tempo, nunca desassociado da profissão e da intensidade de sua vida. Mariana tenta preencher o vácuo existente entre uma fotografia e outra, pressupondo situações de acordo com a ordem das capturas, do testemunho de pessoas próximas a Caron, de cartas escritas por ele e das imagens em si. Em dado momento, a diretora brinca com a ordenação das fotos. Se um conjunto de imagens tivesse sido feito antes de outro, como aquela situação registrada se desdobraria na carreira de Caron e até mesmo no mundo?

    É desse esforço dialético entre análise e criação que o filme se estrutura. Narradora e construtora dessas histórias, a realizadora se coloca como uma personagem ativa e consciente de suas escolhas. A intimidade com as fotos é tamanha que Mariana referencia Caron na segunda pessoa, como se ali o fotógrafo estivesse presente e como se aquelas imagens fossem uma representação daquele ser.

    A permissão coloca o espectador numa posição também de criador das tantas narrativas ensaiadas na projeção, uma vez que as falas de Mariana convidam o público a imaginar e por vezes participar dos momentos retratados. Para tanto, a montagem se vale de uma sucessão de fotos com significados individuais, mas com diferentes percepções quando visualizadas uma após a outra. Qual seria o aspecto mais próximo da realidade carregado pelo cinema em relação à fotografia se não a de retratar o decurso do tempo dentro de um espaço na presença do movimento? O filme parece ter essa consciência mística da sétima arte em energizar o visível e elucubrar o extracampo para além da estaticidade das películas fotográficas, ainda que utilize o material original de Caron para pensar as possibilidades que circundavam aquelas imagens.

    Das histórias que imagina, o documentário ainda tenta demonstrar parte dos processos tomados por Caron na captura das fotos. Ainda que especuladas, as opções dão sensibilidade à figura, como os recuos e avanços do fotógrafo em meio ao fogo cruzado, a identificação dele com um estudante que enfrenta a polícia parisiense ou das possíveis táticas aplicadas por Caron nas selvas vietnamitas a partir de sua experiência como combatente francês na Guerra da Argélia. A imagem do homem se sobrepõe à do fotojornalista e dele lança sentimentos mistos e diferentes aos que são percebidos nas expressões dos retratados.

    A narrativa criada por História de um Olhar para os lapsos da vida de Caron não é encerrada em si. Soluções são deixadas de lado, e outras tantas questões surgem sobre o personagem, sejam de antes ou depois do fatídico evento no Camboja. A ampliação humaniza os olhos detrás das lentes e põe sob ótica a história de um sujeito que viveu para registrar a história dos outros.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Crítica | O Céu da Meia-Noite

    Crítica | O Céu da Meia-Noite

    Podemos dizer que filmes de viagens espaciais existem “desde sempre”, quando em 1902, o cineasta francês Georges Méliès dirigiu o ótimo Viagem à Lua, que já nasceu clássico por se tratar do primeiro filme de ficção científica da história, além de também ser o ponto de partida para a criação dos subgêneros da ficção, como os contatos imediatos com alienígenas.

    Apesar da ficção científica estar sempre em evidência no decorrer dos anos, um gênero específico possui pouquíssimos filmes que são muito bem representados, como é o caso dos dramas das viagens espaciais. Talvez, tem-se em 2001: Uma Odisseia no Espaço e em Interestelar os dois maiores filmes do gênero já feitos e podemos adicionar à lista outras produções como Apollo 13: Do Desastre ao Triunfo que é baseado em fatos reais, além dos ótimos Gravidade, Perdido em Marte e O Primeiro Homem, também baseado em fatos reais e o mais recente deles, Ad Astra: Rumo às Estrelas.

    Vale destacar que com exceção de “2001” e “Apollo 13”, que foram lançados em 1968 e 1995, respectivamente, todos os outros foram lançados na última década e olha que não estamos falando da enorme quantidade de seriados do gênero.

    E tudo isso, provavelmente, se deve às últimas pesquisas e missões feitas pela NASA, aliada à Spacex, de Elon Musk, que quer que humanos colonizem Marte o mais rápido possível. Nunca se mandou tantos astronautas e sondas para o espaço como atualmente e, como a vida imita a arte, fica claro que o mercado cinematográfico está aquecido.

    Mas como dito, são poucos os representantes do gênero e O Céu da Meia-Noite, produção da gigante Netflix, busca registrar seu nome neste hall da fama dos dramas de viagens espaciais.

    Dirigido e estrelado pelo astro George Clooney, acompanhamos a história do cientista Augustine (Clooney), que, num Planeta Terra já condenado, decide ficar sozinho numa base no Ártico para tentar alertar os vários astronautas que estão viajando pelo espaço a não voltarem à Terra, dada a sua rápida degradação. A missão destes astronautas é clara: encontrar planetas habitáveis para que possamos sobreviver e perpetuar nossa espécie. E é justamente aí que conhecemos a equipe de astronautas da nave comandada por Sully (Felicity Jones), que está retornando ao nosso planeta com ótimas notícias.

    Então, vemos em tela dois fronts de desespero, sendo um de Augustine buscando contato com as naves fora do planeta e outro da Comandante Sully buscando contato com a Terra que, estranhamente, não responde os seus chamados. E, para piorar a situação, Augustine descobre uma criança que está abandonada na base. A menina Iris, vivida pela atriz Caoillin Springall, provavelmente foi esquecida por alguma das pessoas que abandonaram a base e que motivaram a estadia do protagonista.

    Curiosamente, o filme se destaca mais pela dinâmica da dupla sozinha no Ártico do que pela dinâmica dos astronautas que são responsáveis pelos momentos de maior ação no filme, justamente porque todos os percalços vividos pelos viajantes do espaço já foram vistos no cinema pelo menos uma vez. A direção de Clooney é muito competente. Sua atuação e a química entre os personagens funcionam bem, mas infelizmente, a parte espacial não traz nada de novo para o espectador.

    Mas, ainda assim, visualmente falando, o filme é lindo e esse adjetivo não está somente presente no aspecto estético, já que passa diversas mensagens para aquele que assiste, principalmente na atual condição do nosso mundo hoje, que está doente, ambientalmente falando, pandêmico, com uma população que vem sofrendo constantemente com a saúde mental fragilizada, dentre outros diversos problemas.

    Apesar de ter figurado na lista dos filmes mais vistos na Netflix, só o tempo irá dizer se O Céu da Meia-Noite, figurará na seleta lista mencionada no início deste texto.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Presidente

    Crítica | Presidente

    De herói a vilão, Robert Mugabe esteve no comando do Zimbábue por 37 anos. Seu governo foi interrompido após um golpe militar encabeçado pelo então vice-presidente Emmerson Mnangagwa. A nova gestão assumia o controle do país em 2017 com a promessa de garantir já no ano seguinte um pleito presidencial democrático e transparente.

    Presidente, da dinamarquesa Camilla Nielsson, acompanha a realização dessa eleição pelo ponto de vista do partido de oposição, a Aliança da Mudança Democrática (MDC). O filme vê o surgimento do jovem advogado Nelson Chamisa como candidato da chapa após a morte de Morgan Tsvangirai, líder do partido e amplo favorito segundo apoio popular. Cabe a Chamisa, a poucos meses da eleição, conquistar o eleitorado órfão e ansioso por reformas políticas e sociais no país.

