Tag: Fernanda Montenegro

  • Crítica | Piedade

    Crítica | Piedade

    Claudio Assis é um diretor brasileiro muito elogiado, suas obras O Baixio das Bestas, Amarelo Manga e Febre do Rato são louvadas, e até mesmo seus filmes não tão potentes, como Big Jato, tem motivos para serem apreciados.

    Piedade começa silencioso, com o personagem de Matheus Nachtergaele sozinho, em casa, e logo mostra alguns estranhos vídeos à beira-mar, vindo da cidade que dá nome ao filme. Assis localiza sua câmera em lugares obtusos, busca ângulos incomuns que miram registrar sensações diferenciadas de seus personagens. Talvez de maneira inconscientes, essa forma mais “diferente” de registro tente compensar a clara dificuldade do filme em desenvolver seus personagens que se valem de frases de efeitos e atitudes enérgicas para se impor em tela.

    Piedade é alvo de desejos de grandes corporações e os moradores parecem não querer sair dali. Isso faz com que o filme tenha algumas semelhanças narrativas com Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, embora sua abordagem não tenha nem de longe a mesma urgência. O cenário onde vive Sandro (Cauã Reymond), serve para exibir toda sorte de arte que ajudou a inspirar Assis. O complexo de cinema antigo misturado com casa de tolerância é sua chance de exibir um sem número de pôsteres de filmes antigos, e inclusive, em alguns deles o auto-referenciam, soando pretensiosa e bastante pedante. Para piorar aspectos que deveriam parecer comuns são registrados de modo artificial, o sexo é plastificado, e nem a tentativa de crítica a utilização do sexo comercial às escuras justifica a péssima construção visual e dramatúrgica. O casamento dos dois aspectos citados além de não combinar, faz se perguntar se as intenções do roteiro é o moralismo barato.

    Piedade tem muitos momentos contemplativos e expressionistas, com grande parte das cenas belíssimas, mas o roteiro simplesmente não acompanha o apuro visual, soando na maior parte do tempo frívolo. O resultado final é de uma versão aquém do cinema de Assis, graças também ao ritmo enfadonho e as críticas sociais que não passam da barreira do óbvio.

  • Crítica | A Vida Invisível

    Crítica | A Vida Invisível

    Karim Aïnouz é o diretor do filme que representara o Brasil na corrida pelo Oscar de filme estrangeiro. Ao contrário do que houve entre Pequeno Segredo e Aquarius, Bacurau não foi nada mal vista, afinal, A Vida Invisível tal qual o filme de Kleber Mendonça Filho, foi muito bem nos festivais internacionais, e não à toa, já que a jornada das irmãs Guida de Julia Stocker e Euridice de Carol Duarte além de apresentar uma realidade dura e pragmática, ainda consegue ser algo belo e bastante tocante.

    O inicio do filme é contemplativo, passeia por passagens rurais dentro da capital fluminense dos anos 50, onde dá para ouvir a água corrente caindo sobre os muros e chãos das casas suburbanas do bairro de São Cristóvão. Essa entrada é bastante lírica, e faz jus a adaptação ao livro de Martha Batalha. A historia começa com a ternura da relação das irmãs Gusmão, que vivem no Rio antigo e são criadas por uma família de origem portuguesa e viés conservador. A vida faz com que as duas se separem, cada uma tomando um rumo amoroso diferente, e essa distância  não é cortada, mesmo que ambas tencionem se encontrar.

    Euridice é uma artista nata, toca muito bem piano, enquanto Guida é enérgica, divertida e muito amorosa. As duas, belíssimas quando novas, tem sua inocência invadida, uma por escolha própria e outra via casamento arranjado. A forma como a historia mostra os sonhos de ambas morrendo reúne coincidências no destino das duas – em especial na rejeição a maternidade – e claro, o descontentamento com a rotina que levam, já que ambas imaginavam que teriam linhas de vida bem diferentes.

