Tag: Socialismo

  • Crítica | Gorbachev.céu

    Crítica | Gorbachev.céu

    Gorbachev.Céu é um documentário curioso. Além de dar voz a uma figura política controversa do passado, o ex-secretário geral do Partido Comunista e ex-presidente da União Soviética Mikhail Gorbachev, também se permite ser silencioso e contemplativo. Vitaly Mansky mergulha na identidade e intimidade do homem a quem se atribui o fim do sonho socialista, com ele já limitado fisicamente, embora bastante lúcido.

    Gorbachev fala a respeito do desprezo que parte dos russos tem por sua figura, especialmente da imprensa, ainda que encare o momento político atual do país como continuação do seu trabalho. Ele se sente um herói da política e da democracia, vê Vladimir Lenin como um deus, mantém um postura serena e calma na maior parte dos momentos e se diz, reiteradamente, que foi mal compreendido ao longo de seu mandato.

    O filme tem um ritmo lento, acompanhando as falas e pensamentos de seu biografado, os poucos momentos enérgicos resultam dos resumos que ele faz a respeito de figuras notáveis do regime soviético, especialmente as óbvias como Lenin e Josef Stalin, e outros menos lembrados como Yuri Andropov e Fyodor Kulakov. Suas opiniões são contundentes e curiosas, é possível enxergar em suas falas semelhanças com políticos brasileiros, incluindo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que além de não gostar de ser associado à direita é escorregadio ao falar dos seus erros como governante.

    Mansky considera Gorbachev um pária, e de fato, ele é. Contudo, o lado que ele escolhe defender em seu filme é que Mikhail foi injustiçado, a visão apresentado pelo documentário era que a URSS era nefasta e que a classe trabalhadora não teve tantos avanços. Isso não impede que entre cineasta e entrevistado haja atritos ou mitificações, Gorbachev responde de maneira atravessada a indagação de que a Rússia não é um país de democracia longeva, e de que seus tempos não fugiam do autoritarismo, e mesmo sem ter a mesma força de quando era jovem, ele se mostra vaidoso e resoluto, embora na maior parte do tempo seja cortês.

    Parece um castigo que o presidente que estava no poder na dissolução da potência soviética esteja vivo e consciente, beirando um século de vida, possivelmente podendo acompanhar as duras críticas feitas sobre sua pessoa. Apesar da mornidão e do viés liberal existente no filme, Gorbachev.céu retrata um importante ator político do século XX, e ajuda a visualizar o mapa socioeconômico de hoje e ontem.

  • Crítica | Glória à Rainha

    Crítica | Glória à Rainha

    Glória à Rainha é um documentário divertido e propositivo que conta a historia de quatro mulheres enxadristas da União Soviética que se tornaram símbolos de luta em uma época em que os papéis de destaque recaiam apenas sobre os homens, mesmo em um local conhecido por ser governado por um regime de esquerda. O filme de Tatia Skhirtladze é parte da mostra internacional do festival É Tudo Verdade.

    As personagens do filme são Nona Gaprindashvili, Nana Alexandria, Maia Chiburdanidze e Nana Ioseliani. O documentário acompanha um pouco do dia a dia delas, todas já na meia idade entre os 50 e 70 anos. O resgate da historia e a intimidade de cada uma dá um pouco da dimensão de como ocorreu, não só a carreira desportiva delas, mas também o pós dissolução da URSS.

    A narração do filme é bem utilizada quando o conteúdo é composto de imagens de arquivo. Enquanto nos momentos mais naturalistas (cenas mais atuais), são as próprias mulheres que conduzem além de outras pessoas envolvidas ou aqueles que possuem nomes em homenagem as enxadristas. Algumas delas também se lançaram no ofício de enxadristas, provando a influência do quarteto na cultura e no esporte em cada uma das repúblicas do antigo país comunista.

    Mesmo sem gastar tempo abordando a política da época, o filme acaba traçando um bom cenário de como era importante para os governos socialistas o investimento em práticas esportivas diversas, sejam elas de equipe ou individuais. Para o aficionado em Xadrez, o documentário é bem interessante, pois estabelece não só o contato com torneios importantes do passado, mas também detalha eventos que poderiam passar despercebidos por aqueles que não compreendem o jogo com profundida. São aproximadamente 18 trilhões de movimentos possíveis em uma partida e cada mulher pode perder meio quilo em uma partida dada a tensão do jogo. Dentro do filme até se lamenta que hajam poucas mulheres enxadristas no território da Rússia e nos demais vizinhos que formaram a União Soviética, o que, evidentemente, é uma pena, já que a historia das biografadas é rica.

    Glória à Rainha tem uma fórmula levemente diferente do que se vê normalmente em documentários norte-americanos ou  brasileiros. Há um modo mais frio de conduzir a narrativa por questões culturais mas, mesmo dentro dessa mentalidade, se percebe um apreço caloroso pelas quatro atletas, que entre rivalidades e disputas seguem como embaixadoras de uma prática esportiva rica e popular entre muitas pessoas.

  • Resenha | A Revolução dos Bichos

    Resenha | A Revolução dos Bichos

    “Quatro pernas bom, duas pernas ruim!”

    Na missão de adaptar um dos maiores clássicos da literatura moderna mundial, A Revolução dos Bichos, de George Orwell, o ilustrador brasileiro Odyr não poderia ser mais bem-sucedido, em sua empreitada. Aos transpor o romance direto para o mundo das formas e cores de uma HQ, o artista gaúcho oferece uma nova roupagem digna de aplausos a mais trágica das parábolas ocidentais, e claramente universal, agora com uma dinâmica visual diferente. Preservando consigo a força deste “conto de fadas rural”, que Orwell imaginou há quase oitenta anos, e cuja glória o Cinema ainda não deu cabo de honrar, nada mudou na essência da alegoria histórica, muito pelo contrário.

    Desde 2019, temos aqui uma potência fabulesca e gráfica inéditas a embalar esta obra-prima sobre porcos e cavalos, cães e vacas que, cansados do chicote, formaram oposição com os seus cascos e chifres à violência do Sr. Jones, o fazendeiro da Granja do Solar, no interior da Inglaterra. Foi lá que a epopeia da bicharada começou, e sob a égide da coragem, da revolta e da esperança de serem donos de seus próprios destinos, sua Revolução expulsou o Sr. Jones daquelas terras, e a liberdade então se instalou. Desimpedidos, os trabalhadores e pacíficos bichos da Granja instituíram regras (a mais famosa, sendo “quatro patas bom, duas patas ruim”) a fim de simbolizar a verdade suprema: todos os animais são iguais! Só assim a dor da escravidão poderia ser, um dia, esquecida.

    Mas não tardou de aparecer uma maçã podre entre as aves e cães, entre os equinos e galináceos, traindo os princípios da Revolução, e arruinando a utopia desse paraíso. Logo, os ‘cidadãos’ da Granja dos Bichos são envenenados por uma inteligência superior entre eles, sem piedade ou culpa, e uma ideologia de violência e paranoia chega para encobrir a tirania, que só cresce. E de repente, onde antes imperava a felicidade, corre o risco de voltar a ter um imperador pior do que jamais se viu, antes. A sátira a política Stalinista na antiga União Soviética não poderia ser mais explícita ao leitor mais esperto, nem um pouco suavizada pelo texto ou pelos sublimes desenhos em nanquim de Odyr – muito mais que meros acessórios de luxo, à história.

    Em A Revolução dos Bichos, ao tecer de modo crítico e impactante a formação de um tirano, e seus seguidores cegos, envoltos neste sistema de pensamento único que aterroriza uma sociedade sem livre-opinião (submetida a um intérprete oficial que dita o certo, e o errado), Orwell flerta com o fascismo, a barbárie, a origem das distopias e toda sorte de injustiça que são injetadas, ou ainda, acordadas dentro de uma civilização. Todos os temas, como já afirmado, seguem intactos nesta obra-prima consequente, publicada no Brasil pela editora Quadrinhos na Cia., e que por seu colorido apelo e linguagem irresistíveis para todos os públicos, deve fazer parte das bibliotecas escolares para atrair os mais jovens a vivenciar, e aprender com esta aventura de modo divertido, mas não menos reflexivo.

  • Crítica | Judas e o Messias Negro

    Crítica | Judas e o Messias Negro

    Judas e o Messias Negro é dedo na ferida, sem perder o controle. É fera ferida que não perde seu charme, nem seu brilho quando o bicho pega. Emulando toda a barbárie e o racismo institucional na sociedade americana de 1969, o filme registra muito mais que a luta de Fred Hampton, o líder do Partido dos Panteras Negras, para com o engajamento do povo negro em prol de sua sobrevivência diante da brutalidade policial, mas expõe com força impressionante o trauma vivido pelo grupo radical dos Panteras e a tensão dos seus embates em uma Chicago retratada quase como cenário sem-lei de faroeste, sob uma típica atmosfera política que sufoca qualquer um. Judas tece críticas externas e também internas ao movimento, sem diluir ou exagerar nenhuma causa ou consequência de suas ações coletivas, por vezes planejadas e as vezes desesperadas, nisso tornando-se, facilmente, um dos melhores filmes do ano de 2020.

    Drama caprichado, cuja base está na dualidade entre um “messias” que vive para conscientizar e limpar a dor dos seus, e o seu querido Judas particular (William O’Neal, um moleque informante do FBI infiltrado nos Panteras), temos aqui um contraponto moral estabelecido com total naturalidade e franqueza, sendo este grande parte da espinha dorsal do filme. Ousada, e direta ao ponto, a obra serve como um debate ficcional e histórico à questão: vale a pena combater fogo contra fogo? Se o radicalismo do grupo os levou à danação, a coragem e a determinação de homens e mulheres cansados de sofrer, por ser quem são, merecem ser lembradas contra a vitória de um estado higienista. Judas e o Messias Negro é sobre a força que nasce da humilhação, e do perigo de “viver” numa sociedade cujo racismo estrutural ameaça qualquer gota de melanina portada por um cidadão. Inevitável a revolta explodir, e Fred é o capitão do barco, ciente de que poderá ser apunhalado pelas costas a qualquer momento.