    O longa opta desde o início em moldar sua narrativa em torno de uma estrutura típica de thriller político. As reuniões por trás de portas fechadas, os comícios com ampla adesão popular, as estratégias para a campanha de Chamisa. Tudo é disposto num ritmo que privilegia a tensão da trama num embate entre os personagens que são colocados como verdadeiros defensores do pleito justo e o governo vigente que parece preocupado demais com a extensão de mecanismos autoritários que garantam sua continuidade no poder.

    A lógica é simples, mas eficiente. As pretensões do filme são focadas no desenrolar das situações que acompanham a disputa eleitoral, culminando na contestação judicial do pleito por parte do MDC. Menos preocupado em ser uma análise da situação geral do país africano ou algo mais amplo que o mero cotidiano do comitê opositor, o documentário se propõe a investigar conflitos de ordem político-social sob a ótica de um grupo menor, mas que obviamente transbordam ao tecido da combalida sociedade zimbabuana.

    Embora favoreça a documentação dos fatos ao lado do MDC, o filme não se exime de acompanhar Chamisa até mesmo em momentos que o pragmatismo político e eleitoreiro do candidato se sobrepõe a um possível idealismo. É na figura do jovem político que Presidente carrega o espectador por boa parte da projeção, usando seu carisma como um movimento contínuo de sequência a sequência.

    Quando o candidato sai de cena, a produção aposta o tempo de tela em outros nomes do partido que antes somente orbitavam Chamisa. Mesmo sem a força do dito protagonista, os outros personagens são capazes de levar a história adiante pela própria gravidade das circunstâncias que se apresentam. Em certos momentos, a direção parece desacreditar dessa competência e passa a enfatizar o contexto em demasia, valendo-se de chamadas jornalísticas da época, narrações em off de comentaristas de TV e pequenos interlúdios com textos que fazem a transição ao longo da trama.

    O didatismo da informação chega a dar espaço ao didatismo de sentimentos. Em diversas ocasiões, o filme apela a elementos de catarse e comoção, como a trilha sonora que embala momentos supostamente trágicos, tal qual as passagens que enclausuram as expressões dos personagens em intensos close-ups. Os artifícios pouco funcionam no escopo geral do filme, uma vez que o próprio ritmo do longa encerra rapidamente tais mergulhos melancólicos.

    Ainda assim, o documentário tem mérito ao captar a atmosfera tensa e turbulenta do período, fazendo de Presidente um poderoso registro em tempo real das usurpações repressivas num Estado democrático de direito.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Crítica | Eu e o Líder da Seita

    Crítica | Eu e o Líder da Seita

    O maior ataque terrorista já registrado no Japão ocorreu em 20 de março de 1995. Na ocasião, membros da seita Aum Shinrikyo (Verdade Suprema, em tradução livre) liberaram gás sarin em linhas do metrô de Tóquio. O resultado foi a morte de 13 pessoas e o ferimento de outras mais de 6 mil. Entre os feridos, Atsushi Sakahara, diretor deste Eu e o Líder da Seita.

    Sakahara conviveu por mais de 20 anos com problemas neurológicos devido ao atentado. Em 2015, após um ano de negociações, foi autorizado a gravar uma longa conversa com o diretor de Relações Públicas do culto, Araki Hiroshi. É desse diálogo que surge o filme, que acompanha um dia inteiro da dupla conversando num percurso pelos arredores de Tóquio.

    Pela própria natureza do encontro entre ambos, é esperada uma tensão mais que latente. A postura de Sakahara é contrastante com a de Hiroshi: enquanto o primeiro é expansivo e provocador, o outro é contido e esquivo. Mas isso não impede de que revelações sejam feitas a partir das investidas do diretor. Hiroshi muito fala sobre sua vida pré-renúncia, isto é, anterior ao ingresso na seita liderada por Shoko Asahara. Em outros momentos, o entrevistado comenta sobre sua relação com o culto por mais de 20 anos e de como encara as ações do grupo após o atentado no metrô.

    É inegável que os esforços de Sakahara direcionam-se a uma resposta concreta, seja sincera ou não, da parte de Hiroshi e que digam respeito à moralidade dos ataques e da consciência desse. Apesar de estar encarregado da conversa, da direção e da montagem, o realizador não lança mão de artifícios maniqueístas que definam em adjetivos rasos o segundo personagem em tela. À exceção de seus primeiros minutos, o longa-metragem é desprovido de trilha-sonora, narração em off, imagens de arquivos ou qualquer outra intervenção que não seja a gravação daqueles momentos.

    O que tanto o público quanto o diretor descobrem é um personagem complexo, que se mostra multifacetado nas quase duas horas de projeção. Hiroshi transita entre momentos em que chora ao lembrar da família (com a qual cortou relações ao entrar na seita) e que se nega a admitir algum tipo de culpa explícita, mesmo na presença de uma das vítimas diretas daquele março de 1995.

    Imageticamente, o filme dá espaço às falas que ocupam as andanças da dupla, acompanhadas de câmeras portáteis e pouco incomodadas com movimentos desordenados. Na maior parte, a tela é preenchida com as duas figuras (que diferem também na aparência: alto e baixo, gordo e magro, roupa amarela e traje azul), mas sabe habilmente quando isolar o executivo da seita no quadro. São momentos que fecham o cerco ao redor de Hiroshi, geralmente após alguma questão incisiva levantada por Sakahara, e que buscam em sua expressão corporal alguma resposta que as palavras não são capazes de proferir. Por outro lado, essas ocasiões também servem ao propósito de investigar aquele personagem como um ser humano dotado de diferentes sentimentos, que variam entre o orgulho e o arrependimento, mas não por caminhos simples e diretos.

    O competidor da mostra internacional do festival É Tudo Verdade, como sugere seu subtítulo em inglês (“Um relatório moderno sobre banalidade do mal”, em tradução literal), parte de um pressuposto arendtiano na contemporaneidade, que confunde grandes narrativas com a fragmentação líquida da pós-modernidade, para esboçar um belo retrato sobre a normalidade em convívio com a maldade e vice-versa. Ainda que não apresente a pintura completa de seu retratado, Eu e o Líder da Seita é inteligente o bastante, e confia em seu público para tanto, ao apostar no impacto das perguntas em detrimento da completude das respostas.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Crítica | Mil Cortes

    Crítica | Mil Cortes

    O desmanche das democracias atuais tem nas Filipinas seu maior representante. É o que aponta o longa-metragem Mil Cortes de Ramona Diz, participante da mostra internacional do festival É tudo verdade deste ano. O filme acompanha os esforços da jornalista e editora-chefe do portal filipino Rappler, Maria Ressa, em publicar críticas ao governo do presidente Rodrigo Duterte e lidar com os ataques e as censuras institucionalizadas.

    As últimas cordas que, em teoria, sustentam o modelo democrático das Filipinas são coniventes com as ações de Duterte que giram em torno de assunção de homicídios, apologia à violência, estupro e toda barbárie observável nos discursos de líderes de diferentes nações. O cenário não é atípico, especialmente ao espectador brasileiro, e o filme chega a fazer discretos acenos ao governo de Donald Trump, vigente nos Estados Unidos durante o período de gravação do documentário.

    Nesse panorama, a narrativa dilui-se em diversas frentes que tentam contextualizar a crise de estado social no país asiático. Essas subtramas tratam de milícias digitais, propagação de fake news, os discursos odiosos do presidente, duas jornalistas do Rappler e de três postulantes às eleições legislativas em 2019: o chefe da polícia nacional e voz ressoante de Duterte, uma dançarina e blogueira alinhada ao presidente e uma candidata defensora da causa feminista, de oposição ao governo.

