Tag: Filmes Políticos

  • Crítica | MLK/FBI

    Crítica | MLK/FBI

    MLK/FBI é um documentário de Sam Pollard, diretor conhecido pelo elogiado The Talk: Race in America. Aborda a os arquivos do FBI sobre o reverendo e ativista Martin Luther King, indicando a abordagem completamente parcial e desonesta em cima dessa figura. O filme começa com falas do presidente republicano Ronald Reagan em um discurso bizarro, comentando a historia dos Estados Unidos e as manifestações populares, sobretudo as raciais, como se fossem iguais as batalhas entre bem e mal dos filmes de mocinho que protagonizava quando novo, relegando o papel de vilão aos grupos protestantes de maneira nada sutil.

    É estranho como discursos vindos de classes tradicionalmente tratadas como inferiores são necessariamente associadas a malignidade por parte de figuras de autoridade, mesmo quando o tom da fala é conciliatória como era no discurso de King. O pastor era considerado o negro mais perigoso do país, o homem visto com maior potencial destrutivo para o status quo e o regime de poderes que vigoravam na segunda metade do século XX.

    O filme possui um ritmo um pouco truncado, mas toda a investigação da produção a respeito da paranoia do país e da forma como J. Edgar Hoover lidava com a questão de Luther King ser subversivo é muito bem escrutinada. Na tela se expõem as estranhas de um país que não sabe lidar realmente com as liberdades individuais, embora todo o discurso, para dentro ou fora de suas fronteiras, dê conta dos Estados Unidos como uma pátria que valoriza suas origens democráticas e a liberdade de pensamento e expressão.

    Pollard não tem pudor em mostrar o quão irresponsáveis e injustas foram as autoridades, levantando mentiras contra o pregador, revelando supostas indiscrições, frutos de um reacionarismo tacanho de quem estava no poder em uma época de ebulição e luta de classes. O filme poderia ser mais enérgico, mas de modo algum aliena o espectador.

    Há uma espera, muito justa aliás, para que em 2027 sejam reveladas as fitas originais com os registros da agencia sobre Luther King. Em meio a tantos boatos e fofocas a respeito da vida pessoal de MLK, a obra de Pollard consegue levantar bons indícios de perseguição ao reverendo, que podem inclusive ter influenciado na brevidade de sua trajetória. MLK/FBI é elucidativo e não cai em armadilhas conspiratórias. Além de conversar muito bem com os recentes Judas e o Messias Negro e Os 7 de Chicago, também acrescenta bons temperos aos tempos atuais e as complicadas situações e batalhas travadas contra o reacionarismo que vigora.

  • Critica | Collective

    Critica | Collective

    Collective é um documentário sobre um incidente incendiário em Bucareste, na boate Colectiv, que matou 27 e feriu 180 pessoas. O longa-metragem de Alexander Nanau investiga as fraudes do sistema político da Romênia a partir do vazamento de informações que um médico fez a um grupo de jornalistas. Fraudes que assustaram a opinião pública local mas que são bastante comuns em outros cenários, como a política brasileira. O diretor teve acesso aos bastidores políticos e apresentou o seu panorama jornalístico e cinematográfico a respeito do incidente.

    O filme indicado ao Oscar na categoria Melhor Filme Estrangeiro e Documentário trata primeiro da tragédia em si,  do impacto que ela causou em quem estava no momento que o fogo tomou a casa e nas pessoas que cercam as vítimas. Depois, explora a historia periférica da politica romena e, em meio a isso, sem esquecer dos detalhes das historias dos sobreviventes. Aborda questões pesadas de quem teve a vida comprometida por conta do fogo, momentos que conseguem emocionar sem soar piegas.

    Os personagens são meticulosamente escolhidos. Há sutileza ao se tratar dessas tramas, as personagens não são tratadas com comiseração. Nanau traz uma estética que foge do simples clichê e da estrutura quadrada de documentários com entrevistas e voz em off. Há inclusive cenas do dia em que ocorreu o incidente, imagens de câmeras internas cuja resolução é bastante aprimorada e que mostram detalhes do horror ali presente. A cena que mostra o show de metal com o fogo correndo o teto e caindo sobre o tecido improvisado, logo após o termino de uma música, é dantesca. Mesmo nessas gravações se nota que a performance musical poderia ter tornado aquele momento em algo ainda mais trágico.