    Mas não há outro caminho, senão seguir. Ele(s), contra o mundo, anti-heróis deles mesmos, tentando construir uma realidade utópica mais justa, nos anos 60. Ao invés de rejeitar a violência e o suspense que brota de certas sequências, o diretor Shaka King assume com orgulho a bravura do seu protagonista, e entrega um filme sensível, poderoso e realista, mas jamais apologético e muito menos hipócrita perante os seus temas mais complexos, e ainda atuais. Daniel Kaluuya, de Corra!, entrega o melhor trabalho da sua carreira, ao carregar no olhar enigmático o pesar e as desilusões de um homem muito jovem, castigado, e que ainda sorri entre seus seguidores rumo ao bem-estar da sua raça, tão sonhado. Como seu contraponto nessa história de luta sem glória, Lakeith Stanfield é um nome cada vez mais respeitado em Hollywood, presente também na ótima série Atlanta, tendo aqui o papel de vilão arrependido, perdido na própria confusão. Na própria dor, e perseguição, por ser quem se é.

  • Resenha | Como Esmagar o Fascismo – Leon Trotsky

    Resenha | Como Esmagar o Fascismo – Leon Trotsky

    “[…] nós não temos medo dos fascistas, senhores. Eles vão sumir daqui mais rápido do que qualquer outro governo.”

    Será? Diferente do que pode-se esperar, devido ao título da obra, Como Esmagar o Fascismo não indica uma receita mágica e imediatista contra o oportunismo que corrói as mentes e corações das nações diante de imensos problemas a serem enfrentados. O fascismo não tem hora para ir embora, depende de nós, mas está sempre a espreita; nunca morre. Revivido de geração a geração, o fantasma sedutor do “desespero contrarrevolucionário”, como bem aponta Leon Trotsky, volta para nos lembrar que nenhuma paz é duradoura, e que diante de tempestades, nós nunca devemos baixar a guarda a ponto de subestimar seu poder de corrupção. Nossos monstros não surgem do nada. Eles são construídos, e permitidos, por quem dorme achando que o jogo está ganho.

    Colocando o tema sob uma perspectiva histórica, o líder comunista Leon Trotsky analisa em diversas cartas antes da Segunda Guerra Mundial, aqui brilhantemente traduzidas para o português, todo o processo de envenenamento político e ideológico do povo alemão, francês e espanhol logo após o término da Primeira Guerra, e o super colapso econômico de 1929. Nota-se que, com países e valores nacionais entregues a uma frágil democracia europeia, e rendidos a um capitalismo agonizante, não demorou muito para os ratos do convés (eles não surgem do nada) enxergarem um terreno perfeito para virem à tona. Fato é que, com uma pequena burguesia e seu capital monopolista perdidos na névoa da instabilidade econômica e política, e uma classe trabalhadora sentindo-se injustiçada, às traças, qualquer um, ou melhor, qualquer persuasão em terra de cego vira lei.

    Por subestimar esse “qualquer um”, a esquerda europeia perdeu o jogo e viu o fascismo de antes evoluir, aos poucos, para um nazi-fascismo sem precedentes na história, com a ascensão de Adolf Hitler e seu apoio cada vez maior do povo alemão, enquanto a democracia europeia era usada para eleger demônios antirreformistas, antirrevolucionários e antiprogressistas, em suma. Nota-se, na prática, o quanto o fascismo cria abismos entre as classes, amplia a diferença entre seus interesses, e faz o povo duvidar de si mesmo, tornando-o fraco feito cristal. Assim, Trotsky na publicação da editora Autonomia Literária defende, em um compilado de reflexões inesquecíveis, uma estratégia clara e urgente do proletariado para ir à luta contra sistemas políticos peçonhentos, sempre com seus avatares de novos rostos e mofados discursos. Antes nos palanques, hoje reforçados pelas redes sociais, e outras plataformas de lavagem cerebral e corrupção moral. É claro que a luta será demonizada, e por isso mesmo a estratégia se faz imprescindível no combate.

    Sem apelar para os extremos, e sim a uma radicalização da classe trabalhadora em tempos de grande perigo, muitas vezes não-reconhecido, Como Esmagar o Fascismo joga uma luz impiedosamente crítica e alarmante para a eficiente e atemporal manobra de se alimentar grande problemas, para enfim, apresentar uma nova solução – que de novidade não carrega nada, apoiando-se numa sociedade pouco escolarizada e má formada historicamente para voltar em cena. Tal um velho filme de Charles Chaplin que, exibido a uma plateia que desconhece o gênio, pode ser convencida de presenciar algo inédito e esperançoso, este é o poder cruel do fascismo, além de se adaptar as épocas com rapidez e irreverência impressionantes. O sucesso eleitoral nazista, em 1932, provou como a agonia de um povo o arremessa a um possível suicídio político e ideológico, no que Trotsky reforça ser culpa, em larga escala, de uma esquerda desorganizada, e que nunca leva em conta a força de uma burguesia unida, com seus pares e seus múltiplos recursos persuasivos.

    Compre: Como Esmagar o Fascismo – Leon Trotsky.

  • VortCast 68 | Rambo

    VortCast 68 | Rambo

    Bem-vindos a bordo. Filipe Pereira, Jackson Good (@jacksgood), Rafael Moreira (@_rmc), Mario Abbade (@AbbadeMario) e Carlos Brito para comentar sobre Rambo e a série de filmes iniciada em 1982, protagonizada por Sylvester Stallone e baseada no romance de David Morrell.

    Duração: 94 min.
    Edição: Julio Assano Júnior
    Trilha Sonora: Julio Assano Júnior
    Arte do Banner:
     Bruno Gaspar

    Agregadores do Podcast

    Feed Completo
    iTunes
    Spotify

    Contato

    Elogios, Críticas ou Sugestões: [email protected].
    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram

    Acessem

    Brisa de Cultura
    Cine Alerta

    Conheça nossos outros Podcasts

    Agenda Cultural
    Marxismo Cultural
    Anotações na Agenda

    Comentados na Edição

    Crítica Rambo: Programado Para Matar
    Crítica Rambo II: A Missão
    Crítica Rambo III
    Crítica Rambo IV
    Crítica Rambo: Até o Fim

    Avalie-nos na iTunes Store | Ouça-nos no Spotify.

  • Crítica | Zoya

    Crítica | Zoya

    Produção do estúdio de cinema Soyuzderfilm lançada em 1944, Zoya é uma produção soviética, em preto e branco e um registro cinebiográfico da vida de Zoya Kosmodermyamskaya, uma militante e combatente russa que lutou contra a invasão nazista na URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). O filme começa com a chegada de uma pessoa estranha numa instalação militar que só tinha homens. Logo, percebem ser essa pessoa uma mulher e a levam até os lideres do regimento nazista. O sujeito dá um tapa com as costas da mão na mulher, interpretada por Galina Vodyanitskaya, basicamente porque ela se mantem em silêncio. Aos poucos, a história da personagem real é desenvolvida, com direito a um retorno à época de sua infância.

    Quando retorna ao passado, o filme relembra os períodos da Revolução Soviética e utiliza imagens reais de Josef Stalin, soando como uma propaganda do governo, mas sem compromisso de louvar a figura do líder soviético, mas demonstrando apenas o teor informacional. A forma como aparecem essas referências não tem demora, o foco narrativa nesse trecho é na construção do código ético da personagem, que já no início, era estabelecido pela sua militância e estudos, visando tornar a juventude em algo mais que apenas massa de manobra.

    No longa é retratado que durante a ofensiva alemã, uma das maiores armas contra a ideologia nazifascista foi a instrução da juventude, que ocupava sua mente com conceitos que punham o povo como soberano, um pensamento que tinha nos trabalhadores seu foco central e suas articulações, dessa forma, a ascensão do Fuhrer e de uma mentalidade segregadora batiam de frente com o ideal não só de Zoya, como de todos os seus contemporâneos. Ora, para aquele juventude não existia alternativa senão o combate de forma veemente a ideologia de Adolf Hitler, Benito Mussolini e outros líderes de extrema-direita.

    O filme foi lançado em Novembro de 1944, alguns poucos meses depois de Dia D onde as forças aliadas invadiram a Normandia, ou seja, é uma obra bem contemporânea. Os letreiros que descrevem as ações de Zoya dão a ela um caráter de heroísmo, mas não tornam ela um incidente isolado, ao contrário, fica claro que ela e tantos outros compatriotas se juntaram no esforço de guerra contra o Eixo. Falando assim parece maniqueísta a premissa, e de fato é quase impossível não soar assim dada a época do filme, mas o exemplo da personagem-título serve demais ao propósito de mostrar como prevenir a simpatia ou tolerância ao nazifascismo.

    Facebook – Página e Grupo | TwitterInstagram | Spotify.
  • Resenha | O Longo Adeus a Pinochet – Ariel Dorfman

    Resenha | O Longo Adeus a Pinochet – Ariel Dorfman

    O Longo Adeus a Pinochet (Companhia das Letras), de Ariel Dorfman é um livro que mistura momentos de jornalismo literário e crônica política sobre a História chilena. O ponto de partida é a informação sobre a prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, em Londres, em 1998. A partir daí, o autor, que trabalhou para o ex-presidente Salvador Allende antes do golpe, agora exilado, percorre meio-mundo para recontar a memória do Chile e exigir justiça contra o ditador.

    A narração é ágil, mistura elementos do presente e do passado, e a impressão que temos é que Dorfman quer explicar muita coisa em pouco espaço porque algo impressionante irá acontecer. A escrita é ansiosa; como se o escritor estivesse a segundos de Pinochet e quisesse mostrar ao leitor a face mais profunda da ditadura chilena para que o motivo alegado pelo ex-general (insanidade mental), não cole para aliviar a pena dele. Dorfman é um participante da História do Chile.

    Como ex-assessor do ex-presidente Allende, primeiro presidente socialista eleito democraticamente na América Latina, o escritor viu a ditadura engolir os seus amigos e outros milhares de chilenos; Dorfman viu pessoas desaparecerem, bairros desaparecerem e, acompanhou, com a esperança de um exilado aos dezessete anos, que o crime do ex-general finalmente fosse julgado. Com a prisão do genocida, Dorfman quer observar e exigir justiça da primeira fila. Para isso, não cai no mérito legal do caso, coisa que poderia tornar o texto labiríntico e de difícil compreensão, ao invés, o autor se atém aos significados políticos e simbólicos dessa condenação.