    O fio principal que entrelaça as histórias é o drama enfrentado por Maria. Desde o início, a atenção dada a jornalista indica a preferência da cobertura, que se justifica por boa parte do filme pelo motivo de sintetizar na protagonista esses diferentes lados abordados nos demais personagens. É por meio de Maria que os filipinos tomam conhecimento da divulgação de desinformação promovida pelo governo. É Maria o alvo da maior parcela de ataques direcionados à imprensa no país. É Maria que expõe os discursos de Duterte e sua base. É Maria que observa o agonizar da democracia em seu país como um possível sopro de esperança para o futuro.

    A trama logo torna-se repetitiva e sobrecarregada. O que poderia soar como um aprofundamento no estado de espírito da jornalista, confrontada por todos os lados e por diferentes causas, numa enxurrada espiralar de situações, revela-se uma confusão desequilibrada. Uma porção das questões levantadas nas quase duas horas de filme é rasa e pouco faz frente à principal história que conduz o documentário. São chances de dimensionar em maior escala os dilemas éticos e políticos das Filipinas, mas que se perdem em exposições simplórias do que já é vociferado pelo presidente.

    O filme também põe em pauta a importância do jornalismo como prestador de contas e de informação à população, na ideia de quarto poder. Numa das passagens, Maria parafraseia o poema do pastor luterano Martin Niemöller. “Primeiro eles vieram buscar os jornalistas”, diz. “Nós não sabemos o que aconteceu depois.”

    A paráfrase condensa muito do idealismo da editora. Em determinado trecho, ela se diz pronta para o que der e vier, nem que isso seja a prisão. É o que acontece e que voltaria a se repetir no mesmo ano. Maria carrega consigo a crença de que a principal arma ante o ódio é o amor.

    Do mesmo princípio parece partir o longa, uma vez que martiriza a figura da jornalista diante dos abomináveis antagonistas da liberdade de imprensa e dos direitos humanos no país. Não que a sentença não seja cabível aos algozes, mas o filme tem pouco a dizer num jogo tão simples entre claro e escuro. Os Mil cortes referidos por Maria em relação à democracia filipina cabem ao próprio filme, composto por dilacerações em todo seu roteiro e que no final se apresenta como um cambaleante corpo de boas ideias e sem firmeza em nenhuma delas.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Crítica | Fuga

    Crítica | Fuga

    Animação e documentário. Temores e memórias. Guerra e Oriente Médio. O cenário e a temática de Fuga (2021), longa documental do dinamarquês Jonas Rasmussen, premiado em Sundance, remetem a Valsa com Bashir, do israelense Ari Folman. Tratando das lembranças íntimas de seus protagonistas como ponte de construção do presente, o recente filme de Rasmussen assume características próprias a partir da apresentação de seu personagem principal.

    Amin Nawabi (nome fictício) é o sujeito da história. A trama é iniciada no presente, com Amin na casa dos 30 anos e morando na Dinamarca. Seu amigo Jonas, responsável pelo longa dentro e fora de cena, tenta extrair algum tipo de confissão que conforte e encaixe as peças da identidade fragmentada do protagonista.

    Nascido no Afeganistão dos anos 1980, em meio ao conflito entre os rebeldes afegãos mujahideen e as tropas soviéticas de ocupação no país, Amin tratou em sua juventude de refugiar-se da guerra que vitimara seu pai e tantos outros semelhantes. Homossexual e imigrante, a repressão do ser toma forma como necessidade de sobrevivência e como elemento principal no desenrolar da narrativa.

    O uso do pseudônimo, não à toa, preserva a figura real por trás de Amin. Ainda que a preocupação premente seja para fora do quadro, a ordenação do enredo leva o espectador no fluxo de memórias alquebradas do protagonista. Na figura de Jonas, que aparece em boa parte da projeção em diálogo com Amin, o público identifica-se como um desbravador ativo nas conversas que levam o protagonista a revelar mais e mais de seu passado dúbio e por vezes intencionalmente omitido.

    A narração que amarra as diferentes linhas temporais numa única voz e num vaivém de situações que são repetidas e corrigidas dá ao filme um tom de solilóquio. São nas hesitações de Amin, em suas expressões de medo e alegria, que seu verdadeiro self se revela, independentemente de lar ou símbolos de designação. A espontaneidade das ações se desdobra com leveza no tear narrativo que atravessa diferentes décadas, países, momentos e pensamentos.

    É essa mesma narração que em vários momentos torna-se excessiva ao redundar o que o plano visual muito bem apresenta em seus diferentes tons de animação. A maior parte das memórias do protagonista, tal qual a vivência presente, ganham corpo em desenhos quase estáticos, com poucos quadros em movimento por segundo. Um recurso inteligente e que dá vazão às lembranças menos racionais de Amin, são os esboços animados por meio de um processo semelhante ao de rotoscopia, ainda que mais vibrante e expressionista que a tradicional forma.

    O contexto social dos períodos e dos locais também é retratado com o uso de imagens de arquivo, de noticiários e de registros de guerra que circundam a esfera particular de Amin. Mesmo com a utilização moderada, o truque pouco acrescenta em qualquer termo, até mesmo num suposto peso de costurar material factual na colcha de retalhos ficcionais e pessoais do protagonista. A inventividade da animação, que é hábil no equilíbrio entre imaginar o ficcional e retratar o real, muito mais tem a dizer das descrições do protagonista ao público que qualquer imagem captada no calor da ação.

    A uma hora e meia de filme pena para chegar ao fim com o fôlego e a potência prometidos pelas circunstâncias da história. Ainda assim, Fuga é um belo exemplo de abertura para o festival É Tudo Verdade, demostrando que nem toda força de verdade tem de ser necessariamente real e exibida materialmente aos olhos do público.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Melhores Animes de 2020

    Melhores Animes de 2020

    Confira a lista dos melhores animes que se destacaram em 2020.

    O ano de 2020 foi difícil para a cultura em geral, e com o mundo dos animes não seria diferente. Vários projetos adiados e transmissões interrompidas para zelar da saúde dos realizadores e responsáveis. Ainda assim, muito material interessante chegou ao público, dos mais diversos projetos e com uma expansão cada vez mais forte dos animes mundo afora. E vamos a lista!

    10. The God of Highschool

    Da leva dos originais do Crunchyroll, The God of Highschool veio para dividir opiniões, principalmente por acelerar os acontecimentos, mas também empolga na ação. O anime conta as aventuras de Jin Mori, Yoo Mira e Han Daewi, que entram no The God of Highschool, um torneio de artes marciais onde o vencedor poderá realizar um desejo, seja lá qual for, e os três jovens enfrentam todo tipo de adversário. A obra, com 13 episódios disponíveis, é uma ode aos grandes animes de luta, com inspirações de Dragon Ball até JoJo’s Bizarre Adventure, com batalhas usando captura de movimento, tornando os golpes mais realistas em meio às lutas espetaculares, que são guiadas pela trilha sonora com influência do kpop, devido ao material original ser uma webtoon sul-coreana, escrita por Youngje Park, usando bastante a cultura do país.

    9. BNA: Brand New Animal

    O original da Netflix em conjunto ao estúdio Trigger, que repetem a parceria já vista em Little Witch Academia. O anime mostra a história de Michiru Kagemori, uma garota que, por algum motivo misterioso, ganha aparência animalesca e acaba em Animalia, uma cidade habitada pelos ferais, humanos que têm a habilidade de se transformarem em animais. A garota se junta ao detetive Shirou Ogami, um homem-lobo, para tentar descobrir o motivo dela ter se transformado em feral, enquanto lidam com problemas na sociedade de Animalia. Disponível em 13 episódios.

