Autor: Thiago Augusto Corrêa

  • Crítica | 007: Sem Tempo para Morrer

    Crítica | 007: Sem Tempo para Morrer

    Após um grande início adaptando uma obra de Ian Fleming com Cassino Royale; uma sequência sem roteiro devido às greves de roteiristas em Quantum of Solace; uma queda e ascensão dividida entre tradição e o moderno de Operação Skyfall e a retomada da estrutura clássica em 007 Contra Spectre, o longevo personagem James Bond, personificado pela quinta e última vez por Daniel Craig, tem sua missão derradeira em 007: Sem Tempo Para Morrer.

    Finalizando a passagem do britânico pelo personagem, a produção do vigésimo quinto filme de James Bond foi carregada com uma maior expectativa do que suas predecessoras. O último filme com Craig, marco numérico sempre destacado pela mídia, foi marcado por entraves internos e externos à sua produção.

    A princípio, Danny Boyle foi escalado como diretor, mas se justificando com o batido “divergências criativas” abandonou a produção e, em seu lugar, Cary Joji Fukunaga assumiu a cadeira, tornando-se o primeiro americano a dirigir uma produção Bond. Com a mudança, o início das filmagens foi reagendado para abril de 2019 e a estreia programada para abril de 2020. Naturalmente, a necessidade do distanciamento social deixou o lançamento em espera até setembro desse ano quando grande parte do mundo possui uma estrutura mínima para, munidos de vacinas e máscaras, estar no conforto do cinema sem correr risco de vida. O risco, aliás, fica por conta do próprio personagem central.

    O início da nova trama se situa após os acontecimentos de Spectre e resume os elementos que definiram o novo Bond. Aposentado em um lugar idílico, ao lado de Madeleine Swann (Léa Seydoux), dá vazão aos laços sentimentais até o inevitável momento em que o passado retorna, explosivo. A grande cena de ação inicial é intensa, extremamente física, bem equilibrada entre a coreografia e um realismo possível, mantendo vigente a estética fundamentada por A Identidade Bourne e reverenciada pela versão de Craig. A cena intensa demonstra algo que o público da primeira temporada de True Detective já sabe: Fukunaga constrói cenas de ação com habilidade. A cena inicial injeta adrenalina antes da canção que abre o longa, No Time To Die de Billie Eilish.

    Após os créditos de abertura, a trama salta cinco anos no futuro. Como desenhado desde a produção anterior, é a tradição que rege essa aventura final. Se no enredo anterior se descobre que as intrigas foram orquestradas pelo SPECTRE, aqui outro elemento tão poderoso quanto surge em cena, contrabalanceando as forças, mas com objetivos semelhantes: a vingança e a destruição mundial, características comuns da maioria dos vilões megalomaníacos da franquia.

    Se em composições anteriores Bond pareceu um homem sem amarras, o personagem da geração 2000, composto de forma seriada em cinco produções, é formado com maior coesão cronológica e emocional. As perdas são lembradas com sentimento e dor e trazem a evidente constatação de que é necessário desapegar do passado para seguir, embora o passado profissional e as missões anteriores nunca fiquem, de fato, no passado. Entre o equilíbrio pessoal e emocional, e a frieza das missões cumpridas se destaque um personagem central que além da camada de espionagem, dos carros luxuosos, do esnobismo britânico e do diálogo feito de punhos, uma mensagem boba e simples de que os brutos também amam, sim.

    Em entrevista a GQ em 2020, o ator afirmou que elevou o nível do personagem para outros. Sem dúvida, o sucesso da franquia se deve a sua capacidade de manter suas estruturas básicas, mas, na medida do possível, se adaptar a novos formatos narrativos. Sob esse aspecto, talvez a era Craig tenha sido a modificação mais inventiva de Bond. Trouxe não apenas novas camadas trágicas aos personagens como também a possibilidade de quebrar a forma física do agente, pois, lembrem-se, o ator foi criticado no início por seu físico e por ser loiro demais. Foram modificações como essas que permitiram que Lashana Lynch surgisse em cena como a primeira 007.

    Sem Tempo Para Morrer é um falso título porque em um filme cuja missão é ser um desfecho a uma versão de Bond, tudo é uma celebração final. Em tudo há certo tom de morte e despedida como amigos que se desencontram, arqui-inimigos que se vão e, querendo ou não, não há nada de novo nessa narrativa. Mas, sim, uma conclusão natural de uma história iniciada em 2005 e que encerra seus enredos e o legado de Craig no papel.

    O ator e sua modéstia têm razão. O marco deixado em sua passagem será um desafio à execução do próximo Bond. Mas também abriu espaço para que novas facetas sejam exploradas, sem medo de reinvenções e sem o excesso de amarras da tradição. Como um personagem com maior aptidão para se reinventar, os produtores Michael G. Wilson e Barbara Broccoli devem ter algumas cartas na manga para o futuro dessa nova Bond.

  • Resenha | O Deus das Avencas – Daniel Galera

    Resenha | O Deus das Avencas – Daniel Galera

    Após uma sequência dedicada a narrativas longas, Daniel Galera reúne três novelas em O Deus das Avencas, lançamento da Companhia das Letras. Se sua obra anterior, Meia-Noite e Vinte, radiografava a geração de 1990, nesse novo livro as narrativas se estruturam a partir do tempo presente e se deslocam a um futuro árido.

    O trabalho do último livro, resultou em um cansaço inédito em sua carreira. Na cabine de leitura do livro, promovida pela editora, o escritor mencionou um período de latência em que duvidava da própria narrativa. O natural distanciamento temporal lhe trouxe novas experiências e ideias esboçadas, culminando nas três narrativas presentes.

    Situada em um passado recente, inesquecível pelos brasileiros, a novela O Deus das Avencas, que intitula o livro, é bem executada nas angústias internas e externas. A trama contrapõe um casal cujo filho demora a nascer, em um trabalho de parto ansioso que adentra um final de semana. O mesmo final de semana do dia da eleição de 2020 culminando nos rumos atuais do país. A contraposição entre felicidade interna sobre a composição da família e um caos prestes a ser instaurado na política é preciso.

    Como seus personagens, Galera amadureceu e, nessa narrativa, versa sobre a experiência paternal levada ao extremo, analisada sob o legado parental, indagando-se qual o futuro será das próximas gerações? Não há nenhum conceito implícito nas entrelinhas. Mas sim, a tensão de um rebento que, como um mentalista metafórico, reconhecendo um futuro tenebroso, quase se recusando a nascer.

    Já na segunda novela, Tóquio, o escritor explora uma vertente nova em sua narrativa. Ao apresentar um futuro desolado, dialoga com a tradição da ficção científica mas não perde o foco sobre o Brasil e o tempo presente. O elemento mais incômodo da trama é o fator realista como se vislumbrássemos um futuro que está logo ali. Ao contrário de muitas narrativas especulativas que inserem a inteligência artificial como uma tecnologia perfeita, a narrativa aborda um futuro em que a transferência de mentes é disfuncional, mas um dos poucos contatos existentes entre famílias e o passado conhecido. Some a isso um mundo arruinado, em grande parte destruída pela estupidez humana, e o cenário está completo.

    Fechando a trinca, Bugônia prossegue em mais um passo rumo a um futuro longínquo em que a devastação mundial traz o retorno do primitivismo e reacende a importância da natureza como harmonia. Com valores reestruturados em uma sociedade tribal, porém, o medo do desconhecido ainda se mantém. De certa forma, demonstrando como, independente dos ciclos, os humanos se mantém em vício.

    As três narrativas, embora sem compartilhar o mesmo universo, seguem uma estrutura temporal evidente. Como se previsse possíveis destruições a partir das tensões atuais, tanto na falência dos ecossistemas como nas rupturas políticas.

    Além do espaço temporal, outra unidade evidente é a narrativa de Galera, madura e precisa, mantendo um bom ritmo narrativo e se aprofundando em personagens envolventes e ricas ambientações. A todo momento, o senso de realidade em suas linhas esmaga o leitor. Como um pessimista, o autor nos convida a contemplar três narrativas sobre o fim, seja o esgarçamento moral de nossa nação, a liquidez das relações sociais ou o mundo como o conhecemos. No inevitável apagar das luzes, ainda resta a ficção. Ou quase.


  • Resenha | Júlia – Aventuras de uma Criminóloga: O Crime Negado

    Resenha | Júlia – Aventuras de uma Criminóloga: O Crime Negado

    Iniciado em media res, técnica literária em que a narrativa se desenvolve a partir do meio da história, a ação marca o início da 17ª trama de Júlia – Aventuras de uma Criminóloga. Após uma ótima perseguição que se encerra no metrô, o assassino Murphy é pego pela equipe de Garden City. Procurado por uma série de estupros seguidos de morte, o homem nega um dos crimes do qual é acusado, e Júlia será a responsável por descobrir quem imitou seu modus operandi.

