Tag: Leon Hirszman

  • Crítica | São Bernardo

    Crítica | São Bernardo

    São Bernardo

    Parte integrante do movimento Cinema Novo, São Bernardo trata da história de Paulo Honório, um mascate que habita o sertão de Alagoas e negocia gado e toda sorte de coisas. A obra de Leon Hirszman mostra o personagem de Othon Bastos tentando de todos os meios, inclusive antiéticos, para adquirir a fazenda que dá nome ao filme, local este onde havia trabalhado quando criança.

    O filme começa com um coro de sons indistinguíveis, que simbolizam a confusão mental de Honório, um homem violento, machista e autoritário, com dificuldades claras de convivência. Sua postura autossuficiente esconde um modo de pensar e viver bastante miserável, aquém dos próprios delírios de grandeza que ele nutre.

    O roteiro é uma adaptação de um dos grandes clássicos da literatura nacional, São Bernardo, de Graciliano Ramos, e tanto Hirszman quanto Bastos conseguiram capturar bem a essência do romance, não só em mostrar a jornada do protagonista e todo o contexto político-social da obra, mas também nos demais personagens, em especial, Madalena de Isabel Ribeiro, uma professora de pensamento e atitudes progressistas entrando em conflito direto com o conservadorismo de Honório. Os dois se casam, apesar de não combinarem em praticamente nada.

    O gerenciamento da fazenda torna seu proprietário próspero, mas sempre causando temor em qualquer pessoa que se relacione com ele. Suas sensações e obsessões de controle se chocam com o ideal que Madalena tem para si, e o texto se desenvolve muito bem nos conflitos. Hirzman não aborda de maneira óbvia as contradições de uma relação, e a estética empregada pelo cineasta faz o filme parecer uma declamação, tanto pela narração do ator, que revela o pensamento torto, sexista e moralista, quanto suas expressões corporais, que deixa claro ser um sujeito que parece estar sempre prestes a explodir.

    A postura turrona de Paulo esconde mal sua real face. Além da índole estranha se percebe a fragilidade de seu caráter e até de sua auto imagem. O comportamento possessivo de fato tem a ver com o receio de ficar sozinho, e acaba resultando em uma vaidade que faz até quem está perto se afastar.

    Sua incompreensão também ajuda que ele seja um pária em casa, mesmo sendo bem-sucedido financeiramente, e ajudam a formar nele a postura de um sujeito paranoico. Isso resulta em fracasso até no mais banal de seus desejos, visto que até a paternidade, que lhe parecia natural lhe é negada. Sua esposa, que deveria ser sua protegida, adoece da dor da rejeição e da falta cuidados sentimentais básicos, pois não é tratada como um ser humano, e sim como mais uma propriedade.

    São Bernardo trata de questões candentes até os dias atuais, demonstrando a atualidade do texto de Ramos e da adaptação de Hirszman. O personagem de Othon é diferenciado, um explorador consciente de seu poder e ainda assim impotente no campo sentimental.

  • Crítica | ABC da Greve

    Crítica | ABC da Greve

    Leon Hirzman é um dos diretores que fundamentou um dos grandes momentos do cinema brasileiro. Quando terminou de filmar Eles Não Usam Black Tie, Hirzman começou a fazer um documentário que permaneceu inacabado até depois de sua morte, em 1987. Em noventa, com ajuda de restauradores, e de algumas imagens inéditas, que substituíram as que foram perdidas nos negativos, vinha a luz finalmente ABC da Greve, que mostra em detalhes o cotidiano dos metalúrgicos grevistas, nos anos setenta na região paulista do ABC — Santo Andre, São Bernardo e São Caetano — núcleo este que obviamente estava bastante relacionada com o longa ficcional protagonizado por Gianfrancesco Guarnieri.

    Em um momento bastante singelo do filme, um dos peões grevistas, sujeito simples e calvo, conversa com uma autoridade militar fardada, praticamente implorando para que ele e seus companheiros não fossem presos, beirando o absurdo pensarmos em trabalhadores terem de pedir autorização para reclamar por seus direitos.

    Apesar de já lidar com a imagem do líder Luiz Inácio da Silva, o Lula, como um dos centros do movimento grevista do ABC, é só com 24 minutos de filme que Hirzman apresenta um perfil do sujeito, utilizando o segundo terço do filme para falar de sua vida pessoal e como foi sua trajetória rumo a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Lula grita, em cima do palanque, para que os grevistas tenham cuidado, evitem andarem sozinhos durante e depois dos atos, sugerindo que esses vão para suas casas assim que acabar o manifesto. Apesar da liderança popular que tem, já é possível verificar o perfil conciliador de Lula, muito distante de qualquer traço revolucionário em suas ações ou que evoque qualquer enfrentamento para além do comumente estabelecido em movimentos grevistas. Todo o discurso é sim de conciliação.

    O final do filme indica o quão o Estado é benevolente com as empresas, que concederam algumas das exigências dos grevistas — não todas, aliás bem longe disso — e ainda tiveram esses prejuízos bancados pelo caixa federal, em uma manobra que de certa forma, explica muito da motivação da ditadura empresarial-militar — algo que pode ser visto em outros filmes desta época como Pra Frente, Brasil e Cidadão Boilesen. Para variar, o Estado à direita favorece o empresariado em detrimento dos direitos dos menos abastados.