    8. Deca-Dence

    Dirigido por Yuzuru Tachikawa (Mob Psycho 100), o anime conta sobre um mundo pós-apocalíptico onde os humanos vivem em uma fortaleza móvel chamada de Deca-Dence. A humanidade luta contra os Gadolls, monstros que diminuíram a população e fizeram com que os humanos se protegessem na fortaleza. Os guerreiros que lutam contra esses monstros são divididos em Gears, que representa a elite, e os Tankers que são os humanos de baixo escalão. Uma garota chamada Natsume sonha em ser uma Tanker, mas acaba sendo movida para trabalhar na manutenção da fortaleza com o misterioso Kaburagi. Tudo começa a mudar na vida de Natsume e também em toda a trama.

    7. Akudama Drive

    O estúdio Pierrot, famoso por produzir obras extensas como Naruto, Bleach e Yu Yu Hakusho, aposta num anime de 12 episódios e com muito estilo, aproveitando a onda cyberpunk, colocando cores vibrantes e ação usando bem o slow-motion e gadgets tecnológicos. Akudama Drive se passa num Japão futurista, em que o governo persegue um grupo de criminosos altamente perigosos denominado de Akudama. A polícia anuncia a execução de Cutthroat, um dos Akudama, e vários nomes perigosos são convocados para libertá-lo em troca de uma recompensa enorme.

    6. The Day I Became a God

    De Jun Maeda, criador de Angel Beats, a história aborda a vida de Yota Narukami, que durante seus exames no ano de graduação do ensino médio, conhece Hina Sato, que se denomina como uma deusa. Hina diz que o mundo irá acabar em um mês, mas Yota duvida, porém ela começa a acertar previsões, o que faz o jovem crer realmente que ela é uma divindade. Então Hina e Yota vão ajudando as pessoas nesse período até o fim do mundo e conta como ela se transformou em uma deusa. O anime distribuído em 12 episódios e produzido pelo estúdio P.A.Works, o mesmo de Angel Beats

    5. Sing “Yesterday” for Me

    Um slice of life que conta a história de quatro jovens tentando lidar com a vida adulta enquanto relembram acontecimentos do passado que ainda permeiam no presente. O anime adapta livremente o mangá de Kei Toume e foi desenvolvido em 12 episódios, disponíveis no Crunchyroll.

    4. Great Pretender

    Mais um original Netflix, Great Pretender conta a história de Makoto Edamura, um vigarista que se considera o maior do Japão. Um dia, ele se encontra com o misterioso Laurent Thierry e começa a fazer parte do seu grupo, crescendo sua fama como ladrão cada vez mais. Great Pretender tem um visual colorido marcante, empolga pela série de crimes arquitetados e pelo carisma dos personagens. Desenvolvido pelo estúdio Wit, responsável pelos enormes sucessos Attack on Titan e Vinland Saga, foi distribuído em 23 episódios na Netflix.

    3. Dorohedoro

    Baseado no mangá de Q Hayashida, o anime apresenta um mundo biopunk, que se divide em duas realidades, o Buraco, lugar que os humanos residem e o Mundo dos Feiticeiros, onde esses são uma raça diferente dos humanos, tendo poderes especiais e tem a capacidade de atravessar as dimensões e ir para o Buraco, tendo uma rivalidade com os humanos. Em meio a isso, Kaiman, um humano com cara de lagarto, junto à sua parceira Nikaido, tentam descobrir o motivo de Kaiman ter essa aparência reptiliana, caçando e interrogando os feiticeiros que possam ter feito isso com ele. O anime, repleto de gore e comédia, foi produzido pelo estúdio MAPPA e distribuído pela Netflix em 12 episódios.

    2. Jujutsu Kaisen

    O grande sucesso do ano é sem dúvida Jujutsu Kaisen. A nova jóia da Shonen Jump, escrita pro Gege Akutami, foi adaptada em anime pelo estúdio MAPPA, trazendo a história de Yuji Itadori, o jovem que vive o luto do seu avô, e por desventuras dos seus colegas de escola, acaba comendo o dedo do demônio Ryomen Sukuna e passa a dividir a sua consciência com o ser amaldiçoado. Ele é recrutado pelos feiticeiros Jujutsu, uma ordem que lida com as maldições, seres sobrenaturais que atormentam o mundo real. A série carrega uma lindíssima animação, com uso dos elementos de terror somados a várias cenas de ação extraordinárias. Anime segue em exibição no Crunchyroll, com previsão de ser finalizado em 24 episódios.

    1. Keep Your Hands Off Eizouken!

    O visionário diretor de animes Masaaki Yuasa (Devilman Crybaby) faz de Keep Your Hands Off Eizouken! uma carta de amor à indústria dos animes e a quem almeja ser um realizador de animação. Serializado em 12 episódios no Crunchyroll, a trama traz Midori Asakusa, uma jovem que ama animes e adora desenhar esboços, que encontra Tsubame Mizusaki, uma modelo famosa que secretamente cria personagens e tem o sonho de ser animadora. Elas unem seus desejos e paixão pela animação e criam o clube de audiovisual “Eizouken”, com a ajuda de Sayaka Kanamori, tendo o objetivo de criar um anime experimental. A cada união de pensamento das garotas, o anime coloca a imaginação delas para saltar na tela, com todo episódio tendo um show de animação excelente, enquanto elas montam passo a passo o seu projeto. Sem dúvidas é o melhor de 2020.

    Texto de autoria de Wedson Correia.

  • Resenha | Doctor Who: Shada – Gareth Roberts

    Resenha | Doctor Who: Shada – Gareth Roberts

    Um dos maiores atrativos iniciais ao me deparar com a capa de Doctor Who: Shada, publicado pela Suma de Letras e novelizado por Gareth Roberts, foram duas palavras, em letras não tão garrafais: Douglas Adams. O livro se apresenta como uma aventura perdida da série em que o autor d’O Guia do Mochileiro das Galáxias trabalhava como editor de roteiros em 1979, ano que a história foi escrita. E é exatamente isso que você deve esperar dele, um episódio da série clássica de Doctor Who.

    Para os não familiarizados com o universo de uma série de TV que começou em 1963 e dura até hoje, ela narra as aventuras do Doutor, um alienígena com uma nave em formato de cabine telefônica capaz de viajar no tempo e espaço. Uma das características mais importantes da espécie do personagem, os Senhores do Tempo, é a capacidade de se “regenerar”, uma maneira de enganar a morte e voltar com um outro corpo, permitindo não só a troca de atores para o papel, mas também leves mudanças justificadas no comportamento do personagem.

    Nessa história, acompanhamos a quarta encarnação do Doutor, interpretado na TV por Tom Baker e reconhecido pelo icônico cachecol colorido e gigantesco, tentando impedir que Skagra, um alienígena extremamente inteligente e apático tome posse de um livro que o permita encontrar Shada, um planeta utilizado como prisão para os Senhores do Tempo.

    O tom variado da série consegue ser muito bem encaixado na novelização, com mudanças entre o humor, drama e suspense muito bem encaixados e distribuídos. É uma história leve de se acompanhar e divertida, já que as viradas de roteiro, bem como os momentos de apresentação de peças-chaves do mesmo são feitas a nos deixar empolgado de continuar a leitura. Uma das estruturas que ajudam nisso é da utilização dos capítulos como cenas, provável resquício da organização do roteiro, que faz com que haja agilidade na troca dos núcleos e faz com que seja possível manter um bom equilíbrio entre informações presentes em cada um deles de como a trama se desenrola.