    Literariamente falando, a presença de um serial killer sempre é um motivo de destaque na narrativa policial. Em Julia, não poderia ser diferente, já que sua estreia foi marcada por uma assassina, Myrna, grande vilã, presente em muitas narrativas futuras. Mesmo que os roteiros apresentem uma gama de crimes investigados, uma trama com um assassino serial sempre conquista a atenção rapidamente.

    Em Crime Negado, porém, não é o assassino e sua pulsão o grande foco. Mas sim, a procura pelo autor do sexto crime. Em outras palavras, a narrativa demonstra como o senso de justiça não se estabelece por aproximação ou no atacado. Cada crime merece punição específica.

    Como costumeiro nos roteiros de Giancarlo Berardi, a condução da trama e os personagem em cena são ecos da sociedade. Como Julia sempre traça um perfil psicológico tanto de agressores, quanto das vítimas, o leitor contempla um panorama das relações sociais e lados obscuros de cada um, resultado em narrativas ricas que fogem do escapismo. Nessa trama, os fetiches são combustíveis que tanto podem relevar o crime, quanto esboçam que há sempre segredos guardados na intimidade.

    Essa história foi também o último trabalho desenhado pelo argentino Gustavo Trigo, uma produção inacabada devido a sua morte. Assim, o capista Marcus Soldi e Eni finalizaram as artes para a publicação.

  • Resenha | Batman: De Volta à Sanidade

    Resenha | Batman: De Volta à Sanidade

    A tensão existente entre o Cavaleiro das Trevas e o Coringa, seu arqui-inimigo, é uma das estruturas mais sólidas do universo do morcego. O peso do vilão sempre o transforma em uma grande estrela narrativa com ausências e retornos esporádicos. Entre uma saga e outra, cada roteirista específica uma métrica na abordagem.

    Há aparições definitivas estruturadas desde o início como eventos épicos, caso de A Piada Mortal de Allan Moore, outras que causaram polêmica na época de seu lançamento e marcaram as revistas mensais (A Morte de Robin) e assim seguem outros exemplos como A Morte da Família e o recente a Guerra dos Coringas.

    De Volta à Sanidade, com roteiro de J.M. DeMatteis é um bom produto de sua época. Lançado em 1994, os quadrinhos ainda não seguiam o hiper-realismo vigente e promovia elementos mais divertidos sem perder as estruturas dos personagens.

    A história faz parte da revista Batman: Legends of The Dark Knight publicada no país em edições especiais intituladas Um Conto de Batman ainda pela Abril. Na época, o formato americano era um grande destaque que diferenciava as histórias, fato coerente com a proposta de Legends, dedicadas a narrativas diferentes ou fora da cronologia comum.

    A grande vantagem dessa narrativa é sua condução breve, em apenas quatro partes. Na trama, narrada inicialmente tanto pelo Coringa quanto pelo Batman, o vilão organiza mais um plano anárquico contra a cidade e uma de suas vereadoras. No embate com o morcego, aparentemente, Batman morre. Reconhecendo a necessidade de que um coringa precisa de seu Batman, se completando e se retroalimentando, o personagem conclui que sua vida não faz mais sentido com o morcego morto e parte para um tratamento focado em sua loucura.

    Após esses acontecimentos, a narrativa promove um salto mostrando um homem comum, vivendo uma vida pacata, com breves lembranças estranhas que não se recorda ao certo. Paralelamente, Bruce Wayne está vivo e escondido, cuidado por uma médica local.

    A tensão promovida pela história parte de dois polos. A recuperação lenta de um Batman debilitado e a queda da sanidade de um homem recém curado. Curiosamente, o retorno do morcego será realizado quase em simultâneo com a volta da insanidade do Coringa. Mas quem se importa com essa coincidência?

    A vertente mais simples e, de certa forma, mais aventureira, faz com que deixemos de lado a rigidez da verossimilhança. O que importa que seus retornos são ao mesmo tempo se o embate é bem trabalhado na tensão? Como DeMatteis apresenta a narrativa de ambos, destaca-se a estranha amizade dos inimigos, um desejando impedi-lo e outro se divertindo pelo caos. O embate é simples, mas preciso. Sem nenhuma narrativa elaborada se não “Batman versus Coringa”. Destacando que ambos são personagens necessários como antíteses, a loucura e a razão, o caos e a justiça. 

  • Resenha | Júlia – Aventuras de uma Criminóloga: A Sombra do Tempo

    Resenha | Júlia – Aventuras de uma Criminóloga: A Sombra do Tempo

    Republicado pela Mythos em formato italiano em 2019, Julia – Aventuras de uma Criminóloga segue em publicação em lançamento em grupos de cinco edições por vez. Dessa forma, a 16ª aventura ao lado de mais quatro novos números demonstram como uma das melhores séries lançadas no país adquiriu maior destaque a altura das sempre excelentes narrativas de Giancarlo Berardi.

    Em A Sombra do Tempo, o passado é gatilho para as ações do presente ao apresentar uma mulher com visões sobre um assassinato. Sem saber ao certo a origem dessas visões, a mulher pede ajuda ao seu psiquiatra que convida Júlia para analisar o caso. Fatos cuja resposta estão escondidas no inconsciente.

    Há muito dinamismo nas cenas, principalmente na qualidade entre contrapor pequenas cenas que entrelaçam a narrativa. Elementos que trazem profundidade aos personagens, mesmo que periféricos, fortificando a trama como um relato de cunho realista na medida do possível. Enfocando tanto o núcleo familiar da mulher com visões, bem como a narrativa detetivesca com Julia, observamos um equilíbrio narrativo que foge de uma trama meramente escapista. Não há intenção em apressar os fatos, mas apresenta-los com calma, dentro do espaço de páginas da edição, sem acelerá-los, simulando a vida real em que nem tudo acontece de prontidão.

    Sempre que possível, as pesquisas de Berardi feitas para cada número de Júlia são transmitidas aos leitores por seus personagens. Nessa edição, é a definição freudiana do inconsciente, um espaço de afastamento da consciência, que surge como elemento. Em algum lugar do passado, a personagem viveu um possível trauma de morte ou codificou mentalmente alguma ação agressiva a partir da personificação dessa sua visão. É nessa transição da matéria inconsciente para a realidade que reside a grande revelação da trama.

    Como cada edição de Júlia apresenta uma história fechada, novos leitores podem conhecê-la iniciando a leitura em qualquer edição. Sempre com bons roteiros, Julia é sempre uma boa leitura, bem desenvolvida na ação e nas tramas policiais.

  • Resenha | O Som do Rugido da Onça – Micheliny Verunschk

    Resenha | O Som do Rugido da Onça – Micheliny Verunschk

    Na última década, a historiografia brasileira tem sido revista, derrubando a visão estreita com enfoque nos vencedores. Aos poucos, a percepção de Brasil antes do Brasil, terreno fértil, culturalmente e fisicamente massacrado pela colonização, tem sido reconhecido como as verdadeiras raízes de nossa nação.

    O Som do Rugido da Onça da historiadora e poeta Micheliny Verunschk é uma dessas narrativas que reconfigura, simultaneamente, a literatura e a história brasileira. Desloca os colonizadores para a margem e, principalmente, destaca dois índios como figuras centrais desse romance histórico, nativos sequestrados – ou salvos, como diriam os colonizadores – e levados a Europa. Em paralelo a essa ação, temos um enfoque contemporâneo  no qual uma personagem visita uma exposição artística em um museu e observa as ilustrações desses índios feitas como registros históricos da época. A conexão produz uma pergunta explícita: como lidamos com o peso histórico dos antepassados?

    Se retrocedermos o marco zero brasileiro além da descoberta, observaremos uma vasta quantidade de povos com uma ampla riqueza cultural. Ainda hoje, talvez por economia ou padronização, os povos nativos foram resumidos a uma figura, a do índio, que embora possuam elementos em comum como um belo respeito mítico a natureza, têm estruturas, sistemas sociais e religiosos distintos. Se hoje são quase marginalizados sem amparos governamentais, são povos fundamentais em nossa identidade.

    Verunshk demonstra essa riqueza brasileira através de uma das personagens centrais, Inê-ê, a nativa miranha colonizada pela expedição austríaca e posteriormente chamada de Isabella. É seu martírio de dor e incompreensão que observamos esse período de nossa história. Um contraponto diante das sempre elogiosas análises feitas a expedição do botânico Karl Friedrich Philipp von Martius e o biólogo Johann Baptist Ritter von Spix. Sem dúvida, suas pesquisas descobriram uma ampla gama de espécies registradas em nosso país, mas se por um lado observavam a natureza com beleza e harmonia, ainda consideravam os nativos indígenas como uma raça inferior em comparação a branca (em textos posteriores, Martius rejeita esse preconceito).