    O impacto do filme é amplificado por conta dos infelizes escândalos de corrupção ligados a pandemia que ocorreram no Brasil e no mundo, pois o caso da Colectiv também deveria causar nas autoridades certa solidariedade e não ganância desenfreada. A exemplo do que ocorreu em várias praças durante a pandemia do novo coronavírus, houve aproveitamento ilícito e inoportuno de autoridades desonesta. Mesmo que o longa tenha alguns problemas de ritmo, sendo bem arrastado em vários pontos, o seu apelo é real, trata de questões muito delicadas e importantes não só dentro do seu cenário nacional, mas também além fronteiras já que encontra eco em situações vistas no mundo inteiro.

  • Crítica | Os Comprometidos:  Actas de um processo de Descolonização

    Crítica | Os Comprometidos: Actas de um processo de Descolonização

    Os Comprometidos: Actas de um Processo de Descolonização, dirigido por Ruy Guerra em 1984, originalmente produzido para a Televisão Experimental de Moçambique e compilado no formato de um média metragem de apenas 48 minutos. Na prática ele é uma edição de seis dias de filmagem praticamente ininterruptos de Guerra, que visava exemplificar como era o sistema legal do país africano de língua portuguesa onde o cineasta nasceu.

    O assunto principal aqui é o julgamento de colaboradores do regime colonial. O país, independente desde a primeira metade dos anos setenta depois de uma longa guerra civil que variou entre 1964 e 74 – esse foi também o último ano do Estado Novo que dava prosseguimento a era Salazar em Portugal – colocou o presidente socialista Samora Machel no poder. Os órgãos jurídicos julgaram os antigos parceiros de forma contundente e bastante rígida. Era um revide, registrado de maneira crua e praticamente sem cortes pelo cineasta.

    Mesmo sem grandes variações de ângulos de câmera, Guerra mostra o autoritarismo do governo de Machel. O político é um personagem intervencionista no filme, conhecido como “Pai da Nação”, morreu em um acidente aéreo suspeito, quando regressava a Maputo, capital do país, onde nasceu o cineasta. Machel era personalista, agia de maneira caricatural, quase como um personagem de si mesmo, mas bastante carismático e gostava de trocar de figurinos nas sessões de direito, era de fato uma pessoa diferenciada e abraçada como um sujeito fora da curva.

    O diretor produziu 29 rolos de filme de 16 milímetros cada. Era uma quantidade enorme de material bruto, e esse documentário procura registrar uma resposta enérgica as forças contra a independência, afirmando de maneira categórica que não há como ser polido ou pacificador com o domínio fascista, e apesar da tentativa de “só registrar”, seu documentário justifica os atos dos biografados. Os Comprometidos: Actas de um Processo de Descolonização mostra uma alternativa agressiva e contundente contra o autoritarismo colonizador.

  • Crítica | O Inimigo do Povo

    Crítica | O Inimigo do Povo

    Uma cidade norueguesa está sendo envenenada pelas próprias águas, com uma tubulação tão antiga que está contaminando toda a parte hídrica, valiosa não apenas para os cidadãos, mas para alimentar as fontes terapêuticas que atraem muitas turistas e fomentam a economia local. Negligência, ou não, o prefeito Peter Stockmann não reconhece os perigos literalmente sob os pés da população, e é preciso que o seu irmão, o doutor e cientista Thomas Stockmann, retorne de viagem e, por acaso, descubra o problema. Ao escrever um artigo científico para ser publicado no jornal da cidade, o The Messenger, Thomas, cego por sua responsabilidade profissional, esquece que está comprando briga com a prefeitura e que Peter não precisa de polêmicas nem denúncias para ter de manipular na sua gestão. Assim, logo notamos que a verdadeira contaminação não é só pela água, mas sim a das mentes e corações do povo pelo poder público.