    A forma como o roteiro de Aïnouz, Murilo Hauser e Inés Bortagaray trata a intimidade das moças é sui generis. O sexo praticado é sempre impessoal, agressivo, na maioria das vezes mal é consentido, e serve bem ao propósito do filme, de mostrar vidas falhas e trajetórias fracassadas as margens do Rio de Janeiro, um cenário bucólico e decadente, bem distante do que comumente é associada a Cidade Maravilhosa.

    As historias marginais de ambas mesmo na melancolia soam inspiradoras e belas, e mesmo os personagens com posturas que se aproximam da vilania não são registradas de maneira maniqueísta. Cada pessoa é tridimensional, tem aspectos de comportamento positivos e negativos, como qualquer ser humano comum.

    A forma delicada como se trata temas como psicose, depressão e saudade também é absurdamente positiva, as confusões sentimentais são bem pontuadas pela entrega das interpretes. Julia Stockler é deslumbrante em tela e o trabalho corporal de Carol Duarte é absurdo, ela consegue imprimir idades bem diferentes, mudando basicamente a sua postura, retratando bem a condição de uma pessoa depressiva basicamente com expressões corporais e com formas de se manter ereta.

    Mesmo os saltos temporais (bem grandes, por sinal) são bem encaixados, e mostram uma justiça tardia sendo cumprida. A Vida Invisível registra uma historia familiar conturbada, que representa bem o dia a dia dos brasileiros, que vivem entre o cuidado e o desprezo dos mais próximos, e também representa bem como a vida pode ser cruel, curta e irônica, isso tudo pontuado por atuações incríveis, mesmo em participações especiais como a de Fernanda Montenegro, que é só um dos bons desempenhos dramáticos que o filme apresenta.

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  • Crítica | O Beijo no Asfalto (2018)

    Crítica | O Beijo no Asfalto (2018)

    Filmado em preto e branco e levando em conta a cidade carioca do Rio de Janeiro como cenário, começa o exercício de Murilo Benício para adaptar a peça de Nelson Rodrigues, O Beijo no Asfalto. A primeira cena mostra um rapaz atravessando a rua, e sendo pego por um ônibus, sob o olhar do personagem de Stênio Garcia. Logo, a quarta parede é quebrada, e uma série de atores famosos aparecem em uma roda, ensaiando e fazendo teste de roteiro.

    A discussão do elenco destaca a análise do texto, entre elas, a capacidade da polícia e da imprensa, num trabalho conjunto de produzir fatos dramáticos, para vender jornal. Para que as cenas soem mais reais, há a presença do teatrólogo e diretor Amir Haddad, no centro das articulações, conduzindo narrativamente os artistas na direção do texto de Rodrigues e a forma como os atores fazem as cenas é tão realista que lembra realmente as reconstituições de crime feitas pela perícia da polícia, e de fato, é sobre isso que a peça fala e discute, embora exista um inquérito dentro da história, mas que não é fidedigno ou preocupado com a verdade, e sim preocupado em criar um factoide. Benício utiliza sua força como ator e astro para apresentar uma crítica a manipulação midiática apoiada pelas autoridades do baixo e alto clero, no caso aqui, do baixo.

    Esta versão é bem mais explícita que a de Bruno Barreto nos anos oitenta, embora não tenha alguns momentos de nudez que há na outra encarnação. A escolha por fazer algo teatral conversa com a ideia original de Nelson Rodrigues, e propicia uma força enorme para o drama, não só para quem está se derramando como personagem, a exemplo de Garcia, que brilha muito, mas também para os atores que discutem, como Fernanda Montenegro, que diz ter feito Selminha quando jovem, e que a gritaria que Débora Falabella faz tem que ser histriônica mesmo, pois eram outros tempos, os anos sessenta, e esse tipo de notícia no subúrbio carioca que serve de cenário acabaria com a moral daquela família, e Montenegro estava correta, a realidade entre as zonas sul e norte é enorme.