    Ao situar um espaço histórico em contraposição com o presente, é perceptível como as fraturas desse país colonizado a preço de sangue ainda seguem estilhaçando nossa identidade. Mantendo o eterno paradoxo de um país que a cada dois passos rumo a um progresso, retrocede um. O quanto somos conectados com nosso passado ancestral comum? Qual valor real damos aos povos nativos ou sua valia se situa apenas historicamente? Perguntas amargas que o romance suscita nas entrelinhas.

    Iñe-e, a personagem central da narrativa, é a representação dos povos massacrados. Da perda de nossa identidade primordial e da imposição vivida pelo domínio. Seus laços com a terra-mãe são apresentados com profundidade, como se os nativos compreendessem o ciclo natural como um todo. A realidade cede a um elemento mágico em que a própria personagem sente a natureza como parte integrante de si. Não a toa, é representada pela onça, um animal importante em sua infância, e que um dia foi abundante nas matas brasileiras. É por sua dor que o leitor observa a violência do exilado, a captura, o subjugo e a sensação desumana de superioridade dos povos brancos da época. Sendo uma narrativa histórica, reconhecemos que qualquer desfecho é trágico.

     O Som do Rugido da Onça faz parte de uma nova vertente da literatura contemporânea que deseja, de uma vez por todas, apresentar a multiplicidade narrativa de nossa história. Embora o Brasil insista em se manter parcialmente colonial, nossa história ancestral necessita de liberdade. Onça a onça.

  • Melhores Leituras em 2020

    Melhores Leituras em 2020

    Listas são inevitáveis (e divertidas). Quando os anos trocam de números, naturalmente observamos o passado analisando o que permaneceu nos extensos dias em que vivemos. Como muitos outros mercados, a literatura em 2020 sentiu o peso da pandemia mundial. Embora tenha atraído mais leitores, e promovido uma interessante ação das editoras brasileiras com diversos ebooks gratuitos, seu objeto físico encareceu.

    Porém, ao contrario de outros mercado em que a velocidade destaca e afasta produtos rapidamente, livros são um produto sem data de expiração. Quando propus uma lista em conjunto sobre as melhores leituras de 2020, houve um consenso de que bons leitores não se atém apenas as novidades. Quase nunca, talvez. O melhores livros lidos devem ser do ano? Absolutamente não.

    Assim, fizemos essa lista a dez mãos, leitoras, leitores e leituras que compartilham a paixão frenética da literatura e de seu debate.

    Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa – por Luíze Ribas (@amareliteraria / @litsemfrescura / @luizeribas)

    Clássico da literatura brasileira, Grande Sertão: Veredas é aquele típico livro que só entendemos mesmo quando lemos e mergulhamos na narrativa belamente criada por Guimarães Rosa, que atravessa um sertão que é a cara – ou seria essência? – do Brasil. Paixão, violência, irmandade, vingança, amor, busca por justiça social, coragem: tudo isso embrenhado na história de Riobaldo, narrador-personagem e orador da melhor espécie. Sim, orador, pois o livro é escrito como se Riobaldo estivesse contando, oralmente, seus causos, reflexões e sua relação com Diadorim. Uma linguagem desafiadora até o momento que compreendemos que é uma conversa, e se formos bons ouvintes, participamos conjuntamente dessa travessia, sendo marcados para sempre por ela.

    O Remorso de Baltazar Lampião, Valter Hugo Mãe – por May Moreschi (@may.book.s / @litsemfrescura /@may.moreschi)

    O remorso de Baltazar Serapião é um livro inesperado. Li por indicação de uma amiga e me surpreendi com a escrita avassaladora e potente de Valter Hugo Mãe. Assim como descreveu José Saramago, este livro “é um tsunami”. Relato regionalista e cruel dos tempos medievais que vai te fazer questionar o realismo e crueldade humanos. Um retrato de uma época crua e selvagem me levam a pensar este livro como uma reflexão perversa do ser humano em todas as suas vertentes mais baixas e vis possíveis Te deixará sem fôlego e com certeza te fará questionar o sentido da palavra: esperança.

    A Trégua, Mario Benedetti – por Thaíse Dias (@realidadeliteral / @litsemfrescura/ @thaise_dias)

    Um livro escrito em forma de diário. O diário de Martin Santomé, um viúvo, pai de três filhos já adultos e prestes a completar 50 anos e conseguir a sua aposentadoria. Por meio do diário de um homem de classe média, Benedetti consegue demonstrar um lado da natureza humana com a qual a maioria, se não todos nós nos identificamos, e a trégua que lhe é concedida nos parece uma trégua também, e quando ela acaba nos vemos, assim como ele, perdidos e somos levados a questionar nossa própria existência. Simplesmente genial.

    Educação Sentimental, Gustav Flaubert – por Thiago Augusto Corrêa

    Baseado em experiências vividas pelo autor, Flaubert desejava compor a história moral dos homens de sua geração em A Educação Sentimental. Embora a narrativa se inicie a partir da paixão de jovem francês por uma mulher mais velha, a obra transita de maneira cínica pela sociedade da época destacada por um personagem central volúvel. Um romance de formação que atravessa as revoluções da França se valendo de um discurso indireto livre perfeitamente executado, demonstrando que que, não a toa, o autor foi chamado de o pai do realismo. Embora o excesso de descrições possa incomodar o veloz leitor contemporâneo, a ambientação é vital para a imersão narrativa.

    Regresso a Casa, José Luís Peixoto – por Vera Pinheiro (@ogatoleitor7)

    Intimidade, confissões, família, memória e pacificação: assim é o novo livro de poemas de José Luís Peixoto. Fala-nos das quatro paredes de uma casa – e de todas as suas recordações em tempo de pandemia. Evoca a solidão, o isolamento, as portas fechadas, mas também a solidariedade das recordações: a mãe, o pai, os aromas, a família, a aldeia, o amor. Há espaço para a recordação da infância como para a peregrinação pelo mundo inteiro, como um Ulisses em viagem perpétua, rodeado de objetos próximos e voltado para dentro, para o lugar onde se regressa sempre: a casa.

    Cem Anos de Solidão, Gabriel Garcia Márquez – por Luíze Ribas (@amareliteraria / @litsemfrescura/ @luizeribas)

    Colossal, envolvente, brilhante: muitas palavras podem descrever o impacto desta leitura. Um livro que diz tanto sobre nós, nosso ser, nosso âmago latino, nossa sociedade e sobre nossa íntima relação com o mágico e fantástico no dia a dia, assim como sobre as guerras perdidas, lutas travadas e sangue derramado na América Latina. Gabriel García Márquez, ou simplesmente Gabo, faz poesia com as palavras e, mestre do contar como ele, evoca imagens poderosas que nos proporcionam um pertencimento inacreditável. É como se também fizéssemos parte daquela família, os Buendía, e vivêssemos na mítica Macondo. Um livro para ler, reler e descobrir continuamente, num ciclo que não se encerra, só se renova, assim como sua história.

    Pessoas Normais, Sally Rooney – por May Moreschi (@may.book.s / @litsemfrescura /@may.moreschi)

    Pessoas Normais é um livro sobre, quem diria?, Pessoas normais! O relacionamento de Mariane e Connell não é uma história de amor… É uma história sobre amor. A insegurança, fraqueza, falta de comunicação, medos e incertezas permeiam a personalidade desses dois protagonistas que vão viver uma jornada de encontros e desencontros que poderiam ser a sua história contada em um livro. O que mais me emocionou foi a veracidade de tudo o que acontece na narrativa. Simplesmente fiel ao ser humano e aos relacionamentos um tanto conturbados pelas incertezas do amanhã e, principalmente, do outro. Lindo, fiel e real… Simplesmente.

    Matadouro 5, Kurt Vonnegut – por Thaíse Dias (@realidadeliteral / @litsemfrescura/ @thaise_dias)


    Uma história de ficção científica – ou não. Eu nunca li nada que retratasse a guerra de maneira tão real e criativa. Billy Pilgrim, o protagonista dessa trama, passa por situações surreais que servem apenas para nos mostrar que, apesar do que ele teima em dizer o tempo todo, não está tudo bem, e a guerra não é aquela coisa heroica que os filmes hollywoodianos teimam em pintar.

    O Demônio do Meio-Dia: Uma Anatomia da Depressão, Andrew Solomon – Por Thiago Augusto Corrêa

    Apesar de certas frases feitas que negam doenças aparentemente invisíveis, a depressão é um dos demônios modernos. Vivendo dentro desse pesadelo, o escritor Andrew Solomon discorre brilhantemente sobre o tema nesse livro de 2001 vencedor do National Book Award e finalista do Pulitzer em 2002. Abordando a doença a partir da própria experiência, o autor analisa, capítulo por capítulo, a ciência, os remédios, a terapia, os estigmas, o suicídio e demais facetas sobre o assunto sem perder o ritmo. Um livro de não-ficção denso e sem excesso de academicismo.

