Tag: Jesuíta Barbosa

  • Crítica | O Grande Circo Místico

    Crítica | O Grande Circo Místico

    A nevoa envolve o início de O Grande Circo Místico, o último filme de Carlos Cacá Diegues, após um hiato de 12 anos sem fazer ficção. Logo, é mostrada uma família tradicional, que tem contato com uma imperatriz misteriosa, apresentando Fred (Rafael Lozano), um rapaz que não gosta daquela companhias e quer ir até um circo underground, que mais parece um cabaré, ver as atrações belas e volúveis do lugar.

    A inconformidade dele engana.  O filme parece ter uma boa premissa e uma boa historia para contar, logo é mostrado ele extremamente apaixonado por Beatriz (Bruna Linzmeyer), além de dar vazão a uma historia de origem bem pitoresca, fato que lhe dá condições de ter um presente qualquer para si. Sua escolha é a de cumprir o sonho de sua amada, e ele monta um circo, com todo o elenco da casa de shows burlescos.

    Há uma clara tentativa do roteiro de Diegues, George Moura e Jorge de Lima de soar poético, a historia tem grandes saltos temporais, levando sempre em consideração a estética e vocação circense, mas a artificialidade de diálogos, das ações e principalmente do mestre de cerimônias Celavi vivido por Jesuíta Barbosa faz com que toda a fantasia pareça patética e ridícula, uma tentativa de poesia que não dá certo, com números musicais de qualidade  questionável, não pelas músicas, e sim pelo que é mostrado em tela junto a trilha.

    O roteiro passa pelas gerações da família que detém os direitos do circo que dá nome ao filme, mas o lugar não é um personagem, não tem peso na historia, e as historias vão ficando cada vez mais desinteressantes, sem falar no personagem de Jesuíta, que parece ter um envelhecimento retardado, cuja razão desse fato não se fala em nenhum momento, além de não dar importância se ele é um ser místico/mágico ou não.

    Diegues não consegue traduzir em tela a mágica que tencionou para o filme, esbarra numa historia repleta de músicas bonitas na trilha, mas também em uma hiper sexualização das personagens femininas, além de fazer uso de um Chroma Key tão mal encaixado que torna grotescas todas as cenas que usa. Seu final é tão patético na tentativa de parecer poético e esbarra tanto num fracassado esforço no intuito de parecer uma versão brazuca dos filmes de Federico Fellini que faz irritar quem o assiste, tornando a escolha dele para representar o Brasil na disputa do Oscar de melhor filme estrangeiro algo tétrico, para dizer o mínimo.

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  • Crítica | Deslembro

    Crítica | Deslembro

    Filme emotivo de Flavia Castro, responsável pela direção do documentário Diário de Uma Busca (esse também um filme sobre a época da Ditadura Militar), Deslembro é a primeira ficção em longa-metragem da cineasta, e começa mostrando uma família em colapso, a começar pelos filhos, com crianças e com a adolescente Joana, vivida por Jeanne Boudier. As crianças, que conversam normalmente em francês recebem a notícia de que vão para o Rio de Janeiro, e isso aflige especialmente a primogênita, que perdeu seu pai durante a repressão.

    É curioso a forma que Castro escolher contar a história. O roteiro tem tons agridoces, mistura uma abordagem via olhos infantis com o despertar da puberdade, embalados normalmente pelos clássicos da banda The Doors, cujo vocalista e principal símbolo morreu bastante jovem, tal qual boa parte dos reprimidos da época do regime ditatorial, entre eles, o pai de Joana, que é feito por Jesuíta Barbosa.

    Durante a exibição, em todo tempo se nota um caráter e uma vontade de soar emocional e terno, e o filme realmente consegue acertar muito nesses tons e ainda sem descuidar do registro histórico. A forma como é mostrada uma família que sofreu com a perda de entes queridos durante os anos de chumbo é bastante avassalador, e nesse ponto, destacam-se Sara Antunes, que faz a mãe de Joana, uma mulher que possui uma distância bastante comum entre gerações que não tem tanta diferença de idade entre si, e também Eliane Giardini, que vive a vó de Joana e a mãe do rapaz que morreu. Aqui se vê uma intimidade em que o sentido gira em torno do saudosismo de quem elas perderam, e Giardini brilha demais, não só roubando a cena como fazendo uma escada para Boudier brilhar, apesar desse ser um dos seus primeiros grandes papéis no cinema.