    O passado perpassa o presente. A todo o momento temos flashbacks de uma história que ainda se repete: repressões, mortes, desaparecimentos, violência de todo o tipo, atrocidades, tudo documentado pelo escritor. Por isso a escrita de Dorfman é urgente, um grito que demorou anos para ganhar o mundo. O escritor acompanha o processo e, em uma narração que beira o autobiográfico, nos entrega um relato forte sobre a necessidade que os crimes cometidos contra a humanidade possam ser julgados em outros países.

    Texto de autoria de José Fontenele.

    Compre: O Longo Adeus a Pinochet – Ariel Dorfman.

    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram | Spotify.

  • VortCast 58 | Maus e as Atrocidades do Nazifascismo

    VortCast 58 | Maus e as Atrocidades do Nazifascismo

    Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira), Thiago Augusto Corrêa (tdmundomente) e Filipe Pereira (@filipepereiral) recebem Delfin (@DelReyDelfin), do Terra Zero, para comentar um pouco sobre a obra de arte de Art Spiegelman: Maus. Falamos um pouco sobre a carreira do artista, o contexto geopolítico existente na época e a importância de toda essa discussão nos dias de hoje.

    Duração: 112 min.
    Edição: Pablo Grilo, Caio Amorim e Julio Assano Junior
    Trilha Sonora: Flávio Vieira e Julio Assano Junior
    Arte do Banner: 
    Bruno Gaspar

    Feed do Podcast

    Podcast na iTunes
    Feed Completo

    Contato

    Elogios, Críticas ou Sugestões: [email protected].
    Facebook – Página e Grupo | Twitter Instagram

    Acessem

    Terra Zero

    Comentados na Edição

    Maus – Compre aqui
    Metamaus: A Look Inside a Modern Classic, Maus (em inglês) – Compre aqui
    É Isto um Homem? – Primo Levi – Compre aqui
    K: Relatos de Uma Busca – Bernardo Kucinski – Compre aqui

    Outras Obras de Art Spiegelman

    À Sombra Das Torres Ausentes – Compre aqui
    Breakdowns – Compre aqui
    Joca e a Caixa – Compre aqui
    12 de Setembro: A América Depois – Compre aqui

    Podcasts Relacionados

    VortCast 27 | Retalhos
    VortCast 29 | Daytripper
    VortCast 36 | O Que Restou da Ditadura

    Avalie-nos na iTunes Store.

  • Resenha | Crime e Castigo – Fiódor Dostoiévski

    Resenha | Crime e Castigo – Fiódor Dostoiévski

    Corta pra 1886. Fiódor Dostoiévski, que sob a ameaça real de ruína financeira devido o vício do escritor em jogos de azar, vivia isolado, revoltado pelas obrigações burocráticas que não dava conta. Nisso, se organiza a escrever duas obras-primas em sucessão: O Jogador (inspirado pela sua paixão em jogatina que só o conduzia a bancarrota) e Crime e Castigo, talvez a cria mais famosa e representativa do estilo do mestre do leste europeu, sua delineação narratológica dos fatos e, é claro, os traços psicológicos de uma trama que sempre corre o risco de nos parecer complexa por natureza, mas que passa a ser desconstruída e desproblematizada de um jeito místico, profundo e por vezes desesperador que só ele conseguia alcançar prodigiosamente bem, atingindo, assim, outra de suas façanhas literárias.

    Estamos portanto na mente de um assassino, e nada nos é poupado ao longo da leitura. Antes de tudo, periga-se afirmar que estamos falando de um calhamaço hipnótico e perturbador até aos menos sensíveis que “descansam” os olhos nessas páginas. Beira por assim dizer a impossibilidade de deixarmos de lado essa curiosa investigação (e a contestação) jurídica e perturbadora dos fatos envolvendo toda essa liberdade existencial, ou ainda, essa condenação ética e moral (muito além das grades do xilindró) de Raskólnikov, a quem temos a chance de revirar sua alma.

    Contudo, o livro arrebata e prende seus leitores não apenas pela condição pobre e jovial do estudante, algo bastante identificável por mulheres e rapazes de todas as idades nessas condições classistas, mas pelo que se desenrola numa teia de diálogos ofensivamente belos e perfeitos que dificilmente acharia concorrência na literatura pós-séc. XIX, após o assassinato de uma agiota pelas mãos desse rapaz neurótico que vive querendo ser lembrado, talvez aclamado, num sistema capitalista que o exclui e o deixa refém do seu próprio julgamento pernicioso, e tão qual ou menos importante ainda, de todo um social que o oprime, tanto por ser quem é, mas também por seus vícios, sua forma de pensar e agir no mundo e seu incidente fatídico (achou um paralelo entre os dilemas do escritor e os da sua criatura?).

    Raskólnikov, o homicida tido antes como mais um cara comum, mostra-se arquitetado da substância que é feito cada um de nós em determinado momento de nossas vidas, daí a escolha de Dostoiévski pela condição do protagonista da vez – este é outro grande atributo do escritor: apontar e usufruir com precisão do intermediário principal entre suas ideias, e quem as consome por essas palavras que lê – pois, assim como o jovem estudante, também já nos passou pela cabeça ser superior aos outros, ser apto a categorizar Deus e o mundo, burlar os sistemas, revolucioná-los de acordo com ideais humanitários que consideramos moralmente corretos, etc.

    Todavia – entre arcos de personagens que amparam a consistência dramática da história principal onde os desdobramentos acerca do estudante se dão –, desde a metade do livro em diante quando o jovem e seus conhecidos enxergam a dimensão das opressões sociais e psicológicas que já se encontram mergulhados a partir da morte de uma cidadã como qualquer outra, então, já é tarde demais para qualquer coisa exceto a culpa, o auto-engano casual e um eventual desespero galopante que atuam e agem na estrutura lógica de Crime e Castigo como a força da natureza que também nos integra e nos torna ambivalente, e de forma às vezes implacável.

    Uma obra seminal que surfa entre suas temáticas com a familiaridade de um nadador olímpico num piscina de vinte litros, cujos desdobramentos da construção literária permitem que Dostoiévski atice e reitere amplamente sua perícia no campo de atuação que mais gostava de revirar, a psique-humana, desdobrando-a em prol da narração verdadeiramente inesquecível com sua típica elegância, sua imersão total no coração de suas personas e seus momentos de intensidade sem iguais (a descrição da cena que culmina com a confissão de Raskólnikov sobre o que crime que cometeu, todo o arranjo de palavras milimetricamente escritas evocando o terror de suas entranhas para nos fazer sentir na pele suas angústias, é magistral). Uma inspiração eterna à maioria dos contos, filmes e um sem fim de inumeráveis novelas além dos gêneros policial e de suspense, como de praxe entre as obras do russo.

    Compre: Crime e Castigo – Fiódor Dostoiévski.

    Acompanhe-nos pelo Twitter e Instagram, curta a fanpage Vortex Cultural no Facebook, e participe das discussões no nosso grupo no Facebook.

  • Crítica | O Jovem Karl Marx

    Crítica | O Jovem Karl Marx

    O cinema político é o cerne da filmografia do haitiano Raoul Peck. Transitando entre o cinema e a TV, o diretor se tornou conhecido pelo caráter crítico e social de seus filmes, em especial com a indicação ao Oscar de melhor documentário por Eu Não Sou Seu Negro, sobre a vida e obra do escritor e ativista James Baldwin. No entanto, seu prestígio se destaca desde os anos 2000 em filmes como Lumumba, cinebiografia do líder congolês Patrice Lumumba; Abril Sangrento, sobre o genocídio de Ruanda; além de uma ampla filmografia sobre as mazelas sofridas pelo seu povo ao longo da história. De modo que não se mostra uma surpresa a escolha de Peck em filmar um período da vida de um dos teóricos mais importantes dos últimos séculos: Karl Marx.

    O Jovem Karl Marx, escrito por Peck e Pascal Bonitzer, com a colaboração de Pierre Hodgsonfoi lançado em um período bastante controverso de nossa história. Não apenas pela série de retrocessos sociais que os trabalhadores vêm sofrendo, mas também pelo avanço e crescimento do conservadorismo no mundo. “Se eu não usar o trabalho infantil outros farão e eu perderei mercado”, alega um empresário em determinado momento do filme, desculpas não tão distantes daquelas que costumamos ouvir hoje. Se tratando de Peck, não há coincidências. Seu cinema anda lado a lado com o nosso tempo.

    O trabalho do diretor procura discutir a constituição histórica do marxismo. Se voltando para a gênese da teoria social desenvolvida por Marx e Friedrich Engels (Stefan Konarske), o longa busca retratar todo o cenário do movimento revolucionário anticapitalista do século XIX, desde anarquistas, como Mikhail Bakunin (interpretado por Ivan Franek) a diversas variantes de socialistas. Culminando na construção do chamado socialismo científico que superava as teses idealistas e utópicas dos pensadores da época.

    Assim, o filme se inicia com um período bastante específico da juventude de Marx, a perseguição do Estado prussiano aos camponeses por conta do “furto” de madeira – lei que criminalizava qualquer cidadão que apanhasse lenha caída na floresta por se tratar de propriedade privada. O legislativo responsável pelo projeto de lei entendia ser necessário um alargamento do termo “furto” para essas situações, já que se versava apenas de mera contravenção penal. O absurdo era tamanho pois não se referia meramente de furto de madeira verde, mas sim a criminalização pela subtração de madeira caída e apanhada no chão ou ainda o recolhimento de madeira seca. Para Marx, ainda um democrata radical neste período, se tratava de um claro exemplo de mercadorização da natureza e uma adequação das leis segundo os interesses de uma maioria e não a natureza jurídica das coisas. A visão do direito para o pensador também sofreria modificações a partir de então.

    Essa criminalização culminou em prisões e até mesmo em assassinatos de camponeses pobres pelo governo, marcando profundamente o pensamento de Marx acerca do papel da propriedade privada e do próprio Estado. O fato é fundamental, pois, em poucos minutos do filme somos apresentados ao protagonista quando ainda  escrevia no jornal prussiano Gazeta Renana,  publicação que mantinha um postura severa à monarquia. Criticado pelos seus pares pela radicalidade de seu artigo sobre o tema (texto que pode ser lido no livro Os Despossuídos, da Boitempo Editorial), o acontecimento marca não apenas sua entrada na vida política, mas também o primeiro embate com questões “materiais” e não apenas filosóficas. Em cena, temos o primeiro rompimento de Marx com a escola de pensadores radicais democratas e idealistas, por se dar conta dos limites e contradições dentro da ordem e do caráter de classe do Estado burguês.

