Tag: Karim Aïnouz

  • Crítica | Aeroporto Central

    Crítica | Aeroporto Central

    Aeroporto Central é um documentário do diretor brasileiro e cearense Karim Aïnouz, seu início é intimista e minimalista, mostra pessoas adentrando o lugar que antes era o maior receptor de vôos do mundo, o Aeroporto de Berlim-Tempelhof, inaugurado nos anos vinte na Alemanha pelo presidente e ditador Adolf Hitler. Fechado desde 2008, o lugar ainda tem alguma importância, pois serve de abrigo e asilo para refugiados, além de ser um parque de lazer, onde crianças se  divertem pelas pistas onde antes desciam aviões.

    O primeiro personagem a falar é um jovem de 18 anos, Ibrahim Al Hussein. Sua confissões são breves, e se percebe um destino dele não esperado. A trama vai mostrando os meses dos refugiados nesse cenário não desejado, entre momentos de descontração e outros (tantos) de tensão.

    A música instrumental ajuda a dar o tom do desapego estético imposto pelo realizador. Seu filme é seco, em alguns pontos abusa tanto do naturalismo que mais se assemelha ao cinema mudo do que o meramente documental moderno. As  realidades mostradas ali são cruas, embaladas ou pelo silêncio ou pelo som ambiente, que de certa forma, emulam os milhares de vôos que aquele lugar já teve. O fato da maioria dos personagens biografados serem estrangeiros também maximiza essa sensação.

    O filme acerta muito ao mostrar a precariedade da vida das pessoas que tiveram de largar suas terras de origem. O espaço que cabe as pessoas e famílias vivem em quartos improvisados, verdadeiros cubículos, divididos por lençóis ou por madeira. O espaço para eles é curto, e fora esses onde tem uma privacidade igualmente diminuta, há  também muitos espaços comuns, onde as pessoas criam um senso de comunidade, embora até essa criação soe forçada em boa parte das vezes.

    A maioria dos personagens que aparecem em tela não tem tempo o suficiente para serem identificados além dos dramas comuns a quem fica longe da família por muito tempo. Ao mesmo tempo que Karim Aïnouz apela para uma verdade fácil de ser identificada por qualquer pessoa no mundo, boa parte desses dramas não passa da barreira do genérico, e em se tratando de pessoas únicas e singulares, isso não é bom.

    A duração extensa também faz com que o filme soe repetitivo, e ainda que isso não diminua a simpatia pelos personagens, boa parte da força de Aeroporto Central se dilui, mas que obviamente vale a pena conferir por conta do cenário dos desafortunados que já vivem em isolamento em uma época pré Covid 19.

  • Crítica | A Vida Invisível

    Crítica | A Vida Invisível

    Karim Aïnouz é o diretor do filme que representara o Brasil na corrida pelo Oscar de filme estrangeiro. Ao contrário do que houve entre Pequeno Segredo e Aquarius, Bacurau não foi nada mal vista, afinal, A Vida Invisível tal qual o filme de Kleber Mendonça Filho, foi muito bem nos festivais internacionais, e não à toa, já que a jornada das irmãs Guida de Julia Stocker e Euridice de Carol Duarte além de apresentar uma realidade dura e pragmática, ainda consegue ser algo belo e bastante tocante.

    O inicio do filme é contemplativo, passeia por passagens rurais dentro da capital fluminense dos anos 50, onde dá para ouvir a água corrente caindo sobre os muros e chãos das casas suburbanas do bairro de São Cristóvão. Essa entrada é bastante lírica, e faz jus a adaptação ao livro de Martha Batalha. A historia começa com a ternura da relação das irmãs Gusmão, que vivem no Rio antigo e são criadas por uma família de origem portuguesa e viés conservador. A vida faz com que as duas se separem, cada uma tomando um rumo amoroso diferente, e essa distância  não é cortada, mesmo que ambas tencionem se encontrar.

    Euridice é uma artista nata, toca muito bem piano, enquanto Guida é enérgica, divertida e muito amorosa. As duas, belíssimas quando novas, tem sua inocência invadida, uma por escolha própria e outra via casamento arranjado. A forma como a historia mostra os sonhos de ambas morrendo reúne coincidências no destino das duas – em especial na rejeição a maternidade – e claro, o descontentamento com a rotina que levam, já que ambas imaginavam que teriam linhas de vida bem diferentes.