    O sufoco e a espera pela morte funcionam quase como entidades, como espíritos que assombram as mulheres e homens apresentados em tela. O clima de confessionário do destino também impera, já que Joana busca se culpar pelo que aconteceu ao seu pai para talvez impedir seu padrasto de seguir em uma missão onde não sabe se voltará vivo. Aqui se repara em uma das idéias mais presentes no texto de Castro, que é a repetição de ciclos, das figuras paternas de Joana, assim como as semelhanças não só físicas, mas também emocionais e de caráter entre filha, mãe e avó.

    É impressionante como Deslembro funciona perfeitamente como uma ode a ausência. As incertezas de Joana, de sua mãe e avó sobre o destino final de Guilherme/Eduardo (que tinha um nome duplo por conta dos disfarces) sobre como aconteceu sua queda e sobre a questão emocional dele ter sofrido ou não nos últimos momentos é impressionante, pois cada geração absorve isso de uma forma, e Castro traz um resultado muito bom dessa exploração, pois todas fazendo sentido, e tocam a alma de quem assiste a obra.

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  • Crítica | Torquato Neto: Todas as Horas do Fim

    Crítica | Torquato Neto: Todas as Horas do Fim

    Narrado pelo ator Jesuíta Barbosa, Torquato Neto: Todas as Horas do Fim é mais um belo exemplar da recente onda de documentários biografias de personalidades intelectuais brasileiras, tal qual Henfil, Silêncio no Estúdio e A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro, que ajudam a remontar o passado do pensamento e poesia nacional. O modo como se conta a historia do poeta piauiense imita um pouco o seu estilo de escrita, variando entre cenas de arquivo do próprio e cenas experimentais, de escorpiões passando por paisagens ermas, basicamente para referenciar seus textos.

    Os diretores Marcus Fernando e Eduardo Ades (Crônica da Demolição) unem a bela atuação de Jesuíta a imagens do cinema popular brasileiro, usando Macunaíma e outros filmes contemporâneos com base para ocupar as lacunas que não são ocupadas pelas fotos e outros registros de Torquato. Já no início se percebe um caráter extremamente emocional do longa.

    O retrato pintado no filme é bastante detalhado, em especial pelos relatos de seus amigos artistas do nordeste, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros, entre eles, políticos como Moreira Franco. Ali, se desenha sua importância como pioneiro do movimento tropicalista e como influencia junto aos baianos e outros companheiros, mas também é estabelecida ali o sentimento melancólico que algumas vezes imperava sobre seu comportamento, e que seria um colaborador influente demais para seu fim prematuro.

    A trilha sonora ajuda muito a ambientar o espectador na historia de Torquato. Todo o ideal dele, tropicalista ou não é muito bem pontuado pelas músicas escolhidas. Ao fim do documentário, se tem a sensação de perda da vida breve que o personagem principal tinha, e essa emulação de sentimento não é tão comum em meio aos filmes documentais, fazendo desse Torquato Neto: Todas as Horas do Fim uma pequena pérola em meio ao circuito documental.

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  • Crítica | Reza a Lenda

    Crítica | Reza a Lenda

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    A estreia de Homero Olivetto como diretor é bastante curiosa. Seu background é como roteirista, e sua obra mais conhecida anteriormente era Bruna Surfistinha, de Marcus Baldini. Reza A Lenda tem uma ligação extrema com o filme já citado, não em temática, mas em produção, já que Baldini é um dos produtores do longa-metragem. A comparação mais justa é com o recente Dois Coelhos, de Afonso Poyart, no sentido de tentar emular uma estética pouca vista no cinema nacional e utilizada sem restrições no cinemão comercial. O roteiro de Olivetto, Patrícia Andrade e Newton Canitto explora o estigma de uma terra sem lei, onde há uma temível luta por sobrevivência por parte de um grupo de jovens que busca trazer a chuva para as áridas paisagens do nordeste interiorano brasileiro. Segundo o mentor e líder Pai Nosso (Nanego Lira), baseado em profecias antigas, as torrentes de água só viriam por meio de um milagre, de uma santa localizada em um ponto desconhecido, sabido somente por um mago do deserto chamado Galego Lorde (Júlio Andrade). A missão de Ara (Cauã Reymond) e seu grupo de motoqueiros é intervir junto ao bruxo e seguir as estranhas instruções dele.