    Para além da organização dos capítulos em cenas, uma divisão de partes no livro também lembra como eram organizados os episódios antigos da série: um conjunto de quatro episódios para a formação de um arco da história. A diferença é que no lugar de quatro, temos o que seriam seis episódios aqui. A edição do livro ajuda no processo de devorá-lo, com fonte e papel bem escolhidos, permitindo manter a leitura no ritmo agitado e frenético típico da série.

    Apesar de apresentar conceitos simples dentro de tudo o que aparece nas décadas de Doctor Who, eu creio que Shada esteja mais próximo dos iniciados que daqueles que nunca tiveram contato com esse universo. Por não ter sido inicialmente pensado como um material introdutório, diversos conceitos que fãs da série já tenham firmados podem ficar perdidos para o leitor de primeira viagem, fazendo com que a leitura não emplaque e você se sinta perdido em diversos momentos. E, como um arco de episódios feito para uma série que, apesar de tratar de ficção científica, tinha um foco no público infantil, e iria ao ar no final da década de 1970, não se deve esperar um roteiro tão bem trabalhado e carregado de humor que às vezes beira o macabro como seria o posterior trabalho de Adams. Portanto, se você teve contato com outros trabalhos do autor e quer experimentar o que ele escreveu em outro universo, é bom saber onde pisa.

    Texto de autoria de Caio Amorim.

    Compre: Doctor Who – Shada.

  • Dia dos Investidores da Disney: Os Principais Anúncios do Universo Marvel

    Dia dos Investidores da Disney: Os Principais Anúncios do Universo Marvel

    Meus amigos, a Disney não está para brincadeira! A data de dez de dezembro de 2020 poderá entrar para uma das principais da história desta gigante do entretenimento, já que foi o Dia dos Investidores da Disney, onde a “empresa do Mickey Mouse” apresenta para seus investidores seus projetos futuros. Foi uma maneira agradável de dizer que o seu dinheiro será empregado pesadamente em produções audaciosas para o público em geral, que envolve a Disney propriamente dita, a Pixar, Marvel e Lucasfilm com o universo de Star Wars.

    De fato, o que se viu foi que a Disney investirá pesado no seu canal de streaming, o Disney+, demonstrando querer viver não só do passado, mas de um futuro bastante promissor. Inclusive, o evento aproveitou para mencionar o sucesso estrondoso do canal que já está próximo de bater a meta que estava prevista para daqui 4 anos.

    Mas nem tudo são flores, uma vez que diversos projetos poderão sofrer cancelamentos ou mudanças em suas trajetórias. Falaremos isso em um texto mais específico.

    Aqui nós acompanharemos o que vem por aí no mundo dos heróis da Marvel.

    Enquanto a Lucasfilm aposta em lançamentos inéditos, trazendo pouquíssimos rostos conhecidos, a Marvel opta por um caminho totalmente oposto, usando e abusando dos rostos que conhecemos nos últimos 12 anos de seu universo cinematográfico, porém, ousando um pouco mais.

    WANDA VISION

    Embora a produção de Wanda Vision não fosse novidade pra ninguém, já que a bizarra série estrelada por Elizabeth Olsen e Paul Bettany já teve diversos trailers lançados, o anúncio serviu apenas para informar a data de sua estreia no Disney+, que será logo no começo de 2021, em 15 de janeiro.

    THE FALCON AND THE WINTER SOLDIER

    A série do Falcão e do Soldado Invernal, embora já estivesse em estágio avançado de produção, buscou esconder ao máximo imagens oficiais e detalhes da trama. Estrelada por Anthony Mackie e Sebastian Stan, ambos retornando aos seus papeis, The Falcon And The Winter Soldier teve divulgado seu primeiro e lindo trailer recheado de ação e com uma bela fotografia. A produção também ganhou uma data de estreia para 19 de março de 2021.

    LOKI

    Épico e louco. Essa é a definição para a série de Loki que teve seu primeiro trailer divulgado. Loki mostrará o que aconteceu com o personagem após os acontecimentos de Vingadores: Ultimato, e trará novamente o querido Tom Hiddleston na pele do Deus da Trapaça.

    WHAT IF…?

    What if…? já tinha sido anunciada anteriormente, mas assim como The Falcon And The Winter Soldier, a animação que ficou em segredo finalmente ganhou seu primeiro trailer e nele podemos ver que Peggy Carter foi quem recebeu o soro de super soldado do Capitão América, além de vermos T’Challa como Senhor das Estrelas.

    QUARTETO FANTÁSTICO

    Talvez a maior novidade nos anúncios da Marvel. Com a compra da Fox pela Disney tivemos o retorno dos direitos sobre o Quarteto Fantástico e dos direitos sobre os X-Men. Porém, é com a equipe de cientistas que a Marvel resolveu arriscar primeiro. O filme será dirigido por John Watts que é o responsável pelos filmes do Homem-Aranha da fase Tom Holland. Vale lembrar que será a terceira tentativa de fazer o quarteto vingar nas telas.

    INVASÃO SECRETA

    Talvez a maior surpresa da noite. Teremos a adaptação do arco Invasão Secreta e ela será estrelada nada mais nada menos por Samuel L. Jackson, como Nick Fury e Ben Mendelsohn, como o Skrull Talos que apareceu em Capitã Marvel e Homem-Aranha: Longe de Casa.

    SHE-HULK

    A série da Mulher Hulk contará com o retorno de Mark Ruffalo na pele do Gigante Esmeralda e ainda terá o retorno de Tim Roth como o vilão Abominável, que apareceu no filme O Incrível Hulk estrelado por Edward Norton. Não é a primeira vez que personagens deste filme retornam em filmes do MCU, já que William Hurt, que viveu o General Ross, apareceu em filmes como Capitão América: Guerra Civil, além de ter presença garantida em Viúva Negra.

    A protagonista será vivida pela atriz Tatiana Maslany.

    ARMOR WARS

    Armor Wars será estrelada por Don Cheadle, o Máquina de Combate. Após a morte de Tony Stark, James Rhodes luta para que as invenções de seu melhor amigo não caiam nas mãos erradas.

    IRONHEART

    Mais uma série que buscará manter o legado do Homem de Ferro. De acordo com a própria Disney, veremos Riri Williams (vivida por Dominique Thorne) criando a armadura mais tecnológica desde as armaduras criadas por Tony Stark. É muito provável que na série, Riri se torne a heroína Coração de Ferro.

    THE GUARDIANS OF THE GALAXY HOLIDAY SPECIAL

    Um anúncio que faz o fã cair na gargalhada, depois colocar a mão na consciência e chegar na seguinte conclusão: James Gunn é um gênio. Todos sabem do famigerado Star Wars Holiday Special e aquela discussão de ser cânone ou não, depois de total constrangimento ao término da fita. Pouco importa. Mas será lindo ver uma sátira promovida pelos Guardiões da Galáxia. Ah, roteiro e direção de Gunn, e sim, será em live action.

    I AM GROOT

    O querido Groot também ganhou uma série para chamar de sua. Aqui a estrela será sua versão bebê apresentada em Guardiões da Galáxia Vol. 2, numa série de curtas animados.

