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  • Resenha | O Deus das Avencas – Daniel Galera

    Resenha | O Deus das Avencas – Daniel Galera

    Após uma sequência dedicada a narrativas longas, Daniel Galera reúne três novelas em O Deus das Avencas, lançamento da Companhia das Letras. Se sua obra anterior, Meia-Noite e Vinte, radiografava a geração de 1990, nesse novo livro as narrativas se estruturam a partir do tempo presente e se deslocam a um futuro árido.

    O trabalho do último livro, resultou em um cansaço inédito em sua carreira. Na cabine de leitura do livro, promovida pela editora, o escritor mencionou um período de latência em que duvidava da própria narrativa. O natural distanciamento temporal lhe trouxe novas experiências e ideias esboçadas, culminando nas três narrativas presentes.

    Situada em um passado recente, inesquecível pelos brasileiros, a novela O Deus das Avencas, que intitula o livro, é bem executada nas angústias internas e externas. A trama contrapõe um casal cujo filho demora a nascer, em um trabalho de parto ansioso que adentra um final de semana. O mesmo final de semana do dia da eleição de 2020 culminando nos rumos atuais do país. A contraposição entre felicidade interna sobre a composição da família e um caos prestes a ser instaurado na política é preciso.

    Como seus personagens, Galera amadureceu e, nessa narrativa, versa sobre a experiência paternal levada ao extremo, analisada sob o legado parental, indagando-se qual o futuro será das próximas gerações? Não há nenhum conceito implícito nas entrelinhas. Mas sim, a tensão de um rebento que, como um mentalista metafórico, reconhecendo um futuro tenebroso, quase se recusando a nascer.

    Já na segunda novela, Tóquio, o escritor explora uma vertente nova em sua narrativa. Ao apresentar um futuro desolado, dialoga com a tradição da ficção científica mas não perde o foco sobre o Brasil e o tempo presente. O elemento mais incômodo da trama é o fator realista como se vislumbrássemos um futuro que está logo ali. Ao contrário de muitas narrativas especulativas que inserem a inteligência artificial como uma tecnologia perfeita, a narrativa aborda um futuro em que a transferência de mentes é disfuncional, mas um dos poucos contatos existentes entre famílias e o passado conhecido. Some a isso um mundo arruinado, em grande parte destruída pela estupidez humana, e o cenário está completo.

    Fechando a trinca, Bugônia prossegue em mais um passo rumo a um futuro longínquo em que a devastação mundial traz o retorno do primitivismo e reacende a importância da natureza como harmonia. Com valores reestruturados em uma sociedade tribal, porém, o medo do desconhecido ainda se mantém. De certa forma, demonstrando como, independente dos ciclos, os humanos se mantém em vício.

    As três narrativas, embora sem compartilhar o mesmo universo, seguem uma estrutura temporal evidente. Como se previsse possíveis destruições a partir das tensões atuais, tanto na falência dos ecossistemas como nas rupturas políticas.

    Além do espaço temporal, outra unidade evidente é a narrativa de Galera, madura e precisa, mantendo um bom ritmo narrativo e se aprofundando em personagens envolventes e ricas ambientações. A todo momento, o senso de realidade em suas linhas esmaga o leitor. Como um pessimista, o autor nos convida a contemplar três narrativas sobre o fim, seja o esgarçamento moral de nossa nação, a liquidez das relações sociais ou o mundo como o conhecemos. No inevitável apagar das luzes, ainda resta a ficção. Ou quase.


  • Resenha | O Som do Rugido da Onça – Micheliny Verunschk

    Resenha | O Som do Rugido da Onça – Micheliny Verunschk

    Na última década, a historiografia brasileira tem sido revista, derrubando a visão estreita com enfoque nos vencedores. Aos poucos, a percepção de Brasil antes do Brasil, terreno fértil, culturalmente e fisicamente massacrado pela colonização, tem sido reconhecido como as verdadeiras raízes de nossa nação.

    O Som do Rugido da Onça da historiadora e poeta Micheliny Verunschk é uma dessas narrativas que reconfigura, simultaneamente, a literatura e a história brasileira. Desloca os colonizadores para a margem e, principalmente, destaca dois índios como figuras centrais desse romance histórico, nativos sequestrados – ou salvos, como diriam os colonizadores – e levados a Europa. Em paralelo a essa ação, temos um enfoque contemporâneo  no qual uma personagem visita uma exposição artística em um museu e observa as ilustrações desses índios feitas como registros históricos da época. A conexão produz uma pergunta explícita: como lidamos com o peso histórico dos antepassados?

    Se retrocedermos o marco zero brasileiro além da descoberta, observaremos uma vasta quantidade de povos com uma ampla riqueza cultural. Ainda hoje, talvez por economia ou padronização, os povos nativos foram resumidos a uma figura, a do índio, que embora possuam elementos em comum como um belo respeito mítico a natureza, têm estruturas, sistemas sociais e religiosos distintos. Se hoje são quase marginalizados sem amparos governamentais, são povos fundamentais em nossa identidade.

    Verunshk demonstra essa riqueza brasileira através de uma das personagens centrais, Inê-ê, a nativa miranha colonizada pela expedição austríaca e posteriormente chamada de Isabella. É seu martírio de dor e incompreensão que observamos esse período de nossa história. Um contraponto diante das sempre elogiosas análises feitas a expedição do botânico Karl Friedrich Philipp von Martius e o biólogo Johann Baptist Ritter von Spix. Sem dúvida, suas pesquisas descobriram uma ampla gama de espécies registradas em nosso país, mas se por um lado observavam a natureza com beleza e harmonia, ainda consideravam os nativos indígenas como uma raça inferior em comparação a branca (em textos posteriores, Martius rejeita esse preconceito).

    Ao situar um espaço histórico em contraposição com o presente, é perceptível como as fraturas desse país colonizado a preço de sangue ainda seguem estilhaçando nossa identidade. Mantendo o eterno paradoxo de um país que a cada dois passos rumo a um progresso, retrocede um. O quanto somos conectados com nosso passado ancestral comum? Qual valor real damos aos povos nativos ou sua valia se situa apenas historicamente? Perguntas amargas que o romance suscita nas entrelinhas.

    Iñe-e, a personagem central da narrativa, é a representação dos povos massacrados. Da perda de nossa identidade primordial e da imposição vivida pelo domínio. Seus laços com a terra-mãe são apresentados com profundidade, como se os nativos compreendessem o ciclo natural como um todo. A realidade cede a um elemento mágico em que a própria personagem sente a natureza como parte integrante de si. Não a toa, é representada pela onça, um animal importante em sua infância, e que um dia foi abundante nas matas brasileiras. É por sua dor que o leitor observa a violência do exilado, a captura, o subjugo e a sensação desumana de superioridade dos povos brancos da época. Sendo uma narrativa histórica, reconhecemos que qualquer desfecho é trágico.

     O Som do Rugido da Onça faz parte de uma nova vertente da literatura contemporânea que deseja, de uma vez por todas, apresentar a multiplicidade narrativa de nossa história. Embora o Brasil insista em se manter parcialmente colonial, nossa história ancestral necessita de liberdade. Onça a onça.

  • Resenha | A Revolução dos Bichos

    Resenha | A Revolução dos Bichos

    “Quatro pernas bom, duas pernas ruim!”

    Na missão de adaptar um dos maiores clássicos da literatura moderna mundial, A Revolução dos Bichos, de George Orwell, o ilustrador brasileiro Odyr não poderia ser mais bem-sucedido, em sua empreitada. Aos transpor o romance direto para o mundo das formas e cores de uma HQ, o artista gaúcho oferece uma nova roupagem digna de aplausos a mais trágica das parábolas ocidentais, e claramente universal, agora com uma dinâmica visual diferente. Preservando consigo a força deste “conto de fadas rural”, que Orwell imaginou há quase oitenta anos, e cuja glória o Cinema ainda não deu cabo de honrar, nada mudou na essência da alegoria histórica, muito pelo contrário.

    Desde 2019, temos aqui uma potência fabulesca e gráfica inéditas a embalar esta obra-prima sobre porcos e cavalos, cães e vacas que, cansados do chicote, formaram oposição com os seus cascos e chifres à violência do Sr. Jones, o fazendeiro da Granja do Solar, no interior da Inglaterra. Foi lá que a epopeia da bicharada começou, e sob a égide da coragem, da revolta e da esperança de serem donos de seus próprios destinos, sua Revolução expulsou o Sr. Jones daquelas terras, e a liberdade então se instalou. Desimpedidos, os trabalhadores e pacíficos bichos da Granja instituíram regras (a mais famosa, sendo “quatro patas bom, duas patas ruim”) a fim de simbolizar a verdade suprema: todos os animais são iguais! Só assim a dor da escravidão poderia ser, um dia, esquecida.