    A gravidade está na posse do ídolo, uma vez que o artigo é um souvenir do poderoso coronel Tenório (Humberto Martins), um tradicional manda-chuva da região, violento e autoritário ao extremo. Durante o percurso da jornada, o grupo de motoqueiros que acompanha Ara se vê em posições complicadas, repletas de contravenções, raptos e atos de moral discutível. Nesse ínterim, eles tomam como refém a jovem e bela Laura, vivida por Luisa Arraes, o que causa ciúmes na personagem de Sophie Charlotte, Severina, mulher do líder do bando.

    A ambientação no sertão nordestino e o figurino de maltrapilhos dos personagens fazem o longa ter algumas semelhanças imagéticas com a franquia Mad Max, comparação essa fortificada pelo clima apresentado no trailer. Já nas primeiras cenas de ação o estigma é contrariado, uma vez que a situação de caos não parece ser global, e sim localizada em um pequeno trecho daquela paragem, fazendo daquele lugar quase como uma pátria independente, esquecida por Deus, pelas autoridades e pelos forasteiros. A boa intenção de produzir tal isolamento esbarra num montante de sotaques mal construídos, forçados ao extremo, parecidos com a multiplicidade inexistente no repertório de ator de Tony Ramos, maximizado e distribuído por quase todo elenco. Poucas atuações passam impunes a isto, exceção, claro, a Nanego Lira e Jesuíta Barbosa.

    O longa consegue driblar a possível imitação barata produzida pela expectativa pré-filme, mas se perde em um amontoado de clichês e ideias bobas de argumento. A base dos problemas locais é real e a discussão poderia se aprofundar, mas não há harmonia entre o curioso modo de contar a história e a real problemática da região nordestina, que há anos sofre com o estado de secura e dificuldade de irrigação de plantações e demais instalações rurais.

    Somente fugir do fiasco é pouco para um produção que buscava ser um diferencial no circuito brasileiro mainstream, no entanto a qualidade da fotografia e a direção de arte fazem salvar um pouco o todo de Reza A Lenda, que evolui o conceito de filme de gênero tentado por Operações Especiais, principalmente por não conter um sub-texto tão risível e preconceituoso. A trilha sonora prejudica também a imersão na história e o acréscimo do fator fé é mostrado de modo bobo, causando risos ao invés de gerar empatia no drama dos personagens. A direção de Olivetto é competente, o que gera expectativas sobre seus futuros trabalhos, fazendo desse o aspecto mais positivo da produção, sem dúvida, além é claro da atuação de Martins, Andrade e de Lira.

  • Crítica | Jonas

    Crítica | Jonas

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    Estreante na feitoria de longas-metragens, após um bom período como produtora e assistente de direção, Lê Politi apresenta seu Jonas, um filme que remonta elementos da fábula cristã em uma nova roupagem, mais atual, brasileira e claro, sexual. O roteiro de Politi e Élcio Verçosa tem por base a antiquada questão do amor impossível entre pessoas de classes distintas, usando o personagem-título, filho de empregada, como possibilidade romântica da jovem patroa.

    Jonas é vivido por Jesuíta Barbosa, ator que está cada vez mais à vontade no cenário de cinema mainstream brasileiro. O drama paulista flerta levemente com a luta de classes, artifício que serve, claro, de despiste. Curioso é notar que o personagem de Jesuíta permanece com os olhos arregalados o tempo inteiro, talvez por erro da condução, mas que, diante de todo o cenário tragicômico da fita, torna-se até charmoso, abrindo inclusive a possibilidade de este comportamento ser algo premonitório.

    Depois do encontro com Branca (Laura Neiva), e após uma série de flertes, Jonas se vê em meio a uma situação absurda, envolvendo a famosa participação do rapper Criolo (em um dos papéis mais hilariantes do filme), fato que muda completamente o cenário e, claro, as atitudes dos homens. Além da óbvia comparação com a história do profeta foragido bíblico, há um bocado de Pierrot e Colombina no drama mostrado em tela, além de claras alusões ao roteiro de Quentin Tarantino, Amor à Queima-Roupa.