    Hirzman jamais conseguiu terminar seu filme, e é irônico como o retrato de um movimento popular como o que ele pinta, termina sem uma vitória categórica, como havia sido anunciado no início da revolta, no entanto, o resultado colhido tem bastante semelhanças com as a forma de governar em um futuro próximo dos objetos que foram analisados em ABC da Greve, onde o que preponderava, era a tentativa de equilibrar a inclusão dos mais necessitados, sem infringir diretamente nos interesses dos poderosos. É evidente que essa análise ainda não daria para ser feita em 1990 no lançamento do filme, mas é curioso como a obra já dispõe de elementos que profetizam boa parte do modus operandi de Lula enquanto líder, denotando inclusive qualidades e defeitos que ajudariam a montar o quadro politico complexo que ocorre no Brasil nessa segunda metade de década de 2010.

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  • Crítica | Eles Não Usam Black Tie

    Crítica | Eles Não Usam Black Tie

    Talvez nem fosse proposital, mas a versão restaurada do filme de Leon Hirzman tem um início onde os créditos são apresentados em uma tela negra, sem som nenhum, como se quisesse inconscientemente remeter ao luto, consequente dos anos iniciais da década de oitenta. O drama baseado na peça contestatória de Gianfrancesco Guarnieri mostra um casal de apaixonados, Tião (Carlos Alberto Riccelli) e Maria (Bete Mendes), que tencionam tornar o seu tórrido romance em um matrimônio, uma vez que a moça tem um segredo para contar ao seu amado.

    A cabeça do metalúrgico Tião está na greve que se avizinha deles, quase ofuscando a chegada do bebê que sua amada esperava. De casamento marcado, os dois vivem em seu paraíso particular, curtindo suas histórias escapistas no cinema – tomando por exemplo a ficção científica Jornada Nas Estrelas: O Filme, de Robert Wise, igualmente fugaz em suas outras obras. O par de jovens está distante do estado de ebulição e do furacão emocional em que está a casa de Tião, com todos preocupados pelas condições da fábrica onde os homens da família trabalham, entre eles seu pai Otávio (Gianfrancesco Guarnieri) e seu irmão Bié (Fernando Ramos da Silva), além da inconformada mãe, Romana (Fernanda Montenegro) que é a principal voz de alerta para a precipitação da consumação da relação.

    A sexualidade latente nas atitudes das crianças, bem como a greve servem como signos da teimosia juvenil que ainda tomava conta das ruas. A polarização de ideais cada vez mais crescente fazia com que os homens tivessem que, mais cedo ou mais tarde, tomar posição, e isso logo ocorre com o sonhador Tião, que vê a partir de um colega de trabalho vir uma proposta, para que ele entregue algumas informações do modus operandis da categoria, que ainda discute os detalhes de como a categoria agirá.

    Enquanto os eventos dentro do sindicato estão cada vez mais ásperos e repletos de animosidade, a vida familiar de Maria começa a melhorar, com seu pai aos poucos largando a bebida. Em comum o casal de protagonistas têm no seio familiar alguns problemas, por ambos serem considerados ovelhas negras, como páreas mesmo dentro de suas casas, já que Otávio pensa muito mais no social e na sua classe do que no bem-estar dos seus

    Até o hábito do consumo alcoólico é utilizado para demonstrar a diferença de atitudes, já que Otávio não enxerga na bebida um problema e sim uma forma de socializar com aqueles que lhe são queridos, mas mesmo nos momentos de lazer, a violência que corre as ruas não deixa que pai e filho se esqueçam do velado terror que corre o asfalto, com um exemplar categórico, onde a polícia invade um boteco para assassinar um fugitivo, nos fundos do bar, enquanto na fábrica, as demissões seguem acontecendo.

    Francisco Milani vive o personagem Sartini, que dos revoltosos é o mais radical, que tenta quase sempre em vão inflamar os ânimos, sendo quase sempre tranquilizado por seus amigos Bráulio (Milton Gonçalves) e claro, por Otávio. Ao mesmo tempo em que o patriarca enxerga no extremismo um erro, mas na apatia algo até pior. A inconformidade do senhor o faz entrar em conflito com seu filho, que após guardar muita mágoa, solta seus impropérios e ofensas ao seu genitor, movido supostamente pela situação de ausência dele, nos anos de chumbo, quando Tião era ainda um menino e quanto o chefe da família estava em cárcere.

    A greve finalmente se instaura, deixando filho e pai em lados opostos. Os sindicalistas se mostram sem cabeça, com quase todos seus adeptos baseando seus movimentos na arruaça e na desmedida maneira de encarar as injustiças com o proletariado. O fantasma da prisão volta a assombrar Otávio, enquanto Tião apanha de seus colegas de trabalho, os grevistas que o culpam por furar o motim. Os ecos da repressão continuam assolando as pessoas comuns, o massacre faz até Maria se revoltar com seu futuro esposo, na prova cabal de que a repressão prossegue.

    Sebastião é condenado pelo júri familiar, com a pena de ser deserdado, por se aliar àqueles que se conformaram e que apoiam os patrões. Enquanto o primogênito se despede em viagem, os companheiros de classe sofrem as ações homicidas da polícia, tendo vidas valiosas cerceadas de modo cruel e brutalmente injusto, o que obviamente abala o emocional dos personagens, que em qualquer análise não passam de pessoas comuns, que mesmo após traumas tão fortes como os mostrados em tela, têm de voltar às suas vidas, à rotina sufocante de ter de trabalhar arduamente para produzir o seu próprio sustento sem as garantias mínimas de que poderão fazer isto sem sofrer qualquer selvageria, cujo rigor excludente é tamanho enquanto a contrapartida é ínfima. Os poderosos permanecem, o povo falece na penúria.

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