    ANT-MAN AND THE WASP: QUANTUMANIA

    Também foi anunciado o terceiro filme do Homem-Formiga. E pelo título, além de dar a entender que o filme será focado no mundo quântico, está mais que claro que a Vespa ganhou o público e os executivos dividindo o protagonismo. Embora tenhamos o retorno de Peyton Reed na cadeira da direção e o retorno de Paul Rudd e Evangeline Lilly, Cassie Lang será vivida por Kathryn Newton.

    E ainda tivemos alguns anúncios interessantes, como o anúncio do novo filme da Capitã Marvel, que trará a Ms. Marvel (que também ganhou um seriado protagonizado), além de uma adulta Monica Rambeau. Teremos também a continuação de Pantera Negra com o devido respeito ao legado deixado por Chadwick Boseman que faleceu há pouco tempo, não escalando um novo T’Challa e o bombástico anúncio de que Christian Bale estará em Thor: Love And Thunder, como o vilão Gorr, o Carniceiro dos Deuses.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Dia dos Investidores da Disney: Os Principais Anúncios do Universo de Star Wars

    Dia dos Investidores da Disney: Os Principais Anúncios do Universo de Star Wars

    Meus amigos, a Disney não está para brincadeira! A data de dez de dezembro de 2020 poderá entrar para uma das principais da história desta gigante do entretenimento, já que foi o Dia dos Investidores da Disney, onde a “empresa do Mickey Mouse” apresenta para seus investidores seus projetos futuros. Foi uma maneira agradável de dizer que o seu dinheiro será empregado pesadamente em produções audaciosas para o público em geral, que envolve a Disney propriamente dita, a Pixar, Marvel e Lucasfilm com o universo de Star Wars.

    De fato, o que se viu foi que a Disney investirá pesado no seu canal de streaming, o Disney+, demonstrando querer viver não só do passado, mas de um futuro bastante promissor. Inclusive, o evento aproveitou para mencionar o sucesso estrondoso do canal que já está próximo de bater a meta que estava prevista para daqui 4 anos.

    Mas nem tudo são flores, uma vez que diversos projetos poderão sofrer cancelamentos ou mudanças em suas trajetórias. Falaremos isso em um texto mais específico.

    Aqui nós acompanharemos o que vem por aí no mundo criado por George Lucas em Star Wars.

    É inegável o sucesso de The Mandalorian, a série desenvolvida por Jon Favreau e Dave Filoni, que conta a história de um caçador de recompensa mandaloriano que, durante um serviço, resgata um bebê da mesma raça do mestre Yoda e que também é sensitivo na Força. As aventuras de “Mando” são leves, engraçadas, recheadas de ação, possuindo tudo que um velho fã de Star Wars quer. Importante dizer que a série foi o termômetro para diversas outras produções anunciadas.

    ROGUE SQUADRON

    Um dos anúncios mais importantes da noite foi o do tão aguardado novo filme de Star Wars: Rogue Squadron. Seguindo a linha de Rogue One e Solo, Rogue Squadron acompanhará o esquadrão de elite da aviação da Aliança Rebelde. A direção ficará a cargo de Patty Jenkins (Mulher-Maravilha), que disse que gostaria de fazer o maior filme sobre pilotos de guerra já feito. Rogue Squadron tem previsão para chegar aos cinemas em dezembro de 2023.

    OBI-WAN KENOBI

    Outro ponto alto da noite foi a confirmação oficial da produção da série de Obi-Wan Kenobi, ganhando título oficial, a confirmação do retorno de Ewan McGregor na pele do mestre Jedi, além do grande retorno de Hayden Christensen como Darth Vader. O seriado se passará 10 anos após os eventos de A Vingança dos Sith e, segundo a diretora Deborah Chow, a galáxia se tornou um lugar perigoso com a ascensão do Império e tem pessoas caçando cavaleiros Jedi. Obi-Wan precisará lidar com isso e ainda proteger o jovem Luke Skywalker.

    AHSOKA

    Após aparecer lindamente interpretada por Rosario Dawnson na segunda temporada de The Mandalorian, Ahsoka Tano ganhou uma série para chamar de sua. Assim como em Mandalorian, Ahsoka será capitaneada por Jon Favreau e Dave Filoni e trará novamente Dawson na pele da guerreira Jedi que deve continuar vasculhando a galáxia em busca de seu amigo Ezra Bridger e do Almirante Thrawn, desaparecidos ao final de Star Wars: Rebels.

    RANGERS OF THE NEW REPUBLIC

    Assim como Ahsoka, este outro derivado de The Mandalorian, também contará com a batuta de Favreau e Filoni e como o próprio nome já diz, mostrará os oficiais da Nova República. Em Mandalorian já vimos alguns deles pilotando X-Wings e colhendo informações em terra.

    ANDOR

    Andor é uma série que já está em estágio avançado de produção, tanto que foi divulgado um vídeo com cenas das filmagens e bastidores da produção. No vídeo, podemos perceber que é uma série que está investindo pesado em cenários, figurino e criaturas. Andor é sobre o personagem Cassian Andor, vivido por Diego Luna, que também assina a produção executiva da série. Andor foi o responsável por recrutar Jyn Erso para a Aliança Rebelde nos eventos de Rogue One: Uma História Star Wars.

    LANDO

    Lando Calrissian também ganhará sua própria série, mas não se sabe em qual momento ela se passará e nem se Donald Glover ou Billy Dee Williams, que fizeram o personagem nos cinemas, retornarão.

    THE BAD BATCH

    Se fôssemos traduzir esse nome, poderíamos dizer que um bad batch é um lote com defeito. A nova série animada de Star Wars teve seu primeiro trailer divulgado e se passará durante as Guerras Clônicas e talvez, logo após de A Vingança dos Sith. Bad Batch já teve um arco criado por George Lucas em Clone Wars. Segundo o criador, ele gostaria de explorar a ideia de que alguns dos clones fossem um pouco mais únicos que os outros, com habilidades um pouco mais especiais, formando assim uma unidade de forças especiais de batalha.

    The Bad Batch teve seu primeiro trailer divulgado e o que se pode esperar é muita ação nessa série animada que será a substituta de Clone Wars.

    VISIONS

    Talvez o projeto mais diferente apresentado, Visions explorará o universo criado por George Lucas em curtas animados, sendo que, seu diferencial será a forte influência do anime japonês, com diversos especialistas envolvidos no projeto.

    Para quem quiser pesquisar, num passado não muito distante, um trecho de uma animação japonesa de uma batalha espacial travada entre pilotos do Império e da Aliança Rebelde viralizou nas redes. Existe grandes chances de Visions ter nascido após esse vídeo.

    THE ACOLYTE

    Uma série com pegada de suspense e mistério, desenvolvida por Leslye Headland, responsável pelo ótimo Boneca Russa, e que acompanhará a época final da Alta República, com a ascensão dos poderes do Lado Sombrio. Poderemos ver muitos sabres de luz e diversos embates entre Jedi e Sith.

    Também foi confirmado que Taika Waititi dirigirá um filme inédito, inesperado e único no universo da franquia. O cineasta que cuida dos filmes do Thor no Universo Cinemático Marvel, já dirigiu episódios de The Mandalorian.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Nu (1993)

    Crítica | Nu (1993)

    Qualquer pessoa em determinado ponto de sua vida se perguntou qual o sentido de viver, questionando e culpando Deus pela maldade existente no mundo, afinal, não seria Ele responsável pelos erros de sua criação, uma humanidade egoísta e auto destrutiva? Nu, escrito e dirigido por Mike Leigh apresenta a odisseia de Johnny, jovem misantropo que foge de Manchester para Londres, após um estupro que marca o início da obra e ameaça trazer sérias consequências para sua vida, deixando o público ciente de que está diante de um filme controverso.