    No último terço há uma clara subida de carisma dos personagens, especialmente de Ariclenes Barroso, que vive Berro, um dos traficantes locais que protagoniza a melhor cena junto a Ana Cecília, quando em ameaça destila um diálogo engraçadíssimo, carregado de espirituosidade. Outro personagem que rouba para si o protagonismo é o jovem Jander, vivido pelo ator mirim Luam Marques, que consegue causar nos espectadores uma sensação de absoluta simpatia e interesse, especialmente por suas tiradas e verborragia pouco observadas nas crianças. Os diálogos bem urdidos fazem lembrar as ótimas conversas presentes nos scripts de Braulio Mantovani em Tropa de Elite e Cidade de Deus, não na gravidade, evidentemente, mas no aspecto de usar frases de efeito curiosas.

    O desfecho de Jonas e dos seus é semelhante ao que aconteceu em toda a sua vida, usando o carnaval paulista e a vida suburbana como background, o que faz toda a tragédia ganhar até mais significado. De fato o argumento não é um primor, mas é certamente compensado pelo tom e pelas atuações dos coadjuvantes, que ofuscam o desempenho pouco convincente de Neiva enquanto protagonista feminina, resultando Jonas em um filme divertido, semelhante aos clássicos de Grande Otelo e Mazzaropi, não em formato, mas bastante em magnetismo humorístico.

  • Crítica | Praia do Futuro

    Crítica | Praia do Futuro

    A nova produção dirigida e roteirizada por Karim Aïnouz – agora ao lado de Felipe Bragança – merece uma análise cuidadosa referente às intenções da obra e sua interpretação perante público e crítica. Devemos considerar que um filme como objeto de arte, a ser assistido, analisado e estudado, fornece elementos específicos, arbitrariamente selecionados, para compor as necessárias camadas da narrativa. Um procedimento que parte desde a elaboração do roteiro, como o estilo do personagem central e o foco narrativo, até elementos visuais, como decupagem, direção e fotografia.

    Sem uma divulgação da elaboração do projeto e das decisões da produção, é impossível ponderar se todas as pressuposições e inferências feitas por público e crítica foram idealizadas pela equipe. Críticos divergem quanto a totalidade interpretativa de um objetivo de arte, afirmando uns que autores compreendem linha a linha seu projeto, e outros defendendo a tese de que há sempre um leitor aleatório que pode surpreender o criador com uma análise diferenciada daquela pensada inicialmente.

    Diante destes dois primeiros e maciços parágrafos com suposições teóricas, cabe ponderar se este filme é uma história sem grande inventividade ou se funciona amparado na interpretação pessoal do público e nas inferências simbólicas de sua narrativa (Levando em conta, desde já, que é evidente que toda obra requer uma interpretação de seu espectador. Porém, há obra de maior e menor grau; um filme de ação do Michael Bay não requer o mesmo tipo de interpretação que uma arte abstrata de Jackson Pollock. Exemplos díspares que funcionam somente para situar que toda obra pede uma compreensão elucidativa).

    A Praia do Futuro é dividido em três capítulos ou atos, explicitando diferentes fases narrativas. Ao observamos que o cartaz anuncia a personagem central como um herói, inferimos tratar-se de uma história épica, um recorte sobre a jornada de um personagem. E se levarmos em conta a divisão em três capítulos, poderíamos até pressupor que a divisão de atos remete a peças clássicas da dramaturgia, compostas em atos bem distintos.

    Wagner Moura é Donato, um salva-vidas da Praia do Futuro, no Ceará, considerada uma das mais perigosas da costa. Após perder uma vida em um afogamento, a personagem encontra uma relação suficientemente forte para modificar sua vida. A tragédia é o ponto de partida para sua mudança. Graças a essa morte, o profissional do mar encontra Konrad (Clemens Schick), alemão, melhor amigo do falecido e seu companheiro de aventuras, pelo qual, após uma noite de sexo, se desperta amorosamente. O primeiro ato situa-se no Ceará, sendo o personagem alemão o estrangeiro que parece ainda mais deslocado de sua realidade natural após a morte do amigo. Um luto que diminuirá com a relação amorosa estabelecida junto ao herói-protagonista.