    A forma como o roteiro de Aïnouz, Murilo Hauser e Inés Bortagaray trata a intimidade das moças é sui generis. O sexo praticado é sempre impessoal, agressivo, na maioria das vezes mal é consentido, e serve bem ao propósito do filme, de mostrar vidas falhas e trajetórias fracassadas as margens do Rio de Janeiro, um cenário bucólico e decadente, bem distante do que comumente é associada a Cidade Maravilhosa.

    As historias marginais de ambas mesmo na melancolia soam inspiradoras e belas, e mesmo os personagens com posturas que se aproximam da vilania não são registradas de maneira maniqueísta. Cada pessoa é tridimensional, tem aspectos de comportamento positivos e negativos, como qualquer ser humano comum.

    A forma delicada como se trata temas como psicose, depressão e saudade também é absurdamente positiva, as confusões sentimentais são bem pontuadas pela entrega das interpretes. Julia Stockler é deslumbrante em tela e o trabalho corporal de Carol Duarte é absurdo, ela consegue imprimir idades bem diferentes, mudando basicamente a sua postura, retratando bem a condição de uma pessoa depressiva basicamente com expressões corporais e com formas de se manter ereta.

    Mesmo os saltos temporais (bem grandes, por sinal) são bem encaixados, e mostram uma justiça tardia sendo cumprida. A Vida Invisível registra uma historia familiar conturbada, que representa bem o dia a dia dos brasileiros, que vivem entre o cuidado e o desprezo dos mais próximos, e também representa bem como a vida pode ser cruel, curta e irônica, isso tudo pontuado por atuações incríveis, mesmo em participações especiais como a de Fernanda Montenegro, que é só um dos bons desempenhos dramáticos que o filme apresenta.

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  • Crítica | Madame Satã

    Crítica | Madame Satã

    Madame Sata - Poster

    A introdução escolhida pelo cineasta Karim Aïnouz mostra o rosto de seu personagem biografado, em um close das feições enrubescidas, nos inchaços causados pelo impacto da pele alheia sobre o rosto, hematomas de brigas físicas que visavam cercear seu espírito livre. Acompanhada da forte imagem, há uma narração do relator do conto policial, que verborragicamente define todos os pecados de João Francisco dos Santos, o Madame Satã, assinalando especialmente o crime de andar com quem anda, de frequentar os lugares mais desqualificados do Rio de Janeiro acompanhado dos maiores e piores maltrapilhos cariocas, de categoria que alcançam níveis baixíssimos.

    Qualquer ato motivado pela crença na impunidade, ao ferir prostitutas, homossexuais e outros seres que habitavam o centro da Cidade Maravilhosa, é espantado pelos golpes capoeiristas do personagem. Lázaro Ramos dá vida à figura lendária dos anos 30, capturando, inclusive, nuances de comportamento contraditórios, como a de macho alfa, impositor, dono da força bruta, em paralelo à orientação homoafetiva, destruindo o estereótipo de fragilidade homofóbica, movido basicamente pela prática misógina do macho de julgar-se superior.

    O estado mental indócil do “leão de chácara” respinga em sua personalidade, revelando um homem temperamental, incapaz de conter-se ao presenciar desrespeito e desaforos proferidos a si ou aos que estão ao seu redor. A destemperança de sua alma se alastra pelas ruas do Rio, concluindo-se em confusões em bares, botecos e casas frequentadas pelos ricos. Ecos dos maus-tratos que sofreu durante a vida inteira, a rejeição causada por sua condição acumulada de pária, amalgamando o arquétipo do preto e do gay.

    Os tempos mostrados em Madame Satã eram mais simples, onde a punição ocorria somente com os secularmente excluídos. A polícia perseguia quem não tinha dinheiro, sem haver chance de defesa de quaisquer direitos se não fosse por parte dos ditos cidadãos de classe média, enquanto todo o restante era inimigo. O argumento de Karim Aïnouz e seu grupo de roteiristas é tristemente atual, retratando o quão punitiva pode ser a audácia do oprimido, com a diferença básica da figura que desacata a autoridade dos tratantes fascistas.

