Tag: Cinema Brasileiro

  • Crítica | São Bernardo

    Crítica | São Bernardo

    São Bernardo

    Parte integrante do movimento Cinema Novo, São Bernardo trata da história de Paulo Honório, um mascate que habita o sertão de Alagoas e negocia gado e toda sorte de coisas. A obra de Leon Hirszman mostra o personagem de Othon Bastos tentando de todos os meios, inclusive antiéticos, para adquirir a fazenda que dá nome ao filme, local este onde havia trabalhado quando criança.

    O filme começa com um coro de sons indistinguíveis, que simbolizam a confusão mental de Honório, um homem violento, machista e autoritário, com dificuldades claras de convivência. Sua postura autossuficiente esconde um modo de pensar e viver bastante miserável, aquém dos próprios delírios de grandeza que ele nutre.

    O roteiro é uma adaptação de um dos grandes clássicos da literatura nacional, São Bernardo, de Graciliano Ramos, e tanto Hirszman quanto Bastos conseguiram capturar bem a essência do romance, não só em mostrar a jornada do protagonista e todo o contexto político-social da obra, mas também nos demais personagens, em especial, Madalena de Isabel Ribeiro, uma professora de pensamento e atitudes progressistas entrando em conflito direto com o conservadorismo de Honório. Os dois se casam, apesar de não combinarem em praticamente nada.

    O gerenciamento da fazenda torna seu proprietário próspero, mas sempre causando temor em qualquer pessoa que se relacione com ele. Suas sensações e obsessões de controle se chocam com o ideal que Madalena tem para si, e o texto se desenvolve muito bem nos conflitos. Hirzman não aborda de maneira óbvia as contradições de uma relação, e a estética empregada pelo cineasta faz o filme parecer uma declamação, tanto pela narração do ator, que revela o pensamento torto, sexista e moralista, quanto suas expressões corporais, que deixa claro ser um sujeito que parece estar sempre prestes a explodir.

    A postura turrona de Paulo esconde mal sua real face. Além da índole estranha se percebe a fragilidade de seu caráter e até de sua auto imagem. O comportamento possessivo de fato tem a ver com o receio de ficar sozinho, e acaba resultando em uma vaidade que faz até quem está perto se afastar.

    Sua incompreensão também ajuda que ele seja um pária em casa, mesmo sendo bem-sucedido financeiramente, e ajudam a formar nele a postura de um sujeito paranoico. Isso resulta em fracasso até no mais banal de seus desejos, visto que até a paternidade, que lhe parecia natural lhe é negada. Sua esposa, que deveria ser sua protegida, adoece da dor da rejeição e da falta cuidados sentimentais básicos, pois não é tratada como um ser humano, e sim como mais uma propriedade.

    São Bernardo trata de questões candentes até os dias atuais, demonstrando a atualidade do texto de Ramos e da adaptação de Hirszman. O personagem de Othon é diferenciado, um explorador consciente de seu poder e ainda assim impotente no campo sentimental.

  • Melhores Filmes de Futebol

    Melhores Filmes de Futebol

    Futebol é o esporte mais popular do mundo, movimenta paixões, emoções, dinheiro, tradições, competitividade etc. No caso do Brasil, é uma obsessão tão intensa que se torna praticamente uma religião nacional. Sendo assim, é normal que a filmografia brasileira tenha se debruçado sobre o esporte bretão, e contrariando a máxima de que “não há bons filmes sobre futebol“, separamos uma lista com alguns bons exemplares entre produções nacionais e estrangeiras.

    Heleno (José Henrique Fonseca, 2011)

    Este é um drama que conta a história da lenda botafoguense Heleno de Freitas. Dirigido por José Henrique Fonseca, o longa narra a trajetória dramática sobre o jogador e o homem Heleno. Fonseca se baseou no livro homônimo do jornalista Marcos Eduardo Neves, e foca bastante em sua delicada biografia fora do campo, desse modo, o futebol é subalterno às tristezas e dissabores do protagonista. O desempenho de Rodrigo Santoro no papel principal é irrepreensível.

    O Futebol  (Sergio Oskman, 2014)

    O filme de Oksman apela para o emocional, a história mostra o esporte como símbolo da tentativa de pai e filho em voltar a ter laços sentimentais fortes. Sergio busca reativas o sentimento de familiaridade com seu pai, Simão, em meio a Copa do Mundo que o Brasil sediou em 2014, e para isso, decide voltar a sua cidade natal para acompanhar o torneio com seu parente, a fim de relembras os momentos mais felizes do passado de ambos. Essa tentativa resulta em um fracasso, e o modo que Oskman trata isso na história é forte e singelo. O uso do esporte como centro gravitacional desse universo é simbólico, pois, enquanto ele não é super importante para os personagens, serve de pretexto para essa empreitada que não dá certo, acaba conversando bem com a necessidade humana se conectar com os próprios sentimentos e com a necessidade que o homem adulto tem em se consertar com os que lhe são caros, ou quem já foi. Filme bonito  e emocionante na medida.

    Boleiros: Era Uma vez o Futebol (Ugo Giorgetti, 1998)

    A cinessérie Boleiros é possivelmente a exceção à regra no que toca o lugar-comum de que não existem bons filmes sobre futebol no Brasil. Ugo Giorgetti dirigiu duas versões, uma de 1998 e outra em 2006, mas o primeiro é sem dúvida alguma o mais inspirado entre eles. A história se passa em dois cenários básicos: um bar em São Paulo onde jogadores aposentados e veteranos conversam animadamente sobre suas carreiras e frustrações, e claro, os gramados. O elenco conta com estrelas como Lima Duarte, Elias Andreato, Cássio Gabus Mendes, Otávio Augusto, Rogério Cardoso e Flávio Migliaccio, e o formato de conversa de bar favorece o clima de resenha e o brilho de suas histórias, muitas delas inspiradas em fatos.

    O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias (Cao Hamburguer, 2006)

    Dirigido por Cao Hamburguer, que já tinha experiência com produtos ligados ao público infantil como o seriado Castelo Rá-Tim-Bum, o filme trata da história de Mauro, um menino fanático por futebol que herdou esse gosto do seu pai. O menino se muda para a casa do avô, um judeu ortodoxo vivido por Paulo Autran, bem diferente de seus pais. As férias que os pais de Mauro tiram são, na verdade, fruto da perseguição política dos militares. O esporte, em especial a Copa de 1970, entra como alvo dos sonhos do pai, do pequeno Mauro e até mesmo dos militantes contrários ao regime militar, que tentam em vão torcer para a Tchecoslováquia, sem conseguir esconder o fascínio pelo time de Pelé, Gerson, Tostão e Jairzinho. O desempenho de Michel Joelsas é ótimo, e Hamburguer consegue equilibrar bem o cenário caótico de perseguição política com o olhar mágico de uma criança sobre o futebol e sua relação com os pais desaparecidos.

    O Roubo da Taça (Caito Ortiz, 2016)

    Essa é uma das mais estranhas e bizarras histórias do país: o que ocorreu com a taça Jules Rimet do mundial de 1970? Há algumas versões dessa história no cinema nacional, mas a de Caito Ortiz lançada em 2016 se destaca pelo tom semelhante ao das chanchadas, misturando o humor estridente das novelas, com o nonsense da situação que envolve um grupo de ladrões maltrapilhos responsáveis pelo roubo do artefato mais importante do futebol da época. Thais Araújo e Danilo Grangheia estão muito bem, são engraçados e carismáticos, mas obviamente a estrela do filme é Paulo Tiefenthaler. O filme serve entre outras coisas para satirizar a política nacional e as instituições responsáveis pelo futebol no Brasil.

    Maldito Futebol Clube (Tom Hooper, 2009)

    Michael Sheen vive o lendário, supersticioso e vaidoso Brian Clough, treinador inglês que havia feito carreira nos pequenos times do Reino Unido. O pontapé inicial se dá com ele chegando ao clube mais forte do campeonato, Leeds United, após a saída de Don Reevie. O maior prodígio do filme é mostrar como funcionava os bastidores do esporte no seu país-fundador. Quem está acostumado a ver Sheen em sagas como Crepúsculo e Underworld talvez se surpreenda com o seu desempenho. Seu personagem é espirituoso, determinado, cheio de energia e insegurança, e a ode ao futebol se dá de maneira pragmática, mostrando o esporte como uma fogueira de vaidades.

    Febre de Bola (Dani M. Evans, 1997)

    Adaptação do livro homônimo de Nick Hornby, Febre de Bola é uma comédia romântica protagonizada por Colin Firth, um professor de inglês lidando com uma nova paixão, e paralelo a isso, acompanhamos sua obsessão pelo Arsenal, time inglês que passava por uma fase azarada e sem títulos. Por mais que o livro seja muito mais bem resolvido que o longa, há bons momentos nessa versão, especialmente quando mostra as diferentes etapas da vida do protagonista, grafando muitíssimo bem as manias e superstições do torcedor que frequenta estádios, mostrando que os hábitos dos ingleses não são tão diferentes dos nossos. O momento mais inspirado do filme se dá em seu desfecho ao retratar a festa da torcida após o título.