    Inimigo do Povo é, portanto, sobre peitar o poder vigente e as consequências disso para o homem de bem que só quer fazer as coisas do jeito certo. Neste caso, o Dr. Thomas, que ao descobrir a contaminação da água da cidade na qual acabou de voltar, confia que as autoridades vão resolver o problema. Mostrando-se inteligente, mas ingênuo – ovelha que confia nos lobos por não ver suas presas. Logo, inicia-se a cruzada teimosa do Dr. Thomas para informar o público de uma possível pandemia caso os canos da cidade não sejam trocados. Incomodando cada vez mais quem não quer gastar dinheiro na reforma subterrânea, e não hesita em jogar a opinião pública contra a ciência (É o Brasil do Coronavírus?). Novamente, Steve McQueen se entrega a um papel de pura ética profissional, interpretando homens que fazem a coisa certa, custe o que custar.

    Temos então construída uma dupla jornada para que Peter esconda os fatos de uma comunidade pouco civilizada, criando uma conspiração, e para que o Dr. consiga de fato provar a gravidade da situação e não seja silenciado pelo seu próprio irmão, o prefeito Peter (que não se compromete, nem acredita muito no tamanho do problema – afinal, o turismo da cidade depende das fontes termais e não pode ser interrompido por pressão nenhuma). Uma pena o diretor George Schaefer optar por uma estética de “teatro filmado”, resultado em imagens quase sem movimento, o que pode afastar uma vasta gama do público. Na adaptação da peça de 1883, a história continua um primor de qualidade narrativa, mas o visual deixa muito a desejar – desinteressante, para dizer o mínimo. Mesmo assim, é sempre interessante assistir o homem comum contra o Governo, a aventura que brota do embate entre o certo para a população, e o mais confortável para o Poder.

  • Crítica | Os Arrependidos

    Crítica | Os Arrependidos

    Baseado no livro O Terror Renegado de Alessandra Gasparotto, Os Arrependidos é um filme da dupla Ricardo Calil e Armando Antenore que conta  a historia dos ex-guerrilheiros que quando jovens, sofreram tortura para se assumir como arrependidos, inclusive indo a imprensa afirmar que mudaram de ideia em relação a ideologia que antes professavam, classificando assim seus antigos atos como um “terrorismo” que pertence ao passado. O filme conversa com algumas dessas pessoas, Gustavo Guimarães Barbosa, Marcos Vinicios Fernandes, Celso Lungaretti, Marcos Alberto Martini, Rômulo Moreira Fontes. além de falar com alguns parentes desses ex-presos.

    O documentário não tem pressa, as entrevistas são francas e eles falam sobre como entraram nos grupos revolucionários, assumindo que não tinham muito como ocupar o tempo ocioso de sua juventude, que diversão era um artigo de luxo e raro na época, então o lugar contra o reacionarismo e a falta de liberdade eram um caminho óbvio, os movimentos secundaristas e estudantis eram a alternativa mais correta.

    Calil e Antenores variam entre os depoimentos recentes e as gravações antigas de qualidade visual ruim, condizente com os poucos registros de imprensa da época. O conteúdo dessas conversas impressiona, pela crueldade que foi imposta a eles. A curadoria da dupla de diretores é ótima, há cuidado em deixar legendas nas conversas para que o entendimento do público seja completo.

    Os tais “arrependidos” já estão na meia idade, mas nota-se que eles parecem mais velhos do que realmente são, como se a Ditadura roubasse deles os bons anos de sua vida. Chega ao cúmulo de uma irmã mais velha de um dos torturados parecer mais jovem, quase como se fosse ela uma filha de idade, cuidando do pai já bem idoso. Eles não se consideram traidores, cada um tem seus motivos para falar, e alguns, até seguem o pensamento ligado a esquerda, mas aceitavam falar sobre seus arrependimentos para ter liberdade, obviamente. Gustavo Barbosa por exemplo afirma que dentro dos seus limites, falava que a luta armada não era boa, mas não que concordava com o Regime.