    A fotografia delicada de Walter Carvalho marca um mundo colorido que teima em ter gritantes colorações, apesar da névoa cinza que teima em pairar sobre as cabeças dos personagens, a alegria que predomina mesmo diante do preconceito que habita os corações e mentes dos conservadores. A direção tenaz de Aïnouz prossegue discutindo cada argumento fajuto do comum homem homofóbico, exibindo perseguições que vão além de qualquer exibição artística, mostrando que nem sempre o entretenimento é capaz de apagar a mancha que é o pensamento pequeno de quem se julga superior unicamente ao sentir atração por seres do sexo oposto.

    Os últimos momentos retratam toda a personalidade revanchista de João Francisco, fazendo o biografado retornar à cena inicial para cair na vala comum de outros assassinos, ladrões e bandidos, unicamente por dar vazão aos sentimentos reprimidos, jamais pedidos por ele, e interrompidos por agressores que tentavam em vão assassinar sua alma de artista e de homem livre.

    Ao exibir o incidente do biografado, mesmo com a pena que João sofreria, o papel do agressor é subalterno diante da boemia que predominava no ideário e rotina do personagem. No carnaval, após o cumprimento de sua sentença, o personagem ganharia de novo as ruas para enfim ter a glória brilhante que lhe era de direito, ao som de fanfarras e tamborins. Como a figura máxima do carnaval carioca, ela exibe-se já sem medo, evoluída, triunfante em gênero e sexo, como a princesa do asfalto que era. Ao contrário do que pressupõem a introdução e epílogo, não há valorização da lei ou do Estado comum sobre a identidade do homem, e sim uma ode à libertação e livre expressão da natureza sexual humana.

  • Crítica | Praia do Futuro

    Crítica | Praia do Futuro

    A nova produção dirigida e roteirizada por Karim Aïnouz – agora ao lado de Felipe Bragança – merece uma análise cuidadosa referente às intenções da obra e sua interpretação perante público e crítica. Devemos considerar que um filme como objeto de arte, a ser assistido, analisado e estudado, fornece elementos específicos, arbitrariamente selecionados, para compor as necessárias camadas da narrativa. Um procedimento que parte desde a elaboração do roteiro, como o estilo do personagem central e o foco narrativo, até elementos visuais, como decupagem, direção e fotografia.

    Sem uma divulgação da elaboração do projeto e das decisões da produção, é impossível ponderar se todas as pressuposições e inferências feitas por público e crítica foram idealizadas pela equipe. Críticos divergem quanto a totalidade interpretativa de um objetivo de arte, afirmando uns que autores compreendem linha a linha seu projeto, e outros defendendo a tese de que há sempre um leitor aleatório que pode surpreender o criador com uma análise diferenciada daquela pensada inicialmente.

    Diante destes dois primeiros e maciços parágrafos com suposições teóricas, cabe ponderar se este filme é uma história sem grande inventividade ou se funciona amparado na interpretação pessoal do público e nas inferências simbólicas de sua narrativa (Levando em conta, desde já, que é evidente que toda obra requer uma interpretação de seu espectador. Porém, há obra de maior e menor grau; um filme de ação do Michael Bay não requer o mesmo tipo de interpretação que uma arte abstrata de Jackson Pollock. Exemplos díspares que funcionam somente para situar que toda obra pede uma compreensão elucidativa).

    A Praia do Futuro é dividido em três capítulos ou atos, explicitando diferentes fases narrativas. Ao observamos que o cartaz anuncia a personagem central como um herói, inferimos tratar-se de uma história épica, um recorte sobre a jornada de um personagem. E se levarmos em conta a divisão em três capítulos, poderíamos até pressupor que a divisão de atos remete a peças clássicas da dramaturgia, compostas em atos bem distintos.

    Wagner Moura é Donato, um salva-vidas da Praia do Futuro, no Ceará, considerada uma das mais perigosas da costa. Após perder uma vida em um afogamento, a personagem encontra uma relação suficientemente forte para modificar sua vida. A tragédia é o ponto de partida para sua mudança. Graças a essa morte, o profissional do mar encontra Konrad (Clemens Schick), alemão, melhor amigo do falecido e seu companheiro de aventuras, pelo qual, após uma noite de sexo, se desperta amorosamente. O primeiro ato situa-se no Ceará, sendo o personagem alemão o estrangeiro que parece ainda mais deslocado de sua realidade natural após a morte do amigo. Um luto que diminuirá com a relação amorosa estabelecida junto ao herói-protagonista.