    Penalidade Máxima (Barry Skolnick, 2001)

    Penalidade Máxima é protagonizado por Vinnie Jones, expoente do cinema brucutu britânico e ex-zagueiro da seleção galesa de futebol. Esta é outra versão de Golpe Baixo, e em comum com o original, mostra atletas presidiários liderados por um jogador profissional mal falado, substituindo o futebol americano pelo futebol. O elenco conta com figuras carimbadas dos filmes de Guy Ritchie, repleto de humor físico e personagens carismáticos. As cenas de futebol são ótimas, conduzidas por gente que parece entender do esporte, mas o ponto positivo são os carrinhos e jogadas desleais, resultando na demonstração vívida do que é o futebol de rua.

    Um Time Show de Bola (Juan José Campanella, 2013)

    Esta animação é uma produção hispano-argentina, situada em um pequeno vilarejo argentino que remete a várias pequenas cidades do mundo. A qualidade da animação é grandiosa, os efeitos em computação gráfica e a textura dos personagens dão um tom quase tão mágico quanto o momento que os jogadores ganham vida. A obra de Juan José Campanella registra uma bela história sobre memória e pertencimento, além de ser uma ode ao futebol amador e as diversas modalidades oriundas dele, desde jogos de simulação mais física como totó e futebol de botão, até os mais modernos e interativos como jogos de videogame.

    El Chanfle (Enrique Segoviano, 1979)

    El Chanfle é produzido e estrelado por Roberto Gomez Bolaños, que vive um roupeiro do América do México, um dos clubes mais populares do país. Sua trajetória é de um homem atrapalhado, que quebra tudo o que toca, mas tem um bom coração e carrega sonhos simples. O elenco inclui Ramon Valdez, Florinda Meza, Maria Antonieta de Las Nieves e outros que compunham o grupo de personagens de Chaves, Chapolin Colorado, Dr. Chapatin (que inclusive tem uma breve aparição nesta longa) e demais histórias do Chespirito. O episódio que Chaves fala que seria melhor ver o filme do Pelé era, na verdade, uma propaganda deste filme. As cenas de futebol não são um primor, servem mais para que Carlos Vilagrán e seu Valentino possam brilhar como um jogador talentoso, porém mentiroso. No final, o que se percebe é uma obra que louva bastante o amor do povo mexicano pelo futebol.

    Uma Aventura do Zico (Antônio Carlos da Fontoura, 1998)

    Um time é formado por onze jogadores em campo, e o décimo primeiro filme da lista não é exatamente bom, mas é quase isso… Uma Aventura do Zico tem uma premissa insana, mostra o ex-jogador do Flamengo abrindo a chance de treinar crianças, e uma delas, frustrada por não ser escolhida, pede ao pai rico para fazer uma cópia exata do Galinho de Quintino, que ganha o “maravilhoso” nome de Zicópia. O filme mistura ficção científica, estética de televisão e até discussões bizarras sobre homofobia e machismo no esporte, por conta de uma menina que finge ser um garoto para treinar com o camisa 10 do Flamengo. Assistir os Coimbra enquanto família é assustador, pois nenhum deles parece ter qualquer intimidade com a câmera, e nem mesmo atores famosos como Eri JohnsonJonas Bloch salvam a dramaturgia. O filme vale pela curiosidade e pelo amor ao bizarro.

  • Crítica | 8 Presidentes e 1 Juramento: A História de um Tempo Presente

    Crítica | 8 Presidentes e 1 Juramento: A História de um Tempo Presente

    Crítica 8 Presidentes e 1 Juramento

    8 Presidentes e 1 Juramento: A História de um Tempo Presente é um documentário em longa-metragem, conduzido pela veterana atriz Carla Camurati, conhecida por dirigir Carlota Joaquina: A Princesa do Brasil, filme marco zero da retomada do cinema nacional pós-queda da Ditadura Militar. O filme narra os eventos da recém-adquirida possibilidade de voto do povo brasileiro até Jair Bolsonaro.

    O ponto inicial do longa é a campanha das Diretas Já, seguido da posse de José Sarney após a morte de Tancredo. É curioso como não há narração, a produção optou pelas imagens contando a história, associando-as à recortes de jornais impressos de época e anúncios de rádio e televisão.

    O filme possui algumas cenas bastante raras e algumas curiosas. Nos tempos de Fernando Henrique Cardoso são mostrados índios protestando. Esse tom pode fazer o espectador acreditar que o tom do governo seria agressivo, mas não é, na verdade, é bastante respeitoso, ao contrário do que se vê ao falar de seu antecessor, Fernando Collor de Mello, flagrado aqui como um político que não conseguia tomar as rédeas da economia do Brasil.

    O filme não se furta em mostrar que o embrião do Bolsa Família foi originado por outros programas de distribuição de renda da época de FHC, assim como explana a mudança de postura que Luiz Inácio Lula da Silva fez para se tornar um candidato viável politicamente. O longa passa pelos escândalos do Mensalão e a participação do ex-deputado Roberto Jefferson, inclusive destacando momentos pitorescos, como a chegada dele com um olho roxo no Congresso. Não há concessões.

    Curiosamente, as partes que mostram a história do Partido dos Trabalhadores na presidência parecem mais breves, o que é até compreensível, visto que há tantos trabalhos em documentário sobre esses processos, como Entreatos, O Processo, Alvorada e tantos outros produtos que abordaram essa época. Há um belo acerto ao mostrar como as manifestações de 2013 influenciaram a queda de popularidade das figuras de Dilma Rousseff e Lula, assim como também é correta a fala de que tais atos não eram compostos exclusivamente pela direita. Ainda assim se fala bastante do crescimento econômico do país e dos escândalos de corrupção.

    A parte mais correta do filme é quando se destaca como a evolução da internet influenciou a democracia no continente americano e no Brasil. Redes sociais e memes são sabiamente apontados como o fiel da balança para os últimos resultados da política nacional, seja no golpe aplicado em Dilma, como também na popularização de Bolsonaro.

    8 Presidentes e 1 Juramento: A História de um Tempo Presente é uma boa forma de introduzir uma pessoa que nada saiba sobre como o caótico cenário sócio político do país chegou a esse 2021, mas ainda assim carece de um ritmo aceitável, suas mais de duas horas são extensas, e isso faz o documentário parecer um especial de TV de final de ano, trocando os últimos 365 dias para todos os anos pós-Constituição.

  • Crítica | Matou a Família e Foi ao Cinema (1991)

    Crítica | Matou a Família e Foi ao Cinema (1991)

    Libelo do cinema anárquico de Neville D’Almeida e nova versão do filme de 1969 de Júlio Bressane, Matou a Família e Foi ao Cinema se inicia com a paisagem carioca em preto e branco, através de uma fotografia cuidadosa que resgata o moderno e o clássico da Cidade Maravilhosa, embalados pela música-título composta por Lobão e Ivo Meirelles. Esse início remete aos elementos do experimentalismo do Cinema Novo com um clima idílico típico do cinema clássico nacional.

    O longa poetiza a malandragem, mostrando como a alma do carioca é atrelada à curtição em detrimento de nossas obrigações diárias. A casa de Bebeto, o personagem de Alexandre Frota, é um exemplo disso, onde o pai é um pretenso velho trabalhador, passa a maior parte do tempo fiscalizando o filho, já o garoto, vive em silêncio, em seu quarto, boa parte dele nu em pelo, ao som de uma trilha sonora instrumental psicodélica, em referências sutis (e outras nem tanto) ao despertar da sexualidade e a repressão que o povo passava.

    O filme é episódico, mostra períodos distintos da vida dos brasileiros, com momentos de violência extrema, unidos pela presença de Bebeto em um cinema após esses primeiros momentos. O roteiro grita, nas falas dos jovens e velhos,  o quanto o país está em crise, com dificuldades em gerar trabalhos para sua população, ajudando a ocasionar a vagabundagem tipicamente atribuída ao carioca. Os acessos de raiva são reflexos de uma sociedade mergulhada na crise econômica e moral e isso tudo é estabelecido antes mesmo de mostrar os outros núcleos, antes até de trazer a cor ao filme. Neville traz novas camadas ao roteiro de Bressane, sua versão traz temas tipicamente teatrais, lembra bastante a literatura de Nelson Rodrigues, contumaz fonte de textos para a filmografia do cineasta.

    É curioso como mesmo arcos que soariam gratuitos possuem sentido aqui. A questão do personagem de Guará Rodrigues, o tarado que se apropria de roupas de baixo de mulheres que passeiam pelos cartões postais do Rio é reflexo da visão retrógrada e mal resolvida sexualmente dos tempos da Ditadura. Toda manifestação política era reprimida e toda forma de arte era atacada e censurada, curiosamente liberando obras com manifestações sexuais como as da pornochanchada, no sentido de entreter o público e povo, evidentemente com intenção de distrair essas pessoas.