    A edição é bem pensada, entre as falas dos entrevistados são colocados comerciais da época, fato que reforça a sensação de incômodo. Tanto a música dessas propaganda  quanto a falta de qualidade sonora das peças publicitárias, fica uma impressão de que os comerciais são curtas de terror.

    É de partir o coração quando se fala dos arrependidos já falecidos, ainda mais no que se fala a respeito dos arrependimentos, das mentiras e das torturas que passavam do físico e destruíam as pessoas em níveis de caráter, sentimentos e moral. Acompanhar toda essa historia, ainda mais atualmente quando ocorre um movimento político que defende práticas tão vis quantos essas é pesado. Um dos momentos mais chocantes do filme reside nas falas das parentes de um dos arrependidos já morto, Manuel Henrique Ferreira. Abaixo, um trecho da carta que Ferreira enviou, claro, resumido, já que a correspondência tinha 21 páginas:

    Ao final de Os Arrependidos, se dá o destino dos ex-militantes, alguns se tornaram jornalistas do veículo ligado a direita, A Folha da Tarde, alguns migraram para o movimento ultra direitista como O Integralismo , outros nem quiseram falar sobre seus arrependimentos porque as lembranças eram muito duras, e Massafumi Yoshinaga é tratado como uma das principais vítimas desse tempo, pois foi símbolo “positivo” para os milicos, por ter sido um dos mais notórios arrependidos, e depois, se suicidou. É uma historia dilacerante e uma vez publicado o filme, a obra ganha contornos de documento histórico, que brilha bastante por desvelar mais uma das muitas mentiras do Regime Militar brasileiro, que não foi nada brando com esses homens, que eram meninos a época.

  • Crítica | Uma Noite em Miami…

    Crítica | Uma Noite em Miami…

    “Poder é ter um mundo aonde você pode ser você mesmo.”

    Quatro homens negros numa suíte de hotel, discutindo não só seus papeis na sociedade americana de 1963, mas o seu futuro e os seus valores. Em 2021, os assuntos seriam outros, invocados através de um outro contexto, mas naquela época, no sul repleto de contradições dos Estados Unidos, o impacto igualitário de Martin Luther King ainda não tinha acontecido, e afro descendentes ainda eram obrigados a sentar no final do ônibus, e usar banheiros próprios. É sob essa tensão que Uma Noite em Miami se desdobra, num drama histórico e semibiográfico cujas raízes, profundas, dialogam com Selma, Lágrimas Sobre o Mississipi e, indo aos primórdios das tensões raciais, 12 Anos de Escravidão. É por isso que Malcolm X chama seus três amigos para aquele quarto: as cicatrizes ainda estavam expostas, além do medo de que tudo se repita. De uma outra forma, mas com os mesmos alvos oriundos de ‘Wakanda’.

    Porque a melanina é motivo de discórdia entre os injustos, e Malcolm não deixa ninguém esquecer disso na sua militância, “uma voz solitária”, como ele mesmo admite sem bancar a vítima, e sim o arauto da causa, num poço de confusão, e violência. E esse debate não poderia ser numa hora melhor: enquanto o próprio Muhammad Ali se gaba por ter ganho o título de campeão de peso-pesado mundial, o cantor Sam Cooke tenta em vão animar uma plateia de senhoras brancas que não o aceita, assim como o jogador de basquete Jim Brown, outra vítima de um racismo estrutural, sofrendo com brancos burgueses que não se consideram racistas. Juntos agora entre quatro paredes, esse quarteto apresenta uma amizade inabalável, desde a infância, mas isso não evita que tenham suas verdades e ambições colocadas à prova, nesta longa noite. “Você poderia mover montanhas, irmão”, diz Malcolm a Cooke, em uma cena. Mas Cooke só quer crescer, ser importante, respeitado pela burguesia que o excluí, e no fundo, o enoja.