    Benício acerta demais na adaptação de seu roteiro e no elenco, ainda consegue aludir a hipocrisia da sociedade que condena o homossexual além de mostrar como a manipulação da imprensa pode esmagar um homem comum. Poucas vezes a obra de Nelson Rodrigues foi tão acertadamente traduzida como aqui, e ainda de maneira tão emocional e delicada, soando forte como a versão anterior de Barreto, mas completamente diferente narrativamente.

    Nos créditos finais, Montenegro descreve como foi uma das peças de Nelson Rodrigues, destaca que seu texto prevalece o teatro da culpa, e fala das vezes que Nelson era enquadrado pelo público, que vez por outra o chamava de tarado e de inimigo da família tradicional brasileira, e lembra que ele era repórter de polícia antes de enveredar pela dramaturgia. Essas lembranças são algumas das mostras da reverência de Benício a obra do escritor e cronista, para muito além até da escolha de uma de suas peças para a sua estreia na direção cinematográfica.

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  • Crítica | Infância

    Crítica | Infância

    Infância 1

    Baseado nas memórias bastante antigas de seu diretor, Infância narra uma trajetória curiosamente multinuclear, apesar de se basear basicamente em uma família tradicional da capital fluminense. Domingos de Oliveira, além de assinar a direção, faz às vezes de narrador, remontando um ambiente bucólico e repleto de magia típica da nostalgia, fruto do pertencimento aos sentimentos do passado.

    O elenco é capitaneado por Fernanda Montenegro, que reúne em sua Dona Mocinha a maior parte das qualidades do filme, uma vez que sua persona é a mais complicada, intrigada e mais repleta de nuances, como a matriarca de um clã de desajustados e encostados, que basicamente dependem da herança do falecido avô para sobreviver. Em volta de Dona Mocinha orbitam seus filhos, empregados e netos, que além de sofrerem de dependência econômica, também demonstram uma dificuldade em desenvolver seus papéis dentro da trama, mesmo que representassem pessoas que existiram no pretérito de Domingos. A verborragia do argumento faz remeter muito mais ao humor escrachado típico das chanchadas e rádio-novelas antigas do que a seriedade que deveria predominar em alguns momentos. O tom caricatural é claramente um deboche da época em que o roteiro se passa.

    No entanto, a variação estilística se prova pouco competente, especialmente nas participações de Nanda Costa, que faz algumas interferências e quebras de quarta parede, o que faz desconcentrar o público para o real motivo do longa. A dedicação em denunciar o inferno presente na rotina se perde um bocado, resgatando-se talvez na ode ocorrida entre a personagem de Montenegro ao jornalista Carlos Lacerda, revelando uma devoção cega a figura do histórico comunicólogo.

    A ótica infantil garante humor e irrealidade, uma visão fantástica dos aspectos mais surreais de uma época contraditória, como é a fase da vida ligada a criança. Apesar de contar em seu elenco figuras como Paulo Betti, Ricardo Kosovski, Maria Flor e Priscilla Rozembaum, quase todo o talento dramatúrgico é concentrado na experiente Fernanda Montenegro, inclusive nos momentos de enriquecimento situacional da trama, uma vez que os melhores diálogos são dela.

    Como filme-memória, talvez Infância funcione. Mas como espécime de análise fílmica, peca demasiado, já que não prova ser muito mais do que isso: um exercício de memória afetiva de seu realizador. Apesar de se mostrar bastante superior aos últimos exemplares da filmografia de Oliveira, Infância não logra êxito em causar em seu espectador uma sensação tão agradável quanto a que o diretor teria em relembrar os bons momentos de sua meninice, apesar dos grandes esforços de seus produtores.

     

  • Crítica | Boa Sorte

    Crítica | Boa Sorte

    Utilizando o cenário de um manicômio, que simboliza o quão errático anda o mundo, Boa  Sorte, da diretora publicitária Carolina Jabor, conta a história de um jovem chamado João (João Pedro Zappa), cujo vício em remédios tarja preta unido a refrigerantes de laranja o faz ter um desempenho completamente aquém do esperado para um juvenil. Sua expectativa é encurtada, e sua existência parece não ter muito sentido, até que é levado a uma casa de repouso, onde conhece pessoas que compartilham de misérias parecidas com as suas.