    Tudo na obra é um deboche, inclusive os elementos que fazem o filme se encaixar no gênero Slasher, como a morte das mulheres que ousam dar vazão a sua sexualidade. A trama envolvendo as amigas Márcia e Renata de Claudia Raia e Louise Cardoso é mais um comentário do diretor sobre a glamourização da violência, seja no dia a dia dos Anos de Chumbo que estavam ainda muito recentes, ou nos cinemas blockbuster que reuniam multidões para glorificar a violência. As cenas de liberação sexual atacam os fetiches do homem médio, mostram a insatisfação feminina e a tragédia que evoca teatros gregos e outros grandes autores de tragédia como William Shakespeare, mostrando que o preço que a pólvora cobra é de sangue. Matou a Família e Foi ao Cinema é um bom retrato do Brasil, lida com poesia e pragmatismo sobre o país colapsado após a passagem dos militares no poder, além de ser uma tragicomédia que combina bem com a literatura nacional.

  • Crítica | A Última Floresta

    Crítica | A Última Floresta

    Luiz Bolognesi é conhecido por seus trabalhos como roteirista em Como Nossos Pais, Bingo: O Rei das Manhãs e Elis, todas histórias biográficas ou sobre um Brasil comum, embora a maioria dos personagens desses filmes sejam pessoas abastadas com dramas pessoais aflorados mas, ainda assim, parte de uma elite. Recentemente, além de roteirista, assumiu a função de diretor e voltou sua carga para as raízes desse mesmo Brasil de maneira diferenciada.

    Em 2018, em Ex-Pajé, misturou documentário e ficção mirando a história de um sacerdote indígena que se converteu ao mundo dos brancos. Em A Última Floresta prossegue seu estudo sobre as tribos nativas brasileiras, usando o xamã Davi Kopenawa Yanomami para mostrar dificuldades das tribos oriundas da Amazônia em manter vivas suas tradições e transmiti-las para outras gerações dos Yanomami, que não são tão isolados quanto eram os seus antepassados.

    Os Yanomani vivem ao norte do Brasil, na fronteira com a Venezuela. Estão lá há muito tempo, mais até do que a data de chegada dos colonizadores portugueses. Portanto, até mesmo pela questão cronológica, não há o que discutir a respeito do pertencimento e posse da terra por parte deles. Em Ex-Pajé, Bolognesi utilizou sua historia pessoal em vários momentos dramáticos, e aqui também faz uso disso. A maneira com que a quebra metalinguística ocorre é ainda menos sutil em comparação com o outro filme. Há embates com os brancos, acompanhado de uma trilha sonora instrumental bem intrusiva, que manipula e causa no espectador uma espécie de apreensão bem artificial, por sinal. Nenhuma dessas sequências parece de fato real.

    A tentativa de estabelecer uma narrativa por meio dos contos e pequenas historias de Davi gera alguns bons momentos, mas na maior parte do tempo, parece que o filme tinha fôlego para resultar em um curta-metragem, não em um longa. Seu roteiro é esticado e ainda mais vazio que Ex-Pajé. Tem a pretensão de parecer realista, de contar histórias tradicionais com pessoas que entendem dessa atmosfera e carga mítica, mas não soa natural, nem narrativamente e nem no desempenho do elenco, mesmo que eles estejam ali vivendo situações familiares.

    Uma história naturalista jamais pode pecar pela artificialidade, e A Última Floresta é exatamente isso: verborrágico, pretensioso. Lembra um filme do início da carreira de Aaron Sorkin, com os mesmos pecados e excessos de um roteirista que se julga tão esperto, que precisa explicitar suas ideias para o público, e esse tipo de presunção é ofensiva, mas até Sorkin alcançou alguma maturidade, o mesmo não se pode dizer de Bolognesi até o momento.

  • Crítica | A Senhora que Morreu no Trailer

    Crítica | A Senhora que Morreu no Trailer

    A Senhora que Morreu no Trailer é a resultante de uma homenagem que os diretores Alberto Camarero e Alberto de Oliveira fizeram em torno de vida e carreira de Georgina, uma mulher do sertão baiano que ganhou notoriedade como Diva Rios na época da efervescência cinematográfica da zona paulistana da Boca do Lixo, bem como de Suzy King como foi conhecida na Lapa e Copacabana no Rio Janeiro. O documentário viaja até a fronteira entre EUA e México, onde ela faleceu, já com uma terceira alcunha, Jacuí Japurá, uma mulher que fazia números com serpentes e cobras.

    Ao visitar o trailer onde os último momentos da vida de Georgina ocorreram, os diretores apresentam uma abordagem contemplativa, de início acompanhada de uma característica música de mariachis que conversa bem com a contumaz percepção preconceituosa dos estadunidenses com os latinos, insistindo que todos os povos abaixo de sua fronteira  tem a mesma cultura e consumo.

    O filme é itinerante, passeia pelos cenários onde Suzy/Jacuí se apresentou, em comum entre eles, há pichações nos prédios antigos, pisos gastos e mal tratados, e lixo espalhado pelo espaço urbano que é o típico lar das criaturas da noite e da boemia. Toda área coberta por ela é bem exemplificada, a montagem favorece e dinamiza o registro histórico.

    O trabalho histórico que Camarero e Oliveira empregam aqui não mira só na história de uma artista esquecida, mas também na valorização do trabalho artístico marginal. Há uma sábia escolha em falar de praças menos favorecidas, emulando evidentemente a condição de luta e resistência desses artistas.

    O filme carece de um ritmo mais dinâmico, abusando de excessos e repetições, mas dado o fato de que essa história é a de uma quase anônima, esse resgate ajuda a aplacar a sensação do longa ser extenso demais. Os diretores fazem um trabalho hercúleo de resgatar a história de King e traze-la a um público que certamente não saberia de sua existência não fosse esse esforço, ao mesmo tempo que se faz isso, também há uma valorização da arte de rua e marginal.

  • Crítica | Boa Noite

    Crítica | Boa Noite

    Clarice Saliby começa seu longa, Boa Noite, colocando Cid Moreira, seu objeto de analise, diante de um desafio que se mostra complexo: configurar a inteligência artificial de um celular para compreendê-lo. Cid tenta conversar com a Siri, a assistente inteligente da Apple. Sem sucesso, o jornalista e principal voz do Jornal Nacional tenta abrir sua vida e intimidade para a câmera, finalmente deixando de noticiar ou narrar os acontecimentos para  se tornar o alvo, tornar-se a própria notícia.

    O biografado é lúcido. Entre os VTs de seus trabalhos de narrador e âncora, mostra as agendas que guardou consigo. Cadernos antigos que davam conta de sua rotina, desde o simples dia a dia com a dieta que pratica, até detalhes diferentes como a frequência de idas ao banheiro. Além do básico, destacando os trabalhos que fez e que ainda faz. Ele narra bem seus dias, desde quando veio do interior paulista de Taubaté até os dias atuais, mais aposentado do que ativo.

    O filme é simples e se vale da boa participação de seu personagem central com a narrativa de sua trajetória, desde os jornais cinematográficos, no especial de esportes que passava na grande tela (o Canal 100  que reunia o tape de esportes populares), até a chegada da televisão com o trabalho na Tv Excelsior e, finalmente,  no Jornal Nacional da Tv Globo em que esteve por  27 anos, entrando para o livro dos Recordes como o mais longevo apresentador de um mesmo jornal diário.

    Boa Noite é emocional, se aventura a falar de questões mais polêmicas, como quando Cid se declara sem lado político, mas não se aprofunda. Como ele próprio, que se diz um mero propagador de palavras escritas por terceiros, o documentário parece apenas apresentar sua trajetória. A obra se torna um louvor a vida, a carreira e a rotina atual de um sujeito midiático que fez parte da maneira como a notícia chegava a casa das pessoas, sobretudo as mais populares do Brasil. Mesmo sem maiores aprofundamentos consegue trazer uma aura simpática ao comunicador veterano, dando lastro até para um possível novo documentário sobre o príncipe dos mistérios, o Mister M, mágico famoso no Brasil pela narração de Cid no Fantástico.

  • Crítica | Alvorada

    Crítica | Alvorada

    Em 2016, época do impeachment de Dilma Rousseff, parte da classe artística ligada ao cinema sentiu forte o Golpe. Cineastas como Petra Costa, Anna Muylaert, Douglas Duarte e tantos outros prometeram dedicar seus esforços a contar essa história. Eis que, Alvorada finalmente chega ao público, somente em 2021 na mostra do É Tudo Verdade 2021, se juntando a Democracia em Vertigem, Excelentíssimos, O Processo, Já Vimos Esse Filme e até Não Vai Ter Golpe, filme do MBL contando a narrativa dos opositores do PT. Muylaert retorna para o cinema documentário a fim de revelar mais uma vez a podridão dos bastidores do poder em Brasília, junto a codiretora Lô Politi, a mesma que conduziu o ficcional (e curioso) Jonas.