    Lidando em especial com o tema da conscientização e empatia, a atriz Regina King faz um trabalho notável na direção ao confinar homens diferentes num quarto, e ver o que sai dessa situação com sensibilidade, força e precisão na dinâmica do filme. É gratificante, aliás, perceber como King entende que um close bem dado, na hora certa, rende um grande momento, superior a qualquer diálogo. A atriz faz sua estreia na direção com um drama seguro, coerente, e nem por isso sufocado pela inexperiência da diretora, mas talvez seja a grande habilidade dela em extrair o melhor dos atores, que mais surpreende: o quarteto principal e seus coadjuvantes estão sublimes, com Leslie Odom Jr. encarnando o cantor de soul cheio de talento, e revoltado por não chegar no topo, e Eli Goree, perfeito como o titã do boxe Muhammad Ali, aqui vivendo sua glória de campeão mas contestado pelo seu papel na sociedade enquanto não apenas um homem rico, mas um homem rico e negro. Se King ainda não consegue fazer um tour de force de 2 horas, a peça Uma Noite em Miami é traduzida em cinema com um charme e uma elegância que nos convidam a todo tipo de debate, e revisão.

     

  • Crítica | Judas e o Messias Negro

    Crítica | Judas e o Messias Negro

    Judas e o Messias Negro é dedo na ferida, sem perder o controle. É fera ferida que não perde seu charme, nem seu brilho quando o bicho pega. Emulando toda a barbárie e o racismo institucional na sociedade americana de 1969, o filme registra muito mais que a luta de Fred Hampton, o líder do Partido dos Panteras Negras, para com o engajamento do povo negro em prol de sua sobrevivência diante da brutalidade policial, mas expõe com força impressionante o trauma vivido pelo grupo radical dos Panteras e a tensão dos seus embates em uma Chicago retratada quase como cenário sem-lei de faroeste, sob uma típica atmosfera política que sufoca qualquer um. Judas tece críticas externas e também internas ao movimento, sem diluir ou exagerar nenhuma causa ou consequência de suas ações coletivas, por vezes planejadas e as vezes desesperadas, nisso tornando-se, facilmente, um dos melhores filmes do ano de 2020.

    Drama caprichado, cuja base está na dualidade entre um “messias” que vive para conscientizar e limpar a dor dos seus, e o seu querido Judas particular (William O’Neal, um moleque informante do FBI infiltrado nos Panteras), temos aqui um contraponto moral estabelecido com total naturalidade e franqueza, sendo este grande parte da espinha dorsal do filme. Ousada, e direta ao ponto, a obra serve como um debate ficcional e histórico à questão: vale a pena combater fogo contra fogo? Se o radicalismo do grupo os levou à danação, a coragem e a determinação de homens e mulheres cansados de sofrer, por ser quem são, merecem ser lembradas contra a vitória de um estado higienista. Judas e o Messias Negro é sobre a força que nasce da humilhação, e do perigo de “viver” numa sociedade cujo racismo estrutural ameaça qualquer gota de melanina portada por um cidadão. Inevitável a revolta explodir, e Fred é o capitão do barco, ciente de que poderá ser apunhalado pelas costas a qualquer momento.

    Mas não há outro caminho, senão seguir. Ele(s), contra o mundo, anti-heróis deles mesmos, tentando construir uma realidade utópica mais justa, nos anos 60. Ao invés de rejeitar a violência e o suspense que brota de certas sequências, o diretor Shaka King assume com orgulho a bravura do seu protagonista, e entrega um filme sensível, poderoso e realista, mas jamais apologético e muito menos hipócrita perante os seus temas mais complexos, e ainda atuais. Daniel Kaluuya, de Corra!, entrega o melhor trabalho da sua carreira, ao carregar no olhar enigmático o pesar e as desilusões de um homem muito jovem, castigado, e que ainda sorri entre seus seguidores rumo ao bem-estar da sua raça, tão sonhado. Como seu contraponto nessa história de luta sem glória, Lakeith Stanfield é um nome cada vez mais respeitado em Hollywood, presente também na ótima série Atlanta, tendo aqui o papel de vilão arrependido, perdido na própria confusão. Na própria dor, e perseguição, por ser quem se é.