    O que deveria ser uma casa de reabilitação para vencer a depressão, ansiedade e o transtorno de stress pós-traumático acaba tornando-se um lugar de descobertas, onde ele encontra pares que fariam seu tempo render mais, além de conseguir dar uma boa razão para sua existência. A principal responsável por isto seria Judite, interpretada por uma inspirada Deborah Secco, uma mulher lindíssima, soropositiva, com os dias contados, que tem em comum com ele o vício em remédios para ansiedade, além de outros tantos pecados de dependência, cuja culpa inexiste graças a sua condição especial.

    Aos poucos a dupla se reúne, encontrando um no outro o ideal para uma parceria, construindo uma estreita relação de interdependência, pautada inicialmente no sexo, evoluindo aos poucos, até que a intimidade deixa de ser puramente carnal e torna-se sentimental. Toda a construção do sentimento é feita de modo muito natural, tão bem urdido que até as inconveniências típicas de seus distúrbios parecem ajuda-los a ficar cada vez mais próximos.

    A aflição da alma é o principal fator que os une. A invisibilidade, indiferença e irrelevância que sofriam por parte dos que os cercavam fazem dos dois solitários de mundos distantes em uma junção de caráter irretocável, até na disparidade da compleição física de ambos.

    O rosto cadavérico de Judite contrasta com o belo e curvilíneo corpo, como se morte e sensualidade convivessem sobre o mesmo invólucro, como sinais evidentes da insanidade que habita sua mente e que se reflete em seu exterior, acrescentando uma camada a mais de fascínio à sua bela intérprete.

    O sanatório vira o lar da afeição, evoluindo até do quadro puramente amoroso para resultar em estima, onde os incompreendidos podem viver suas vidas em moderada paz, tecendo planos para sua existência fora daquelas paredes que os encerram, ao menos para o rapaz que não está em fase terminal. A relação de Judite e João chega a um estágio onde a sujeira e vergonha pensada por um bem maior predomina, rompendo com a dependência que ocorria, quebrando os laços de semelhança entre o modo como um homem e seu animal de estimação se tratam. A servidão incondicional é demolida pela mulher, que não quer assistir o seu improvável príncipe encantado sucumbir ao esperar por um futuro que não virá. Ela o libera, para que viva sua vida, algo miserável, claro, especialmente se comparado ao que sentia quando estava com ela, mas algo comum e ordinário, semelhante ao que Judite sempre sonhou para si, mas que jamais conseguiu alcançar sozinho. Tal subtexto faz de Boa Sorte algo um pouco mais inteligente do que as contumazes histórias de amor do cinema comercial.

  • Crítica | Eles Não Usam Black Tie

    Crítica | Eles Não Usam Black Tie

    Talvez nem fosse proposital, mas a versão restaurada do filme de Leon Hirzman tem um início onde os créditos são apresentados em uma tela negra, sem som nenhum, como se quisesse inconscientemente remeter ao luto, consequente dos anos iniciais da década de oitenta. O drama baseado na peça contestatória de Gianfrancesco Guarnieri mostra um casal de apaixonados, Tião (Carlos Alberto Riccelli) e Maria (Bete Mendes), que tencionam tornar o seu tórrido romance em um matrimônio, uma vez que a moça tem um segredo para contar ao seu amado.

    A cabeça do metalúrgico Tião está na greve que se avizinha deles, quase ofuscando a chegada do bebê que sua amada esperava. De casamento marcado, os dois vivem em seu paraíso particular, curtindo suas histórias escapistas no cinema – tomando por exemplo a ficção científica Jornada Nas Estrelas: O Filme, de Robert Wise, igualmente fugaz em suas outras obras. O par de jovens está distante do estado de ebulição e do furacão emocional em que está a casa de Tião, com todos preocupados pelas condições da fábrica onde os homens da família trabalham, entre eles seu pai Otávio (Gianfrancesco Guarnieri) e seu irmão Bié (Fernando Ramos da Silva), além da inconformada mãe, Romana (Fernanda Montenegro) que é a principal voz de alerta para a precipitação da consumação da relação.