    As diretoras tentam  abordar o filme de  forma semelhante a que Eduardo Coutinho fez em Peões, mostrando os bastidores de baixo, os funcionários não endinheirados, assalariados baixos, que nem sequer estão com microfones. Até personagens celebres, como o ex-ministro José Eduardo Cardozo são mostrados muito de perto, chegando ao cúmulo dele ser mostrado com roupa de ciclista, já que ele pedalava até o planalto enquanto trabalhava em Brasília.

    O filme soa datado, o impeachment ocorreu em 2016. ainda há uma “desculpa” por parte de Muylaert de que o seu roteiro era profético e precisava dos fatos para se comprovar assim. Fato é que muita coisa aconteceu de 2016 até atualidade, ainda mais em tempos pandêmicos. A promessa de filme experiencial resulta em algo anacrônico.  Muylatert já foi mais inspirada, mesmo em suas  obras ficcionais ela conseguiu tocar em assuntos mais sensíveis, em Mãe Só Há Uma e Que Horas Ela Volta? se falou no papel da maternidade, também foram abordadas questões de identidade de gênero, abandono parental e ascensão da Classe C, temas caros a qualquer pensamento progressista, aqui, o que se assiste é apenas repetição. Alvorada até tenta tratar de alguns desses assuntos, e é muito bem vindo que sua câmera acompanhe os trabalhadores braçais e o proletariado, mas o intuito de entender o que o Brasil se tornou e como o povo foi iludido ao ponto de aderir a um discurso fascista não é sequer arranhado.

    Possivelmente se o filme tivesse sido lançado antes, como era previsto, teria outra digestão, mas se torna quase uma piada em 2021 verificar isso, uma vez que ele é preso num pedaço do tempo completamente diferente de seu lançamento, e não faz questão nenhuma de aplacar essa sensação, ao contrário, soa pretensioso ao extremo.

  • Crítica | Raia 4

    Crítica | Raia 4

    Premiado no Festival de Gramado de 2019, Raia 4 ganha a estreia nos cinemas e nas plataformas de streaming quase dois anos após sua finalização. É irônico que um filme que trate tanto de contatos físicos e isolamentos emocionais seja lançado num dos piores momentos da pandemia de Covid-19.

    O primeiro longa-metragem do gaúcho Emiliano Cunha é situado em sua maior parte na capital Porto Alegre. Num tradicional clube de natação da cidade, a adolescente Amanda (vivida pela estreante Brídia Moni) encontra nas águas o vórtice entre refúgio e desamparo que a idade proporciona. Dos olhares atravessados com os colegas às falas interrompidas pelos pais, a desconexão da jovem se põe a todo momento como um teste de extremos, entre ternura e violência.

    O filme é feito pela e para a atriz. Além de toda a perspectiva da produção ser mediada pela personagem, o rosto fechado e a expressão confusa são os pontos de foco que conduzem o espectador no turbilhão de sentimentos indefinidos e nunca verbalizados por Amanda. A intérprete vagueia por toda essa correnteza sem recorrer a facilidades de atuação, escondendo do público o que há por trás do pequeno corpo e até mesmo subvertendo algumas expectativas em nuances.

    Dessa forma, o longa é inteligente ao trabalhar sua narrativa em diferentes campos de gênero. A espera por um típico coming of age é superada pelo pulsar de Amanda, que encara situações semelhantes de variadas formas num passeio entre o drama, suspense, romance e horror. Os elementos temáticos trazidos pelo filme reforçam a ideia de intergenericidade ao explorarem essa difusão tonal na fotografia e na trilha sonora, especialmente. A rigidez da câmera ganha movimento nas maiores interações da protagonista com o grupo de amigos, ao passo que as músicas variam de sons estridentes a uma calmaria harmônica ao longo dos 90 minutos. Cabe observar que as emoções pautadas nesses exemplos tomam forma nas atitudes da jovem, embaladas por uma lógica própria e que escapa ao julgamento de quem está em frente à tela.

    Especializado em cinema de fluxo, o diretor e roteirista de Raia 4 se apropria de códigos dessa vertente cinematográfica para construir um universo particular para os limites de tempo e espaço moldados em torno da personagem principal. A abordagem não descaracteriza o filme dos gêneros já citados, mas encarrega seus desdobramentos de um sentido muito próprio e atrelado à protagonista e que devem conversar pessoalmente com cada espectador. Embora a visão do público seja a mesma de Amanda, as noções morais entre os dois polos são conflitantes e resultam numa experiência dirigida por corpo e alma.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Crítica | Edna

    Crítica | Edna

    O peso do passado sufoca o viver do presente. Asfixiado, tampouco o futuro pode ser vislumbrado. As memórias que carrega há 70 anos fazem de Edna Rodrigues de Souza um mero dispositivo de rememoração de um tempo não tão distante, em exceção aos anos precedidos, mas que se repete desde então, sem perspectiva de fim. Em Edna (2021), Eryk Rocha (Cinema Novo, Campo de Jogo) aborda de forma sutil o elo que sustenta o ciclo de opressões de forças institucionais aos desamparados do Brasil de ontem e hoje.

    Sobrevivente da Guerrilha do Araguaia, a personagem que dá nome ao filme se deixa filmar sem que fale para a câmera a narração que atravessa o off do documentário. A voz é de Edna, mas não necessariamente daquela vista em cena. O invisível toma forma nas letras de um diário quinquagenário e ganha liberdade no recitar da protagonista durante a uma hora de projeção do filme. A vazão que Edna tem em seus relatos diverge da rigidez da câmera que acompanha seu dia a dia às margens da rodovia Transbrasiliana, entre os estados do Pará e do Tocantins.

    O diretor parece estar ciente disso. Ainda que suas lentes permaneçam sempre à certa da distância da personagem, aproximando-se somente em zoom, Edna é permissiva o suficiente para ser seguida na cama, ao tomar banho, ao discutir sobre sentimentos amorosos com seu companheiro. O conjunto que se forma no quadro da precária habitação da protagonista é o de desolação e solidão, contrastado com o fluxo e presença da estrada que atravessa sua vida e os caminhos do país.

    Da mesma forma, a estaticidade das cenas contraria a dinâmica da narração, como num ensaio entre vida e sonho. É desses opostos que Rocha e Edna, a mulher e o longa-metragem, tratam de um Brasil que insiste em renegar o passado e padecer desse erro no presente, numa constante de repressão e massacre. Asfixiado, tampouco o futuro pode ser vislumbrado.

    Texto de autoria de Arthur Salles.

  • Crítica | Voltei!

    Crítica | Voltei!

    Voltei! é o novo longa-metragem da dupla de diretores Ary Rosa e Glenda Nicácio, os mesmos que fizeram Ilha e Café com Canela. A trama, situada em 2030 dá conta de duas irmãs, Alayr e Sabrina (Wall Diaz e Mary Dias respectivamente) que passam a noite aguardando as notícias de Brasília via rádio, a espera do julgamento de um político corrupto e maléfico. Em meio a essa espera, surge Fátima (Arlete Dias), a irmã mais velha das duas, que era dada como morta, mas que não poderia ficar de fora de uma data tão esperada por ambas.

    O maior equívoco do filme certamente não é sua premissa. Aqui, o país sofre com apagões, ausência de luz, escassez de tudo, inflação e maus governos em diversas esferas. É uma evolução do quadro de 2020-21 do Brasil, e isso é até uma boa ideia, o problema é o modo que o filme ocorre.

    Afirmar que as atuações são engessadas não dá a real dimensão do quanto o filme é artificial,  há tentativas de fazer com que os diálogos soem naturais, mas o roteiro é expositivo e primário e a tentativa de fazer uma critica social em cima das questões complicadas e flagrantes da atualidade brasileira soam como deboche com o povo, e não como um grito a favor do proletário e do trabalhador. O texto básico é mal construído, irreal, artificial como uma conversa entre pessoas desconhecidas e não como uma conversa entre irmãs.

    O filme tem a intenção de prender a atenção do espectador apenas com os diálogos, e pelo fato de ter praticamente um cenário só, a casa das irmãs, isso é realmente necessário. No entanto, como as atuações são amadoras e como as conversas não parecem ditas por pessoas de verdade tudo parece mecânico, e isso é grave mesmo que seja essa uma realidade com elementos fantásticos.