  • Crítica | Democracia em Vertigem

    Crítica | Democracia em Vertigem

    Democracia em Vertigem, documentário de Petra Costa, começa mostrando imagens de bastidores do Sindicatos dos Metalúrgicos do ABC, durante o dia que Luiz Inácio Lula da Silva foi preso. Há uma licença poética que o filme seja liberado pela Netflix na época em que vazamentos de conversas entre os responsáveis por todo o processo que pois o ex-presidente na cadeia.

    Tal qual foi Elena, esse é um filme pessoal, narrado pela própria, com uma direção e edição pesada, aproveitando a época do impeachment de Dilma Rousseff como ponto de partida, tal qual outros filmes também fizeram, a saber, O Processo, Já Vimos Esse Filme, Excelentíssimos etc. O filme de Petra se assemelha a este último, que em cima de seu lançamento, mudou um pouco seu viés, deixando de ser um filme sobre o golpe, passando a ser sobre a conjuntura mais atual, o que é natural, pois o impeachment parece ter ocorrido há décadas atrás.

    Ao falar do passado do Brasil, Petra tenta fugir de seu estilo de narrativa, apelando para um estilo de documentário diferente do que geralmente faz, lembrando um pouco do cinema de Silvio Tendler e outros exemplares  como Peões de Eduardo Coutinho e O ABC da Greve de Leon Hirzman, resgatando uma boa memória de construção do ideal político de Lula.

    O filme faz bastante uso de imagens de arquivo, mas também algumas pessoais, filmados pela própria diretora, com 19 anos comemorando a eleição do metalúrgico ao maior posto político do Brasil. Em sua narração, se nota que os abraços que ele dá no congresso refletem seu carisma, e seu espírito de conciliação. A voz de Costa conduz o longa, e interfere demasiado na mensagem, ao passo que condena a aproximação do PMDB, afirmando que o PT e seu presidente pecaram exatamente no que sempre atacou em seus adversários, se misturando com o partido mais repleto de patifaria.

    Lula dizia que Jesus se viesse ao Brasil, teria que fazer aliança até com Judas, e o destaque a essa frase no meio do filme faz ele soar muito maniqueísta. O documentário tenta ser poético, falando do distanciamento geográfico de Brasília do povo, mas no final das contas, fica parecendo bobo apenas, e em alguns pontos é irresponsável e  bastante generalista, quando fala do movimento de 2013, afirmando que o Vem Pra Rua tinha em sua gênese uma mentalidade direitista e anti comunista, e isso é bobo, tosco, e mentiroso, em especial quando utiliza uma forma de contar história generalista, falando que a mídia tradicional apoiou as manifestações daquele Junho, o que é mentira. Há inúmeros episódios (alguns até engraçados, como a vez que José Luiz Datena fez uma enquete sobre manifestações com baderna serem positivas ou não), e as grandes emissores de televisão  e os jornalões condenaram os Black Blocks, e havia claro campos progressistas nas passeatas, negar isso é ser mentiroso.

    Há zero novidade por em contra posição as falas de Eduardo Cunha, afirmando que Impeachment não pode ser arma eleitoral, depois acolhendo o processo. É redundante, Petra joga pra torcida, quem conhece a historia não muda em nada seu pensamento, e quem é oposição também não é nem um pouco atingido por isso, parece que esse trecho é mais protocolar do que qualquer coisa. O filme em última análise serve bem como resumo dos fatos, para alguém completamente alheio a historia, é um filme bom, mas somente isso, para quem sabe como foi todo o processo, há zero novidades, mesmo com as entrevistas a políticos notórios, como Roberto Requião, Paulo Maluf, Jean Willy,e uma tentativa (fracassada) de conversar com Aécio Neves.