    A produção é calcada na tomada de consciência de Marx para um modelo teórico-econômico que seria desenvolvido ao longo dos anos, mas que tem como pedra basilar sua aproximação com Engels, as superações do pensamento crítico-radical e a definição da classe trabalhadora como o sujeito revolucionário. Todos esses importantes períodos da juventude de Marx são bem retratados, mantendo uma boa didática para os que não conhecem o cerne da obra do pensador, inclusive desmistificando a demonização constante do autor e sua obra.

    Após essa apresentação inicial, somos apresentados ao jovem Engels, no interior de uma das fábricas têxtil de seu pai na Inglaterra, mostrando uma revolta de mulheres diante da completa falta de condições e segurança de trabalho. Interessante notar como Peck retrata as contradições do parceiro de Marx, filho de um legítimo burguês que explora sem piedade seus funcionários, mas que ao mesmo tempo luta contra essa exploração. O contraste entre as condições materiais de Marx e Engels funcionam como um espelho ao longo do filme, seja pelo figurino de cada um ou pelos cigarros que fumam e os ambientes que frequentam.

    A união é apresentada em cena de maneira curiosa, após um encontro dos dois em que discutem sobre as obras A Situação da Classe Operária na Inglaterra, de Engels, demonstrando a face mais cruel do pauperismo a que estava submetido o proletariado moderno, e Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, em que Marx investe contra a existência do Estado político que aliena a participação direta das massas impondo-lhe a condição de Estado-não político. A cena se inicia sempre em plano e contraplano, remetendo a divisão dos dois. Ao longo dos diálogos, a câmera procura enquadrá-los num plano único, desenvolvendo uma aproximação que se completa na cena do jogo de xadrez em que, com o companheirismo já selado, observamos não só a união intelectual, mas também fraternal desses dois homens, ainda que estivessem em mundos divididos.

    Outro ponto interessante no trabalho do diretor é a sensibilidade e a congruência em caracterizar as mulheres do filme. Ao retratar Jenny Marx (Vicky Krieps), o cineasta deixa claro sua contribuição real na teoria marxista, não se tratando meramente de um papel passivo frente às decisões centrais. Ao abordar Mary Burns (Hannah Steele), companheira de Engels, destaca sua responsabilidade tanto à frente da organização de mulheres que trabalhavam em fábricas de tecelagem, como na introdução dos dois companheiros na Liga dos Justos, uma organização internacionalista de trabalhadores que se tornaria a liga dos comunistas.

    Dá metade para o final, o filme aborda tanto o processo de redação do Manifesto do Partido Comunista como também a luta entre as tendências do nascimento do movimento operário, retratando ainda o trabalho de desenvolvimento teórico das obras Teses Sobre Feuerbach, Miséria da Filosofia e A Sagrada Família, além de apresentar o rompimento com Joseph-Pierre Proudhon (Olivier Gourmet) e Wilhelm Weitling (Alexander Scheer).

    É certo que a obra se configura como um cinema didático, sedimentado em um roteiro verborrágico que procura explicitar ao longo de quase duas horas de duração diversas teorias e teóricos. O trabalho de direção de arte é bastante fiel, em especial no que diz respeito aos cenários e ambientações, ainda que minimalista, retratando uma Europa no auge do da Revolução Industrial, demonstrando com excelência as contradições da miséria existente nas ruas inglesas em comparação ao luxo dos salões franceses.

    O elenco se mostra bastante acertado com August Diehl interpretando Karl Marx entre explosões de arrogância, sorrisos sarcásticos e o desespero no olhar por não poder dar o melhor de si, seja à sua família ou a contribuição para a própria classe como gostaria. Konarske faz um trabalho interessante em sua interpretação de Engels, com as necessárias contradições de seu personagem e a gentileza de quem parece ter deixado de lado sua própria genialidade em prol do seu companheiro.

    Peck não faz proselitismo e foge de qualquer viés propagandístico, deixando de lado qualquer aspecto messiânico ou demonizado de seu biografado, entregando uma visão humanizada de Marx, repleto de alegrias e tristezas, contentamento e decepções, ainda que essa tônica passe por problemas típicos de cinebiografias que seguem certa fórmula. Contudo, seu cinema sempre deixou claro que não pretende ser tecnicamente exuberante, afinal, em entrevista ao jornal mexicano El Universal afirmou que “nunca quis fazer um filme para contar histórias, [pois] o cinema para mim era uma forma de fazer política”.

    Em outras palavras: somente o conteúdo importa, sendo a técnica apenas um instrumento para expressar com melhor qualidade as intenções e objetivos do diretor, uma ferramenta de engajamento político da sociedade. Remetendo a uma frase do próprio biografado: “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo”. Peck, assim como Marx, está interessado nessa transformação.

    Acompanhe-nos pelo Twitter e Instagram, curta a fanpage Vortex Cultural no Facebook, e participe das discussões no nosso grupo no Facebook.

  • Crítica | O Dono do Jogo

    Crítica | O Dono do Jogo

    O Dono do Jogo, de Edward Zwick, resume duas características do ano de 1972 nos Estados Unidos: a paranoia desencadeada pela propaganda anticomunista e a popularização do xadrez em todo o território nacional. O motivo disso tudo é bastante claro: a final do campeonato mundial de xadrez envolvendo o atual campeão, o soviético Boris Spassky (Liev Schreiber) e seu desafiante, o norte-americano Bobby Fischer (Tobey Maguire).

    Na trama, acompanhamos a história de Fischer desde sua infância, criado por uma mãe solteira socialista e judaica (Robin Weigert), os primeiros traços de paranoia e a aproximação com o xadrez que o faria campeão nacional ainda em sua adolescência. A explosão ao estrelato ainda jovem o levaria, alguns anos depois, a famosa final Fischer-Spassky, e serviria como propaganda nacionalista, uma esperança norte-americana para encerrar os 24 anos de dominação soviética no xadrez.

    Curiosamente, o título original Pawn Sacrifice remete a uma jogada clássica no xadrez em que, propositalmente, abre-se mão dos peões para a construção de uma jogada maior ou para ainda ganhar tempo no desenvolvimento de outras peças. Uma metáfora bastante óbvia para Fischer e o próprio xadrez, que acabam se tornando peões em um jogo muito maior do que eles, travado pelas duas superpotências da época, Estados Unidos e União Soviética.

    Pena que isso seja tão mal aproveitado pelo roteiro, pois assim que inserido qualquer sub-texto político, a trama vai pelo ares. O mesmo pode ser dito sobre a genialidade de Fischer no xadrez, já que em nenhum momento a direção de Zwick e o roteiro de Steven Knight procuram mostrar ao espectador a razão da genialidade do enxadrista, com exceção do jogo final com Spassky. Afinal, todas as partidas anteriores são cortadas e sabemos dos resultados por meio de diálogos entre as personagens.

    É difícil encontrar explicações para as escolhas da direção e roteiro: a construção das personagens são abandonadas assim que aparecem em tela; não há justificativas plausíveis para o que leva Fischer, um judeu, a ser influenciado por extremistas religiosos antissemitas; nenhuma explicação sobre seu relacionamento conturbado com a mãe, uma socialista; ou por fim, o que o leva a sofrer cada vez mais de uma suposta doença mental. Nada disso é desenvolvido, personificando a figura de Fischer à um simplismo massificado, bobo e infantil típico da já recorrente fórmula hollywoodiana em cinebiografias.

    A aproximação com a política soa rasteira e sequer desenvolve a forma como o governo norte-americano utiliza Fischer como peão durante a Guerra Fria e o descarta em seguida, devido a seus frequentes colapsos públicos, vindo a ser preso e, no final da vida, exilado dos Estados Unidos e refugiado na Islândia. Este fato é mencionado apenas por um epílogo final e em alguns trechos de época do próprio Fischer, o que se torna um dos grandes momentos do filme. Somente nos créditos conseguimos entender minimamente a complexidade da personagem, que convenhamos, Zwick tenta se aproximar, mas falha ao tentar envolvê-lo de forma significativa em seu filme.

    Ainda assim, o longa tem bons momentos, principalmente em sua fotografia ambientada nos anos 1950, 60 e 70, com emulações à filmagens de época e rápidas cenas da história do mundo intercaladas com jogadas em um tabuleiro de xadrez. Infelizmente, o clima de tensão e urgência típicos da Guerra Fria não se caracterizam em tela, como também a paranoia de Fischer, e em alguns momentos de Spassky, também não é transmutada para a sua direção. A atuação de Maguire deixa a desejar, abusando de tiques e exageros na composição de sua personagem, soando superficial para explicar essa figura controversa. Schreiber se mostra apenas correto como o enxadrista russo. A forma como sua personagem é apresentada incomoda pelo emprego de um vilanismo que deixa a dúvida se Boris Spassky era um jogador de xadrez ou um soldado da máfia russa. Um estereótipo certamente imposto ao ator, já que tem sido bastante comum vê-lo trabalhar em ótimas composições de outros papéis. Ainda assim, Michael Stuhlbarg e Peter Sarsgaard têm um bom trabalho como elenco de suporte à Maguire, roubando a cena em alguns momentos.

    Zwick está longe de ser um mal diretor, já se mostrou competente em Um Ato de Liberdade, Diamante de Sangue, Tempo de Glória. Mas em O Dono do Jogo erra magistralmente em todas as frentes que procura abordar, seja ela ao caracterizar um jogo de xadrez, o cenário político da época ou as idiossincrasias de seu protagonista, se resumindo a um filme engessado, cômodo, repleto de clichês e com um viés excessivamente nacionalista e maniqueísta. Ao tenta ser neutro em suas discussões, o filme se resume a mais uma peça nacionalista de Hollywood: convencional, inofensiva e correta, muito aquém da personagem errática, arrogante e desequilibrada de Bobby Fischer.

  • Crítica | Anna dos 6 aos 18

    Crítica | Anna dos 6 aos 18

    anna-dos-6-aos-18Em entrevista publicada para a saudosa revista Filme Cultura, uma das principais revistas da história do cinema brasileiro que circulou entre 1966 e 1988, Zuenir Ventura questiona Eduardo Coutinho, quando no lançamento de Cabra Marcado para Morrer, se ele havia escrito um roteiro e Coutinho responde dizendo que não tinha escrito, pois tinha apenas o objetivo de contar algumas histórias. E muitas perguntas. Perguntas é o que move a discussão promovida no documentário Anna dos 6 aos 18, de Nikita Mikhalkov.