    Brilhantemente interpretado por David Thewlis, atuação que lhe rendeu prêmio em Cannes, assim como para a direção de Leigh, Johnny é um homem amargurado que busca sentido para seus questionamentos existenciais através de discussões com outras pessoas emocionalmente frágeis, quebradas, aparentemente acomodadas com as frustrações da vida se tornando indivíduos sem perspectiva. Mesmo desequilibrado, Johnny consegue tornar esses “alvos” submissos graças à sua intelectualidade demonstrada de forma opressora, que leva esses seres a questionarem suas próprias atitudes, colocando o personagem quase sempre acima dos outros.

    Característica do processo criativo de Mike Leigh, o roteiro criado a partir de ensaios e improvisos com o elenco de atores, foca muito mais no desenvolvimento de Johnny e os personagens que o cerca, reforçando a característica de estudo do personagem. É um processo dedicado para que a obra explore a complexa personalidade da figura interpretada por Thewlis. Através desses debates e da exposição de ideias e opiniões acerca dos mais variados temas, como alienação, cultura, sexualidade, Leigh nos entrega um desenho perfeito da mente de Johnny que apesar de toda sua inteligência, ainda aparenta ser uma pessoa sem futuro e perspectivas. 

    Sempre com a mesma roupa e de aparência suja, o personagem vaga pelo subúrbio de uma Londres fria e suja. Isso reforça a dualidade do protagonista, que se inicialmente espanta os outros por sua aparência precária também seduz através de sua forma culta e educada de falar, usando desse artifício para explorar quem cruza seu caminho. Apesar dessa complexidade, Thewlis não interpreta o personagem mais cruel do filme, ainda há Jeremy (Greg Cruttwell), personagem que possui algumas semelhanças com o protagonista de Nu, mas sem qualquer resquício de humanidade, um verdadeiro psicopata, fato que torna Johnny um ser mais compreensível na obra devido a diferença de tratamento que eles empregam nas mulheres que encontram no decorrer da obra. 

    Louise (Lesley Sharp) dá o tom de esperança necessário para o filme, em diversos momentos ela demonstra ter força e personalidade para enfrentar esses homens, já que sua colega de quarto Sophie (Katrin Cartlidge) está sempre refém do desejo sexual afetado por seu aparente problema psicológico e com abuso de drogas. Se com Johnny, seu ex-namorado, Louise cria expectativas de reatar o antigo relacionamento, quando se trata de Jeremy ela possui um tratamento diferente, não hesita em ameaçar e lhe apontar uma faca, fato que reafirma a diferença entre os dois homens na obra.

    Leigh e seu diretor de fotografia, Dick Pope, optam por focar nos cenários internos de uma Londres poluída e decadente, sem qualquer artifício de iluminação prezando por uma fotografia natural, atribuindo mais força e realismo para os discursos de Johnny. Enquanto está em tela, a câmera foca e acompanha seu personagem, destacando suas expressões e forma analítica de observar as pessoas, a dupla consegue criar assim sequências verdadeiramente angustiantes. Existem alguns momentos únicos em que os realizadores aparentam brincar com o espectador, como no momento em que o protagonista se depara com um punk pregando cartazes num muro, destacando um deles que sugere terapia e mostrando logo em seguida o título “Sinfonia da Destruição” da banda Megadeth, enquanto o protagonista discursa sobre o nazismo.

    O diretor britânico cria uma experiência única com Nu, abordando várias temáticas importantes com um grande trabalho do elenco para dar vida ao seu texto desenvolvido cuidadosamente sem escrúpulo de seu forte conteúdo. Essa é certamente uma obra que ainda continuará por anos sendo discutida e tida como uma grande fonte de estudo, assim como todo grande filme que marca uma época, aqui temos um trabalho ímpar que merece ser visto e revisto por todos aqueles que gostam e estudam o cinema.

    Texto de autoria de Mattheus Henx.

  • Crítica | A Vastidão da Noite

    Crítica | A Vastidão da Noite

    Acredito que a manobra mais bonita do cinema seja aquela que um filme faz para se destacar. É fato que para um filme chegar até nossas bolhas, nossas timelines, nossas casas e chegar até esse site por exemplo, é investido dinheiro – e mais um pouco de dinheiro em alguns casos – para ele ser visto. Então, o que fez A Vastidão da Noite, um filme independente, estupidamente barato e sem nenhum grande nome, se destacar? 

    Desde que foi exibido em Sundance de 2019 o primeiro longa da carreira do diretor Andrew Patterson vem causando burburinhos que felizmente garantiram sua aquisição pelo Prime Video neste ano. Estava feito, certo? Em um ano que o cinema foi profundamente afetado pela pandemia e que os streamings se firmaram de vez como a primeira opção de muitos, a possibilidade do longa ganhar um grande público estava aí. Porém, se tem algo que esse ano nos ensinou também é que às vezes essas plataformas só oferecem um buraco profundo de opções imemoráveis e descartáveis.

    Independente, pequeno e tímido, sem dinheiro para estourar bolhas e no meio de tantas opções fresquinhas saindo do forno fast food da indústria, A Vastidão da Noite acabou se destacando pelo caminho mais barato: sendo formidável. A narrativa episódica criada por Patterson e o co-roteirista Craig W. Sander acompanha dois jovens radialistas, Fay (Sierra McCormick) e Everett (Jake Horowitz), que captam uma estranha frequência enquanto quase toda a população da pequena cidade assiste a um jogo no ginásio, fazendo com que desenterrem alguns segredos assustadores.

    Episódico e não é à toa. Inspirado diretamente na série de TV The Twilight Zone (Além da Imaginação) (1959 – 1964), o filme traz consigo uma agradável atmosfera de especial de TV e o design de produção resolve muito bem essa alternativa estética, que acaba se fazendo presente também na montagem. Tudo em tela nos imerge rapidamente, longas tomadas e uma trilha musical intrínseca ao melhor dos mistérios passeiam pelo longa nos puxando a mão para uma perspectiva próxima à de voyeur.

    Mas mesmo que A Vastidão da Noite consiga abordar certas temáticas e gêneros com uma tensão absurda, entregando cenas que ainda vivem na memória após meses, é como Andrew Patterson nos apresenta e desenvolve suas personagens que fica conosco logo de cara. Há entrelinhas uma paixão palpável, usando as duas personagens principais como instrumentos claros de identificação com o público, sentimos uma espécie de otimismo raro em produções contemporâneas, mas não um otimismo desonesto, longe disso. É como um abraço, daqueles que nos levam às memórias mais nostálgicas e esperançosas.

    Na tentativa de digerir o que com certeza seja o ano mais difícil de muita gente em níveis globais, e também a de encontrar filmes minimamente bons em um 2020 atípico, essa carta de amor à ciência, ao rádio e ao fogo mais caloroso da juventude é com certeza um dos pontos mais altos do ano. O longa se destaca por apresentar de volta atmosferas há muito tempo não aproveitadas, provando que apesar dos pesares o limite de orçamento não é um obstáculo absoluto para um pedaço de arte.

    Texto de autoria de Felipe Freitas.