    Mas não tardou de aparecer uma maçã podre entre as aves e cães, entre os equinos e galináceos, traindo os princípios da Revolução, e arruinando a utopia desse paraíso. Logo, os ‘cidadãos’ da Granja dos Bichos são envenenados por uma inteligência superior entre eles, sem piedade ou culpa, e uma ideologia de violência e paranoia chega para encobrir a tirania, que só cresce. E de repente, onde antes imperava a felicidade, corre o risco de voltar a ter um imperador pior do que jamais se viu, antes. A sátira a política Stalinista na antiga União Soviética não poderia ser mais explícita ao leitor mais esperto, nem um pouco suavizada pelo texto ou pelos sublimes desenhos em nanquim de Odyr – muito mais que meros acessórios de luxo, à história.

    Em A Revolução dos Bichos, ao tecer de modo crítico e impactante a formação de um tirano, e seus seguidores cegos, envoltos neste sistema de pensamento único que aterroriza uma sociedade sem livre-opinião (submetida a um intérprete oficial que dita o certo, e o errado), Orwell flerta com o fascismo, a barbárie, a origem das distopias e toda sorte de injustiça que são injetadas, ou ainda, acordadas dentro de uma civilização. Todos os temas, como já afirmado, seguem intactos nesta obra-prima consequente, publicada no Brasil pela editora Quadrinhos na Cia., e que por seu colorido apelo e linguagem irresistíveis para todos os públicos, deve fazer parte das bibliotecas escolares para atrair os mais jovens a vivenciar, e aprender com esta aventura de modo divertido, mas não menos reflexivo.

  • Resenha | Pássaros Amarelos – Kevin Powers

    Resenha | Pássaros Amarelos – Kevin Powers

    “Não havia balas com meu nome. […] Não havia bombas feitas para nós.”

    Tido pela revista Rolling Stone como o primeiro grande romance situado na guerra do Iraque, eis um livro que não sentimentaliza os efeitos do conflito na mentalidade humana, ao optar por não suavizar o drama no qual os soldados (na sua maioria jovens homens) passam, fora do seu país de origem, entregues a barbárie que ajudam a alimentar. A desumanização é um processo real que Bartle e Murphy enfrentam. Dois amigos, integrantes de um pelotão de combate em Al Tafar, entre os mortos que eles foram enviados para produzir. Não em nome do seu país ou do seu povo, como Kevin Powers nos faz refletir desde o início, e sim em nome do imperialismo norte-americano. Implacável, como se faz, através dos corpos e psicológicos frágeis dos recrutas largados a própria sorte, no inferno, com um rifle, binóculo e capacete cada um.

    Há heróis e vilões em uma guerra declarada, e essa é uma mentira que os filmes do gênero tanto recontam as massas, nas temporadas do Oscar. A glamourização desse evento (ou pior, a espetacularização dele nos jogos de videogame ou no cinema mesmo) é de um cinismo que impressiona qualquer um que reconhece, minimamente, o terror do momento que parece ser eterno. Ao narrar em primeira pessoa, revelando os mínimos detalhes emocionais e práticos do dia-a-dia em zona sitiada, Bartle descreve em Pássaros Amarelos uma espécie de ciclo de martírio sem fim, e que não convida ao bom combate um homem diante da sua obrigação, mas a exaustão. Quando os morteiros caem por todos os lados, pelo décimo dia seguido, ninguém aguenta mais – talvez nem aqueles que atacam os americanos, “defendendo” sua terra natal. Todos têm alguma coisa a perder.

    Em meio a ação do tiroteio, das explosões, Bartle sobrevive por si, para proteger seu amigo, para proteger suas memórias, e por último, numa lista de cinquenta prioridades, para receber medalhas no retorno talvez impossível aos Estados Unidos. O jovem soldado vê seus parceiros de guerra mudando, o perigo entrando no DNA de cada, já que o comportamento do pelotão se altera, à medida que o tempo avança – rumo aonde? Kevin Powers torna esta publicação da editora Bertrand uma obra precisa, e imersiva, ao decodificar a tensão da guerra do Iraque, e sua brutal imprevisibilidade, sob um apreço quase que paternal para com os personagens, e seus destinos. O fato (que ainda não terminou) ganha contornos marcantes em Pássaros Amarelos, um belo romance que vai além de mero documento histórico, para alcançar assim o status de tratado não-apologético sobre os limites e a natureza do ser humano, quando forçado a participar de uma situação limite, e transgressora.

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  • Resenha | Serena – Ian McEwan

    Resenha | Serena – Ian McEwan

    Não é fácil escrever, quanto mais expressar as suas ideias de um jeito memorável. Em Serena, nesse caso específico, temos algo ainda mais complicado: a dificuldade imperiosa de não se ter, entre tantos títulos primorosos de uma única carreira, nenhum para destoar a qualidade entre todos. Para o inglês Ian McEwan (autor do recente e extraordinário Enclausurado, uma parada obrigatória), inexplicavelmente verborrágico aqui, o drama de uma jovem universitária envolvida até o pescoço com a segurança nacional da Inglaterra é um pretexto desperdiçado para (tentar) nos encantar com uma história de espiões à moda antiga, e que não guarda os verdadeiros aspectos que fazem de McEwan um grande escritor de ficção contemporânea.

    De fato, a história só não é mais fraca e desinteressante, devido a resquícios ainda semi presentes da ótima e marcante prosa de McEwan, e a sua ultra realista ambientação acerca do cenário político britânico dos anos 70. Após se envolver com um amante misterioso, mas cuja aparente influência política abre as portas para Serena adentrar no mundo da espionagem governamental, a jovem de 23 anos vira a própria Alice, caindo num buraco aparentemente sem fim com criaturas que nunca sonhou encontrar, no seu dia a dia. As pessoas que regem o mundo, sempre atrás das cortinas e com suas marionetes, agora falam com Serena em salas fechadas, e a ela passam missões que a inocente agente do MI5 (Serviço de Segurança Britânico) não tem como recusar.

    Assim, no apogeu de uma grande crise política que a Inglaterra enfrentava nos anos 1970, Serena é incumbida de atrair a MI5 um grande escritor em potencial, Tom Haley, que as agências do governo espionam devido a qualidade do seu trabalho editorial. Tom é a típica peça que os governos do mundo todo (em especial, os do primeiro mundo) usam para melhorar a imagem do país em níveis intelectuais, ao invés de deixar que a reputação das grandes potências seja rebaixada a nível global. O próprio Tom reconhece ser uma marionete do sistema, mas bem depois desse plano secreto dar errado, quando espiã e espionado se veem perdidamente apaixonados e mergulhados em problemas que, talvez, nunca conseguirão sair.

    Veja bem: Não há nada de errado em um romance investigativo ser terrivelmente cafona, feito Serena. Muitos nasceram com esse gosto de mofo entre as páginas e sobrevivem muito bem, obrigado, a passagem do tempo. O curioso mesmo é perceber como McEwan, de Amsterdam, Reparação e outros títulos maravilhosos também publicados no Brasil pela Companhia das Letras, consegue cultivar o nosso desinteresse gradual por essa trama usando uma narrativa em primeira pessoa, que em tese tende a nos aprofundar e seduzir-nos no fluxo de consciência de Serena e seus vários amantes, numa realidade de paranoia institucional e poder que, aqui, jamais geram os elementos de tensão e suspense que o autor afinal planeja criar. É evidente que o autor deseja estruturar em suas tentativas frustradas de apreensão, dinamismo, quiçá uma aventura nos moldes por exemplo de O Dossiê Pelicano, um bom contraponto com a obra em questão.

    Em dado momento, ao descrever com zero entusiasmo uma tarde de sábado que os pombinhos Serena e Haley passam juntos, como se esse momento tão breve pudesse ser algo eterno, McEwan prova ser o autor perfeito para devagar sobre o nada, sobre a passagem das nuvens no céu, preenchendo capítulos inteiros com dramas que sua sensibilidade observa de longe, tal um pai indiferente as quedas de um filho recém-nascido. A longo prazo, os efeitos dessa abordagem gélida (ainda que elegante) a esse conto desalmado de espiões corrói as expectativas de qualquer um. Chega a ser impressionante a falta de inspiração que leva o livro a ser uma experiência morna, sem fôlego já bem antes do seu desfecho que, por melhor que este seja (apresentando uma reviravolta que não altera em nada o que veio antes), vencer a letargia desse enredo do autor. Até chegar à sua conclusão já é uma prova de resistência para que, no fim, possa vir algum tipo de recompensa.