    O luto de Elias Gro, João Tordo – por Vera Pinheiro (@ogatoleitor7)


    Neste livro com uma história tocante o narrador, lacerado pelo passado, luta com os seus demônios no local que escolheu para se isolar: uma pequena Ilha no Atlântico. Mas para além da tão desejada solidão, ele acaba por encontrar muito mais. Uma narrativa tocante e comovente.


  • Resenha | O Fim e o Começo – Bruno Sanches

    Resenha | O Fim e o Começo – Bruno Sanches

    A estreia de um novo autor sempre é carregada de expectativa. Uma obra inicial é um convite aos leitores rumo a um novo universo literário. Traz o carinho do autor como se desse luz a um primeiro filho e se apresenta como um cartão de visitas a procura de leitores e leituras atentas.

    O lançamento de O Fim e o Começo marca duas estreias em paralelo. Ao mesmo tempo, inicia formalmente a carreira do bauruense Bruno Sanches no universo narrativo (anteriormente participou apenas de antologias), como também é uma obra lançada no primeiro ano da recém-fundada Mireveja, de João Correia Filho. Uma expectativa em dobro.

    Nos treze contos que compõe o livro, observamos um narrador atento ao mundo contemporâneo, ciente de certa condição combativa do mundo, mesmo nos menores sinais. Como um analista da sociedade atual, Bruno destaca a selva de pedra em personagens reconhecíveis por qualquer leitor: vigaristas, mentirosos, amantes, preconceituosos, e outros conflitos infelizes de nossa sociedade. Todos compostos em um estilo narrativo que mistura um relato atual, como crônica, e intenso como conto.

    Se a estrutura do conto é evidentemente diferente do romance pelo espaço temporal, a delimitação entre conto e crônica não é tão nítida. Antonio Prata, um dos grandes cronistas contemporâneos, demonstra em seus livros a falta de definição precisa entre os relatos citados.  A narrativa de Sanches trabalha no mesmo escopo. A brevidade narrativa e a reprodução dos fatos cotidianos se alinham a crônica, a observação filosófica dos fatos vem da veia do conto, com uma narrativa que fisga o leitor nas primeira linhas. Narrativas com punch, como define Julio Cortazar em sua teoria sobre contos.

    A unidade narrativa entre eles advém de um autor atento, levemente irônico, que faz o leitor refletir se a fidelidade das situações narradas são frutos de sua criatividade ou um reflexo de suas observações pela selva de pedra. Qualquer resposta para essa pergunta é corromper uma das graças da literatura.

    Quando não observa o cotidiano, o autor também dá vazão a sua paixão pela música, não apenas nas presentes citações a títulos e trechos de canção como em dois contos especiais: O lado escuro da lua, uma viagem tão transcendental como os ácidos que a banda Pink Floyd tomava para realizar seus discos psicodélicos, apresentando uma fictícia (será?) entrevista com Alan Parsons, técnico de som da banda, para uma análise sobre teorias da conspiração e arrebatamento musical. Além dele, um dos contos mais sensíveis do livro, Silent Lucidity, mantém a tônica musical em um drama que é impossível terminar a leitura sem os olhos embargados.

    As narrativas em cada conto se alinham também com a estética da obra como livro físico: uma capa em cores fortes, viva, destacada com ilustrações de larvas e borboletas, tanto em sua capa, quanto em páginas internas. Fins e começos narrativos, registrando ciclos. Os meios ficam a cargo do leitor. Nessa jornada, o livro de estreia de Sanches tem muito a dizer, sem perder qualidade em nenhuma das narrativas.

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  • Resenha | Júlia – Graphic Novel: O Caso do Criminólogo Assassino

    Resenha | Júlia – Graphic Novel: O Caso do Criminólogo Assassino

    Publicado pela Editora Mythos desde 2004, a série Júlia ou J. Kendall – Aventuras de uma criminóloga é uma das séries de maior qualidade em publicação no mercado editorial brasileiro. Desde o ano passado, a HQ tem ganhado um merecido destaque em uma reedição em novo formato e novo papel. A iniciativa dá prosseguimento a um investimento feito pela editora para popularizar títulos da editora italiana Bonelli. Saem o formatinho e o papel jornal, e entra o formato italiano e papel offset. Inicialmente, Dylan Dog e Martin Mystere foram lançados no formato, em seguida uma edição limitada de Tex, pavimentando o espaço para Júlia.

    Júlia Graphic Novel é mais um desdobramento do sucesso da republicação da personagem. Uma edição de luxo, parte do selo Prime, que dá sequência à série de aventuras especiais publicadas originalmente na revista italiana Julia Almanacco Del Giallo. Depois de dez especiais em preto e branco – alguns publicados no país em edição extra e outras na edição bimestral – a série finalmente ganhou uma edição especial colorida na Itália em 2015.

    O espaço-temporal é o que diferencia as aventuras especiais de Júlia da tradicional. Nessas narrativas especiais, a personagem central ainda é uma estudante de criminologia, revelando um brilhantismo precoce em suas participações investigativas ao lado do mentor, o professor Cross. Porém,  a estrutura narrativa em que a personagem descreve parte da ação como um diário e os roteiros apurados de Giancarlo Berardi se mantêm constantes.

    O caso do criminólogo assassino expõe uma das vertentes mais tradicionais da narrativa policial: a investigação de um crime de assassinato. Embora Júlia não seja limitada a apenas esse estilo, fator que sempre traz dinamismo às varias vertentes abordadas, sem dúvida o assassinato é uma das mais cativantes.

    Convidada por seu professor a uma convenção de criminólogos, Júlia é posta no centro da ação quando um dos participantes é assassinado. A trama expõe a clássica estrutura do caso do crime do quarto fechado. Formalmente, o estilo infere um crime relativamente impossível, mas também se desdobra em assassinatos que envolvem um grupo específico de pessoas que estão presas ou situadas em um mesmo ambiente. A intenção é ampliar o mistério e instigar o leitor. Afinal, um dos presentes na narrativa é o culpado. No caso dessa trama, os personagens estão em uma vila para a conferência de criminólogos e não podem sair do local enquanto o culpado não for descoberto.

    Após mais de 200 roteiros de Júlia na época da publicação desse especial, o roteirista Berardi não perde a mão. Trabalha cada caso com afinco, desenvolvendo tramas críveis e soluções possíveis para as tramas. Seus personagens, mesmo aqueles que entram em cena brevemente, parecem fundamentais. Se destacam em cena como se fossem reais devido a verossimilhança, transformando as investigações em grandes narrativas sobre o gênero.

    Embora as narrativas utilizem recursos que se desdobram sempre com Júlia no centro da ação e da resolução do caso, não há desequilíbrio nas bases investigativas, dando vazão a uma tradição narrativa policial que preza pela credulidade. Aos poucos, a trama vai apresentado cada personagem que poderia ter alguma rusga com o assassinado, revelando motivos escondidos por detrás da civilidade das aparências, sem exageros.

    A edição faz parte do Prime Edition da Mythos com capa dura e papel de qualidade. Como as tramas são auto-contidas, a narrativa funciona tanto para novos quanto cativo leitores. Na Itália, há mais cinco edições no formato. Sem dúvida, se a edição for um sucesso, haverá também continuidade em nossas terras.

    Compre: Julia Graphic Novel – O Caso do Criminólogo Assassino.

  • Review | Jeffrey Epstein: Poder e Perversão

    Review | Jeffrey Epstein: Poder e Perversão


    Primeiro trabalho de Lisa Bryant na direção, após produzir nos últimos anos outras séries envolvendo crimes contra as mulheres, Jefrrey Epstein: Poder e Perversão se baseia no livro Filthy Rich: The Shocking True Story of Jeffrey Epstein escrito em 2017 em parceira por dois autores de narrativas policiais: James Patterson e John Connolly. Um livro investigativo que pesquisou a fundo a infame trajetória do financista destacado em círculos sociais de alta elite e responsável por uma série de abusos contra mulheres.

    Desde o lançamento de Making a Murder em 2015, a Netflix desenvolve documentários originais em dois formatos: em longa metragem e seriados. Os últimos são explorados em demasia, com excesso de ganchos e simulações de cenas reais que refletem outros canais documentais, como o Discovery, em seu estilo narrativo. Pela quantidade as vezes exagerada de episódios para um único tema, a qualidade narrativa se reduz drasticamente ainda que os temas abordados sejam sempre interessantes. Dessa forma, a informação apresentada conta mais do que uma narrativa com maior qualidade autoral.

    Sob esse aspecto, a série sobre Epstein é eficiente. Apresentada em quatro episódios, a narrativa está centralizada em dois eixos: apresenta sua figura para os desconhecidos e apresentar depoimentos de sobreviventes do assédio sofrido. Aprendendo com o alongamento de séries documentais, da qual Making a Murder é o maior exemplo, os quatro episódios abarcam os fatos em continuidade bem como analisam momentos específicos.