  • Crítica | O Diabo de Cada Dia

    Crítica | O Diabo de Cada Dia

    Assinada pelo meio brasileiro meio  estadunidense Antonio Campos, a nova produção da Netflix chega sem muito alarde em sua divulgação, apostando no elenco estrelado por Robert Pattinson, Tom Holland, Bill Skarsgard, Sebastian Stan, além de Jake Gyllenhaal como produtor executivo. Baseado no livro homônimo de Donald Ray Pollack, que ainda atua como narrador no filme, O Diabo de Cada Dia é um thriller envolvendo uma série de tragédias que se conecta com a família Russel através de duas gerações, a partir do fim da primeira guerra mundial. 

    Inicialmente, o filme apresenta o personagem Willard (Skarsgard) e seu confronto com a fé após presenciar um soldado morto e crucificado na guerra, momento que faz questionar a existência de Deus e sua bondade, cortando então a relação com o Criador. Essa decisão persegue até a criação de uma família com Charlotte (Haley Bennett) e seu filho, Arkin (Holland). Temendo algo de negativo, Willard retoma seu laço com Deus e transforma sua negação religiosa em obsessão, realizando de forma violenta uma espécie de “pregação” em Arkin, principalmente após a descoberta de um câncer terminal em Charlotte. O núcleo entre a relação de Willard e Arkin se concentra em boa parte do filme e dialoga diretamente com os personagens das subtramas que permeiam o jovem interpretado por Holland. As consequências causadas pelo comportamento e suicídio de Willard criam um Arkin internamente conflituoso, entre rejeição e aceitação, mas aparentemente o único personagem com senso moral para enfrentar uma pequena jornada na perversa região de Ohio nos Estados Unidos.

    A relação com a fé mostrada na apresentação da família Russel é ponto chave da trama, que de forma paralela introduz alguns personagens que futuramente irão cruzar o caminho de Arkin. É a partir dessas histórias que o filme constrói uma genérica crítica à religião e aos atos imorais justificados pela vontade de Deus, com estereótipos já conhecidos como o pastor pilantra que suborna os fiéis com sua devoção e outro com sérios problemas psicológicos que acredita ser um enviado do Criador, um policial corrupto e até mesmo um casal de serial killers presentes na cidade. Situados num mesmo recorte temporal, esses personagens não possuem desenvolvimento na trama, o que é mostrado são apenas as trágicas consequências de suas escolhas, que por ordem do universo colidem com Arkin num rápido intervalo de tempo, trazendo uma sucessão de confrontos que colocam sua vida em jogo. 

    A casualidade no roteiro no momento de conectar  essas subtramas ao retorno de Arkin à cidade natal diminui a relevância do diálogo do filme com sua temática, transformando sequências de assassinato com o casal assassino ou a morte do cachorro em banais, expositivas em tela e vazias no discurso, funcionando apenas como choque visual. O filme que aparentava apenas se preocupar em mostrar momentos que despertam repulsa no público conclui-se nos duelos, que nesse momento já beiram o cômico dado ao desastre dos irmãos Sandy (Riley Keough) e Lee (Stan), indo contra o tom criado na primeira metade, mudando de um gótico thriller “caipira” para uma comédia de tragédias, claramente inspirada em Fargo dos Irmãos Coen, da mesma forma para sua estrutura narrativa.

    Fechando o arco dramático de Arkin com seu pai, O Diabo de Cada Dia transforma Holland num anti-herói do interior, que enfrenta as piores tragédias de forma tão genérica que nos faz pensar se ele não é apenas um amaldiçoado por Deus apenas para testar os limites do que um ser humano pode sofrer durante sua vida na terra.

    Texto de autoria de Mattheus Henx.

  • Review | Bloodborne

    Review | Bloodborne

    Durante a produção da “Prepare To Die Edition”, de Dark Souls, a desenvolvedora FromSoftware e o diretor Hidetaka Miyazaki ficaram responsáveis da difícil missão de criar um jogo exclusivo para o catálogo do Playstation 4, lançado em 2015, Bloodborne marcou os jogadores especialmente pelo seu alto grau de dificuldade e inovação na mecânica de combate, mantendo as principais características dos aclamados jogos da empresa e do diretor japonês, conhecidos como série “Souls”. 

    Bloodborne inicia sua história na clinica de Losefka, em Yharnam, após uma cutscene onde é mostrada uma transfusão de sangue sendo realizada por um velho estranho e um bilhete indicando a busca pelo sangue pálido capaz de transcender o caçador. Assim somos apresentados a visceral atmosfera do jogo, cheia de sangue, este que possui papel fundamental na história e dinâmica de combate. Com a mecânica rally, ao sofrer dano de algum inimigo, é deixado uma marca na barra de vida do personagem por um curto período de tempo, passível de ser recuperada caso o jogador contra ataque. Existem também os ecos de sangue, utilizados como moeda para obter itens e subir de level no Sonho do Caçador, uma espécie de HUB para o jogador que é utilizado para alterações no personagem, viagem rápida para lâmpadas descobertas e acesso aos calabouços nomeados de Cálice.

    Mantendo a tradição dos jogos da FromSoftware, Bloodborne possui uma narrativa fragmentada, com seu enredo sendo descoberto através de descrições de itens, diálogos com NPCs e até mesmo detalhes no cenário e pelo lore, deixando o jogador livre para trilhar pelo vasto cenário. Baseando suas escolhas por intuição e de acordo com seu nível de aproximação com o jogo – que não possui acesso ao mapa, somos obrigados a decorar os caminhos e atalhos que levam de um lugar para outro –, aqui é necessário também destacar o incrível trabalho feito na arquitetura do cenário, com bastante conteúdo para se explorar e conexões entre locais iniciais e finais da campanha por um único atalho, capaz de deixar o jogador de queixo caído por um bom tempo.

    O diretor Miyazaki foi bastante cuidadoso na belíssima concepção visual de sua obra, com referências principalmente do terror cósmico de H.P. Lovecraft. Podemos enfrentar as mais variadas bestas e criaturas durante a jornada, que vai se tornando cada vez mais enigmática e sombria, indo de uma cidade gótica inspirada na arquitetura vitoriana ao mais terrível pesadelo no alto de uma catedral. A loucura em Bloodborne também faz parte da mecânica de jogo com o chamado “Conhecimento de Louco”, que aumenta o discernimento do caçador, que conforme acumulado, lhe dá a possibilidade de enxergar segredos no cenário, afetando sua história. O item que também pode ser usado como moeda para adquirir itens específicos, invocar outros caçadores para um CO-OP, PVP, e invocar NPCs para auxiliar em sua caça. 

    Diferente de DarkSouls, aqui o combate é fluído e agressivo, no qual o caçador não pode se defender, apenas esquivar. A enorme variação nas armas e vestimentas de caça permite o jogador optar por um combate mais rápido e frenético com auxílio das pistolas e bacamartes ou um combate de média distância, com armas pesadas de duas mãos. Com isso a evolução possui um foco maior na jogabilidade do que personalização do personagem, sendo necessária uma análise maior de cada inimigo e cenário onde é enfrentado, assim encaixando perfeitamente com a temática do jogo, nos dando a digna sensação de estar na pele de um matador de bestas.

    Hidetaka Miyazaki afirma não ser sua intenção criar um jogo com tamanha dificuldade, e que isso é apenas fruto da sua vontade de criar uma experiência que realmente recompensasse o jogador. O feito foi conquistado, já que ao finalizar Bloodborne, qualquer jogador tem a certeza de que está diante de não só um dos melhores jogos exclusivos do PS4, mas também da oitava geração de consoles.

    Texto de autoria de Mattheus Henx.