    Outros autores já combateram o marasmo e o gelo de suas narrativas enfadonhas apostando em bons personagens, ou ainda, numa boa construção de mundo com arquétipos interessantes e artifícios excitantes, para tornar a leitura minimamente agradável e, de certa forma, até mesmo prazerosa para seu tipo de público – como fica sendo o famoso caso da heptalogia Harry Potter, por exemplo. Se escrever nunca foi fácil mesmo, McEwan tampouco se esforça em Serena para evitar a monotonia de suas óbvias e um tanto caricaturais reflexões sobre as relações humanas, sempre defeituosas e muito melhor desenvolvidas nas outras obras (incomparáveis) do autor, diferente desse interminável romance de 2012 e que não chega, de fato, a lugar algum. Uma pena.

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  • Resenha | Enclausurado – Ian McEwan

    Resenha | Enclausurado – Ian McEwan

    “Quem é Claude, esse impostor que se infiltrou como um verme na minha família e nos meus sonhos?”

    O útero é um ambiente que todos nós já habitamos, a quarentena do começo dos tempos. Vagina e umbigo são duas portas de saída que, ao cruzá-las, entramos para a trupe de um espetáculo imprevisível cujo maestro, uns chamam de acaso e outros de Deus, Buda, etc . Ao sair pela outra porta, quando o seu show acabou, Brás Cubas viu passar um desfile com todas as eras da humanidade, seus impérios e foguetes, suas guerras e obras-primas, no seminal romance de Machado de Assis. E se Cubas já se foi, sem ainda se desprender do Todo, em Enclausurado temos o exato fenômeno às avessas: um espermatozoide a caminho de virar gente, e que ainda nem se vestiu para participar desse desfile em pleno século XXI. Em suas palavras mora a descoberta do Todo, do teatro do desconhecido, tal um Cristóvão Colombo embrionário defronte ao Novo.

    O distanciamento de Ian McEwan quanto ao mundo que observa e decifra (enquanto feto) é genial, oposto portanto ao espírito de Cubas, analisando tudo o que já viveu no outro lado da existência. Neste caso, tudo ainda está para ser experimentado, mas o autor de Serena jamais opta pelo encanto virginal óbvio que poderíamos esperar. Com uma narração em primeira pessoa memorável, o próprio feto verbaliza, questiona e julga impunemente a lógica do mundo dos adultos e da sua família de intrigas usando de um sarcasmo visceral, enquanto brinca com o seu cordão umbilical, ouve qualquer suspiro que vem de fora e começa a entender que um plano para matar John, o seu pai, começa a ser arquitetado, já no final da gestação, pelo próprio corpo que o aloja, e pelo amante inescrupuloso da mãe, Claude. Como ele poderá salvar John, ou no mínimo, se vingar de um crime à beira de acontecer?

    As influências conceituais de William Shakespeare aqui são tão nítidas quanto o sol do meio-dia. Uma trama de traição e assassinato se desenrola para a agonia do filho do homem-alvo, ligado agora íntima e criticamente à sua progenitora. Antes mesmo de estrear, esse aprendiz ainda não-nascido de Hamlet já é chamado para o despertar da responsabilidade e, assim, ao conhecer a falta de limites de algumas pessoas, averiguar o mundo que está prestes a recebê-lo, sem poupar nada nem ninguém de suas reflexões de marujo de primeira viagem. Enclausurado, da editora Companhia das Letras, é desde o início uma típica obra divertida e rápida de se ler, num jogo absolutamente hipnótico de palavras a darem cabo de questões filosóficas, e um juízo existencialista que todos nós, cedo ou tarde, superficialmente ou não, acabamos deparando-nos ao longo da vida. O desespero fica sendo opcional; a realidade, não.

    O grande fôlego do livro e a sua franqueza muitas vezes irônica acerca do mundano, e os absurdos e contradições da mente e das relações humanas, tornam o romance de McEwan um dos mais criativos exemplares da capacidade argumentativa do seu autor; quiçá o melhor desde A Reparação. Sua sensibilidade choca em momentos de pura catarse observacional, e a sensação é de investigarmos junto do feto-narrador um mundo de fantasia pelo buraco da fechadura, levando em conta que habitamos essa fantasia. O corriqueiro para nós é o assombro misterioso a quem chegou agora e, por isso, olha assustado na janela. McEwan edifica, em poucas páginas, uma visão brutalmente crítica e extraordinariamente coerente de ser parte de uma sociedade complexa, e de como podemos reagir da melhor forma possível a suas circunstâncias sistemáticas a partir dos nossos próprios valores – naturais, ou não. Livraço.

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  • Resenha | Última Noite e Outros Contos – James Salter

    Resenha | Última Noite e Outros Contos – James Salter

    “É melhor você ir se acostumando ao plural das coisas.”

    O passado, ele é cruel. Cobra, implacavelmente, os desavisados quanto a sua interminável potência na realidade de vidas que o deixaram pra trás, ignorando-o como um pedinte na calçada, esperando sua debandada. James Salter, veterano de guerra norte-americano, faz escrever sobre isso sobre a linha de um pretérito onipresente até o talo, influenciando com absoluta intimidade o desdobrar dos laços e relações humanas que se envergonham de pertencer ao ontem fadado as amantes de plantão. As cicatrizes desses personagens são latentes, e expostas, mostram-se tão incuráveis quanto fechadas, pois a dor é inevitável. Estamos falando aqui de personagens que dariam tudo para seguir em frente, mas ainda há muito a ser resolvido. Tudo, na verdade.

    Última Noite e Outros Contos é uma celebração discreta e mansa, quase cínica, e elegante até a última estrofe de sua 14º história, talvez a mais perversa de todas, do papel que as nossas pegadas tem na concepção do que chamamos de presente, da vida que nos resta a ser vivida, encarada e aceita com seus desafios impulsionados pelas escolhas que fizemos, lá atrás. Por isso o uso, aqui, de homens e mulheres maduros que supostamente não devem nada mais a si mesmos, e quanto a isso, são verdadeiras contradições ambulantes. Salter então surfa no poder da herança, seja ela sentimental ou material, expondo a comédia involuntária ou a melancolia, sobretudo, da condição humana assombrada pela poética e a dureza das memórias sobressalentes, e que sempre dão um jeito de pularem, não-proposital ou por nosso intermédio, bem diante dos nossos olhos de espanto.

    O que resta, então, em contos como “Os Olhos das Estrelas”, “Bangcoc”, “Platina” e “Palm Court”, é o prazer culpado de uma boa literatura que acompanha pessoas comuns tendo que lidar com reencontros por tanto tempo almejados, além de abraçarem, novamente, velhos cartões postais e desejos que nunca partiram, junto das antigas ambições e medos tão atemporais quanto o sol que regia o tempo asteca. Salter é ultrarrealista, cru ainda que charmoso em sua escrita, serena e branda por natureza, e se poupa os seus breves personagens conosco (exceto em “Akhnilo”, o irregular conto que abre esta curta coletânea e se destoa dos demais por seu caráter desesperado, e apressado), é porque o autor não deseja apelar para um sentimentalismo extremo ou surrealismos a bel prazer que desnorteariam a obra, facilmente, dando-a um outro tom.

    A questão é: como fazer as pazes consigo mesmo? Cada caso, é um caso, e o que todos precisam aqui é de terapia, mas é difícil enxergar o óbvio quando o complicado é a única via de mão. Última Noite e Outros Contos, da famosa editora Companhia das Letras, no Brasil, transmite e debate com fôlego linear e empolgante, para muitos leitores, complexas sensações do ramo da saudade, do apego e da nostalgia, narradas aqui pelo grande charme já mencionado de Salter, e sem jamais parecer um livro mofado em suas intenções de evidenciar a importância da superação, em todos os âmbitos da nossa vida.

    Compre: Última Noite – James Salter.

  • Resenha | Vida Conjugal – Sergio Pitol

    Resenha | Vida Conjugal – Sergio Pitol

    Vida Conjugal é a prova surrealmente realista que faltava as consequências práticas da infidelidade num casamento, culminando desde as primeiras páginas numa relação fadada aos cacos já visíveis no horizonte. Isto posto, encara-se o fato de que, quando homem e mulher se organizam para acabar (o mais depressa possível) com o enlace que já existiu, firme e forte entre eles, a vida dá um jeito de piorar ainda mais as coisas com um toque dos mais perversos, possíveis. Como se exclamasse, num dia a dia caótico: “a culpa de tudo isso é de vocês”, ou ainda: “vocês merecem seus infortúnios, e não venham me dizer que não sabem”. O recado, portanto, é claro: no começo, o aroma e a exuberância das flores e das promessas dão o tom, regem a música e o frescor do banho a dois, mas os sinais de se estar assumindo um erro sempre existem, manifestando-se aos que não se deixam cegar.