    A sexualidade latente nas atitudes das crianças, bem como a greve servem como signos da teimosia juvenil que ainda tomava conta das ruas. A polarização de ideais cada vez mais crescente fazia com que os homens tivessem que, mais cedo ou mais tarde, tomar posição, e isso logo ocorre com o sonhador Tião, que vê a partir de um colega de trabalho vir uma proposta, para que ele entregue algumas informações do modus operandis da categoria, que ainda discute os detalhes de como a categoria agirá.

    Enquanto os eventos dentro do sindicato estão cada vez mais ásperos e repletos de animosidade, a vida familiar de Maria começa a melhorar, com seu pai aos poucos largando a bebida. Em comum o casal de protagonistas têm no seio familiar alguns problemas, por ambos serem considerados ovelhas negras, como páreas mesmo dentro de suas casas, já que Otávio pensa muito mais no social e na sua classe do que no bem-estar dos seus

    Até o hábito do consumo alcoólico é utilizado para demonstrar a diferença de atitudes, já que Otávio não enxerga na bebida um problema e sim uma forma de socializar com aqueles que lhe são queridos, mas mesmo nos momentos de lazer, a violência que corre as ruas não deixa que pai e filho se esqueçam do velado terror que corre o asfalto, com um exemplar categórico, onde a polícia invade um boteco para assassinar um fugitivo, nos fundos do bar, enquanto na fábrica, as demissões seguem acontecendo.

    Francisco Milani vive o personagem Sartini, que dos revoltosos é o mais radical, que tenta quase sempre em vão inflamar os ânimos, sendo quase sempre tranquilizado por seus amigos Bráulio (Milton Gonçalves) e claro, por Otávio. Ao mesmo tempo em que o patriarca enxerga no extremismo um erro, mas na apatia algo até pior. A inconformidade do senhor o faz entrar em conflito com seu filho, que após guardar muita mágoa, solta seus impropérios e ofensas ao seu genitor, movido supostamente pela situação de ausência dele, nos anos de chumbo, quando Tião era ainda um menino e quanto o chefe da família estava em cárcere.

    A greve finalmente se instaura, deixando filho e pai em lados opostos. Os sindicalistas se mostram sem cabeça, com quase todos seus adeptos baseando seus movimentos na arruaça e na desmedida maneira de encarar as injustiças com o proletariado. O fantasma da prisão volta a assombrar Otávio, enquanto Tião apanha de seus colegas de trabalho, os grevistas que o culpam por furar o motim. Os ecos da repressão continuam assolando as pessoas comuns, o massacre faz até Maria se revoltar com seu futuro esposo, na prova cabal de que a repressão prossegue.

    Sebastião é condenado pelo júri familiar, com a pena de ser deserdado, por se aliar àqueles que se conformaram e que apoiam os patrões. Enquanto o primogênito se despede em viagem, os companheiros de classe sofrem as ações homicidas da polícia, tendo vidas valiosas cerceadas de modo cruel e brutalmente injusto, o que obviamente abala o emocional dos personagens, que em qualquer análise não passam de pessoas comuns, que mesmo após traumas tão fortes como os mostrados em tela, têm de voltar às suas vidas, à rotina sufocante de ter de trabalhar arduamente para produzir o seu próprio sustento sem as garantias mínimas de que poderão fazer isto sem sofrer qualquer selvageria, cujo rigor excludente é tamanho enquanto a contrapartida é ínfima. Os poderosos permanecem, o povo falece na penúria.