    A carreira criminal do personagem central teve início em meados do século XXI, mas apenas a partir de investigações realizadas em Nova York no período inicial do movimento Me Too a  vida de mistérios vivida de maneira exorbitante veio à tona. Como um abusador, Epstein utilizava de seu dinheiro e influência como parte de seu disfarce. Durante sua vida utilizou o dinheiro como consagração para suas perversões. Conforme adquiria poder financeiro, conquistava maior influência e, como o documentário aponta, apresentava seu estilo de vida para outros grandes poderosos.

    O documentário foi produzido com um enfoque informativo, embora se abstenha de polêmicas maiores. Pouco se menciona sobre o conteúdo dos processos contra Epstein e sobre as influências que possuía, ainda que as fotos retiradas de diversos eventos sociais demonstre ligações com políticos e famosos em geral. Na verdade, a narrativa escolhe alvos específicos de seu círculo de amigos como o príncipe Andrew, visto na ilha particular de Jefrrey por uma testemunha ocular e presente em uma fotografia ao lado de uma menor, uma das vítimas de abuso de Epstein. Outras figuras como Donald Trump e Bill Clinton são apenas mencionadas para demonstrar sua influência.

    Além de um abusador sistêmico, o biografado era um homem calculista, ciente de que seu estilo de vida compartilhado com outros parceiros da elite era uma ação ilegal diante da lei. Durante as investigações, a polícia descobriu um sistema de vigilância em sua casa que gravava toda visita recebida. A informação é relevante para compreender que Epstein possuía influência ativa sobre poderosos extraindo vantagens desse fato. Talvez pelos casos serem recentes, a produção do documentário tenha esbarrado em investigações ativas. Ou essa mesma influência serviu para evitar se aprofundar sobre outros poderosos que utilizaram sua influência para expor o caso sem exporem a si mesmo.

    Por ser calcado como um documentário informativo, falta maior apresentação de outros profissionais capazes de relatar sobre o caso. Como uma narrativa criminal documental padrão, o enfoque é apenas em Epstein e suas vítimas, sem nenhuma abordagem na criminologia ou no perfil psicológico de um abusador. Visões que enriqueceriam o documentário. Sob esse aspecto, a narrativa das vítimas se assemelha com a composição de Deixando Neverland, documentário feito pela HBO sobre os abusos de Michael Jackson. A consagração do poder e a fama produz uma ilusão brilhante que atrai pessoas vulneráveis. Em ambos os documentários, percebe-se como abusadores trabalham psicologicamente sua vítimas, encantando-as para, em certo nível, justificarem sobre o abuso quando denunciado.

    O caso de Epstein serve de maneira dual para a sociedade. Inicialmente demonstra que os poderosos ainda estão diante da lei, ainda que fique explícito como a lei não é funcional para todos. As estruturas de poder vivem um embate entre aqueles que acreditam em sua transparência em contraposição aqueles que usam a lei para se safar do crime. Ao mesmo tempo, o documentário ilumina o peso do abuso com as vítimas se transformando a partir deles. Ao reconhecer o abuso e procurar justiça, nasce parcialmente a superação pessoal diante do trauma.

    A série não causa nenhum arroubo narrativo e embora não apresente nenhuma informação nova do caso é relevante como parâmetro de que a funcionalidade da justiça ainda se mantém mesmo com as estruturas de poder que tendem a distorcê-la.

  • Crítica | A Primeira Noite de Crime

    Crítica | A Primeira Noite de Crime

    Dando vazão a uma espécie de fetiche cinematográfico por narrativas de origem, a quarta incursão ao universo narrativo de Uma Noite de Crime, explora, como denota o título, os motivos que levaram a criação da lei do Expurgo, uma noite criada por lei em que os crimes não possuem punição da justiça. Uma ação visando aplacar o estresse dos cidadãos.

    A narrativa que se iniciou em 2013 como uma história de terror foi se descolando desse gênero a cada sequência. Aprofundou-se, na medida do possível, sem perder a tônica de uma história pautada para o entretenimento, em  uma análise social sobre a sociedade que permitiu tal mudança de paradigma. O primeiro filme focava na tensão de uma família aprisionada em casa; O segundo mostrava como as ruas lidavam com os fatos; a terceira parte acrescentava a tensão política e contrapunha questões sociais entre os ricos que podem se defender do expurgo e os mais humildes que buscam sobreviver a noite.

    Nesse novo ato, temos um breve panorama da queda econômica americana e um estudo psicológico que justifica a violência controlada como forma de aplacar a violência aleatória. Para executar o primeiro teste, um bairro de Nova York, em que se destaca a população de baixa renda da cidade, foi escolhido.

    Ampliando a análise politica vista anteriormente, mesmo que de maneira breve e pontual, a trama se situa como uma observadora dos tempos presentes estabelecendo o binômio básico entre dominante e dominado. De um lado, os detentores do poder e a composição da esdrúxula lei do expurgo. Do outro, a população oprimida cuja duas únicas opções são sair da cidade, abandonado o próprio lar por uma noite, ou ficar no local e ganhar uma pequena quantia estipulada pelo governo como participação no evento. Diante da necessidade, evidente que muitos personagens decidem ficar.

    Ao ler ou assistir narrativas distópicas, muitos se perguntam quais estruturas levaram a composição desse universo opressor. Talvez o que poucos percebam é que tais ações acontecem de maneira gradual. O universo antes do expurgo, por exemplo, representa obviamente momento mundial atual. Diante de um momento em que se destaca certa falência democrática, a ascensão de um novo fascismo, e outros direitos cambaleantes, o fio entre ficção e realidade parece se esgarçar, dando-nos a impressão que o futuro pode ser mais tenebroso do que se parece.

    Evidentemente, tais reflexões surgem a partir do filme e não inseridos como fundamento dentro de sua estrutura. A franquia, em geral, é voltada para o suspense. Sob esse aspecto, Gerard McMurray que assume a direção nesta sequência executa boas cenas de ação, dando maior dinamismo para sequências que comparados aos anteriores não funcionavam tão bem. Cenas em plano-sequência se apresentam bem encenadas e em um dos atos finais da trama, o som de um alarme aliado a falhas elétricas estabelecem com qualidade a tensão final.

    Talvez o maior erro do filme seja não se aprofundar por completo em questões levantadas pontualmente, argumentos que sustentariam um interessante filme social sobre a opressão das lei. Mas talvez a franquia como um todo não tivesse essa intenção. Mas se estabelece bem como entretenimento que promove também certa reflexão ainda que pautada em algumas bases narrativas comum ao gênero de suspense.

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  • Resenha | Homem-Aranha Superior: Nação Duende

    Resenha | Homem-Aranha Superior: Nação Duende

    Após seis encadernados, lançados pacientemente pela Panini Comics entre fevereiro de 2016 a novembro de 2018, a fase Homem-Aranha Superior chega ao fim. Nação Duende fecha com excelência uma série diferente para o herói mantida com cuidado por Dan Slott.

    Mesmo que, a princípio, a trama da fase soasse inverossímil, as modificações que colocaram o vilão Otto Octavius no corpo de Peter Parker trouxe benefícios ao personagem. Não só envolvendo-o em novas dinâmicas como, naturalmente, marcando a expectativa para o retorno do Aranha original. Tais observações são evidenciadas nesse último arco que compila as sete últimas edições de Superior Spider-Man, lançadas originalmente no pais no mensal do personagem.

    Ao leitor que acompanhou as leituras até esse final, sabe que a trama envolvendo o Duende Verde foi composta desde o início da fase, desenvolvida em segundo plano durante outras aventuras. É perceptível que o vilão foi escolhido como desfecho desse final, marcando a volta de Peter Parker alinhada com mais um plano do arqui-inimigo. A narrativa se inicia com um avanço temporal de 1 mês, quando a cidade está dominada pela gangue do duende. Mesmo se gabando de seus avanços como Aranha, Oquinho se sente frustrado por não saber o motivo da invasão duende. Afinal, seus aranha-robôs, reprogramados pelo Duente, não registraram nenhuma ação a respeito.

    Ao contrários dos arcos anteriores, sempre pautados na ação, o último ato evita uma grande batalha, mas apresente um jogo de gato e rato entre Aranha e Duende com os sucessos do herói sendo destruídos aos poucos. Como os leitores sabem que muitas destas ações aconteceram em tramas passadas com amigos e familiares de Peter Parker sendo reféns de vilões, o próprio roteirista se adianta e coloca Mary Jane em cena para deslocar os conhecidos do personagem antes de qualquer sequestro vilanesco.

    Em uma análise de uma trama anterior dessa fase, mencionei que o leitores sabem que Peter Parker retornará em algum momento, talvez um dos motivos para que as histórias sejam diferentes e também diferentes. O final desconstrói aos poucos tudo o que foi estabelecido nas últimas tramas. Slott, porém, é um bom roteirista que, mesmo na desconstrução do Homem-Aranha Superior, conduz com respeito e bons argumentos cada modificação como, por exemplo, a queda e J. J. Jameson da prefeitura da cidade devido a um ataque exagerado de seus robôs anti-teioso.