    Tal qual o filme de Douglas Duarte, esse dedica um bom tempo em desenrolar Bolsonaro como candidato em 2018, embora sua campanha estivesse bem tímida neste momento. Ao menos, Democracia em Vertigem não tem vergonha em assumir um lado, afirmando que o grande problema do país era a relação do grande empresariado brasileiro com a política nacional, seja ela do viés que for, tanto em Collor, nos governos tucanos ou petistas, ou mesmo com Jair Bolsonaro. O problema é que por conta das fragilidades dos discursos que Petra escolhe, esse argumento se dilui. É um filme de extrema vaidade, e há preocupação até em esclarecer a familiaridade da diretora com os  Andrade e Gutierrez, fato que faz ele passar  do ponto. A forma como o filme digere a conjuntura política é bem apaixonada e carente de razão, e isso não seria um defeito se o filme não tivesse a pretensão de soar mais sério e sóbrio que o resto da filmografia de Petra Costa, e por mais que tenha boas intenções,  Democracia em Vertigem  soa frívolo e parcial demais, quase míope na maioria de suas análises, e só acrescenta realmente para quem não sabe absolutamente nada da dantesca história do Golpe de 2016 e todo o desenrolar político posterior.

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  • Crítica | Moloch

    Crítica | Moloch

    Moloch é um mergulho na intimidade da cúpula nazista, um filme que se passa em 1942 e mostra um pouco do que seriam os dias comuns dos destes homens em dias onde o esforço de guerra não era o principal mote. No início há uma cena estranha, de uma bela mulher andando nua pelos corredores de um castelo antigo. A loira pratica atos em uma tranquilidade que não combina nada com a ansiedade dos conflitos que ocorrem no restante da Europa.

    Entre fumaça e a névoa está o cenário do filme de Aleksandr Sokurov. Os Alpes da Bavária eram o refugio do ditador Adolf Hitler, meticulosamente escolhido como um esconderijo exatamente para não causar suspeitas e para ficar distante dos tiros e bombas que dilaceram corpos e almas de jovens soldados e de variados civis. Não fosse por um ou outro artefato utilizado pela atriz Elena Rufanova, com símbolos da suástica, mal se daria para notar suas inclinações políticas. Rufanova vive a amante do Fuhrer, Eva Braun, que aguarda ansiosamente a chegada do seu amado.

    Não demora a comitiva do Terceiro Reich chegar, onde o personagem de Hitler, interpretado por Leonid Mosgovoy é um sujeito impertinente e inconveniente ao extremo, sendo um sujeito que incomoda até os seus. As interações dos personagens que compõem a cúpula de poder alemã não fazem muito além de se divertir e brincar, e o fato de serem comuns e tangíveis adiciona camadas a esses personagens que a historia recente normalmente retrata apenas como vilões malvados, maniqueístas e monstruosos e perder de vista que pessoas assim eram humanos comuns mas que corromperam seus corações e mentes é péssimo.

    Ainda sobre Hitler, sua composição é de um homem frágil e inseguro, isso ajuda a explicar sua mania de grandeza e obsessão em perseguir quem pensa ou é diferente do que ele egoisticamente considera ideal. O autoritarismo que pratica e suas bravatas são explicadas facilmente pelas imperfeições que ele mesmo assume que tem e por sua baixa auto estima. Isso conversa bastante com a nossa realidade atual, embora por parte dos mais lembrados projetos de autoritários de extrema direita não haja exatamente um sentimento de auto comiseração tão forte, mas sim uma mediocridade facilmente lida por terceiros, por quem cerca os governantes atuais e por quem é governado por eles. Neste ponto, o Adolf que Sokurov registra é mais imponente, pois ele só permite se mostrar fraco no quarto, na intimidade com sua mulher, e para um ou outro agente de confiança, ele não se super expõe, ao contrário dos chefes de estado da atualidade que através das redes sociais, derramam suas fraquezas, fragilidades de discurso e incongruências de pensamento.

    A rotina dos que interagem no castelo é bem desinteressante, entre jantares, provas de sopas de aparência asquerosa e apreciação de filmes da maquina nazista, mas para Eva e Adolf os momentos são bem diferentes, entre transas e brigas ambos demonstram o quanto são desequilibrados emocionalmente e o quanto cedem a paranoia e insanidade. Eles vão mais as vias de fato do que se entregam ao prazer e parecem estar sempre a beira de um ataque de nervos. Moloch carrega o nome de um figura mitológica que os amorreus veneravam perto de 1900 a.C, era chamada na versão brasileira da Bíblia de Moloque e aos seus pés eram praticados atos sexuais e sacrifício de crianças. Diante da carreira retratada no longa de Sokurov, o nome faz sentido, e o estudo a respeito da intimidade das pessoas históricas é complexo, profundo e cômico em muitos pontos, um deboche às figuras odiáveis da história.