    O interessante mesmo é notar como o curto e solene romance do mexicano Sergio Pitol já começa: nem Jacqueline nem Nicolás querem salvar mais nada, respirando com a intensidade que o autor comanda essa cruel paródia conjugal um odor venenoso de vingança matrimonial – um contra o outro, e também, contra eles mesmos, tal o mais amargo dos sadomasoquismos por se permitirem viver um martírio na Terra. Agindo ambos tal a célebre Madame Bovary, do clássico romance de Gustave Flaubert, aqui as duas partes não apenas regam sua relação com o espírito angustiante da infidelidade e de um distanciamento insuportável. Vão além, e ostentam um desprezo e uma necessidade de superação perante a quem dividem a mesma cama, as mesmas crises que temperam grande parte dos casamentos, mundo afora.

    Resolvem isso longe um do outro, já que Nicolás só se importa em comandar um grande complexo turístico do México, e Jacqueline, ascender socialmente para fugir do espectro ubíquo da pobreza que sofreu antes de entrar para a universidade, e conhecer seu príncipe, Nicolás. Muito antes de inclusive se tornar um estorvo ao marido, tal ela reconhece, com seus costumes e reuniões com amigos próximos sobre livros, e cultura no geral. Um começa a sobrar na vida do outro, mundos opostos que não resistem ao choque por muito tempo. Um só pensa em trabalho e dinheiro, e a outra, no mundo das artes, na fama, no primo que lhe serve de amante, uma piscina para afogar carências oceânicas. É claro que o casal tem hora marcada para o fim, e acompanhar Vida Conjugal é se sentar na melhor poltrona possível para assistirmos a construção de uma bomba-relógio, um artefato programado em uma narrativa irônica para dinamizar uma insustentável leveza que já se encontra, nós ficamos sabendo, em incontáveis frangalhos mútuos.

    Pitol comanda sua obra com uma sagacidade e dinamismo de fato marcantes, muito bem traduzidas ao português por Bernardo Ajzenberg, para a Companhia das Letras, proporcionando grandes momentos e ótimas reflexões geralmente a respeito de Jacqueline, a que revela para todos sua vida íntima na espera desesperada de uma solução, uma epifania, uma fuga mágica, já que uma amnésia é tão impossível quanto voltar a dormir no mesmo quarto do cônjuge. É curioso observar, tal moscas infiltradas numa relação que não é nossa, mas universalmente acolhida, os detalhes de uma fundação matrimonial rachando em direção ao pó, numa velocidade que apenas aos envolvidos é devagar e dolorida, como a espera pelo marido que não volta para dormir, ou por alguma ação da mulher que não satisfaz mais o companheiro de jeito nenhum. A base da loucura típica que a vida as vezes reserva a quem tem a coragem de encará-la, acompanhamos a jornada ao ponto final de duas pessoas alimentando seu inferno a dois de não de forma pessimista, mas cármica, enquanto Pitol dá um show no retrato de uma fatalismo tão delicioso de se entranhar.

    Compre: Vida Conjugal – Sergio Pitol.

  • Resenha | Um Romance de Geração – Sérgio Sant’Anna

    Resenha | Um Romance de Geração – Sérgio Sant’Anna

    Só a gente sabe a delícia e a dor de ser, quem se é. Essa afirmação cabe muito bem no início de uma análise do famoso Um Romance de Geração, indo assim à essência desta peça teatral transcrita em romance literário. Lançado logo no período final do regime militar do Brasil, em 1980, temos aqui uma peça de dois personagens conosco sendo o terceiro a habitar um minúsculo apartamento, num verão acachapante em Copacabana, no Rio de Janeiro. Ela, uma jornalista tentando trabalhar com seu gravador, seus pudores e suas dúvidas. Ele, um escritor bêbado com problemas existenciais e insatisfeito com sua vida insignificante, e que se prestou, foi para lançar uma espécie de best-seller e ser reconhecido exclusivamente por isso – inclusive pelas mulheres que pegou por isso, e a pouca fama conquistada, desde então.

    Compondo um panorama sobre os anseios, questionamentos e o comportamento de uma geração marcada pelo regime político imposto a ela, Sérgio Sant’Anna nos conduz através de um brilhante dinamismo literário pela aventura de uma aventura inesquecível que, inicialmente, seria sobre a literatura brasileira vivendo o impacto da ditadura. Contudo, o escritor exerce com toda sua trajetória profissional e pessoal de vida um poder incomensurável sobre os rumos desta empreitada jornalística, e Ela (como é chamada ao longo de toda a leitura) não evita em mergulhar nas palavras d’Ele (como também é assim dirigido), tal uma confidente a quem ele não consegue resistir, e desabrocha seus prazeres e angústias como se conhecesse a mulher a mais tempo que suas ex-esposas com quem casou, já prevendo o apocalipse, a seguir.

    Boêmio, o escritor narra sua vida a base de cigarros e amargura, feito um célebre conto tragicômico a transbordar, em suas confissões. Ela, mesmo priorizando as referências a seu artigo que pretendia escrever, com a ajuda dele, não resiste ao peso da vida íntima do homem, e juntos, formam um quadro de intimidades mais pessoal que muita conversa entre marido, e mulher. É claro que eles acabam transando enquanto as cortinas fecham e a luz escurecem, mas antes de Um Romance de Geração acabar, temos a certeza de que não foi por causa da garrafa de vodca, nem pelo clima quente e tropical que tanto agita os corpos, e convida ao sexo. Usando e abusando da linguagem teatral em vários momentos narrativos de pura intensidade, e emoção, Sant’Anna vai ao âmago dos seus personagens como se, para ele, fossem velhos conhecidos, tornando-os assim, também, para seus leitores.

    Reforçando o valor e a magia deste romance, substancialmente explicado no final desta edição pelo próprio autor desta publicação da Companhia das Letras, são duas mentes e dois corações vivendo e revivendo suas vidas em uma simples sala, lar de um sem número de encontros tão adoravelmente humanos quanto este livro, e isso por si só, como bem acontece aqui, já pode se tornar memorável, por natureza.

    Compre: Um Romance de Geração – Sérgio Sant’Anna.

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  • Resenha | Nunca Vai Embora – Chico Mattoso

    Resenha | Nunca Vai Embora – Chico Mattoso

    Não é mais o que se conta, mas como. Se há algo realmente valioso em Nunca Vai Embora, da editora Companhia das Letras, é a narração mais que elegante e inebriante do jovem escritor e roteirista Chico Mattoso, dono de uma habilidade ímpar na arte de desdobrar acontecimentos e tratar reviravoltas de uma forma hipnotizante, mesmo que o romance seja de curta duração, em pouco mais de 120 páginas tão adoráveis quanto possíveis. Há então curiosidade, nisso, devido ao fato de se contar, em primeira pessoa, com desamores nestas páginas que tanto amamos adorar, enquanto as mesmas alojam a tragédia anunciada de um “amor” que começa no Brasil, e talvez, termina em Cuba.

    Talvez porque ele nunca se esvai, por completo. Sem apelar para melancolias de todo gênero, Mattoso nos apresenta com grande desenvoltura, e prazer, o problemático e inseguro Renato Polidoro, menino bem educado e trabalhador, num simples consultório odontológico. Envolve-se então com Camila, estudante de cinema que, diante das reclamações do jovem e da paixão com ele, convida-o para se mudar para Havana, livrando-se de sua vida chata enquanto há tempo de mudar seu destino, sem a presença de rugas ou arrependimento, ainda. Ela, é claro, ajuda mais ele, do que o contrário, sendo que Camila não quer fugir de nada, e nutre suas paixões com mais habilidade que o garoto que vive a vida para impressionar o exigente pai. Uma vive o momento, e o outro, a procura dos finais dos seus próprios arco-íris.

    Assim, o coerente Nunca Vai Embora torna-se, desde o princípio, um romance sobre busca e fuga, em todos os sentidos. Entramos de cabeça no âmago de Renato, que topa ir com a confiante (e inocente) Camila, a rainha dos sonhos, para a efervescente e saborosa Havana, com todos os seus novos personagens, cores, lógicas e sabores da vida cubana. Nota-se como os elementos mal resolvidos de uma vida nos perseguem, à medida que tentamos ignorá-los, e olhar para frente, ou pior: para o lado. Após uma forte briga terminada em sexo e culpa violentos, Renato e Camila se separam, fisicamente, e apenas fisicamente. Sob a sombra de Camila, ele vaga com outras mulheres, em balcões de bar onde se envolve em outras vidas, e outras histórias. Sempre a procura dos finais dos arco-íris que, para ele, já se apagaram no céu.