    O filme até possui uma ruptura narrativa com mais ou menos 25 minutos, mas toda a duração dele segue o mesmo tom, de conversas que jamais ocorreriam entre parentes tão próximos e íntimos. Uma irmã não precisaria falar com a outra todas as mesmas histórias de sempre com tantos detalhes quanto é falado aqui, é como se o espectador fosse um ente invisível, que orbita Alayr, Sabrina e Fátima, mas isso jamais é assumido se o fosse, talvez houvesse algum charme no longa. Voltei! é histriônico, não consegue esconder sua falta de qualidade narrativa, tampouco as atuações peculiares, suas tentativas de apelo ao popular são vergonhosas, vazias e risíveis.

  • Crítica | Mussum: Um Filme do Cacildis

    Crítica | Mussum: Um Filme do Cacildis

    Figura mítica do humor brasileiro, Antonio Carlos Bernardes Gomes, ou Carlinhos,  é a figura principal do novo filme de Susanna Lira, Mussum – Um Filme do Cacildis, que por sua vez, começa através da música, do samba que ele praticava com sua antiga banda, Os Originais do Samba. A maioria dos primeiros entrevistados dizia que ele era um passista fabuloso e parecia talhado para o samba, e de fato, ele era, o que não o impediu de mostrar outras facetas de sua persona artística.

    Mussum era humorista, aparentemente ele parecia ter nascido para fazer os outros rirem, e um dos maiores acertos que o filme poderia “cometer” é o deixar ele mesmo explicar quem ele era, mostrando sua trajetória por entrevistas  suas, que servem como narração em off ou não de parte de seu passado. Alguns amigos do seu passado dão depoimento também, normalmente aparecendo com uma animação de tv antiga, um artificio meio bobo, mas que não chega a atrapalhar a compreensão da mensagem que  o documentário quer passar.

    Carlinhos tinha receio de entrar no morro, mas depois que foi pela primeira vez, virou sensação. Ele sempre destacou que sua criação o colocou no rum do sucesso, mesmo que a probabilidade de dar errado era enorme, mas ele passou por cima disso sem pensar. Boa parte das passagens da vida do biografado são animadas de modo divertido, com fotos antigas com uma animação bem primária, acompanhadas das palavras de Lázaro Ramos, e é nesse ínterim que se conta o aborrecimento ao ser chamado de Mussum pela primeira vez por Grande Otelo quando faziam um programa de televisão, e de Chico Anysio afirmando que ele deveria ir devagar com o dialeto que o sujeito inventou.

    Também é curioso notar os elogios de gente gabaritada a respeito  dos Originais do Samba, entre elas, Elis Regina, provando que não era essa “apenas” a banda do trapalhão. O filme trata com humor a árvore genealógica de Mussum, com o cúmulo de ter dois Antonio Carlos Junior, batizados assim por conta dele ter esquecido, mas os filhos jamais reclamaram de falta de amor e cuidado do pai. É uma pena que as entrevistas ocorram com o filtro animado já citado, pois em momentos onde a emoção prevalece, como a vez que um dos filhos de Mussum embarga a voz ao cantar uma música de seu pai chama mais atenção pela forma do que pela reação e conteúdo do mesmo. Ainda assim, sobra emoção do documento histórico que Lira conduz.

    O filme também discorre sobre a questão racial e sobre as acusações de Os Trapalhões ser um programa racista, ao mesmo tempo em que ele era um dos poucos negros no horário nobre, um dos primeiros a fazer sucesso na televisão e a se tornar ícone. Em paralelo a isso, os filhos diziam que seu pai os ordenava a não levar desaforo para casa, além de ele também reagir na rua quando xingavam ele ou seus herdeiros por palavras racistas. Curiosamente nesse ponto há boas falas de Joel Zito Araújo, além de uma cena do filme Os Trapalhões no Auto da Compadecida, onde ele fazia Jesus e batia de frente com os preconceitos do povo. A escolha dessas falas dá um bom panorama sobre a postura do mesmo a respeito do preconceito racial. Mussum – Um Filme do Cacildis consegue atingir mais acertos que erros, e  discorre de maneira bem singela e franca sobre a historia de seu biografado e melhor, sem soar enfadonho ou repetitivo, além de acrescentar bons momentos novos a biografia de Mussum como músico, humorista e como o ser humano admirável e  digno de saudades que ele era.

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  • Crítica | Sonho de Rui

    Crítica | Sonho de Rui

    O início de Sonho de Rui passeia pela casa do personagem de Pedro Monteiro, que vem a ser o próprio Rui. Entre desarrumações, alimentos jogados pelos cômodos, o protagonista assiste um clássico de Chuck Norris em seu DVD player, Bradock: O Super Comando. Até a fonte utilizada nos textos que sobressaem a tela lembram as usadas nos filmes de guerra antigos que tinham o Vietnã como pano de fundo. Rui é apaixonado pela figura de ator, e não aceita que façam troça do astro, nem mesmo os famigerados Chuck Norris Facts, os memes com a força e poder do ícone dos filmes de ação.

    O filme é dirigido por Cavi Borges e Ulisses Mattos, e mostra as tentativas do personagem, que é ator em tentar vender o apartamento que ganhou de herança. Seu objetivo é levantar dinheiro para financiar seu sonho de refilmar o clássico de Norris que ele havia visto antes, para isso ele tem que romper sua timidez ao tentar negociar o lugar onde mora, fazer aulas de inglês e deixar para trás a forma não musculosa que tem.

    A maioria dos diálogos do filme são artificiais, parecem dublados, e essa questão anti natural conversa demais com a ambição de Rui em filmar o  longa em inglês. É declarado que o sujeito tem Transtorno Obsessivo Compulsivo, ou TOC como é popularmente conhecido. A falta de manutenção do apartamento faz com que possíveis compradores, que reclamam da ferrugem dos canos e bicas e isso frequentemente é confundido com xingamento dado aos ruivos, de Ferrugem, fato que incomoda o personagem principal.

    Rui é um sujeito não só tímido, mas praticamente celibatário, quando ele se relaciona com o sexo que lhe agrada ainda assim é estranho, e parte sempre da outra pessoa e não dele. O motivo de ser ruivo não explica suas inabilidades sociais, e nem sua aversão a contato humano, muito menos a dificuldade de lidar com desconhecidos. A caracterização que Monteiro produz lembra um pouco a condição recentemente alcunhada de incel, os celibatários involuntários, tendo inclusive uma postura que culpa os outros por não ter uma convivência social dita normal. O fato dele ser metódico praticamente não chega a ser cogitado como fonte desse estranhamento nos relacionamentos, nem mesmo com o excesso de formalidade pelo qual ele passa.

    O roteiro de Mattos prima pela comédia, e os momentos mais inspirados são justamente esses, mas os momentos mais sérios e dramáticos são bem feitos também, e mostram um sujeito que apesar de engraçado, é bastante complicado e tem dificuldades em lidar consigo próprio e com os problemas de ordem comum. Nesse ponto, ele lembra um pouco a parceria de Fabio Porchat e Ian SBF em Entre Abelhas, que também tratava de um personagem com dificuldades de aceitação cuja motivação era nonsense e que também não tinha perspectivas de sucesso.

    A raiva de Rui tem a ver com o fato de sua casa inteira enferrujar, e curiosamente a câmera de Borges registra cada vez mais suas sardas saltando no rosto, deixando claro sua condição ruiva e o que o irrita em si mesmo. O Sonho de Rui é um filme despretensioso, divertido e melancólico quando precisa, e conta com uma atuação inspiradíssima de Pedro Monteiro.

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  • Entrevista | Daniel Augusto, diretor de Albatroz

    Entrevista | Daniel Augusto, diretor de Albatroz

    Vortex Cultural: Desde quando existe o projeto Albatroz, como ele foi concebido e qual a participação de Bráulio Mantovani no processo?

    Daniel Augusto: Há anos eu queria fazer um filme que que pudesse ser interpretado pelo espectador de mais de uma maneira. Em fevereiro de 2014, essa ideia fixa começou a virar um roteiro do Bráulio Mantovani. Eu tinha viajado para uma cidade próxima de Lisboa para apresentar um filme junto com a roteirista e produtora Carolina Kotscho, esposa do Bráulio. Até então, eu e ele tínhamos pouco contato. Num certo dia, a Carolina teve que trabalhar, mas eu e o Bráulio estávamos livres. Assim, fomos conhecer a casa onde morou Fernando Pessoa em Lisboa. Foi quando pudemos nos conhecer mais e descobrir que tínhamos muitos filmes, livros e discos que gostávamos em comum. Nesse passeio, eu contei para o Bráulio que gostaria de fazer um filme que fosse um enigma, mas que mantivesse a atenção do público. Num certo momento, num bonde, o Bráulio disse algo como: “eu vou escrever esse filme”. Desde então, durante um bom tempo, eu acompanhei vários tratamentos, com visitas regulares ao escritório dele, no qual o Bráulio criou os personagens e a trama do filme, com a colaboração de Fernando Garrido e Stephanie Degreas. Além de acompanhar a história do filme se desenhar, e conversar bastante sobre isso com o Bráulio, eu trabalhava em paralelo com o diretor de fotografia Jacob Solitrenick e a diretora de arte Juliana Lobo na visualidade do filme. Além disso, conversei algumas vezes com o pessoal do Instituto, autores da trilha musical, para lançar as sementes da atmosfera sonora. Já se disse que, no cinema, entendemos o que vemos e sentimos o que ouvimos: pensei muito em como chegar num bom resultado dessa combinação entre imagem e som para produzir a experiência particular do filme.