    Entre os supostos simbolismos da produção, a praia do futuro significaria o presente estagnado de Donato. Um homem que vive à margem da própria vida como um observador da dos outros, capaz de salvá-los mas incapaz de olhar para si mesmo como indivíduo. Em diálogo com Konrad, menciona o alto grau de sal dos mares desta praia, afirmando que, devido à maresia, é impossível viver naquele local. A praia não dá frutos e o ambiente parece cerceador de conhecimento.

    O ambiente é modificado no segundo ato, em que Donato é o estrangeiro na pátria-mãe de Konrad. Em outro habitat, excepcionalmente frio em relação ao caloroso Ceará, o conflito centra-se entre o laço primordial com o passado e sua família e o local onde vive seu amor. Uma questão existencial entre local consagrado e que lhe é confortável mas, ao mesmo tempo, parasita que o impede de seguir novos rumos. Em uma discussão sobre a covardia de Donato, o ato encerra-se com a indecisão da personagem de ficar na Alemanha ou voltar para sua terra.

    O último ato inicia-se após um salto temporal. Donato é um cidadão alemão, trabalhando em um parque aquático limpando aquários, sua maneria própria de se conectar com a água, residência da qual não quis abrir mão. Parte deste ato é marcado pela figura do irmão (Jesuíta Barbosa) como um retorno ao passado; o personagem que vem de outro local para desestruturar a ordem estabelecida. Neste caso, o irmão demonstra o passado negado por Donato à procura de sua nova vida.

    A história é uma jornada de autoconhecimento de uma personagem que deixa seus laços para fundamentar e dar vazão a suas vontades e desejos. Os três atos partem da paralisia, seguindo para a mudança e a afirmação. Sob este aspecto, a homossexualidade da personagem é mais um laço dramático da trama. Este recurso leva em consideração o mundo dividido entre aceitar ou não casais homossexuais, questão acompanhada de estúpidos preconceitos enraizados. Bem situado na história, este elemento é mais uma característica da jornada de Donato, um descobrimento dentre tantos outros.

    A condução dos três atos é feita de maneira aberta, apresentando as situações sem delineá-las por completo. Uma história contada à meia luz. Ao público, cabe analisar a obra em duas vertentes principais: se trata-se de uma trama aberta e repleta de simbolismo ou uma simples história de jornada e transformação.

    Dentro da análise simbólica, em que muitos retiraram das cenas, objetos, falas, nomes, apelidos maneiras de metaforizar o recuo diante da aceitação de seus próprios caminhos, observamos uma história bonita e poética, repleta de signos inseridos em cena que necessitam da interpretação do público. Porém, se vista sob uma ótica mais simples, porém não diminuta, de um salva-vidas que não enxerga a si e vai de encontro ao mundo para se conhecer, temos uma produção com um apuro técnico excelente, mas com um roteiro insuficiente se comparada a diversas outras jornadas de autoconhecimento que o cinema proporcionou nos últimos anos – dentre elas o filme chileno Gloria e o dinamarquês Deixe a Luz Acesa.

    O que nos faz retomar a indagação inicial: como compreender uma produção se, em sua realização, as escolhas ambíguas foram propositais para que mais de uma interpretação surgisse entre público, crítica e afins? A obra precisaria necessariamente de uma interpretação ativa do público, leitor de signos, para alcançar sua intenção? Ou talvez a demasia deste signos propõe uma erudição falsa para esconder uma trama simples? É a questão que toca a indefinição da arte. Não há nenhuma resposta plausível.

    Dessa forma, a produção parece um exercício interpretativo, como uma casa de espelhos ou um caleidoscópio infantil. Interpreta-se da maneira que a vê. E, sendo assim, nenhuma unidade crítica seria capaz de abarcar a intenção dos realizadores em relação à obra.

    Por fim, diante da polêmica que deu certa popularidade ao filme, de espectadores saindo durante as sessões por conta da relação homossexual em cena, absurdo é o único comentário que pode ser feito. Nenhuma das cenas em questão é inédita no meio – o próprio Deixe a Luz Acesa citado apresenta cenas semelhantes –, e tais cenas são, por si só, bem dirigidas e interpretadas, belas em sua demonstração carnal de amor, não importando quaisquer sexos envolvidos. Um destaque sem razão para uma trama que espera muito mais de sua audiência. Uma produção que parece mais um convite à analise interpretativa do que uma narrativa composta tradicionalmente de começo, meio e fim.