    Durante os acontecimentos da trama, Peter Parker vem ressurgindo aos poucos na consciência de Otto-Aranha, tentando separar aquilo que é sua memória e, portanto, sua trajetória, da memória do vilão. Diante dos acontecimentos que colocam em choque a superioridade do novo Aranha, Peter não encontra outra alternativa a não ser se manifestar ativamente na consciência compartilhada para guiar a situação e salvar a cidade. Ao contrário da reação em Mente Conturbada, Otto assume suas falhas como herói, assumindo que seu novo papel foi apenas uma sobrevida e, finalmente, traz a consciência de Peter Parker para o controle.

    Como é natural em narrativas de quadrinhos, o vilão foge antes de um derradeiro fim, novamente submergindo para futuros planos de destruição. O que importa nesse desfecho é o retorno do herói, sua percepção de que, mesmo com o azar da família Parker e toda a estrutura de “herói comum” que cativa os leitores de Homem-Aranha, os sacrifícios fazem parte da jornada.

    Homem-Aranha Superior se transformou em uma interessante narrativa no universo Aranha, sem medo de correr riscos, abordando temas possíveis dentro do habitual universo Marvel. Desde que assumiu o título do teioso em 2008, Slott tem feito um trabalho admirável, apresentando sempre uma boa vitalidade no herói e dosando antigos e novos personagens, traz uma nova atmosfera para a história com um bom saldo positivo, ainda que inusitado.

    Além do arco final da fase Octavius, o compilado ainda apresenta o início da saga Aranhaverso, o épico evento que reuniu diversos Aranhas do multiverso.

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  • Resenha | O Tempo é um Rio Que Corre – Lya Luft

    Resenha | O Tempo é um Rio Que Corre – Lya Luft

    Lançado em 2014 pela Editora Record, O Tempo é Um Rio que Corre é uma síntese fundamental da prosa e dos temas centrais abordados na obra de Lya Luft, autora gaúcha que, desde o lançamento do primeiro livro de poesias, em 1964, transforma a literatura em um tear sobre o tempo, a memória, a sabedoria e a dor adquirida pela vivência.

    Transitando em sua carreira entre a poesia, narrativas infanto-juvenis, prosas ficcionais, ensaios memorialísticos, além de traduções de autores consagrados, o livro retoma elementos de obras anteriores ao estabelecer uma profunda reflexão sobre a passagem do tempo a partir de um atento observador da vida, capaz de compreender as nuances e os percalços da trajetória humana. Como definido desde o título, o rio representa a fluidez do tempo, ecoando a famosa frase do filósofo Heráclito de que não nos banhamos duas vezes na mesma água de um rio. Demonstrando como o mundo permanece em constante transformação. Uma eterna modificação em que sempre há renovação, um simbolismo evidente com a mutação da vida.

    Dividido em três partes formais que abordam a infância, a juventude e a vida adulta, a narrativa é composta a partir da construção memorialística, recordando fatos e reflexões, dando vazão ao conceito do fluxo da consciência, marcado por pausas e fôlegos, simbolizando os diversos pensamentos que se amontoam no emaranhado da memória. A voz da narradora é altamente lírica e a costura da memória feita em textos curtos e poéticos, alguns deles próximos a poemas em prosa. De fato, a própria poesia como estrutura formal também está presente na obra, demonstrando tanto a versatilidade da autora como a eclosão das referências e formas diversas pelas qual a memória pode ser construída e simbolizada.

    Luft parte da própria experiência para analisar a vivência humana, produzindo um balanço sensível de sua trajetória e compreendendo, na medida do possível, questões existências que tangem nossas indagações. Mantendo sempre uma delicadeza lírica como se a própria vida fosse tão preciosa que necessitasse de uma observação cuidadosa e sensível. Diversas memórias são abordadas em mais de um momento temporal, retomando as sensações da época vivida bem como estabelecendo uma nova reflexão a partir da maturidade, contemplando, assim, as mudanças e a evolução de uma memória vivida e reconfigurada pela própria trajetória.

    A leitura fluida e a brevidade do livro também conferem densidade a obra. Afinal, uma vez mergulhados na água do rio, é impossível permanecer imóvel. Promovendo a reflexão no leitor em uma prosa lírica, O Tempo é um Rio que Corre marca a essência da obra de Luft e exalta sua competência como autora madura ainda em atividade.

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  • Crítica | Lady Macbeth

    Crítica | Lady Macbeth

    A tragédia pulsa em Lady Macbeth, produção baseada na obra do russo Nikolai Leskov, em referência explícita a uma das grandes obras do dramaturgo William Shakespeare. Dirigido por William Oldroyd em primeira incursão nos longa-metragem, a trama acompanha a jovem Katherine, presa em um casamento por conveniência.

    Com uma narrativa transposta do cenário original do romance para a zona rural da Inglaterra em época vitoriana, é a insatisfação e o tédio que move a personagem central. Representante da época, a mulher vive em um casamento infeliz, além de se sentir incomodada com a própria condição e os costumes rigorosos da época em que, mais do que uma esposa, a mulher era como um papel figurativo na sociedade, sem autonomia. É a partir desse misto de inconformismo e tédio que Katherine assume um caso amoroso.

    O roteiro de Alice Birch segue a mesma estrutura formal da época vitoriana. Constrói-se com frieza para analisar a personagem central como se evitasse um julgamento prévio, deixando ao público qualquer observação. Ainda que a tônica da emancipação feminina se destaque inicialmente, a cada ação de restrição, a personagem corrói o senso moral até destruí-lo. De uma adúltera se transforma em assassina, evidenciando o aspecto trágico da história. Evitando qualquer análise psicológica sobre a ação da personagem, abordando sua opressão, a observação sobre a autonomia feminina, perde-se um pouco do brilho narrativo.

    A composição cênica é bela com detalhes bem estruturados tanto em figurinos como na fotografia, contrapondo ricos cenários com o vazio sentimental e existencial de Katherine. Porém, sem estabelecer nenhuma nuance para sua vida tediosa, falta um movimento que humanize a personagem e, ao menos, compreenda-se suas ações. Talvez o vazio seja proposital, como para justificar os atos violentos da personagem. Porém, o resultado é uma narrativa sem apelo dramático, fria ao extremo, sem nenhuma paixão que justifique, de fato, a pulsão da tragédia.

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  • Resenha | A Morte de Batman: O Filme

    Resenha | A Morte de Batman: O Filme

    Há certo tempo, os quadrinhos da DC Comics – bem como da Marvel – se desenvolvem em histórias seriadas, normalmente, dividas em sagas com desdobramentos e sub-tramas. Após a saga A Queda do Morcego, responsável pela literal destruição do Cavaleiro das Trevas, o arco A Cruzada marcou a fase de um novo Batman, Jean Paul Valley, um personagem mais violento e agressivo que o morcego original. Tanto essa saga quanto A Morte do Superman foram lançadas na mesma época, demonstrando a intenção do estúdio em movimentar o mercado editorial com severas modificações em seus principais heróis.

    Lançado na era do formatinho na revista Super Powers 36, A Morte do Batman – O Filme introduz o Coringa em conflito com esse novo Homem-Morcego. Mesmo situado dentro do segundo ato da Queda, a trama funciona mais como um respiro dentro da longa saga, trazendo em cena uma das personificações desse vilão definitivo. A ação se centraliza no desejo de Coringa em assassinar Batman, produzindo in loco um filme sobre o feito.

    A faceta do vilão é apoiada mais em sua composição galhofeira e nonsense. Sem intenção de conectar essa história ao arco central, o roteirista Chuck Dixon opta por uma trama apoiada em referências cinematográficas e em um Coringa menos ensandecido, mais cômico do que violento.  O humor ridículo do vilão se alia a um estilo mais hippie nos desenhos de Graham Nolan, demonstrando como a década de 90 também se marcou pela errônea tentativa de revitalizar personagens modificando-o pequenos detalhes de seus traços, fato que, posteriormente, só destacou a estranheza que essa época foi para os quadrinhos.

    Se a dinâmica entre Batman e Coringa sempre funcionou como um certo respeito entre arqui-inimigo, essa trama demonstra que a tônica não se estrutura da mesma forma com Jean Paul Valley.  Demonstrando-se um morcego mais violento e menos racional, o novo Batman deseja mata-lo de uma vez por todas e, claro, é impedido pela polícia de Gotham. O leitor sabe que a intenção é somente um conflito superficial, que proporciona as diferenças de um herói a outro e serve, apenas, para preservar o vilão para outro embate.