    Vortex Cultural: Seu filme é considerado um filme de gênero, mas o modo como a história é contada foge um pouco das fórmula de thriller.

    Daniel Augusto: Meu filme é um suspense, um mistério, um quebra-cabeça, um convite ao espectador para pensar sobre o que viu na tela. Trabalho com elementos de gênero, mas busco deslocar tais elementos para uma outra lógica, mais próxima de uma tradição que vem desde George Méliès, passa por O Cão Andaluz de Luis Buñuel, o expressionismo alemão, e desemboca em Alain Resnais, David Lynch, entre outros. Além disso, existe a questão da reflexão sobre a gramática cinematográfica, que é importante para mim. Assim, meu objetivo era tentar conjugar elementos de gênero, lógica onírica e experimentação, mas sem perder a atenção do espectador. É um suspense tenso e enigmático.

    Vortex Cultural: Como você vê a recepção de público e também de crítica ao cinema de gênero brasileiro? Acha que existe rejeição e como você vê seu filme nessa equação?

    Daniel Augusto: Sobre a recepção do meu filme, acho que ainda é cedo para dizer: o filme estreou na semana passada. Quanto à questão da recepção pelo público e pela crítica do cinema de gênero criado no Brasil, parece-me que para responder adequadamente seria prudente fazer um recorte mais preciso: por exemplo, escolher um gênero específico dentro de um período histórico determinado.

    Vortex Cultural: Como foi trabalhar com um elenco tão estrelado e que tem participações tão pontuais e pequenas dentro do filme? Foi difícil conciliar agenda?

    Daniel Augusto: É um elenco feito de pessoas experientes, competentes, colaboradoras e gentis. Foi uma delícia. Sempre é trabalhoso conciliar a agenda do elenco e da equipe, mas é um desafio que faz parte do processo.

    Vortex Cultural: Houve muito improviso da parte do elenco, e se sim, como você lidou com isso?

    Daniel Augusto: É comum surgirem novidades ao longo da filmagem e da montagem. Isso ocorre até em filmes com uma narrativa mais convencional. No caso de Albatroz, tudo que surgiu ao longo do processo só foi incorporado na medida em que se encaixava na lógica inicial. É um filme com bastante planejamento, desde a história até a concepção da imagem e do som.

    Vortex Cultural: Albatroz é um filme que, ao assisti-lo, parece complexo de se dirigir, e é mérito seu ter conseguido organizar atuações, um roteiro diferenciado e a montagem moderna que ele possui. Foi difícil organizar tudo isso?

    Daniel Augusto: Como comentei, há anos eu queria fazer um filme que que pudesse ser interpretado pelo espectador de mais de uma maneira. Tenho a impressão de que me preparo para filmes assim desde a graduação. Além disso, já fiz muitos documentários, que é o reino do imprevisto, do acaso, do caos. Quanto ao Fernando Stutz, ele é um excelente montador. Ao longo da montagem, ficamos amigos: temos também muitas referências e coisas em comum. Por exemplo, ambos fazemos doutorado: gostamos não só de ver filmes, mas de estudar o cinema. Acompanhei de perto a montagem, mas também dava o tempo que o Stutz pedia para viver com o material sozinho. Como montei muitos projetos, sei que algumas vezes é preciso de solidão, outras vezes é necessário estar ao lado do diretor. De modo geral, acho que um dos papeis do diretor é tentar organizar as diversas etapas de uma produção de um modo que a equipe possa dar o máximo do seu potencial. Albatroz é o que é pela atuação do elenco maravilhoso, pelo roteiro do Bráulio, pela fotografia do Jacob Solitrenick, pela direção de arte da Juliana Lobo, pela montagem do Fernando Stutz, pela música do Instituto, entre outros. Albatroz é o encontro dessas múltiplas potências.

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  • Crítica | Sai de Baixo: O Filme

    Crítica | Sai de Baixo: O Filme

    Sabe aquela piada velha contada por um tio bêbado num churrasco de domingo que teria sido engraçada vinte anos atrás, mas hoje em dia se torna apenas algo inapropriado e desconfortante? Pois é isso que Sai de Baixo: O Filme se parece. Um produto fora de sua época, tentando um suspiro de relevância após um tempo que já há muito se passou. O longa traz de volta os personagens centrais da sitcom noventista, adiciona alguns novos e omite outros importantes (ah, Cláudia Jimenez, como fez falta sua Edileuza!), tendo como personagem principal o trambiqueiro Caco Antibes (Miguel Falabella, confortável como sempre no papel).

    Após uma temporada na cadeia, Caco retorna ao Arouche para descobrir que sua família está ainda mais falida do que nunca, morando escondidos no velho apartamento de Vavá (Luís Gustavo, que por ordens médicas não pôde participar mais do que em uma ponta no filme) – que foi aberto à visitação pública para venda – e são obrigados a dividir o teto com o porteiro Ribamar (Tom Cavalcanti, ainda mais caricato que na série). Para conseguir melhorar sua situação financeira, tanto Caco como Magda (Marisa Orth) acabam aceitando uma missão secreta de contrabando de pedras preciosas para fora da fronteira do Brasil.

    O filme então descamba para uma road trip sem sentido,na qual uns poucos momentos podem arrancar um sorrisinho do espectador – em especial as quebras da quarta parede, quando Caco revela alguns problemas dos bastidores das filmagens. As interpretações estereotipadas e caricatas ao extremo de Tom Cavalcanti, principalmente ao retratar a tia nordestina de Ribamar, soam anacrônicas e sem graça. Por incrível que pareça, a única coisa antiga que continua atual é o horror de Caco Antibes a pobres e seu discurso altamente elitista, um reflexo de uma classe média falida que come ovo frito e arrota caviar, parecendo estar alheia de sua própria realidade sócio-econômica. Caco é trapaceiro, egoísta e hipócrita ao extremo, apresentando-se sempre como baluarte da honestidade, um “cidadão de bem” preconceituoso e rasteiro.

    Dos novos personagens, destaca-se a prima Angelita, interpretada brilhantemente por Lúcio Mauro Filho – que faz também o papel de seu irmão gêmeo, e Caquinho, que já foi um boneco animatrônico no palco e no longa é interpretado por Rafael Canedo. Já Cibalena, personagem de Cacau Protásio, não é nada lá muito original e apenas cobre o papel que seria de Edileuza.

    Muitas piadas se perdem para quem não era assíduo telespectador da série original, como alguns bordões e piadas internas – principalmente sobre o laquê de cabelo de Aracy Balabanian. No resto, a trama se perde em cenas sem sentido e tem um desfecho clichê , mas que ao menos nos dá o gosto de ver a película chegar ao fim. No final das contas, o longa é uma piada velha, que talvez fosse melhor não ter sido recontada.

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  • Crítica | Albatroz

    Crítica | Albatroz

    Dirigido pelo escritor Daniel Augusto (do livro Nem o Sol Nem a Morte), Albatroz traz Alexandre Nero no papel de Simão, um fotógrafo com uma vida pessoa bastante complicada. No início é mostrado uma situação limite, onde o protagonista dirige, aparentemente, para salvar sua mulher, Catarina (Maria Flor), que está com problemas de saúde, não se sabendo ainda o que ocorreu.

    Simão acorda no hospital, e nesse cenário percebe a intenção do filme, apresentando a possibilidade do acontecido ser fruto de seus delírios mentais. Os eventos que seguem envolvem personagens do passado do protagonista e o sumiço de sua esposa, mas tudo é apresentado da forma mais estranha e inesperada possível. O roteiro de Braulio Mantovani foge de fórmulas e métodos narrativos comuns ao cinema mainstream e se assemelham a Literatura Weird em vários momentos, e todo o drama mostrado em tela só funciona por conta da entrega de Nero já neste início.

    Em determinado ponto, é introduzida outra personagem, a escritora Alicia (Andrea Beltrão), que na primeira cena, aparece violenta e ameaçadora, para logo depois ser mostrada refém em sua própria casa, que foi cena de um crime, com um sujeito morto. Aparentemente, os eventos que ocorreram até aqui podem ou não ser parte da literatura da mulher, e o Delegado de Gustavo Machado conversa com ela sobre o rascunho do livro, seus envolvimentos emocionais e alguns sonhos homicidas.