    Assim como para Coutinho, seus entrevistados tem uma importância factual para compor sua história, Mikhalkov utiliza desse mecanismo o seu filme, voltando-se, que parte de cinco perguntas banais feitas feitas à Anna, sua filha, desde os 6 até os 18 anos de idade, repetidas religiosamente, ano a ano ao longo de 12 anos: o que mais a amedrontava, o que mais ela desejava, o que ela mais odiava, o que mais amava e o que ela mais queria naquele momento. De 1980 a 1991, o cineasta repete essas cinco perguntas à sua filha Anna e, por meio delas, traça paralelos entre o crescimento de sua filha, por meio de suas respostas, como também da própria história de um povo e sua terra.

    Segundo Mikhalkov, o longa inicia-se da ideia de utilizar um rolo de filme por ano na qual realizaria as mesmas cinco perguntas a sua filha. Dessa forma, dois temas iniciais são peças importantes de análise da obra do diretor: tempo e memória. O tempo, no cinema, é relativo, sendo o trabalho de montagem e edição instrumentos fundamentais para entendermos a construção narrativa de um filme, assim, notamos que a escolha de tais temas não se faz por mero acaso, já que a memória está ligada diretamente a noção subjetiva do tempo, bem como este se relaciona com uma noção de tempo cronológico, linear, ou melhor, histórico.

    Ao se trabalhar em um gênero como o documentário é comum pensarmos em algumas práticas corriqueiras, como a utilização de registros, entrevistas e materiais de arquivo para a construção do tema desenvolvido no filme, pouco importando se estes materiais são de caráter público ou privado, pessoal ou anônimo, portanto, novamente nos debruçamos sobre a memória, que é tão cara para Mikhalkov, como se torna evidente em sua narração em off no início do filme, onde ele alega não saber ainda que filme iria fazer, mas sentia, intuitivamente, que poderia ser um documento importante. Dessa forma, utilizando registros de família, e inúmeras imagens conhecidas mundialmente, Mikhalkov cria seu multifacetado documentário para contar um pouco da sua história familiar, mas também dos últimos anos da União Soviética.

    Interessante notar como quando Anna é questionada pela primeira vez suas respostas se encontram dentro de um universo típico de crianças, repleto de fantasia, contudo, um ano depois, com o ingresso à escola, seus medos e anseios passam a ser pensados no coletivo, sem saber ao certo os reflexos do um modelo de educação influenciaria os reais desejos de sua filha. A crítica ao modelo soviético se repete ao longo do documentário de modo menos ou mais implícito, como por exemplo, na montagem paralela onde o diretor contrapõe imagens de arquivo do líder soviético Leonid Brejnev de um teatro repleto de pessoas bem vestidas cantando a internacional, intercalada com imagens de pessoas simples dançando na rua, na qual é sobreposto os aplausos à Brejnev no teatro sobre as imagens do povo humilde, uma forma de retirar os aplausos dos líderes e dá-los aos cidadãos comuns. As críticas ao modelo socialista da União Soviética e a midiatização dão o tom da obra ao longo da vida de Anna.

    Em 1987, novamente Anna é indagada sobre as mudanças que o país vem sofrendo por conta das reformas políticas e econômicas de Mikhail Gorbachev. Já mais velha e com a abertura do país a iniciativa privada, as transformações em sua filha e na própria sociedade civil são evidentes pelas roupas utilizadas por Anna, seu modo de falar, como também pela inserção de imagens utilizadas pelo diretor, desfiles e concursos de beleza, comerciais de produtos repleto de cores e shows de rock. Curiosamente, em decorrência das reformas de Gorbachev, neste momento Mikhalkov abandona as críticas ao socialismo e passa a criticar todas as mudanças advindas da abertura do país ao capitalismo.

    Apesar da proposta inicial do documentário ser registrar os medos e desejos de sua filha no decorrer dos anos, Anna dos 6 aos 18 é acima de tudo uma exercício de autoanálise na medida em que o filme se desenrola. Por conta disso, é interessante notar como o filme parecer perder o seu foco inicial, naturalmente, isso ocorre num importante momento de transição político-ideológica, substituindo o tom crítico por um ar nostálgico na medida em que vemos o desenrolar da história que culminaria com o fim da União Soviética.

    Anna dos 6 aos 18 é acima de tudo um trabalho invejável sobre temas caros como a relação pais-filhos, tempo, transformações políticas e sociais, e além disso, uma aula de montagem e manipulação de imagens por meio de materiais de arquivo, seja público ou privado. Além disso, a postura anticomunista e crítica em relação à União Soviética soa vazia, já que a o declínio do socialismo real não provocou o esperado retorno que o diretor parecia almejar, abordando tais transformações da sociedade num retrato do capitalismo em sua forma mais degradante, concluindo o documentário de maneira desiludida e desesperançosa com o novo sistema político-econômico, mostrando um Rússia tomada por uma epidemia demagógica que engoliu e destroçou os sonhos e o saudosismo de uma época passada, encerrando seu filme com o tema central, o tempo.

  • Agenda Cultural 62 | Especial: Cinema Político

    Agenda Cultural 62 | Especial: Cinema Político

    agenda_cultural_62Bem vindos a bordo, camaradas. Nesta edição do VortCast da Agenda Cultural, Flávio Vieira (@flaviopvieira), Filipe Pereira (@filipepereiral), Rafael Moreira  (@_rmc) e Douglas Fricke, o Exumador  (@dwfricke), do Podtrash e Debate Histórico, se reúnem para realizar uma indicação de filmografia política que tem por objetivo a doutrinação ideológica de nossas criancinhas através do Marxismo Cultural e os estudos de Antônio Gramsci para transformá-los em soldados da Revolução Comunista. Hasta La Victoria Siempre!

    Duração: 102 min.
    Edição: Victor Marçon
    Trilha Sonora: Victor Marçon
    Arte do Banner: 
    Bruno Gaspar

    Feed do Podcast

    Podcast na iTunes
    Feed Completo

    Contato

    Elogios, Críticas ou Sugestões: [email protected]
    Entre em nossa comunidade do facebook e Siga-nos no Twitter: @vortexcultural

    Comentados na Edição

    Sala da FIFA e sala de guerra do Dr. Fantástico
    Íntegra do, talvez, último discurso de Fidel Castro

    Podcast Citados

    VortCast 36: O Que Restou da Ditadura
    Debates em História 10 – Islamismo e Xenofobia parte 1
    Debates em História 10 – Islamismo e Xenofobia parte 2

    Debates em Historia 7: Parte 1- História de Cuba e Inicio da Revolução
    Debates em Historia 7: Parte 2- Socialismo, embargos, política internacional e Cuba na atualidade
    Debates em Historia 7: Bônus – Indicação de Filmes Cubanos e sobre Cuba

    Literatura

    Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal – Milton Santos
    Os Jacobinos Negros – C. L. R. James
    Poder e Desaparecimento: Os Campos de Concentração na Argentina – Pilar Calveiro
    Resenha As Veias Abertas da América Latina – Eduardo Galeano

    Séries

    Carlos
    Crítica A História Não Contada dos Estados Unidos

    Quadrinhos

    Resenha Palestina

    Cinema

    Crítica A Onda
    Ele Está de Volta
    Encontro com Milton Santos: O Mundo Global Visto do Lado de Cá
    Crítica Jango
    Crítica Dossiê Jango
    Marighella – Retrato Falado do Guerrilheiro
    Crítica Marighella
    Crítica Cidadão Boilesen
    Crítica Muito Além do Cidadão Kane
    A Revolução Não Será Televisionada
    A Batalha do Chile
    Essa Noite Encarnarei Teu Cadáver
    O Despertar da Besta (O Ritual dos Sádicos)
    Crítica O Anjo Exterminador
    Crítica A Batalha de Argel
    Crítica Queimada!
    Cabra Marcado Para Morrer
    Peões
    Canudos
    Crítica O Capital
    Estado de Sítio
    Os Edukadores
    Roger e Eu
    SiCKO: S.O.S. Saúde
    Trabalho Interno
    A Outra História Americana
    Crítica O Ato de Matar
    Crítica O Peso do Silêncio
    Dr. Fantástico
    Z
    O Salário do Medo
    Os Esquecidos
    Crítica Memórias do Chumbo: O Futebol nos Tempos do Condor
    Crítica Eles Não Usam Black Tie

    Crítica Ação Entre Amigos
    Machuca
    O Homem do Castelo Alto
    O Germinal
    Crítica Pra Frente, Brasil
    Doutrina do Choque
    Crítica Quase Dois Irmãos
    Crítica Que Bom Te Ver Viva
    Crítica Casa Grande
    Ao Sul da Fronteira
    Comandante

  • Crítica | Adeus, Lenin!

    Crítica | Adeus, Lenin!

    1_zoomResponsável por liderar a safra recente de filmes alemães como Barbara e A Vida dos Outros, que se propuseram a revisitar o passado da ocupação soviética, Adeus, Lenin! se tornou uma grata surpresa pela originalidade da história em um filme que reverencia o próprio cinema.

    A mãe socialista de dois jovens alemães orientais entra em coma meses antes do Muro de Berlim cair e o país se reunificar, e quando acorda seu filho faz de tudo para protegê-la do choque criando uma nova realidade.

    O bom roteiro do diretor Wolgand Becker em parcecia com Bernd Lichtenberg, Achim von Borries, Hendrik Handloegten e Christoph Silber tem como premissa discutir a diegese do próprio cinema de ficção através de uma fábula sobre o tempo. A narrativa precisou encontrar um tom levemente fantástico para que fosse possível construir situações pouco realistas e chegar em uma das duas grandes discussões que o filme se propõe.

    Da mesma forma que nós espectadores só aceitamos entrar em um universo irreal onde pessoas se passam por outras se certos elementos forem verossímeis, o mesmo vale para a mãe de Alex. Para que ela aceite a nova realidade proposta pelo filho, ele tem de criar diversos elementos que façam com que seja verossímil, entre eles a produção de programas de TV, emular embalagens de produtos que não existem mais e etc.