    Mesmo sendo funcional como história fechada, ainda mais devido a presença do vilão definitivo do personagem, A Morte do Batman – O Filme não se destaca como uma história significativa. Talvez na época de seu lançamento, funcionasse para desenvolver melhor o novo morcego. Vista com distanciamento, como não interfere na saga em si, se pauta somente como uma leitura divertida pela veia mais cômica do vilão e com as diversas referências ao universo cinematográfico.

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  • Resenha |  Variante: Requiem For The World

    Resenha | Variante: Requiem For The World

    Lançado pela Nova Sampa em dezembro de 2014 a julho de 2015, em um projeto para ampliar a circulação e oferta de títulos no país, Variante: Requiem For The World é um mangá de terror escrito e desenhado por Iqura Sugimoto. Desenvolvendo o horror a partir de seres monstruosos que vem assolando o Japão, a trama acompanha a história da garota Hosho Aiko, uma sobrevivente de um desses ataques brutais.

    Composto por apenas 4 volumes, mesmo que o mangá seja catalogado como terror, a narrativa utiliza apenas o aspecto dos monstros, chamados na trama de Quimeras, para estruturar apenas parcialmente o ambiente. Na verdade, a trama aborda dois personagens centrais: a garota sobrevivente, enviada para um laboratório para ser analisada e um misterioso investigador da mesma empresa, Atheos, responsável por identificar os ataques das Quimeras.

    Inicialmente, o enfoque se mantém na dinâmica entre os dois personagens centrais. Aiko possivelmente sobreviveu ao ataque devido a uma estrutura genética singular, enquanto é estudada, sem saber ao certo o motivo de sua sobrevivência, recebe apoio de Sudo, um homem gentil que deseja ajuda-la além do trabalho. Aos poucos, a trama vai apresentando uma conspiração maior, seguindo uma leve tônica investigativa nos dois primeiros volumes.

    Porém, mesmo em uma narrativa em quatro partes, há excessos que poderiam ser evitados. No terceiro volume, há um flashback sobre Sudo que causa conflito estrutura na obra. O personagem já havia vivenciado uma experiência similar a da garota quando mais jovem, um ato forte suficiente para definir seu caráter. Porém, ainda assim, ele não soube ligar os fatos entre um momento e outro. Uma ação inverossímil.

    Embora a história tenha uma boa ambientação justamente por não explorar o terror como gênero, mas apenas situá-lo na parte monstruosa das Quimeras, o enredo se prolonga em excesso. Antes mesmo das revelações serem expostas, os leitores deduziram de antemão o que está por vir. A procura de prolongar os ganchos, Variante perde a força, rendendo-se parcialmente a formulas comuns do mangá, recorrendo a apelos dramáticos excessivos e a viradas narrativas exageradas. Fosse mais enxuto, talvez causasse mais impacto. É um material divertido enquanto lido mas que apresenta pouca novidade e, consequentemente, permanece no mais do mesmo.

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  • Resenha | Hideout

    Resenha | Hideout

    Lançado em outubro de 2014 pela Panini Comics (Planet Mangá), Hideout foi a primeira obra de Masasumi Kakizaki lançada no país. Composta por um único volume, fato que facilita a leitura sem nenhum prolongamento ou sequência futura, a obra explora a vertente do terror equilibrando homenagens a clássicos autores do gênero, como Stephen King, e mantendo uma boa atmosfera.

    A trama é narrado pelo personagem Siichi Kirishima, um mangaká que, após problemas no casamento, viaja com a esposa para uma ilha paradisíaca a procura de reconciliação. Traumatizado com o passado, o homem decide matar a esposa para recomeçar de novo. Em fuga, a mulher encontra uma caverna habitada por alguém ainda mais monstruoso que o marido.

    Ainda que a transcrição do enredo soe pálida diante da obra, a trama não estabelece nenhum conceito sobrenatural como argumento. Parte da loucura de um homem comum para marcar sua ruptura com a realidade. Alternando momentos do presente – pautado pelo terror – e do passado do casal – destacado com felicidade – o leitor acompanha os fatos que antecederam a trágicos momentos que destruíam a sanidade da família.

    A loucura é bem desenvolvida mesmo que de maneira simples. O autor traz em cena algumas situações clássicas do terror, como contrapor um homem brutal ao espaço paradisíaco, uma violência que gera horror pela grotesca natureza humana. Mesmo que não exista nenhuma novidade na trama, a tensão e o medo crescem a cada página pela boa composição da narrativa.

    Os desenhos de Kakizaki impressionam pelos detalhes, bem como pelo uso apurado das tonalidades de cinza em cada quadro. Como parte da ação se passa no interior de uma caverna, o cinza e a cor branca se destacam para fundamentar detalhes, revelando o local bem como marcando com maior qualidade cenas grotescas sem que com isso se perca o dinamismo da trama.

    Como a história é composta em apenas um único volume, cada capítulo é bem dosado e equilibrado, resultando em uma narrativa ágil como uma bom filme de terror, e breve o suficiente para causar medo.

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  • Resenha | Dinastia M

    Resenha | Dinastia M

    Quando Brian Michael Bendis assumiu o título dos Vingadores em 2004, havia a intenção de trazer um novo vigor para Os Maiores Heróis da Terra. Ao invés de reestruturar aos poucos cada elemento que considerava dissonante, fez da saga A Queda uma mudança radical para a equipe, promovendo a dissolução do grupo.

    Conforme compunha sua fase, o roteirista selecionou diversos heróis do panteão da Marvel para se tornarem representantes chaves em suas tramas. Na revista Os Novos Vingadores, como no primeiro arco, Motim, selecionou tanto pesos pesados queridos do público, como Wolverine e Homem Aranha, como heróis que realizavam pequenas participações especiais em poucos arcos, como Luke Cage e Sentinela. Com liberdade criativa tanto em seu título quanto para fundamentar uma linha narrativa em parceria com outros roteiristas, parte do Universo Marvel se alinhava em boas tramas.

    Dinastia M foi a primeira saga do autor ao envolver o universo como um todo. A motivação da trama segue os acontecimentos da saga A Queda que revelou uma desequilibrada Feiticeira Escarlate como a responsável pelo pior dia dos Vingadores, e também pelo fim do grupo. Levada pelo pai, Magneto, a Genosha para que Charles Xavier ajude-a a retomar o equilíbrio mental. Até que o próprio Professor X desaparece e uma equipe formada tanto por X-Men como Vingadores vão até o local investigar.

    Abordar a Feiticeira Escarlate, seus poderes mutantes de manipular a realidade e sua instabilidade emocional não é um fato inédito em sua trajetória. Composta com uma infância traumática, nascida como vilã na Irmandade de Mutantes e decidida a fazer o bem ao lado dos Vingadores, a heroína já havia manipulado a realidade para dar origem a dois filhos gêmeos que se revelaram fragmentos da alma do demônio Mephisto. Devido ao trauma, teve a mente apagada para não lembrar desse fato e, por isso, sempre teve períodos de instabilidade mental. Ao se descontrolar na saga A Queda, surgia uma nova preocupação para os heróis: como lidar com uma heroína poderosa mas instável?

    A trama de Dinastia M parte de um universo em que a realidade foi reconstruída. Mesmo que o tema tenha sido abordado em outras histórias, principalmente nos X-Men com o incrível Dias de um Futuro Esquecido ou no massavéio A Era do Apocalipse, a trama evita apresenta um O Que Seria Se… situando os heróis em um mundo diferente mas que reconhecem que há algo errado.

    Embora a narrativa se contenha na própria mini-série, lançada na época em sete edições e depois relançada em encadernado, tanto pela Panini Comics como na Coleção Marvel Graphic Novels da Salvat, algumas revistas mensais apresentaram uma história nesse mundo reconstruído em que os heróis vivem seu mundo dos sonhos. Mesmo que a temática seja repetida, devido a tensão desde o fim dos Vingadores, é notável como cada divergência em cena causa uma tensão maior. Acontecimentos que culminariam em um futuro próximo na saga Guerra Civil.

    Como fator comum em muitas sagas ou mega sagas dos heróis, há dois acontecimentos reveladores nesta série. O primeiro se apresenta ao descobrirmos quem foi que incentivou Wanda a manipular a realidade para esta projeção perfeita. A segunda, diante da tensão da Feiticeira e de todo o ódio com a humanidade, promove mais uma modificação no universo quando a Feiticeira decide que o mundo não precisa mais de mutantes, deixando apenas 118 deles ilesos ainda com seu gene X. Possibilitando que as revistas do X-Men discutam sobre a própria sobrevivência mutante.

    Mesmo trabalhando um tema visto em tramas anteriores, a série apresenta mais um passo estrutural de condução da Marvel na época, tanto iniciando novas fases para grupos distintos como apresentando as tensões de herói contra herói que pontuou a tônica de reconstrução do Universo Marvel a partir de Bendis e seus Vingadores nesse primeiro momento.