    O filme é episódico, logo mostra Simão conhecendo Renée (Camila Morgado), com quem ele acaba tendo um caso amoroso. Em uma viagem à Jerusalém, ele registra um incidente: um homem linchado após tentar assassinar uma pessoa. As fotos que faz ganham prêmios e abre-se uma discussão ética do motivo dele não ter ajudado a evitar o linchamento. Toda essa celeuma faz Simão declarar que prefere registrar sonhos e não mais a realidade.

    Os tons de viagem ácida que o roteiro revela ocorrem de acordo com o par de Simão. Próximo dos trinta minutos finais, o filme dá uma guinada rumo ao surrealismo. As brincadeiras narrativas com questões relacionadas ao registro fotográfico dos sonhos se eleva a um nível inesperado, e muitas possibilidades de explicações para o conjunto de eventos estranhos são levantadas perto do fechamento do filme, fazendo dela um quebra-cabeça inteligente e inesperado. Abrilhantado pelas atuações de Flor, Nero, Morgado, Machado e Beltrão.

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  • Entrevista | Álvaro Campos, diretor de Tá Rindo de Quê?

    Entrevista | Álvaro Campos, diretor de Tá Rindo de Quê?

    Na última quinta-feira (28/02), estreou nos cinemas o documentário Tá Rindo de Quê?, que se propõe a discutir o humor nos tempos da Ditadura. Para saber um pouco mais sobre o filme, conversamos com um dos diretores, Álvaro Campos. O documentário passou em alguns festivais, e agora correrá o circuito comercial. A conversa exclusiva você lê abaixo:

    Vortex Cultural: Desde quando surgiu a ideia do filme e como foi conduzir um longa-metragem a seis mãos (o documentário foi realizado em parceria por Campos, Claudio Manoel e Alê Braga)?

    Álvaro Campos: O filme surgiu de vontade de documentar a evolução do humor nacional na história. Há muito pouco produzido nesse sentido, e a reação excepcional do público jovem ao filme nos mostra que era um trabalho necessário. E sobre a condução, somos os três muito diferentes, em todos os sentidos. Negociar constantemente pra atender ao filme nos ajudou a contar e respeitar um registro plural da época, em que vozes dissonantes de personagens muito diferentes podiam co-existir, revelando de forma potente o espírito da época e suas múltiplas dimensões.

    Vortex Cultural: Duas falas me surpreenderam: Carlos Alberto de Nóbrega, no sentido de ter um asco enorme da repressão e tortura sobretudo pela época em que o documentário se debruça; e Roberto Guilherme (Sargento Pincel, do programa Os Trapalhões), que achava que na época da ditadura militar havia respeito. Curiosamente, esse último é um dos poucos que não condena o período. Foi difícil selecionar as falas dos entrevistados, deixar material de fora e encontrar o contraponto à visão negativa dos militares?

    Álvaro Campos: A gente partiu de uma lista de setenta entrevistados que pra gente formava o pilar da classe na época. E a partir das vozes deles – e não das nossas teses ou opiniões – o roteiro do filme nasceu. É lógico que imparcialidade absoluta não existe, afinal escolhemos as imagens, mas não cabia a nós buscar essa ou aquela opinião em busca do que nós pessoalmente consideraríamos contrapontos. Nos cabia criar um atmosfera em que as personagens falassem livremente e a partir de seus encontros e contrastes, revelar as sensações desses comediantes sobre esse tempo que, obviamente, não foram poucas. Nenhum de nós tinha a pretensão de esgotar o tema no filme gerando uma ideia de completude. E nem seria possível. São vinte anos de história. E cortar sempre é difícil, principalmente quando você tem a fala dos gênios do porte que tínhamos.

    Vortex Cultural: No final do filme existe um aperitivo sobre o novo documentário de vocês (Rindo à Toa). Existe alguma ligação entre os filmes? Qual a previsão de estreia para ele?

    Álvaro Campos: Sim, os filmes foram gravados juntos. O Rindo à Toa chega aos cinemas entre maio e junho. O objetivo é buscar uma trilogia que documente uma certa genealogia do humor brasileiro desde os anos 60. (Tá Rindo de Quê? vai de 60 a 80, Rindo à Toa vai de 80 a 2000). Assim mostraríamos que nenhuma voz daquelas é uma expressão independente, por maior que sejam seus nomes. Que todos aqueles mitos foram influenciados e influenciaram outros comediantes. E ao montar isso mapearíamos, mesmo que à grande distância, a evolução da classe e desse gênero artístico tão poderoso e popular. E que muitas vezes é muito menos creditado do que deveria em relação à contribuição que deu (e dá) à nossa cultura nacional.

    Vortex Cultural: Em atenção ao governo que subiu ao planalto, cujos principais nomes são bastante simpáticos ao período militar, e levando em conta que seu filme estuda as formas de humor brasileiro do passado, como você acreditaria que seria uma versão de Tá Rindo de Que? a respeito das comédias atuais?

    Álvaro Campos: Esse é um dos possíveis motes do que pode ser o terceiro filme da trilogia. Esperemos, até porque o objeto do filme está em plena atuação.

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  • Crítica | Homem Livre

    Crítica | Homem Livre

    O começo de Homem Livre é estranho. Helio (Armando Babaioff) chega em uma casa escondido no porta malas, e é levado para dentro de um local escuro. Trata-se de uma igreja, um lugar que serve como reabilitação, onde ele passa os dias refletindo sobre a Bíblia a fim de esquecer um pouco sobre seu passado. Ele foi um roqueiro famoso, mas passou muito tempo na cadeia, e ouve do Pastor Gileno Maia (Flavio Bauraqui), um homem muito solícito e atencioso, tão munido dessas duas características que soa até falso. Helio está o tempo inteiro tenso. Parece preocupado com algo, assombrado por um som estranho, mas que não revela sua origem. Entre os terrores noturnos, ele vê a imagem de uma mulher estranha e fantasmagórica, que provavelmente tem relação com o crime que o levou a cumprir pena.

    O personagem não tem muitos afazeres e o fato de não ter com o que ocupar o tempo faz aumentar a paranoia. É curioso como apesar do roteiro de Pedro Perazzo tratar com cinismo os ritos evangélicos, também leva em conta o ditado “cabeça vazia, oficina do diabo”. Eventos estranhos acontecem.

    O filme de Alvaro Furloni tem todo um clima de suspense que parece ter um potencial grande, mas ao longo dos 81 minutos mesmo as paranoias do personagem parecem vazias tanto de razão e significado, quanto em perigo real. A relação que ele tem com a jovem Jamily (Thuany Andrade) carece completamente de química ou algo que o valha, e pouco se gera curiosidade nas causas da culpa de Helio assim como nas consequências dos seus atos pós-libertação do cárcere.

    Apesar de subverter as expectativas, ao menos em um ponto Homem Livre acerta, que é na demonstração de como o homem pode ficar perdido e sem referencial, ainda mais depois de passar uma vivência traumática como normalmente se reclama ao falar do sistema penitenciário brasileiro, mas ainda assim, este comentário não encaixa tão bem com todo o resto do espírito do filme, que carece de um entendimento sobre o que realmente quer passar ao público.

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  • Destaques do Cinema Brasileiro em 2018

    Destaques do Cinema Brasileiro em 2018

    2018 foi um ano bastante prolifico para o cinema brasileiro, com filmes de gênero bem construídos e bastante diversificados. Para celebrar isso, separamos alguns destaques dos filmes que ocuparam o circuito comercial ao longo do ano passado.

    As Boas Maneiras (Marco Dutra e Juliana Rojas)

    Rojas e Dutra são dois diretores muito bons e que de vez em quando se juntam para fazerem filmes, normalmente, dando vazão a um cinema fantástico, e As Boas Maneiras é uma boa mistura de elementos de drama e terror. Dividido em dois atos bem diferentes, e apesar deles não combinarem entre si, há pontos positivíssimos nele, com destaque para as atuações de Marjorie Estiano e Isabél Zuaa, e a participação do boneco animatrônico do monstro, maravilhoso em concepção.

    Os Exterminadores do Além Contra a Loira do Banheiro (Fabrício Bittar)

    Quando se falava do novo filme de Danilo Gentilli e companhia, se imaginava uma comédia rasgada, cheia de suas piadas sujas, e talvez com comentários políticos, mas o que se viu foi um filme de terror, com efeitos especiais surpreendentes, bons sustos e uma interpretação muito sólida de Murilo Couto. Bittar faz cenas explícitas repletas de gore e violência. Mesmo os momentos mais infantis, com escatologias, há uma exploração muito inteligente dos recursos típicos dos filmes dos Estados Unidos, mas que funcionam bem aqui, ainda que não seja uma mera cópia do terrir americano. O longa vai muito além da figura odiosa que é Gentilli.

    10 Segundos Para Vencer (José Alvarenga Jr.)

    Eder Jofre foi uma lenda do esporte brasileiro, e confesso que temi quando anunciaram que fariam um filme sobre seus feitos com ele ainda em vida. A realidade é que 10 Segundos Para Vencer é excelente. Com um elenco entrosadíssimo, tendo um Osmar Prado em um dos grandes papéis de sua vida e sendo sensacional em cada momento de tela. Alvarenga Jr. ainda acerta na reconstituição de época. Um emocionante e belo exemplar de filme de boxe.