    Sim, ela nunca irá embora para Renato, pois a chama verdadeira não se apaga, passe o tempo que for. Renato, todavia, inseguro e ainda destemido, com amigos que tentam abrir seus olhos sobre os efeitos do mundo para um homem que se compromete a enfrentá-lo, e nele viver, fica em Havana e lá estabelece suas expectativas sem fim, suas impulsividades e alegrias ocas, dessas que acabam no piscar de uma madrugada. Sua vida é a de um poeta triste, sem forças para mudar a situação, o que nos convoca a refletir: vale a pena viver do passado, por mais glorioso que este possa ter sido? Mattoso e seus personagens falam por si só, e nesta voz nos embriagamos em uma deliciosa leitura rápida, e reflexiva, em prol de possíveis releituras desta aventura “a dois”.

    Compre: Nunca Vai Embora – Chico Mattoso.

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  • Resenha | A Paixão de A. – Alessandro Baricco

    Resenha | A Paixão de A. – Alessandro Baricco

    “Não decorre daí aquilo que chamamos de amor.”

    Histórias sobre as Lolitas de homens de todas as idades, em suas devidas realidades de grande apelo universal, são quase sempre irresistíveis devido todo o seu potencial absolutamente descortinador de como uma relação humana pode ser caótica, sendo então marcante ou, no pior dos sentidos, traumatizante para ambas as partes, vida afora. Geralmente são relações fadadas ou pontuadas por tragédias nas quais esses homens, as voltas por motivos moralmente condenáveis com uma garota ou uma mulher, encaram sua musa inspiradora de forma tão hipnótica quanto à lua cheia é ao pobre lobo solitário. Suas Lolitas permeiam seus sentidos mais selvagens, e portanto, tornam-se onipresentes, inclusive, na imaginação ardente dos artistas.

    Em A Paixão de A. isso não é diferente. Estamos falando, afinal, de Andrea, a garota que vem para desconstruir certezas e promover terremotos na vida pacata de quatro garotos de base estritamente religiosa, e inexperientes de quase tudo na vida, na cidade de Turim, no noroeste da Itália. Como coadjuvantes não-oficializados da história, temos Bobby, Santo, Luca e o narrador formam “o quarteto de Andrea”, ou seja, quatro planetas orbitando ao redor da estrela guia. Assim, ela (e a religião católica) guia-os por experiências que nunca almejaram ter, enquanto não se devotam a trabalhos voluntários num hospital público, de Turim. Com suas óbvias diferenças, passa cada vez mais a existir entre o quarteto algo em comum, além da amizade que um sente pelo outro: uma atração pelo chamado a aventura que Andrea tanto representa a esses moleques que aprendemos a amar, e sofrer por eles.

    Mas é claro que tudo também é simples e infinito aos dezesseis anos, tempo de descoberta, folia e, claro, reviravoltas inconvenientes e necessárias, a todos. Se o amor e o desejo nessa idade é diferente, ainda sem o peso de mais dez anos na balança das coisas, Andrea é o contato que faz germinar as dificuldades da vida adulta para esses garotos, sendo a ponte, o elemento subversivo da adolescência de Bobby, Luca, Santo e o narrador para que todos sintam o gosto do que está por vir, ao mesmo tempo que acompanhamos tudo imersos e agraciados na maravilhosa sensibilidade do italiano Alessandro Baricco, um esplêndido escritor. Em primeira e emocionada pessoa, caminhamos e desbravamos, as vezes com espanto, pelas veredas sentimentais de um enlace tortuoso entre quatro projetos de homem, e uma garota que já sabe quem é, vivendo plena e confiante de si na Itália dos costumes dos anos 1970.

    Vale notar que A Paixão de A., da Companhia das Letras, relata o quanto Andrea não é uma garota sexualizada ou desvirtuosa em suas ações, mas agindo em todo o seu comportamento forte e magnético como uma jovem mulher dos anos 2000, muito mais liberta de retrógradas convicções e segura do seu lugar no mundo. Em determinado momento (a narração aqui de Baricco é um deleite para qualquer leitor), os garotos vão junto de Santo, um jovem aspirante a padre (por medo de não se salvar das tentações do mundo), falar com a mãe de Andrea, pois todos acreditam que ela está indo ao caminho da perdição, ou seja: afastando-se dos caros mandamentos católicos. Inútil dizer que qualquer expectativa doutrinária acaba ruindo, junto de muitas outras certezas, diante da implacável natureza humana, e muito antes do fim um tanto simplista, mas comovente, Andrea se oficializa para eles como sempre foi, e o que jamais deixaria de ser nesta vida, em Turim: uma presença e uma alma inesquecível. Para o bem e para o mal.

    Compre: A Paixão de A. – Alessandro Baricco.

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  • Resenha | Pau e Pedra

    Resenha | Pau e Pedra

    Ainda em 2016, chega ao Brasil dois dos trabalhos mais famosos do americano Peter Kuper, elogiado quadrinista por trás de Ruínas, de 2015, e este extraordinário Pau e Pedra, de 2004. Ao evidenciar a ascensão e (a esperada) queda da própria civilização do autor, viciada em poder, soberania e colonização sobre outros povos, devido a ganância e o autoritarismo para com outras nações – algo que, no século XXI, continua a pleno vapor, a obra se torna, no mínimo, memorável. Mesmo que o tema, aqui, já tenha sido tratado num sem-número de outras obras, tanto na literatura quanto no cinema, desde que a arte começou a refletir acerca dos grandes impérios que a humanidade já viu.

    Impérios e poderes que, por x motivos ligados a ambição desmedida, e instinto de superioridade, voltaram as cinzas, em tempos ancestrais. Tudo começa com uma erupção vulcânica, ou seja, a aurora do homem. Neste caso, um gigante nasce dos destroços dessa erupção, num mundo em preto e branco que inveja o colorido, e quando o vê, o domina para estender seus domínios, sua própria lógica, e sua própria cultura. O gigante então vira líder de outros destroços ambulantes do mesmo vulcão, aparentemente, também desprovidos da dala, mas menores que ele, e que por isso, o obedecem cegamente – seu exército particular. Com o poder subindo rapidamente a cabeça, o titã passa a não aceitar represálias, e todos abaixo dele devem obedecê-lo ou serão presos. Mesmo ele tendo a mesma origem de seus vassalos.

    Munidos da força e resistência dos seus corpos de pedra, essa pequena civilização cresce, ao passo que silencia o povo alegre e colorido que dominou, e escraviza-os para extraírem recursos da sua própria terra natal – um ex-paraíso. Um belo dia, ela vira uma cópia do império do gigante: um lugar sem vida, sem cor e oprimido. Se no começo de Pau e Pedra, o rei detinha das melhores intenções para consigo mesmo, e seus semelhantes, o poder perfura a rocha, e sobe a cabeça de uma forma irremediável. Todos sofrem com isso, e para enfatizar essa guerra de vaidades e contradições éticas, Kuper não precisa de uma única palavra, tornando célebre com imagens fortemente expressivas um mundo onde quem é maior manda, em geral, com as verdades que inventa, e protege.

    Os EUA invadem territórios como cupim na madeira, não só por armas, é claro, mas com sua cultura através de inúmeros meios e veículos de comunicação a nível global – o chamado soft power, tendo Hollywood a principal aliada deste projeto. O autor deve sofrer ao expor as mazelas morais de sua nação com tamanho radicalismo, e objetividade metafórica, e produz uma alegoria política de grande sagacidade, na qual também o povo dá poder a seus superiores, e arca as consequências já que esse poder é desmedido – e incontrolável, seja por quem é mandado, seja por aquele que se deixa ascender, socialmente. A corrupção é ardilosa, colonial, tóxica, mas a natureza que dá, é a natureza que tira, e tudo pode, um dia, voltar a ser como era no início – nem que, para isso, tudo precise ser levado à estaca zero.

    Unindo diversão, a reflexão, Kuper propõe um ciclo atemporal em que as raças ganham sempre mais uma chance de escolher o melhor caminho para se desenvolverem. Em paz e harmonia, ou, sob guerras e conflitos que a detonarão, cedo ou tarde. O processo é longo, mas o tempo natural das coisas é assim mesmo. Nota-se, inclusive, uma bela alusão ao valores iluministas, com a inteligência sobrevivendo sob a repressão que não vence os que veem além, e cultivam a liberdade como a mais inestimável das joias que se pode ter, e cultivar. Publicada nacionalmente pela editora Cia das Letras através de seu selo Quadrinhos na Cia, num fabuloso trabalho gráfico evidenciando os pontos fortes do traço grosso e chapado do artista, nesta fábula repleta de autocrítica, Pau e Pedra é um dos triunfos que a nona-arte ganhou neste século, e será lembrada entre outras preciosidades.