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  • Resenha | O Cão de Caça e Outras Histórias

    Resenha | O Cão de Caça e Outras Histórias

    Um dos pilares do terror e horror ao lado de Edgar Alan Poe, H. P. Lovecraft sempre instigou a imaginação de seus leitores. Com uma predileção pelo horror sobrenatural, em narrativas sempre marcadas por personagens-observadores diante de assombros, o autor se consolidou como um dos mestre do gênero e ainda hoje é reverenciado em diversas publicações em editoras diversas.

    Como é comum a grandes autores, suas narrativas também ganham outros formatos demonstrando a queda de barreira de interpretações artísticas. Lançado pela JBC em dezembro de 2015, O Cão de Caça e Outras Histórias foi o primeiro e único lançamento de Gou Tanabe no país. A obra reúne três histórias de Lovecraft, desenhadas e adaptadas pelo mangaká.

    A primeira dificuldade enfrentada pela adaptação é transformar uma narrativa subjetiva em uma versão objetiva dos fatos. Muitos contos do autor são escritos em primeira pessoa, relatos de um observador parcial que compartilha com o leitor sua experiência. Dessa forma, o horror é construído parcialmente no texto e completado pela imaginação do público. Embora as descrições configurem as formas, é o leitor que cria o espetáculo visual em sua próprio imaginação. Transpor uma narrativa desse estilo para desenhos, inicialmente, diminuem o escopo de interpretação. Consequentemente, as histórias também perdem impacto.

    Para o leitor que a partir desse mangá descobre Lovecraft, será possível ponderar alguns temas em comum de sua obra como a loucura dos homens, o universo desconhecido como algo assustador e outras manifestações sempre aliadas a impressões parciais, responsáveis por atingir o leitor em cheio. As três histórias apresentadas na edição, O Templo, O Cão de Caça e A Cidade Sem Nome transitam por esses polos de maneira respeitosa e correta com a obra. Mas estão longe de causar o impacto necessário para reverenciar com qualidade um dos grandes autores do gênero.

    Ainda que se reconheça um bom potencial nas tramas, bem como situações que hoje são exploradas em excesso por filmes de terror americano, O Cão de Caça e Outras Histórias é uma daquelas adaptações formais em excesso, funcional pelo valor que a obra original possui, mas quase sem nenhum valor próprio extra além da homenagem.

    Compre: O Cão de Caça e Outras Histórias.

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  • Resenha | Super Popeye

    Resenha | Super Popeye

    Presente na lista do TV Guide que elegeu os 50 Melhores Personagens de Desenhos Animados de Todos os Tempos, o marinheiro Popeye foi uma presença constante na vida daquelas que nasceram na década de 80 e nas anteriores. Criado por Elzie Crisier Segar em 1929 como um personagem coadjuvante na tira Thible Theatle, aos poucos, o marinheiro ganhou popularidade e se tornou a estrela principal do autor. A partir de uma série de curtas metragens inspirados em suas tiras, Popeye se consagrou como um icônico personagem.

    Conhecido como um super-herói antes do tempo, devido ao espinafre que lhe dá superforça, o público atual pouco conhece suas aventuras. As últimas animações lançadas foram no final de 1988. Salvo alguma reprise televisiva e o resgate em algum canal televisivo ou no YouTube, há informações de que a Sony desenvolve um longa-metragem animado com o marujo desde 2010.

    Por outro lado, nos quadrinhos, a personagem ganhou uma nova série recente pela IDW, seguindo a tônica de outros personagens clássicos como O Sombra ou The Spirit que foram revisitados por outros autores, mesmo sem o sucesso de outrora. Lançado no país pela Pixel Media, Super Popeye reúne as cinco primeiras histórias dessa nova versão produzida pela IDW e lançada em 2012.

    Ao contrário de muitas novas versões que intendam dar uma nova roupagem para a personagem, os roteiros de Roger Langridge são propositadamente nostálgicos, apoiando-se nos elementos clássicos e, a partir deles, narrando novas histórias. Como um misto de humor non sense, as tramas apresentam situações pontuais que se expandem para absurdos engraçados enquanto apresentam o panteão de personagens conhecidos como a namorada Olivia Palito, o inimigo Blutus, bem como o fanático por hambúrgueres, Dudu.

    Como personagem, Popeye representa o clássico homem bruto de bom coração. Embora seja um sujeito simples, tem um carater sólido ainda que, as vezes, o lado correto se revele pela força dos próprios punhos. Aliado a um discurso sobre a importância da boa alimentação, principalmente a dos vegetais, o espinafre se tornou um aliado sempre constante nas tramas, garantindo na época do lançamento do marinheiro uma alta nas vendas de espinafre e que hoje se mantém como um de suas características fundamentais.

    Diante de uma personalidade bem definida e carismática, cada história desenvolve um humor de situação, sempre com inimigos que desejam ou destruí-lo ou algo que prejudique outros e seus fieis amigos que mais atrapalham do que ajudam. O humor em cena é bem desenvolvido, natural diante do universo de personagens, sem que a leitura soe como datada ou como uma homenagem pontual.

    Ainda que a edição tenha a intenção de conquistar um novo público, são os leitores antigos que devem se divertir mais ainda com a leitura, recordando-se de um grande personagem de sua infância. A Pixel fez um bom trabalhado nesta edição composta em papel brilhante e acrescida de uma pequena introdução sobre a personagem, bem como uma explicação do porquê o famoso inimigo de Popeye se chama Bluto e não Brutus como ficou conhecido no desenho. Há erros pontuais em algumas cenas, com as falas de alguns personagens mal diagramadas no balão, nada que atrapalhe a leitura, porém. Infelizmente, este compilado foi o único número lançado dessa nova fase. O número dois foi dedicado ao Popeye Clássico.

    Compre: Super Popeye.

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  • Resenha | Homem-Aranha Superior:  Venom Superior

    Resenha | Homem-Aranha Superior: Venom Superior

    Em sequência à série de encadernados da Nova Marvel, Homem-Aranha Superior: Venom Superior é o 6º volume da fase em que Otto Octavius incorpora Peter Parker. Ao contrário das edições anteriores, com um padrão narrativa focado em histórias breves, o argumento apresentado trabalha, ao mesmo tempo, tramas diversas, configurando acontecimentos para a última grande trama envolvendo o Duende Verde.

    Além das edições mensais, o encadernado inclui também a edição anual de Superior Spider Man em uma trama nada inédita aos leitores: o sequestro de Tia May. Porém, como boa parte desta fase, Dan Slott estrutura a narrativa para, além de apresentar uma história breve, justifica-la em um próximo número (Nesse caso, Tia May presencia a violência exagerada de Homem-Aranha contra seu agressor).

    Além dessa trama, a história A Hora Mais Sombria é outro exemplo de uma narrativa mediana que se salva por ser justificava em uma ação posterior. Escrita em parceria com Christos N. Gage, a trama coloca o novo Venom (reestruturado após a saga O Cerco, quando Flash Thompson é convidado pelo governo para se tornar o Agente Venom) contra o novo Homem-Aranha. Como Venom sempre foi um personagem mais visual do que um vilão bem desenvolvido, a história tem pouca qualidade, contrapondo Otto Octavius ao poder do simbionte. Uma situação que não causa muito impacto além do visual.

    Porém, a presença do simbionte funciona como gatilho para reintroduzir o espectro de Peter Parker que, como o leitor sabia desde o início, não foi destruído por completo na boa história Mente Conturbada. Como a presença de Venom é um alerta para problemas maiores, Os Vingadores também retornam em cena, novamente em dúvida sobre a nova personalidade de Peter Parker. Ao mesmo tempo, Slott introduz o vilão que tem certo carinho do público e mantém a integridade narrativa com o envolvimento do grupo heroico refazendo os testes no Aracnídeo que ainda usa o simbionte como desculpa para sua mudança de personalidade.

    A saída é crível para a cena, justificando o intelecto de Oquinho, bem como mantendo certo suspense no ar se o herói será ou não desmascarado. Até então, somente a ex-namorada Carlie Cooper tinha dúvidas sobre o novo Peter Parker, uma boa trama paralela que foi parcialmente finalizada nesse encadernado. Sequestrada por capangas do Duende Verde, a moça é transformada pelo soro do duende, tornando-se uma nova vilã. Uma saída qualquer para um bom personagem de apoio de Peter Parker.

    Finalizando as estruturas para o último grande ato, Duende Macabro e Duende Verde promovem uma guerra para lutar pelo submundo do crime. Uma ação desenvolvida desde o princípio da fase Superior, estruturada em paralelo as tramas principais de cada aventura, demonstrando, como ressaltado nas críticas dos volumes anteriores, a boa condução do roteirista para esse improvável novo momento do teioso.

    Homem Aranha Superior: Venom Superior funciona como ponte para o final derradeiro. Investindo em uma abordagem diferente das histórias até então para que o último ato seja certeiro e concentrado. O Duende Verde está prestes a retornar, bem como o querido Peter Parker, o original.

    Compre: Homem Aranha Superior: Venom Superior.

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