    O tempo é a outra grande discussão do roteiro, e ela surge nas vezes em que a mãe entra em choque com a realidade quebrando a proposta por Alex, forçando soluções narrativas interessantes, como nos casos em que ela saía do quarto com o símbolo da Coca-Cola à vista. Esse embate trazem à tona os motivos nobres de Alex: a princípio seus atos se revelam pensando em preservar a mãe de ter um novo ataque cardíaco, mas através da grande revelação no terceiro ato, quem sempre esteve preso ao passado e não aceita as novas transformações do mundo é ele.

    Por último, o revisionismo histórico sobre o trauma soviético a que o filme se propõe é essencial e reabriu as discussões sobre a outra grande ferida no passado alemão. Apesar de ser uma comédia, o roteiro abraça os problemas tanto da ocupação soviética sob o governo socialista, que cerceava os direitos humanos e dava poucas opções de liberdade e consumo, quanto da mudança radical para o capitalismo, que aumentou o desemprego de funcionários e causou o fechamento de lojas.

    A direção de Wolfgang Becker é sólida e mantém o clima de comédia o filme todo, levemente alternando com o drama quando da necessidade do roteiro. Os leves toques de fantasia nas sequências em que Alex produz a nova realidade para a mãe são o ponto alto do filme, junto com a direção de atores.

    O ótimo Daniel Brühl foi a grande revelação na época interpretando o jovem Alex; Katrin Sass como a mãe, e as participações menores de Maria Simon, sendo a irmã Ariane e Chulpan Khamatova o seu interesse amoroso, Lara, trouxeram qualidade à obra.

    A fotografia de Martin Kukula é levemente fantasiosa e abusa do marrom e principalmente de tons secos que remetem ao passado. A edição de Peter R. Adam mantém o bom ritmo e as duas horas passam sem serem percebidas. Por ser um filme de época, o departamento de arte se destaca bastante graças ao ótimo trabalho de Matthias Klemme como supervisor, no desenho de produção de Lothar Holler, e dos figurinos de Aenne Plaumann.

    Adeus, Lenin! é um dos filmes que se tornou referência nos anos 2000 e traz tantas discussões relevantes que transforma seu tema universal e atemporal.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Z

    Crítica | Z

    z-costa-gavras

    Em 1964 as forças ocultas tomaram posse do Brasil. Foram controladas e guiadas por interesses estadunidenses para evitar o que poderia ser um novo governo socialista na América Latina. O preço disso foram vinte anos de dor e sofrimento. Em 1964 o desejo de um povo criado para temer o levante comunista foi um dos principais fatores para um retrocesso social e político. Um retrocesso histórico. Um lembrete do quanto temem aqueles que não entendem. E de quanto fazem por medo.

    Os pais que marcharam aos gritos de Pra Frente, Brasil nas ruas, aqueles em nome da família com Deus, tiveram suas filhas e filhos raptados, estuprados, mortos. Ainda que os saudosos repitam Nunca Fomos Tão Felizes, eles não são capazes de saber. Esses não estiveram nos porões da ditadura. Não estavam cientes das dívidas em que o país se afundava com empréstimos do estrangeiro. 1964 foi o ano em que os pais de tantos saíram de férias. O ano em que a ditadura militar se instalou no Brasil com o apoio do povo, mas em outros países ela se fez de outra forma, ainda que com mesmas peças em um tabuleiro de cores diferentes. Há sempre o medo e conservadorismo de valores estimados pelas classes dominantes, há sempre forças ocultas à espreita e alguém que simboliza o que pode haver de melhor. Um cabra marcado para morrer.

    Em grego, Z quer dizer: ele vive.

    Costa-Gavras é conhecido por fazer filmes políticos. Fez filmes como Desaparecido – Um Grande Mistério (vencedor da Palma de Ouro em Cannes) e seu mais recente, O Capital. Z é vista como sua obra mais famosa, possivelmente devido a tratar sobre algo de seu país de origem. Roteirizado por Jorge Semprún e baseado no livro de Vasilis Vasilikos: conta a história verídica do assassinato de Grigoris Lambrakis.

    z-costa-gavras-sceneQualquer semelhança com fatos ou pessoas vivas ou mortas não é casual, é intencional.

    Z (Yves Montand). Líder do movimento socialista na Grécia. Uma figura carismática e de esperança aos jovens que não se interessavam em integrar grupos extremistas de direita. Pregavam a paz e o desarmamento de uma Grécia com forte poder militar. Perturbavam o status-quo com seus gritos e protestos legítimos, mas que antes da instalação da ditadura já se demonstravam sabotados. Espiões e ameaças já eram comuns. Os jovens, no fim, eram vistos como as pragas de uma plantação, como infectados por uma doença.

    Quem combatia o que era visto como praga, doença, era a cura, ou pelo menos assim se exaltavam. Viam-se como os anticorpos no combate a ideologia que crescia no país. Os defensores da democracia. Desprovidos de ideais políticos externos. De novo, assim se viam. Isso é afirmado na primeira cena do filme, quando ocorre um monologo sobre o crescimento do socialismo em um encontro de militares. Demonizam a ideologia e buscam maneiras de poda-la. Controle dos jovens, repúdio aos intelectuais. O que se segue é a demonstração dos sentimentos fervorosos da população, seus comportamentos. Como os grupos se comportam perante seus diferentes. Z chega no país para comparecer a um comício em meio a uma enorme briga entre grupos e com presença da polícia. É na saída desse evento que sofre o atentado. O que ocorre depois são reações e investigações. Tentativas de transformá-lo em mártir e tentativas de calunia-lo.

    A maneira que lidam com a relação massa, imprensa e governo se faz pela tentativa de controle da primeira, sempre. A imprensa segue as ordens do governo e não busca iniciar rebeliões, exceto por um jornalista investigativo que deseja montar o quebra-cabeça para publicar no jornal. Há também o personagem do promotor pragmático, que muitos apontam como verdadeiro protagonista. Segue somente fatos que se depara na investigação, ainda que seja afetado pela suspeita e repulsa perante o que puder identificar como comunismo. Esses dois não são tão vistos como personagens quanto são como conceitos, mas encaixa. Os outros personagens se dividem entre o grupo socialista de Z, sentimental e intenso; os militares, contidos e frios; assassinos e contratados avulsos.

    Z-31

    A montagem do filme é uma qualidade de destaque, especialmente pela rapidez e intensidade das informações que lida com precisão e agilidade, ainda que com problemas de continuísmo perdoáveis devido a grandeza do filme. Fatos se aceleram em cortes rápidos e a memória de personagens também, em uma forma não linear, o que torna impactante para o telespectador. Rende também um ritmo fluido ao filme, até mesmo quando confrontando os opostos entre os personagens. A câmera se movimenta pelo meio dos personagens e de suas dinâmicas bem atuadas em takes que podem ser considerados longos para o padrão, somado a frames bem compostos e por vezes carregados de simbolismo e significado. A trilha sonora apresenta um ar quase cubano, com seu violão fervoroso e emocional, exagerado.

    Z se demonstra um filme ainda atual, principalmente para países que enfrentam momentos como o Brasil. Levantes de conservadores por medo dos avanços progressistas. Mais do que nunca é a hora de entender e compreender o contexto, entender como melhor lidar e como evitar o aproveitamento por parte de forças ocultas, que não precisam ser necessariamente os militares, mas o sentimento de retrocesso, sentimento de desumanidade. Não importa o quão desolador pareça o momento, deve-se exaltar e sentir a humanidade. Deve-se sentir o pesar daqueles que não escolheram, no seu tempo, o lado fácil da história. E continuar.

    O coração não quer parar. Ele bate.

    Ele vive.

    Texto de autoria de Leonardo Amaral.

  • Resenha | Sorge: O Espião

    Resenha | Sorge: O Espião

    sorge-o-espião

    Falar de Richard Sorge é falar de história, de União Soviética e de Segunda Guerra Mundial. Dito isso, esclareço que qualquer resenha sobre Sorge, O Espião, publicação da Editora Veneta, seria rasteira sem um breve adendo biográfico sobre sua importância histórica.

    Filho de pai alemão e mãe russa, e nascido em Sabunchi, no Azerbaijão – até então, parte do Império Russo -, muda-se para a Alemanha quando ainda tinha três anos. Motivo pelo qual em 1914 voluntaria-se para lutar na Primeira Guerra Mundial, entrando para um batalhão da artilharia alemã. No conflito, fica gravemente ferido em março de 1916, e é promovido a Cabo, condecorado com a Cruz de Ferro, honraria militar pelo reconhecimento aos serviços prestados à nação, e depois enviado para casa.

    Em 1925, muda-se para Moscou e entra para o Partido Comunista Soviético. Apenas cinco anos depois é enviado para a China como jornalista independente, mas com o objetivo real de prestar serviço de espionagem ao Exército Vermelho e familiarizar-se com a Ásia. Três anos depois se instala no Japão, já como jornalista prestigiado e passa a reunir informações sobre as relações entre Japão e Alemanha.

    Curioso? Como de herói alemão, Sorge entra para a história como o mais importante espião de todos os tempos? Difícil saber. Os historiadores relatam que, após a dispensa militar, passou a questionar a guerra e se aproximar da literatura marxista, talvez por conta do seu tio-avô, Friedrich Adolph Sorge ser mundialmente conhecido por sua colaboração ao lado de Karl Marx, no movimento operário e abolicionista nos Estados Unidos, e secretário da Primeira Internacional Comunista. A semente havia sido plantada e o tempo tratou de germinar.

    O álbum que temos em mãos não se trata de um documento biográfico sobre a história de Sorge, mas apenas um breve período dela, mais precisamente após se instalar no Extremo Oriente no início dos anos 1930 e as relações que mantinha com a embaixada alemã no Japão.

    A autora responsável pela obra é a alemã Isabel Kreitz, eleita no Comic Festival de Hamburgo de 1997 a melhor quadrinista nacional, e infelizmente, pouco conhecida no Brasil, reconhecida apenas por sua participação no álbum Elvis, de Reinhard Kleist (também conhecido pelas suas biografias de Johnny Cash e Fidel Castro), publicada pela 8inverso Comics. Kreitz desenvolve a trama sob o ponto de vista de Sorge e personagens que orbitam à sua volta.