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  • Crítica | O Tempo e o Vento

    Crítica | O Tempo e o Vento

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    Esta não é a primeira adaptação da obra do escritor Érico Veríssimo. Em 1967, O Tempo e o Vento foi levado para a televisão em formato de novela, dirigido por Dionísio de Azevedo e dividido em três partes. Novamente, em 1985, a TV Globo criou a bela minissérie dirigida por Paulo José, em que trazia Tarcísio Meira como Capitão Rodrigo e Glória Pires como Ana Terra. Apenas em 2013, a obra de Veríssimo ganhou uma nova adaptação, dessa vez para os cinemas e com direção de Jayme Monjardim.

    O longa dá início com o belo trabalho de fotografia de Affonso Beato, explorando as paisagens dos pampas gaúchos em um pôr-do-sol esmaecido. Mostra-se a chegada do Capitão Rodrigo (Thiago Lacerda) até a casa da família dos Terra Cambará para encontrar-se com a já centenária Bibiana (Fernanda Montenegro), em meio ao cerco de sua casa pela família Amaral, inimiga declarada dos Terra Cambará.

    Adaptar uma obra como O Tempo e o Vento para os cinemas não é tarefa fácil. A série literária de Veríssimo conta a história de gerações de famílias marcadas por romances e guerras no Rio Grande do Sul. Condensar tudo isso em apenas duas horas de exibição, sem parecer superficial, exigiria uma habilidade que Monjardim deixou a desejar.

    A trama envolvendo a família Terra Cambará é narrada por Bibiana Terra, apresentando toda a história de formação de um período do Brasil. Primeiramente, acompanharemos a história de amor de Ana Terra (Cléo Pires) e o índio Pedro Missioneiro (em uma bela interpretação de Martín Rodriguez). Logo após, Bibiana relembra seu romance com o Capitão Rodrigo Cambará. A narrativa de Bibiana relembra aproximadamente 150 anos de história de amores, capazes de resistir às guerras e grandes tragédias.

    Dito isso, fica mais claro entender a proposta de Monjardim. Contudo, isso não torna mais fácil aceitar algumas de suas escolhas. Sua adaptação busca um tom novelesco, até mesmo burocrático, e seu olhar é voltado apenas para o romance entre os protagonistas. Não espere encontrar muito contexto histórico e político, que é apenas pincelado. Utilizada em segundo plano, a conjuntura da época só aparece como justificativa de que não foi esquecida.

    Castelhanos, Farrapos e Guerra do Paraguai são temas apenas mencionados, dando-se pouca explicação ao que estava acontecendo e sobre o que aquelas batalhas se tratavam. Tudo isso acaba com um gosto ruim na boca. Monjardim parece carecer de objetividade narrativa. Se seu desejo era fundamentar sua obra através de uma trama romântica, deveria ter focado nisso desde o início, colocando alicerces ao longo da história de amor entre Rodrigo e Bibiana e deixando o restante em segundo plano. Contudo, ao abrir a lente filmando um épico, a dimensão de sua obra se esvai em uma narrativa superficial.

    Ainda assim, O Tempo e o Vento está longe de ser um filme ruim; o universo recriado por Monjardim tem personalidade própria. O conceito de que tudo que Deus tira para dar novamente é muito bem explorado ao longo da trama, tempo cíclico a que Veríssimo idealizou em sua obra. O personagem de Rodrigo, muito bem interpretado por Lacerda, esbanja carisma e utiliza muito bem os olhares para demonstrar suas emoções, assim como Fernanda Montenegro, como de costume, se entrega ao papel da velha senhora Bibiana. Difícil não se emocionar com a cena inicial em que Lacerda, com suavidade, carrega Montenegro no colo levando-a até a janela.

    O Tempo e o Vento tem escolhas de roteiro que dificilmente passarão batidas, mas ainda assim é um belo material. A obra de Monjardim ganhou uma versão televisiva em formato de minissérie para a TV Globo, mas resta saber se os problemas narrativos do filme não sejam repetidos na versão para a televisão, não interferindo, assim, na qualidade da obra.

    “Uma geração vai, e outra geração vem; porém a terra para sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar donde nasceu. O vento vai para o sul, e faz seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo seus circuitos.”