  • Crítica | Tatuagem

    Crítica | Tatuagem

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    Após uma série de (bons) curtas-metragens, como Simião Martiniano: O Camelô do Cinema e Mata Adentro – e uma leva de colaborações como roteirista, entre eles Árido Movie, Baixio das Bestas e Amarelo Manga, Hilton Lacerda retorna com a realização de longas-metragens – o que não ocorria desde Baile Perfumado, de 1977 – com o polêmico drama Tatuagem, cuja temática e o viés contestatório são muitíssimos atuais.

    Na primeira fala de Clécio Wanderley, personagem de Irandhir dos Santos, está presente o que seria a tônica do filme. Seu grito é um brado que preconiza uma das poucas armas dos marginalizados personagens, que infelizmente têm muitos iguais a si na realidade contemporânea. O deboche constitui uma das poucas armas cabíveis aos sempre “caçados” homens que amam outros homens. O bom humor consegue cooptar até alguns dos pensamentos mais conservadores. A despeito disso, a iconografia visual escolhida por Lacerda usa alguns signos fálicos que remetem à “preferência” de seus heróis, sem qualquer receio ou rastro de pudor. O roteiro é usado livremente e sem medo de chocar, ao contrário da atitude subserviente e condizente com o discurso conservador e moralista.

    O grupo Chão de Estrelas reúne os mais diversos artistas, de diferentes grupos sociais e orientações sexuais. A ambição é grande, a despeito da época da produção – 1978, com a Ditadura ainda em voga – e também do pouco orçamento com que dispunha. Mesmo com tudo isso, o conteúdo de seus shows – largamente expostos em tela – tem conteúdo político e econômico bastante crítico e conteste.

    A sintonia entre a arte e libertação sexual é mostrada de modo sensível, leve – essa tônica é um dos melhores pontos da obra, é emotivo sem perder o tom. Mesmo nos momentos onde a nudez é explícita, esta é feita de modo natural, passando longe de ser panfletário ou gratuitamente expositivo. Quando Fininha (Jesuíta Barbosa), um jovem militar, aquartelado, com um background confuso, como mostrado em cena anteriormente, adentra o ambiente do grupo artístico, há um pequeno confronto entre dois mundos, duas ideologias que aos poucos vão se dobrando, uma a uma. O que antes era uma dúvida torna-se uma certeza, e Fininha, enfim, se entrega ao torpe prazer que tanto negava a si mesmo, sem culpa, longe de olhares inquisitivos, em um mundo completamente invertido do que lhe era comum. Após as cenas singelas, ele volta ao seu quartel, passa por um corredor polonês – a punição não tardaria, a fantasia para si ainda era algo temporário, distante de sua rotina.

    Aos poucos, o tecido da realidade é arranhado, o preconceito e a diferenciação de tratamento são expostos de ao menos duas formas: uma com o filho de Clécio, que sofre problemas na escola, e com Fininha, que é encarado por alguns dos integrantes da trupe como a presença do Regime, a repressão, o cumprimento das ordens do Exército, o que o faz ser tachado até de infiltrado. Após ter de ouvir tudo isso, Fininha vai a uma reunião familiar, cercado de senhoras que falam sobre pecado, castigo divino e moléstia, funcionando como abutres, que voam sobre a carne pútrida, valorizando conceitos retrógrados, requentando questões constrangedoras, moralistas e medievais.

    Como era de se esperar, a censura enquadrou o espetáculo do Chão de Estrelas, mas o grupo tenta lutar. De modo bravo, ostenta as suas apresentações inclusive com o acréscimo de Fininha. Mas uma das noites é interrompida pela ação da polícia, o que obviamente acaba com a carreira militar do enclausurado moço. Ele migra para São Paulo e até tenta manter contato com sua família, mas deles recebe reprimendas, faces descontentes e decepcionadas pelo flagrante desejo que incorria em seu coração.

    O final, mostrando a feitoria de um filme, serve como recurso metalinguístico da própria realização de Hilton Lacerda, responsável pela direção, roteiro e argumento. Tatuagem é uma ode à libertação, não somente da sexualidade, mas também da alma, do espírito e do sentimento, que por vezes é enclausurado pelo social. Lacerda faz tudo isso de modo sentimental, sem descuidar da verossimilhança e da triste realidade repleta de preconceitos. É uma das demonstrações do que o cinema brasileiro é capaz de alcançar.