    Entre os supostos simbolismos da produção, a praia do futuro significaria o presente estagnado de Donato. Um homem que vive à margem da própria vida como um observador da dos outros, capaz de salvá-los mas incapaz de olhar para si mesmo como indivíduo. Em diálogo com Konrad, menciona o alto grau de sal dos mares desta praia, afirmando que, devido à maresia, é impossível viver naquele local. A praia não dá frutos e o ambiente parece cerceador de conhecimento.

    O ambiente é modificado no segundo ato, em que Donato é o estrangeiro na pátria-mãe de Konrad. Em outro habitat, excepcionalmente frio em relação ao caloroso Ceará, o conflito centra-se entre o laço primordial com o passado e sua família e o local onde vive seu amor. Uma questão existencial entre local consagrado e que lhe é confortável mas, ao mesmo tempo, parasita que o impede de seguir novos rumos. Em uma discussão sobre a covardia de Donato, o ato encerra-se com a indecisão da personagem de ficar na Alemanha ou voltar para sua terra.

    O último ato inicia-se após um salto temporal. Donato é um cidadão alemão, trabalhando em um parque aquático limpando aquários, sua maneria própria de se conectar com a água, residência da qual não quis abrir mão. Parte deste ato é marcado pela figura do irmão (Jesuíta Barbosa) como um retorno ao passado; o personagem que vem de outro local para desestruturar a ordem estabelecida. Neste caso, o irmão demonstra o passado negado por Donato à procura de sua nova vida.

    A história é uma jornada de autoconhecimento de uma personagem que deixa seus laços para fundamentar e dar vazão a suas vontades e desejos. Os três atos partem da paralisia, seguindo para a mudança e a afirmação. Sob este aspecto, a homossexualidade da personagem é mais um laço dramático da trama. Este recurso leva em consideração o mundo dividido entre aceitar ou não casais homossexuais, questão acompanhada de estúpidos preconceitos enraizados. Bem situado na história, este elemento é mais uma característica da jornada de Donato, um descobrimento dentre tantos outros.

    A condução dos três atos é feita de maneira aberta, apresentando as situações sem delineá-las por completo. Uma história contada à meia luz. Ao público, cabe analisar a obra em duas vertentes principais: se trata-se de uma trama aberta e repleta de simbolismo ou uma simples história de jornada e transformação.

    Dentro da análise simbólica, em que muitos retiraram das cenas, objetos, falas, nomes, apelidos maneiras de metaforizar o recuo diante da aceitação de seus próprios caminhos, observamos uma história bonita e poética, repleta de signos inseridos em cena que necessitam da interpretação do público. Porém, se vista sob uma ótica mais simples, porém não diminuta, de um salva-vidas que não enxerga a si e vai de encontro ao mundo para se conhecer, temos uma produção com um apuro técnico excelente, mas com um roteiro insuficiente se comparada a diversas outras jornadas de autoconhecimento que o cinema proporcionou nos últimos anos – dentre elas o filme chileno Gloria e o dinamarquês Deixe a Luz Acesa.

    O que nos faz retomar a indagação inicial: como compreender uma produção se, em sua realização, as escolhas ambíguas foram propositais para que mais de uma interpretação surgisse entre público, crítica e afins? A obra precisaria necessariamente de uma interpretação ativa do público, leitor de signos, para alcançar sua intenção? Ou talvez a demasia deste signos propõe uma erudição falsa para esconder uma trama simples? É a questão que toca a indefinição da arte. Não há nenhuma resposta plausível.

    Dessa forma, a produção parece um exercício interpretativo, como uma casa de espelhos ou um caleidoscópio infantil. Interpreta-se da maneira que a vê. E, sendo assim, nenhuma unidade crítica seria capaz de abarcar a intenção dos realizadores em relação à obra.

    Por fim, diante da polêmica que deu certa popularidade ao filme, de espectadores saindo durante as sessões por conta da relação homossexual em cena, absurdo é o único comentário que pode ser feito. Nenhuma das cenas em questão é inédita no meio – o próprio Deixe a Luz Acesa citado apresenta cenas semelhantes –, e tais cenas são, por si só, bem dirigidas e interpretadas, belas em sua demonstração carnal de amor, não importando quaisquer sexos envolvidos. Um destaque sem razão para uma trama que espera muito mais de sua audiência. Uma produção que parece mais um convite à analise interpretativa do que uma narrativa composta tradicionalmente de começo, meio e fim.