    Compre: Pau e Pedra.

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  • Resenha | O Longo Adeus a Pinochet – Ariel Dorfman

    Resenha | O Longo Adeus a Pinochet – Ariel Dorfman

    O Longo Adeus a Pinochet (Companhia das Letras), de Ariel Dorfman é um livro que mistura momentos de jornalismo literário e crônica política sobre a História chilena. O ponto de partida é a informação sobre a prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, em Londres, em 1998. A partir daí, o autor, que trabalhou para o ex-presidente Salvador Allende antes do golpe, agora exilado, percorre meio-mundo para recontar a memória do Chile e exigir justiça contra o ditador.

    A narração é ágil, mistura elementos do presente e do passado, e a impressão que temos é que Dorfman quer explicar muita coisa em pouco espaço porque algo impressionante irá acontecer. A escrita é ansiosa; como se o escritor estivesse a segundos de Pinochet e quisesse mostrar ao leitor a face mais profunda da ditadura chilena para que o motivo alegado pelo ex-general (insanidade mental), não cole para aliviar a pena dele. Dorfman é um participante da História do Chile.

    Como ex-assessor do ex-presidente Allende, primeiro presidente socialista eleito democraticamente na América Latina, o escritor viu a ditadura engolir os seus amigos e outros milhares de chilenos; Dorfman viu pessoas desaparecerem, bairros desaparecerem e, acompanhou, com a esperança de um exilado aos dezessete anos, que o crime do ex-general finalmente fosse julgado. Com a prisão do genocida, Dorfman quer observar e exigir justiça da primeira fila. Para isso, não cai no mérito legal do caso, coisa que poderia tornar o texto labiríntico e de difícil compreensão, ao invés, o autor se atém aos significados políticos e simbólicos dessa condenação.

    O passado perpassa o presente. A todo o momento temos flashbacks de uma história que ainda se repete: repressões, mortes, desaparecimentos, violência de todo o tipo, atrocidades, tudo documentado pelo escritor. Por isso a escrita de Dorfman é urgente, um grito que demorou anos para ganhar o mundo. O escritor acompanha o processo e, em uma narração que beira o autobiográfico, nos entrega um relato forte sobre a necessidade que os crimes cometidos contra a humanidade possam ser julgados em outros países.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: O Longo Adeus a Pinochet – Ariel Dorfman.

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  • Resenha | O Idiota: O Clássico de Fiódor Dostoiévski em Quadrinhos

    Resenha | O Idiota: O Clássico de Fiódor Dostoiévski em Quadrinhos

    André Diniz é um quadrinista com quase 20 anos no mercado, e talvez por conta da experiência, sua adaptação de O Idiota, o clássico de Fiódor Dostoiévski, para quadrinhos,é realmente muito bem feito. Publicado pelo selo Quadrinhos na Cia, da Companhia das Letras, a adaptação de Diniz é dessas obras que funcionam por si só, explorando o tema visual em oposição à escrita excessivamente psicológica e interna do gênio russo.

    Em 2018, o romance clássico completou 150 anos de publicação. O livro foi impresso como novela de folhetim e os leitores acompanhavam diariamente o príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin (ou apenas Príncipe Míchkin). Nao me cabe aqui explicar todo o enredo do livro dostoievskiano, primeiramente, por não ser tarefa fácil resumi-lo, já que o romance contém fortes reviravoltas, dezenas de personagens e uma sequência de altos e baixos que se perderiam frente à explicação do todo; segundo porque é um livro de domínio público com dezenas de versões por todos os cantos; terceiro porque é Dostoiévski e se você não leu nada dele ainda, desejo mesmo que você o leia e O Idiota é um bom começo.

    Mas voltando ao trabalho de Diniz. O quadrinista foi brilhante em enxugar o discurso interior, detalhista e psicológico que permeia a enredo de Dostoiévski e ilustrá-lo por meio de desenhos áridos, em preto e branco, que muito lembra o estilo dos cordéis nordestinos, uma de suas tantas características como artista. Há um contraste evidente e esperado entre as duas formas, contudo, o silêncio impresso no quadrinho, os poucos balões de textos, as grandes formas em alguns enquadramentos, despertam a curiosidade do leitor durante a leitura.

    Ao cortar o diálogo dos quadrinhos, conseguimos emergir mais profundamente no mundo silencioso daquela tragédia. Silêncio exterior, visto que a eloquência é feita de forma mental, em Dostoiévski. A ausência de linhas de diálogo pode até supor uma certa rapidez de leitura ou aproximação falsa do drama, mas atente aos detalhes. André Diniz usa apenas o preto, o branco e escalas de cinza, mas são essas nuances entre as tonalidades que darão o tom pesado da narrativa. As sombras são os detalhes.

    O quadrinista também opta por diversos closes nos personagens que devem fazer com que leiamos mais atentamente aqueles desenhos e a narrativa que está se formando. Aliás, talvez o problema do leitor mais apressado é que ele acabe apenas observando, mas não enxergando os acontecimentos da história. Há uma diferença. Apesar de não haver tantos diálogos, é preciso ler os quadrinhos com atenção para mergulhar de vez no drama do príncipe idiota.

    Leitura muito bem recomendada. É uma obra que presta grande serviço a todos os tipos de leitores e funciona complementando o trabalho genial do russo. De fato, adaptar não é seguir à risca o cânone, mas implementar um ponto-de-vista original sobre outro trabalho. Assim as histórias são recontadas entre elas mesmas e o fluxo infinito de suas terminações logo frutificará outras ideias e novas histórias.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: O Idiota.

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  • Resenha | Flores Artificiais – Luiz Ruffato

    Resenha | Flores Artificiais – Luiz Ruffato

    Flores Artificiais (Companhia das Letras), de Luiz Ruffato, é um livro polifônico, cosmopolita e com grande valor literário baseado em um tema caro ao autor: a vida comum. É mais um trabalho onde o escritor mineiro explora o limite entre o real e o ficcional, o humano e o inventado, para re-construir a Literatura enquanto nova invenção do mundo, onde baseia-se na realidade, mas não a repete. A escrita consegue mais que o real, é Ruffato que nos mostra isso.

    Quando informei que o livro de contos é resultado de uma vida, não exagerei. O livro é baseado em seis cadernos de cem páginas onde o engenheiro Dório Finetto escreveu suas memórias como consultor de projetos da área de infraestrutura do Banco Mundial. O autor foi procurado, por carta, pelo engenheiro (como menciona na “Apresentação” do livro), com o objetivo de talvez utilizar aquelas memórias em um livro. A proposta singular tomou mais corpo por conta de os dois homens serem da mesma cidade, Rodeio, em Minas Gerais, e do rico material biográfico enviado por Finetto.

    Assim, Ruffato escolheu passagens da vida do engenheiro e desenvolveu oito contos marcados por personagens globais interpelados por um brasileiro que os encontrava por motivos de trabalho. Como o escritor deixou claro que menos da metade do material de Finetto foi utilizado para a versão final do livro, logo percebemos que o mérito de Ruffato reside na colagem ficcional que adicionou à vida daqueles personagens. O resultado é o máximo de eficiência literária possível. Histórias mirabolantes e dramáticas, pessoas ricas em todas as formas e nacionalidades e um sentimento de não-pertencimento ao mundo que reitera um dos grandes temas da Literatura e da Humanidade: a angústia de viver. Uma dúvida, porém, se faz presente em todos os contos: onde a ficção completa o drama humano? Sem lermos as memórias de Finetto, nunca saberemos a resposta. E assim o livro se torna mais saboroso.

    Alguns assuntos são comuns em todas as histórias escolhidas. O principal é a guerra. O componente bélico paira como uma grande sombra extensa por todo o planeta. Nos contos, ultrapassamos golpes militares, perseguição a minorias étnicas, guerras civis, entre outros conflitos. O segundo é a família. Temos filhos à procura de pais, casamentos despedaçados, traições, arrependimentos familiares, a tragédia de compor um núcleo familiar e observa-lo soçobrar sem nutrir esforço para mantê-lo. O homem solitário, adoece.

    O terceiro tema presente no livro é a memória. Histórias singulares sobrevivem pela contação do absurdo. Esse estranhamento é característica que prende o leitor ao livro e prende a vida ao inusitado de viver. Se a vida pede coragem, como bem o afirmou Riobaldo, o que temos nos contos de Ruffato são porções de realidade que desafiam a sobrevivência dos personagens enquanto sãos e falíveis. (Aliás, o falível é o notório para nosso contentamento de leitores.)