    De persona difícil, Sorge vivia cercado de belas mulheres, e era conhecido pela sua faceta de bon vivant e beberrão, porém dono uma integridade enorme. Difícil sabermos o quanto dessa personalidade não fazia parte de seu disfarce como jornalista internacional renomado e o que, de fato, era autêntico, contribuindo ainda mais para a típica caracterização de espiões criada por autores como Ian Fleming, Tom Clancy e tantos outros.

    Na trama, conhecemos um pouco do dia-a-dia de Sorge e sua rede de contatos a partir dos testemunhos de seus personagens, seguindo um formato documental onde a narrativa é intercalada por esses testemunhos, até culminar nos acontecimentos que provavelmente foram a maior razão que impediu a vitória dos nazistas na Segunda Guerra, segundo diversos historiadores e jornalistas.

    Os desenhos de Kreitz são duros, retrato do tempo em que a história de Sorge é ambientada, repleto de sombras constantes, como num clássico conto noir dos anos 1930 e 1940. O traço forte e branco e preto do lápis casa com a crueza histórica da personalidade contraditória de Sorge. O álbum conta ainda com uma pequena biografia do espião, escrita pelo jornalista e pesquisador Frank Gieese, além de contar com um quadro que resume o destino de boa parte da rede de colaboradores de Sorge.

    Acima de um importante relato histórico, Sorge, O Espião é uma bela narrativa sobre amor, dramas e ideias, questões comumente esquecidas atualmente.

    Compre Aqui: Sorge, o espião

    Stamp_Richard_Sorge

  • Crítica | Libertem Angela Davis

    Crítica | Libertem Angela Davis

    Libertem Angela 1

    A evocação primária de Libertem Angela Davis envolve uma forte trilha sonora, muito ligada ao ideal da principal biografada. Os gritos de “freedom” acompanhados do groove inserem o público na aura de luta pela igualdade racial, mais do que qualquer cena anterior à trilha. Após a apresentação, toda a formalidade é quebrada de modo necessário, expondo as indignidades que os marginalizados padeciam, além da resposta agressiva que os manifestantes sofriam, agredidos com brutalidade e repressão por parte dos policiais, com a mesma medida violenta que eles viam nas ruas, longe dos holofotes. A desfaçatez reinava no modus operandi das forças armadas, na tentativa de manter o estado totalitário no poder, sem que nada mudasse.

    O cunho político do documentário de Susan Lynch visa analisar o momento histórico pelo qual passava os Estados Unidos da América, antecipando a condição que seria vista mais tarde na África como Apartheid. O viés escolhido é o olhar de uma professora, uma função de fundamental importância na sociedade civil e que contribuía para a filosofia social predominante, até que esta norma muda. Ao menor sinal do ensino – em escolas segregadoras, que separam alunos por cor – dos ideais marxistas, faz-se dela uma inimiga do governo e da ordem imperante.

    A luta das autoridades com Angela era política, tomada pela paranoia da Guerra Fria, que fazia perseguir quaisquer afiliados do Partido Comunista, uma vez que o discurso era tratado como algo “diabólico”, tirado de contexto a fim de parecer ir contra a tradição, família e propriedade. Nos discursos do povo manipulado, havia gritos de “volte para a Rússia” e “volte para a África”, além de exibir uma variação ainda mais pesada de preconceito racial, com desenhos caricaturais de Davis assemelhando sua figura à caracterização da população zulu.

    Toda hecatombe ocorria ao lado do recrudescimento da máquina de governo, com o governador Ronald Reagan achando em Davis uma párea e perigosa inimiga do país, claro, junto ao estouro do confronto no Vietnã e a ascensão dos Panteras Negras. O estado de sítio estava instaurado, e uma guerra civil tomava o asfalto, fruto da dificuldade de evolução e de reflexão do antigo discurso de Abraham Lincoln. A igualdade parecia cada vez mais distante.

    Em razão de um incidente, na época muitíssimo mal explicado, Angela Davis foi indiciada, tendo sua prisão decretada e executada sob muitos protestos, que alegavam manipulação de informação por parte da mídia. A culpabilidade da professora foi tão alta que até o presidente Richard Nixon a endossou. A pena para Davis incorreu no desejo de extradição, o que intensificou ainda mais a onda de protestos.

    O caráter de atualidade do filme é impressionante, especialmente por notar-se a praticamente nula evolução a que o mundo se submeteu, mesmo após 40 anos decorridos após o início do movimento. A controvérsia a respeito dos direitos à liberdade política e da marginalização do “diferente” prossegue em países de diferentes histórias e tradições de luta, dos mais ricos até os ditos subdesenvolvidos; alguns com arquétipos mudados: dos negros sendo substituídos por outras minorias igualmente marginalizadas, como o público LGBT, ao lado da perseguição dos que pensam à esquerda, e contra tantos outros. E a questão racial ainda longe de ser resolvida.

    A contextualização documental mostra muitos registros visuais da época, assim como inúmeros depoimentos dos envolvidos, até de lados opostos. Serve como um bom retrato do panorama cronológico, tanto que reforça a injustiça presente no julgamento de Davis, uma vez que o argumento é um dos poucos fatores em cujo contexto abrange todas as falas. Os membros do movimento e os mais conservadores enxergam a professora da mesma forma: uma lutadora dos direitos civis.

    O recurso narrativo para remontar as cenas do tribunal – que obviamente não poderiam ser filmadas – foi perene ao exibir uma arte peculiar entre os depoimentos dos entrevistados. O destaque ao penteado black power de Angela revela uma idealização do ícone acima da figura humana, do símbolo da eterna luta de classes presente no epicentro do capitalismo do século XX.

    A poesia vencia no discurso desintoxicante da ré, que lutava contra os grilhões que amarravam os seus braços e os de muitos. O conteúdo do filme de Lynch é contestador, assinalado pela fala do branco advogado de defesa, Leo Branton, que profere ao também branco júri, o qual decidiria a sentença de Davis, convidando-o a pensar de modo diferente:

    “Eu quero que você interprete um papel comigo, para os próximos vários minutos: eu quero que você pense “preto”. Eu quero que você seja negro. Não se preocupe. Vou deixá-lo voltar a ser branco quando isto acabar. Se você é negro, você sabe que seus antepassados foram trazidos a este país como escravos. E o Supremo Tribunal dos EUA determinou: não há direitos. Uma pessoa negra tinha que ser o que os homens brancos queriam, e era obrigada a respeitar esta decisão. Uma intelectual como Angela Davis sabia disso. Cada vez que uma pessoa negra erguia a voz em apoio a liberdade e à liberdade do homem negro, foi assassinada. E, por isso, você sabe todas essas coisas, se você é Angela Davis ou se você é negro. Você, como negro, não se pergunta por que ela fugiu, só se pergunta: por que o mundo permitiu que fosse apanhada?”

    Após toda a luta, o desejo da já idosa Angela Davis é que a discussão amadureça, além até de seu reclame. O lema de sua vida é voltado para que mais vitórias, como as que conseguiu naquela época, se repitam, na tentativa de tornar o mundo moderno o mais igualitário possível. Libertem Angela Davis consegue informar e emocionar o público de maneira equilibrada, com a inserção total do espectador no drama da biografada.

  • Crítica | Por Uma Mulher

    Crítica | Por Uma Mulher

    Parado em algum lugar entre a nostalgia das lembranças fotográficas de uma geração anterior e a descoberta de laços familiares possivelmente não conhecidos por parte dos narradores da história, Por Uma Mulher (Por Une Femme) é fundamentado em um quebra-cabeças que se pauta no pretérito para elucubrar um triângulo curioso, que tem na busca/ode pela origem de Anne (Sylvie Testud) o seu cerne.

    O roteiro é contado através dos elementos da recém-falecida mãe de Anne, e passa a expor um conto sobre a Grande Guerra, remontando ao início do duradouro matrimônio entre os dois: Lena (Melanie Thierry) acabara de descobrir sua gravidez, o que deixa seu marido Michel (Benoît Magimel) obviamente preocupado. Já com a criança nascida, ele consegue expandir seus negócios, e finalmente abrir sua loja de tecidos, explorando seu belo talento e produzindo seu sustento e de sua família.

    Tudo corre como manda a tradição, Michel consegue lograr êxito com seu negócio, até que a entropia adentra o seu cotidiano. Inesperadamente, seu irmão retorna de um “campo”, de onde todos achavam que não poderia sair vivo. A existência de Jean (Nicolas Duvauchelle) não era de conhecimento geral até então. Ele era um párea mesmo entre seu clã, por motivos políticos, evidentemente.

    Logo Jean junta as suas forças ao seu irmão, auxiliando-o a tocar a loja. Seu passado é posto em crédito, com uma preocupação de que ele tivesse uma vida borrada ou boêmia, ligada a ilegalidades, já que para todos os efeitos, ele estava foragido. Surpreendentemente, ele acaba sendo de um auxílio valioso a Michel.

    Com o desenrolar dos acontecimentos, Jean não consegue esconder seus interesses relacionados a contestação, tampouco consegue esconder sua natureza, apresentando um comportamento e carisma demasiado sedutor, cooptando até aqueles a quem “usufruir” dele seria proibido. Não demora muito para o ideal utópico vermelho cair sobre ele, fazendo-o correr perigo de vida novamente, o que obviamente enfia seus familiares também à deriva no cenário político francês, além, é claro, de explorar uma gama de sabores condenados.

    Anne não se contenta em somente verificar os relatos via memorandos, e vai encontrar seu genitor, para tentar desmistificar o fato de não ter tido até então o conhecimento sobre um parente tão próximo, mas que, por falta de qualquer menção, jamais foi conhecido. A sequência de reencontro, apesar do caráter agridoce, guarda momentos um tanto vergonhosos, seja pela maquiagem forçada de Benoît Magimel, ao tentar emular um senhor geriátrico, ou por sua incômoda sensação de estar descoberto, ante a verdade inconveniente que se aproxima de ser exposta.

    O ato anterior parecia excessivamente moralista para esconder as indiscrições incestuosas, sempre sugeridas e consumadas ante a câmera recordatória de Diane Kurys. O rememorar resgata as lembranças afetivas, e as tristes também, como todo álbum de fotografias, que ao registrar os momentos mais felizes, não faz esquecer o espaço em branco entre os retratos, os episódios menos glamourosos e não tão dignos de nota ou recordação. O roteiro, apesar de alguns percalços, consegue apresentar uma história bastante humanizada, que equilibra bem momentos de infidelidade sentimental, um pecado moral e condenável com a dificuldade em manter um ideal essencialmente político e social, exibindo curvas dramáticas das mais viscerais, especialmente pela fita ser conduzida em sua integridade por uma abissal leveza de espírito.