    Slam: A Voz do Levante (Tatiana Lohman e Roberta Estrela Dalva)

    Um documentário tão apaixonante quanto a história da arte Slam, Lohman se junta a Estrela Dalva para acompanha-la em viagens pelo mundo em competições de Slam, e também no seu retorno ao Brasil para divulgar sua poesia e o próprio estilo, ganhando contornos próprios e se tornando a voz de muitas pessoas da periferia. Apaixonante!

    Benzinho (Gustavo Pizzi)

    Benzinho é um daqueles filmes sentimentais, que utilizam de uma premissa simples e uma narrativa igualmente austera e sem firulas. A história que Pizzi e Teles contam é muito comum, trata de questões corriqueiras e da dificuldade que as famílias tem de lidar com a saída dos filhotes do ninho, além de trazer outros tantos causos familiares típicos da vida do brasileiro, em especial do residente do Rio de Janeiro, e tudo isso mostrado de uma forma muito terna, com um elenco afiadíssimo.

    Animal Cordial (Gabriela Amaral Almeida)

    O cinema de Amaral Almeida só cresce, e normalmente tem a ver com cinema de gênero. Animal Cordial mistura thriller, terror e suspense com uma abordagem sanguinolenta, repleta de gore, com grandes atuações de Murilo Benício e Luciana Paes, além de contar com um grande elenco de apoio. O roteiro mergulha na podridão do pensamento humano, mostrando o homem como um ser mesquinho, maquiavélico e extremamente egoísta, que idolatra apenas a sua vontade e é capaz de fazer absolutamente qualquer coisa.

    Canastra Suja (Caio Sóh)

    Esse é  um daqueles filmes que surpreendem positivamente. Canastra passou por uma questão polêmica e na cidade do Rio de Janeiro saiu de cartaz muito cedo, mas depois voltou após um esforço conjunto da equipe de produção e de influenciadores e críticos. O filme merece isso. Trata de questões familiares muito íntimas, com uma exposição de intimidade do homem comum que faz cair o queixo do espectador. É quase como um conto modernizado e atualizado de Nelson Rodrigues, com um desfecho tragicômico típico das peças shakesperianas, e para variar, possui um elenco muito afiado e comprometido com seus papéis.

    A Mata Negra (Rodrigo Aragão)

    Para quem não conhece o cinema de Aragão, talvez seja novidade cita-lo como um dos bons diretores do nosso cinema, mas sinceramente é vergonhoso que o cinéfilo não tenha ao menos ouvido falar dele. No Espírito Santo, o sujeito que sempre quis trabalhar com maquiagem no cinema usa sua inventividade para dar luz a seus próprios filmes, e nesse, seus dotes não só de construção de monstros são bem explorados, como seus planos de filmagens são extremamente inventivos. O fato de utilizar mitologia popular para dar a luz ao seu projeto pessoal encontra eco em sua própria filmografia, em especial, Mangue Negro e Mar Negro. É um filmaço de terror repleto de bom humor.

    Arábia (Affonso Uchoa e João Dumans)

    No auge do governo Temer, Arábia estreava nos festivais pelo Brasil e mostrava o quão triste e melancólica poderia ser a vida e jornada do trabalhador comum brasileiro, que não consegue estabilidade financeira e que vê esse aspecto econômico influir também no seu pessoal e sentimental. O filme é triste, e mostra o quanto estamos falidos enquanto país.

    Yonlu (Hique Montanari)

    Infelizmente Yonlu não ficou tanto tempo em cartaz. Cinebiografia do cantor que dá nome ao filme, o longa mostra a trajetória de um menino que não conseguia se encontrar e que viu na música uma forma de expressar seus amores e suas dores, cuja vida terminou cedo, por conta do suicídio que cometeu. Montanari mostra tudo isso de maneira emotiva e tocante, e desperta em quem o assistiu uma curiosidade por seus próximos trabalhos.

    Menções honrosas: A Repartição do Tempo, Todos os Paulos do Mundo, O Processo, A vida extraordinária de Tarso de Castro, Amores de Chumbo, Auto de Resistência, Histórias que nosso cinema (não) contava, Meu tio e o Joelho de Porco, Marcha cega, Henfil, Paraíso Perdido, Mare Nostrum

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  • Crítica | Fevereiros

    Crítica | Fevereiros

    Até mesmo no documentário que se dedica a destrinchar sua personalidade, a cantora e interprete Maria Bethânia consegue soar poética. Os primeiros 8 minutos são acompanhados de pequenos relatos da própria, de parentes – entre eles seu irmão Caetano Veloso – e de pessoas próximos, acompanhando é claro da marcante voz dela. Fevereiros consegue já no início estabelecer um espírito parecido com a sua personagem investigada.

    A forma que o diretor Marcio Debellian conduz o longa é bem simples, toma como base o samba enredo da Mangueira, que homenageou a cantora baiana. O curioso do filme é que ele serve de certa forma como um estudo não só sobre Bethania, mas também de parte da origem da Estação Primeira de Mangueira e um bocado sobre o Candomblé, uma vez que a biografada é bastante religiosa e, por mais que não seja adepta da religião candomblecista, utiliza de muitos dos seus elementos em suas música e nas suas performances no palco.

    O mergulho que Debellian faz na alma do brasileiro é muito bonito e lírico, a alma do cidadão da Bahia e do Rio de Janeiro são muito bem capturadas através não só da exploração da música da biografada mas também na ode que Fevereiros faz do culto as religiões afro-brasileiros. O ritmo do filme é assustadoramente fluído, ele já tem uma duração bem curta, de 75 minutos, mas ele é tão fluído e naturalista em suas análises que não se nota o tempo passar e isso é algo bem raro em um produto documental.

    Debellian já tinha experiência com analises de artistas, em 2014 fez O Vento Lá Fora, sobre Fernando Pessoa, mas aqui ele alcança um cinema bastante maduro, e que faz perguntar se seu filme soa mágico por conta de sua sensibilidade enquanto realizador e pelas ótimas escolhas que faz ao explicar a jornada da heroína que escolheu, ou se é por conta da trajetória de Bethânia enquanto artista e enquanto pessoa física. Documentários de bandas, músicos e musicistas tendem a cair em formulas quadradas e registros caretas e chapa branca, e todas essas características definitivamente não habitam Fevereiros, que segue como um filme sucinto e emocionante em cada momento particular, servindo muito bem na função de ode a arte e ao artista.

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  • Crítica | Paraíso Perdido

    Crítica | Paraíso Perdido

    Se valendo de uma estética cafona, evocando o brega como delimitador artístico do cinema e demais artes brasileiras, Paraíso Perdido começa com uma cortina roxa, de tonalidade gritante sendo aberta, aparecendo ali Erasmo Carlos, de peruca, interpretando José, um dos muitos cantores que fazem participação no palco da casa de show que dá nome ao filme. O senhor é na verdade o gerente do espaço, que dá espaço para a sua família cantar por lá e para outros artistas que não tem onde se exibir.

    Odair, um policial vivido por Lee Taylor aparece por lá e após quase prender um dos que lá se exibem, decide aceitar o pedido de José para fazer a segurança de Ímã (Jaloo), uma cantora trans que sempre sofre com ataques homofóbicos. Aos poucos, os universos de cada um dos personagens periféricos são revelados, e em cada detalhe se nota uma enorme dramaticidade e complexidade em cada detalhe de suas intimidades, familiares e pessoais.

    O filme valoriza demais a arte musical, mostrando os sonhos dos personagens em conseguir algum notoriedade apesar de suas rotinas extremamente simples, normalmente embaladas por músicas de Reginaldo Rossi, Zé Ramalho e outros expoentes da cancioneiro popular, fugindo normalmente do eixo sul-sudeste.

    O fato de dar voz a pessoas que normalmente não tem é bastante válido, embora o filme careça de uma discussão ou mensagem maior, é um filme contemplativo sobre como a vida se desenrola lentamente. O nome da casa de show serve como alusão a utopia e Oasis que o paraíso perdido representa, pois ali qualquer pessoa pode ser o que quiser, pode relacionar ou ser o que quiser, onde os sonhos são limitados apenas pela vontade da própria pessoa.

    Paraíso Perdido tem uma direção artística muito forte e funciona como um bom exemplar de filme coral bastante competente, o fato de não ter um protagonista único fortifica a ideia de que é um filme de comunidade, lembrando em espírito o filme de Tavinho Teixeira Sol Alegria, embora ouse bem menos que esse, e tenha mais um espírito e caráter de filme de cabaré do que o filme político do diretor paraibano, sendo uma ode da diretora Monique Gardenberg a liberdade que deveria acompanhar o amor.

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