    Por fim, a qualidade de Ruffato como escritor ficcional tem especial brilhantismo nesse livro globalizante. As descrições, os eventos citados, as localidades listadas, as particularidades de cada nacionalidade, os exames psicológicos, o contista é especialmente prodigioso em manter uma linha de entendimento ao compartilhar aquelas informações conosco. Uma leitura soberba para um livro soberbo. Livro muito indicado.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Flores Artificiais – Luiz Ruffato.

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  • Resenha | A Mulher Entre Nós – Greer Hendricks e Sarah Pekkanen

    Resenha | A Mulher Entre Nós – Greer Hendricks e Sarah Pekkanen

    A Mulher Entre Nós, escrito por co-autoria entre as americanas Greer Hendricks e Sarah Pekkanen e publicado no país pelo selo Paralela, da Companhia das Letras, é um livro de suspense que peca pela previsibilidade e pouco carisma da história. Uma trama de violência conjugal que se utiliza de protagonistas femininas em condições fragilizadas ao redor de um masculino impávido e com fortuna, contudo violento. História que não justifica e passa longe da promessa de “Leitura da sua vida” na contracapa da edição.

    Como é comum nos thrillers moderno, temos um Prólogo, uma espécie de capítulo fora da curva que, em tese, funcionaria como atrativo para nos mantermos firmes na leitura. Nessa página especial, lemos uma pequena perseguição: a ex-mulher do protagonista da história persegue a atual noiva dele e, entre grandezas de paranoia e inveja, afirma que causou grande ruína àquela mulher. A perseguidora e arquiteta da ruína alheia é Vanessa, uma mulher de 37 anos, deprimida, que descobre o noivado do rico ex-marido. Sem forças para reconstruir sua vida, ela infla uma obsessão com o objetivo de impedir o casamento dele com a mulher mais jovem.

    Do outro lado da narrativa, temos Nellie, uma jovem sonhadora desejando começar a vida em Manhattan, mas detentora de um segredo que a fez fugir da cidade natal. Richard, o protagonista e homem comum as duas, é mais um cara abastado de comercial de margarina que é imune ao tempo e às mazelas das pessoas, entretanto, logo o entendemos psicopata que se aproveita da imagem de bom moço para manter relacionamentos violentos.

    Sinteticamente, uma trama previsível onde os personagens não suscitam empatia. Os acontecimentos narrados singram as 340 páginas do livro sem vivacidade e tudo parece sem cor. A trama demora a acontecer e, subitamente, se torna óbvia. Os diálogos são simples, não cativam, e padecem da mesma falta de criatividade que flagela a trama. Tudo é previsível, como uma novela para adolescentes.

    As qualidades, que existem, giram em torno de algumas descrições físicas e de ambientes que funcionam como raro brilho no horizonte opaco da narrativa. As autoras, ao abordarem o sensível tema da violência conjugal, apenas repetiram o atual – faltou energia para ousar uma nova construção do tema. Faltou inovação. Dica para a editora Paralela: há escritores no país que escrevem tramas melhores do que essa.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: A Mulher Entre Nós – Greer Hendricks e Sarah Pekkanen.

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  • Resenha | Geovani Martins – O Sol Na Cabeça

    Resenha | Geovani Martins – O Sol Na Cabeça

    Geovani Martins é um jovem escritor nascido em Bangu, onde viveu em meio à comunidade, um Brasil paralelo que vemos em nossas TV’s de LCD, sempre na perspectiva de um Datena ou Bonner, o que faz com que nossa visão desses locais seja ofuscada, partindo de uma perspectiva distanciadora e negativa. Os contos de Martins dão outra perspectiva, ele admite em entrevistas não escrever com o objetivo de mudar a visão das pessoas para com a periferia, contudo, mesmo sem querer, ele consegue. Observando seus contos, muito bem escritos, em uma linguagem oralizada, principalmente no primeiro conto, o que não impede uma leitura leve e instigante, onde temos a impressão visual da história, bem como, já citado, a linguagem, os contos que nos colocam pelos becos das favelas devem ser lidos em voz alta, devem ser imaginados como se de fato estivéssemos lá, uma espécie de ensaio de imanência. Essa atitude nos faz, apesar de meros observadores dos contos, sentir que ali é assim que funciona, é assim que é, e não há muitas escolhas. Assim como no nosso mundo, ou em qualquer outro, o nosso mundo de asfalto, temos posições sociais a almejar, degraus a galgar para o sucesso, não é diferente lá, não são valores diferentes, apenas o conjunto sociocultural tem outro topo, tem outros caminhos para isso, o status social é tão importante quanto em qualquer cultura.

    Não há conto melhor que o outro, mas dependendo do que queremos ver podemos elencar alguns, como o primeiro, que esse, mais que os outros, deve ser lido em voz alta. Ele é em uma linguagem que não parece português, aliás, as palavras são em português, ou variações de palavras originárias, mas que perderam o sentido que damos comumente a elas, e muitas vezes não conseguimos pegar o fio que liga o significado anterior ao novo, gírias regionais, até mesmo microrregionais, só usadas naquele pequeno espaço de algumas quadras. Há uma real dificuldade na leitura desse conto, contudo, ele tem um fluxo interessante, de uma introspecção muito boa, é o simples relato de um dia de sol na praia.

    Outro conto narra a trajetória de uma noite de um pichador. Recém-pai, sempre pensando em seu filho Raul, quer largar a aventura, mas é impelido socialmente para isso, como se o encaixe de sua existência estivesse ali. A importância dessa narrativa é que se acompanhamos as noticias dos últimos 3 ou 4 anos lembraremos do caso de um pichador assassinado pela polícia em um prédio. Desse pichador ficaram resquícios de sua história nas redes, e é nítida a reação entre a notícia da mídia e o conto criado.

    Os contos em sua maioria deixam transparecer uma rotina pré-fixada, onde a maioria das crianças não têm a figura do pai, quando realizarão algo que pode afetar seu futuro invariavelmente pensam na mãe, que seu futuro não é uma questão de um leque de caminhos que se abre, mas alguns caminhos, sendo os melhores relacionados ao tráfico, onde maconha é algo comum e cocaína é a renda da favela, pois quem compra é a classe média que pode sustentar, e com esse dinheiro que entra é possível promover melhorias na comunidade, e por mais estranho e aparentemente contraditória que isso possa parecer, é o que é, e é o único meio no momento em que as pessoas das comunidades que circundam o tráfico de drogas podem sobreviver. O estado não penetra nesses lugares como estrutura de poder e de recursos para a integração com o asfalto, o único tentáculo do estado que chega é o da polícia, e a única politica vista por essas pessoas são algumas cestas básicas distribuídas em anos eleitorais.

    Compre: O Sol na Cabeça – Geovani Martins.

    Texto de autoria de Róbison Santos (Críticas de Livros).

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  • VortCast 58 | Maus e as Atrocidades do Nazifascismo

    VortCast 58 | Maus e as Atrocidades do Nazifascismo

    Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira), Thiago Augusto Corrêa (tdmundomente) e Filipe Pereira (@filipepereiral) recebem Delfin (@DelReyDelfin), do Terra Zero, para comentar um pouco sobre a obra de arte de Art Spiegelman: Maus. Falamos um pouco sobre a carreira do artista, o contexto geopolítico existente na época e a importância de toda essa discussão nos dias de hoje.

    Duração: 112 min.
    Edição: Pablo Grilo, Caio Amorim e Julio Assano Junior
    Trilha Sonora: Flávio Vieira e Julio Assano Junior
    Arte do Banner: 
    Bruno Gaspar

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    Comentados na Edição

    Maus – Compre aqui
    Metamaus: A Look Inside a Modern Classic, Maus (em inglês) – Compre aqui
    É Isto um Homem? – Primo Levi – Compre aqui
    K: Relatos de Uma Busca – Bernardo Kucinski – Compre aqui

    Outras Obras de Art Spiegelman

    À Sombra Das Torres Ausentes – Compre aqui
    Breakdowns – Compre aqui
    Joca e a Caixa – Compre aqui
    12 de Setembro: A América Depois – Compre aqui

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  • Resenha | Não Há Nada Lá – Joca Reiners Terron

    Resenha | Não Há Nada Lá – Joca Reiners Terron

    Não Há Nada Lá (Companhia das Letras, pelo selo editorial Má Companhia), do escritor Joca Reiners Terron, é um romance poliédrico e caótico que tem como fio narrativo (ou filosófico), a literatura e a escrita em si. Trata-se de uma homenagem? Talvez. Ou quem sabe um emplastro de referências recheadas com ocultismo e linguagem culta? Talvez. Certeza apenas que, após a leitura, o leitor não será o mesmo. E isso é muito bom.