  • Crítica | Getúlio

    Crítica | Getúlio

    cartaz.indd

    Getúlio Vargas foi um dos maiores nomes da política brasileira e um dos comandantes mais importantes da história do Brasil. O período de quase 20 anos do político no poder transformou radicalmente a face da República brasileira, o que levantou paixões a seu favor e contra, especialmente ao final de sua administração.

    O filme de João Jardim (do excelente Lixo Extraordinário), com roteiro de George Moura, retrata os últimos 19 dias da vida do ex-presidente, quando o governo é acometido por um turbilhão de críticas após o principal rival político de Vargas, o ferrenho anticomunista Carlos Lacerda, sofrer um atentado, descobrindo-se, logo depois, que os mentores do ato eram pessoas intimamente ligadas a Getúlio.

    Contando com fotografia e design de produção excelentes, o filme consegue reproduzir toda a ambientação da época e fazer o espectador se sentir naquela primeira metade da década de 1950. O Palácio do Catete também contribui enormemente nesse sentido, tendo em vista que o local se manteve praticamente inalterado desde os eventos retratados.

    Optando por uma ótica mais intimista e com toques de thriller psicológico, o diretor tenta mostrar o lado humano do presidente, já idoso, sofrendo todas as pressões políticas em um momento diferente do país, pois se na década de 30 Getúlio conseguiu impor seu modelo, já na democracia, durante a ascensão da Guerra Fria e da influência dos EUA  na América Latina, Vargas sofre a oposição dos setores da sociedade alinhados aos interesses americanos, enquanto sua postura nacionalista, outrora tão eficaz, agora atrai cada vez menos adeptos. O enfoque intimista e pessoal por vezes se torna desnecessariamente lento, e o uso da metalinguagem para explicar os pesadelos do personagem também se mostra repetitivo, dando ao filme um certo tom novelístico característico da TV brasileira.

    Essa pressão se manifestava na figura de Carlos Lacerda (Alexandre Borges), governador da Guanabara e principal porta-voz do udenismo. Suas ferozes críticas ao presidente iam desde o moralismo simplista de acusá-lo de causar todos os problemas do país, até o de culpá-lo pela degeneração da democracia e pela explosão endêmica da corrupção, discurso este muito usado até hoje pelos setores herdeiros do udenismo contra governos que não conseguem vencer no jogo democrático.

    A figura de Carlos Lacerda no filme é mostrada de forma distante, com discursos inflamados, transmitidos na televisão, exigindo a renúncia de Vargas  uma escolha estranha, pois naquela época a TV não era utilizada como meio de comunicação em massa, pois havia poucos aparelhos no país. Esse papel era desempenhado pelo rádio. No entanto, uma construção maior desse personagem poderia tornar a trama menos maniqueísta.

    Maniqueísmo este que se manifesta o tempo todo ao focar a figura de Vargas de forma uníssona, em dúvida apenas quanto ao que mostrar em relação a sua honestidade em lidar com o problema. O presidente é retratado como uma pessoa íntegra que desconhecia absolutamente tudo o que se passava com sua guarda pessoal. Ainda que não soubesse sobre o atentado propriamente dito, para alguém tão centralizador como ele, torna-se um fato que, se não impossível, bastante improvável. No final, tendemos a nos simpatizar com Vargas e antagonizar Lacerda de maneira simplista em razão dessa abordagem.

    O que é muito bem retratado é a relação ambígua com os militares, que já se mostravam descontentes com a democracia e ávidos por terem uma participação maior no poder desde a Era Vargas. Enquanto alguns militares lutavam para manter o legalismo, grande parte se organizava para exigir a renúncia do presidente e preparar o terreno para um golpe militar, o que não seria novidade nem no Brasil, nem na América Latina no período.

    Também merece destaque a atuação de Tony Ramos no papel do presidente. Apesar do exagero do tamanho da barriga e do pouco trabalho com o sotaque gaúcho, o ator transmite ao personagem todo o peso dramático que os eventos narrados impuseram a Vargas.

    O suicídio do ex-presidente no filme também possui parte de seu impacto retirado por não ter sido bem construída a cadeia de eventos que levou a esse fato. Quando a situação se torna insustentável, após Vargas ter abdicado de tomar qualquer posição ofensiva em sua defesa, a única saída possível ao presidente parece ter sido o suicídio, sozinho em seu quarto com seu revólver. O ato, mostrado de forma engrandecedora, oculta os relatos de que, após o tiro, Getúlio sobreviveu ainda por algumas horas. Também oculta, dentre a comoção popular por sua morte, a ira de parte da população que depredou sedes e carros de jornais opositores, caso de O Globo, que teve papel chave na oposição ao governante, ausência essa convenientemente deixada de lado no filme.

    Dessa forma, Getúlio opta conscientemente por construir um personagem que é fruto de escolhas da direção, excluindo algumas informações e exaltando outras. Apesar de ter sucesso em compor um personagem forte mostrando seus dilemas internos e pesadelos, falha em dar a profundidade necessária a seus algozes e aos eventos que levaram a escolha pelo seu suicídio. Talvez por isso, o filme se mostre interessante somente a quem já conheça os fatos e pessoas ali descritos, se mostrando uma experiência não muito agradável ao espectador tradicional.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Marighella (2012)

    Crítica | Marighella (2012)

    marighella

    O documentário capitaneado por Isa Grinspum Ferraz visa mostrar várias facetas de Carlos Marighella como o de um sujeito pacato e ligado a família, longe demais da imagem pintada pelos mandantes do regime que o pintavam como o pior dos terroristas subversivos e inimigo número um do Estado. A narração da sobrinha de Carlos revela que o filme começou a ser feito de fato após a morte do líder revolucionário.

    No início da fita, são lidas cartas do próprio punho do “anarquista da Sicília”, provindo de uma miscigenada herança entre o italiano Augusto Marighella e da negra Maria Rita, criado em uma casa onde tinha spaghetti e caruru, não havia como crescer sem ser questionador, desde a infância ele não entendia porque o pobre precisava se matar de trabalhar para chegar ao final da vida sem ter absolutamente nada.

    Já muito novo ele se engajaria ao comunismo autodeclarado, levando à Bahia, sua terra, o discurso contra a oligarquia, incitando o povo à revolução. O comunismo baiano dos anos 1930 era contra o integralismo principalmente, e não era alinhado a Karl Marx, até pela dificuldade do acesso, era feitos de mulatos, como Jorge Amado, Edson CarneiroCouto Ferraz, um grupo que vivia a utopia, mas não se desgarravam da realidade marginal baiana. Os intelectuais precisavam sair da neutralidade e se declarar fascistas, comunistas ou liberais, graças ao novo quadro político mundial, aos poucos “os pingos eram postos nos is”. A ida de Marighella ao Rio de Janeiro já culminara numa prisão, acusado pela imprensa à época, de perturbar a paz e não colaborar com a boa ordem do Estado.

    A escolha pelas imagens das paisagens e belezas naturais contrastam com os recortes de jornais, quase sempre explicitando uma luta e perseguição muito violenta ao “cavalheiro Marighella”, que variam entre prisões e comícios. Carlos e outros militantes de bigodes grossos se associavam a Luis Carlos Prestes, sua dificuldade nas manifestações era o de parar de falar e terminar seus discursos. Graças ao Presidente Dutra, o Partido Comunista Brasileiro foi tornado ilegal e Carlos Marighella passou a viver na clandestinidade, seu primeiro filho só viria a conhecê-lo aos sete anos de idade. Em meio a paranoia mundial, eram veiculados comerciais estadunidenses muito engraçados, com “animações desanimadas” mostrando o poderio soviético, explodindo símbolos do capital, como A Estátua da Liberdade.

    A posição de Marighella era diferente da de Brizola, Goulart e outros tantos pensadores. Ele viajou para a China, para a União Soviética a fim de conseguir instrução sobre o estado totalitário socialista. Um momento emocionante é quando sua esposa Clara Charf, declara que ele não sabia falar chinês e que ele havia feito um dicionário desenhado do idioma, mas que o livro foi tomado pelas autoridades, numa das invasões da polícia a sua residência. O “mulatão” cada vez se precavia mais e alertava seus colegas de que eles não resistiriam a caça após o Golpe Militar. Seu argumento era de fuga, mesmo após as falas de Jango de que o vice, uma vez empossado presidente, teria uma resposta rápida a ação dos militares. Ele era muitíssimo bem informado, parecia prever as artimanhas e a movimentação dos homens de farda.

    Sua postura se tornaria ainda mais extremista, rompendo com o partido após a sua prisão e a ida a Cuba, em uma viagem clandestina. Se declarara um revolucionário, ligado às massas e inconforme à maneira cordata com que a esquerda se portava de forma muito inocente e submissa aos caprichos militares, e até essas reprimendas são publicadas carregadas de um conteúdo poetizado. Para ele, o revide devia ser na mesma força e medida, era inspirador, de confiança e admiração, e sobretudo era uma figura simples, ao mesmo tempo que estudiosa e muito inteligente.

    Apesar de sua afeição ao modo de revolução chinês, Marighella queria um comunismo genuinamente nacional, com samba, futebol e cores tão caracteristicamente brasileiros. Ele não era um teórico, participava dos assaltos de forma ativa e veemente. Suas ações não eram freadas pela possibilidade de perecer ou do sacrifício de vidas alheias, das dos seus, em ações de guerrilha que os adeptos já tinham conhecimento e claro, dos seus opositores.

    O modo como a realizadora apresenta a morte do guerrilheiro é sem muito apuro do modo como ocorreu o assassinato, tal artifício emula tanto a forma sem respostas do Regime ao assassinar o seu opositor e também a não necessidade de ser lógico, e claro que o próprio Marighella usava em seus poemas, ainda que nestes escritos ele não retire os seus pés do chão. Carlos Marighella era o libertário utópico, munido da informação, mas que prestou a sua imagem para inspirar o ideal da liberdade do país, o que Isa Grinspum Ferraz fez é uma homenagem muito competente a sua figura, sem ser chapa branca, destacando até seus erros, mas focando a aura do contestador imberbe que ele era, dando à revolução um nome estrangeiro, de difícil dicção e de fácil identificação.