    A Literatura é algo que chacoalha a gente, não duvide, mas poucos escritores têm o poder ou a intenção de realmente fazer o leitor experimentar um pouco (ou muito) de desconforto. Terron segue os passos de William S. Burroughs (presente no livro), um pouco de Thomas Pynchon, pitadas de David Foster Wallace, Ricardo Piglia, temperadas com o mago Aleister Crowley (outra figura do livro), e outras  cositas paranoicas e tresloucadas, para fazer o leitor, desde o mais atento ao mais passivo, cair da cadeira e despertar os olhos para a leitura.

    A escrita concisa, rica em imagens e referências, é tecida com esmero vocabular e frases muito bem construídas. Por aí já percebemos os méritos literários do autor. A cobertura do bolo literário são as imagens paranoicas, distorcidas e grotescas que por vezes formamos durante a leitura do livro. Aliás, a figura poliédrica da capa, que posteriormente identificamos como o Tesseract, adentra as páginas do livro e dá pista de como a leitura e a escrita se reinventam dentro e fora de si.

    Esta metáfora digna de ouroboros, a transformação ininterrupta e canibalizadora, é o fio por trás de todas as cenas lisérgicas que pululam na leitura; não por acaso, o título da obra é um não-título na medida que disfarça, desentende, o que há lá. Ou seja, Não Há Nada Lá, porque sempre houve, mas em nano escala, em todas as dimensões e ao mesmo tempo. “O quê?” Perguntará o leitor. A escrita, o livro, pois, como o autor escreve em determinado trecho, “a palavra opera na mais negra das escuridões”.

    Livro pequeno, mas enfezado, desconcertante e surpreendentemente bem estruturado. A princípio, a suposta desorganização de capítulos (eles seguem ordem decrescente), buscam desnortear o leitor. Contudo, a sequência e fluência dos acontecimentos são narrados com domínio e concisão, as descrições são exatas, sem sobras e os diálogos bem projetados. O que arregala os olhos são mesmo as imagens esdrúxulas e os personagens Grande Guitarrista, Gui-o-Guri, Jaime Hendrix, Arthur Rimbaud, papa Pio XI, Fernando Pessoa, entre outros.

    Há algo em Não Há Nada Lá. Um livro bem escrito e desconcertante que presta honras à Escrita e aos Livros enquanto vórtices de criação e recriação do universo. Leitura bastante recomendada.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: Não Há Nada Lá – Joca Reiners Terron.

  • Resenha | Sejamos Todos Feministas – Chimamanda Ngozi Adichie

    Resenha | Sejamos Todos Feministas – Chimamanda Ngozi Adichie

    Lançado pela Companhia das Letras, Sejamos Todos Feministas da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é uma adaptação do discurso feito pela autora no TEDxEuston em 2012. A ideia central do livro gira em torno de propor uma nova educação para meninos e meninas ao redor do globo. As crianças têm que ser educadas de maneira igualitária, sempre respeitando as diferenças biológicas, para que cresçam sem os estereótipos do machismo que prejudicam ambos os sexos, mas notadamente as novas mulheres, segundo a própria autora.

    A palestra transformada em livro reúne momentos da vida de Chimamanda que exemplificam os desafios de uma mulher para chegar a uma posição de destaque na sociedade. A primeira vez que a autora foi chamada de feminista  foi aos 14 anos de idade. A palavra, desconhecida naquele momento, carregava um tom negativo associado, na Nigéria e em outras partes do mundo, às mulheres infelizes que não conseguem arrumar marido. “Então decidi me definir como ‘feminista feliz’”, recorda.

    A partir dessa definição particular, a autora narra o que as mulheres podem ou não fazer sozinhas na Nigéria, tais como: não podem sair sozinhas para jantar fora, não podem entrar em boates sozinha, se entram em hotéis desacompanhadas por vezes são confundidas com prostitutas, etc. E com esses fatos, desdobra questões trabalhistas como menor salário que o homem, pouca presença em cargos de gerência (quando conseguem ser gerentes), assédio, pouca credibilidade em ambiente de trabalho.

    O grande acerto da autora é expor o que acontece na Nigéria como um retrato do que acontece em outras partes do mundo. É a técnica literária da aldeia-mundo, ou seja, do microcosmo para o macrocosmo. Diferenças salariais, assédio e poucas mulheres em cargos de liderança são atualmente pauta da mídia quando ao assunto é ascensão da mulher no mercado de trabalho. Mas o Feminismo exposto pela autora não engloba apenas tais assuntos, mas todas as vertentes que dizem respeito ao feminino. Do lar ao ambiente de trabalho, ao direito de se viver em sociedade.

    Por isso as exemplificações particulares. Certo ponto, a autora diz que os garçons são armas do patriarcado, pois eles, na Nigéria, nunca cumprimentam uma mulher, mesmo quando é elaque dá a gorjeta. Uma prática que certamente não acontece apenas lá. Chimamanda condena o machismo porque atinge ambos os sexos; de forma clara as mulheres, mas também outros homens que não se enquadram nas práticas machistas, e por isso são tratados como homossexuais ou fracos.

    Para subverter tais práticas, a autora aponta uma nova Educação para meninos e meninas. Uma instrução igualitária, humanista, em que as crianças cresçam sem o regime psicológico que delega as profissões ou atividades domésticas de acordo com o sexo. Mais do que uma palestra ou livro excelente, Sejamos Todos Feministas é um convite para que aqueles que negam os problemas de gênero compreendam e aceitem discutir uma educação igualitária para o milênio. Feminismo é humanismo, é revolução. É urgente.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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  • Resenha | Almanaque 1964 – Ana Maria Bahiana

    Resenha | Almanaque 1964 – Ana Maria Bahiana

    Almanaque 1964: Fatos, histórias e curiosidades de um no que mudou tudo (e nem sempre para melhor) (Companhia das Letras), da jornalista Ana Maria Bahiana é uma obra de apuração jornalística eclipsada pela caoticidade da diagramação, uma prova que até o melhor texto ou as melhores informações podem ficar prejudicadas por falta de uma ordem funcional de leitura.

    Os almanaques têm sempre a tarefa hercúlea de resumir as notícias importantes de determinado ano ou assunto de forma coesa e instigante ao leitor. De forma isolada, as partes não se entendem; se o texto é muito bom, mas a disposição da página é prejudicial, o leitor não conseguirá eleger uma ordem de leitura e por vezes perderá o fio da meada dos acontecimentos; por outro lado, se a diagramação é boa, mas a informação é insuficiente, o leitor nadará no raso, sem conseguir entender a fundo aqueles acontecimentos. No “Almanaque 1964” da Companhia das Letras, temos o primeiro caso. A riqueza do texto escrito pela experiente Ana Maria Bahiana se perde frente à desordem de leitura (talvez uma metáfora ao caótico ano de 1964?).

    Logo no sumário entendemos que os capítulos representarão os meses daquele ano. Em cada capítulo um texto sintetiza o que aconteceu naquele mês, com fotos para exemplificar destaques, e a seguir nos deparamos com uma linha do tempo em que o leitor, teoricamente, acompanharia dia a dia os acontecimentos enquanto a progressão de números também indica uma ordem de leitura. Este é o maior erro: o leitor não acompanha a ordem dos números, antes, o olhar é capturado pelos destaques que mais parecem manchetes jornalísticas.

    A falha, portanto, é que a diagramação interna é semelhante a um jornal, e todo mundo “aprende”, na leitura jornalística, a ler as manchetes grandes primeiro porque, teoricamente, são as mais importantes, e as menores são lidas no final (se der tempo). Daí fica claro um desalinho entre diagramação e leitor, pois os trechos destacados na “linha do tempo” de cada mês, apresentam formatos de letra e tamanho diferentes entre si; ou seja, quem lê perde a sequência lógica dos fatos para criar uma ordem de leitura baseada no tamanho das letras que encontra.

    Outra coisa que poderia melhorar o entendimento sobre a obra (e o ano), seria uma divisão clara e ordenada dos fatos acontecidos no Brasil dos referentes aos outros países. As informações, como estão, sobrepõem-se geograficamente e temos que pinçar o que acontece no nosso país do que ocorreu no resto do mundo, e vice versa. Novamente, falta uma continuidade que permitirá ao leitor criar uma ordem lógica dos acontecimentos; por vezes as informações parecem à deriva, soltas, sem complemento ou profundidade.

    Afora a diagramação problemática, como as páginas verdes com letras também em verde, as fontes serifadas e não-serifadas com tamanhos diferentes em cada página, as manchetes serifadas com entrelinhamento baixo (como se uma palavra estivesse rasgando a outra), a (des)ordem numérica e os acontecimentos sobre o Brasil enrolados com aquelas de outras partes do mundo, “Almanaque 1964” pode funcionar muito bem como instrumento de pesquisa inicial para os interessados sobre aquele ano obsceno.

    Texto de autoria de José Fontenele.

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