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  • Crítica | Uma Noite de 12 Anos

    Crítica | Uma Noite de 12 Anos

    Temos uma clássica narrativa de cunho militar/ditatorial, sob a perspectiva de três prisioneiros, ou melhor, reféns de um governo uruguaiano ainda totalitário, e implacável com os seus subversivos. Aqui, o ditador ri da cara de quem queria mudar o mundo. Ameaça, e ri mais um pouco. Porcos a serviço da própria podridão, enquanto as humilhações e o escárnio a dignidade humana não cessam. Curioso como, em 2019, tudo isso parece retornar (após um curto período) na América Latina de sempre: super-instável, violenta, turbulenta. Refém das cobiças do primeiro mundo que nos vê tal um laboratório de experimentos sociais, facilmente manipulável. Dócil. Frágil.

    O filme de Álvaro Brechner consegue denunciar, graças ao uso pertinente de uma mise-en-scène pesada e amplamente realista, grande parte da tensão sufocante que tanto corrompeu, e se infiltrou na estrutura das políticas latino-americanas. Explorando o peso de uma ditadura sentida na pele por três dos seus mais famosos sobreviventes compatriotas, mantidos em cativeiro sob forte guarita, e expostos a todo tipo de tortura física e psicológica dentro e fora das suas jaulas imundas, eis aqui o semi-triunfo de Uma Noite de 12 Anos, durante sua sessão cheia de altos e baixos: tornar perspicaz e tangível, na tela, a sensação de injustiça e perseguição quando as liberdades parecem ser coisa do passado, e a democracia, uma utopia além de quaisquer possibilidades.

    Um drama a serviço do ato de resistência perante a uma intolerância absolutista, enquanto a sociedade é novamente (incansavelmente) levada a crer num certo e errado conveniente a um jogo de poder atual, presente no Uruguai dos anos 70 e 80 (e na infeliz Venezuela, dos anos 2010). José Mujica, num futuro já de outrora, viria a ser o presidente desta nação, o mais humilde e populista de todos os chefes, mas antes, junto de Mauricio Rosencof, jornalista e escritor, e Eleuterio Huidobro, ex-ministro da Defesa, tiveram de sentir a queimadura dos grilhões históricos que os seus e os nossos antepassados também sentiram, “de mãos atadas”, sonhando com as liberdades sociais como três meninos que sonham em ser astronautas.

    Brechner confunde dramatização com sentimentalismo, rendendo boas cenas, simbólicas como precisam ser, mas mostrando-se inseguro quanto a capacidade da plateia em absorver a pressão que esses corpos e mentalidades sofreram. Assim, o cineasta torna este Uma Noite de 12 Anos um tanto pretensioso nos temas que expõe, sem a habilidade narrativa de debatê-los como mereciam – exceto em alguns rápidos (e rasos) momentos, como quando Mujica, vulgo Pepe, por meio de um delírio psicológico sendo submetido a tortura militar, vê todos em um bar algemados, e vendados, ao redor das mesas. A visão impressiona, evidencia a angustia onipresente de um período agressivo. Uma paranoia que começa a assolar a população, por inteiro, quando esta é pulverizada no ar, como os agrotóxicos e os preconceitos sociais que são borrifados para adoecer a população, em todos os sentidos.

    Com nada de novo, e tudo de velho, vimos Pepe sendo preso junto de outros rebeldes, e seus maiores desafios enfrentados no cárcere. Seu inferno começa, entre escadas de sangue e tirania institucional – e os de fora também sofrem, famílias que compartilham de um mesmo sofrimento. É curioso como, ao longo de uma tempestade, o sol parece nunca mais voltar, e a cinebiografia transmite isso de forma eficiente, sendo esta sua principal função, devido a forma denunciativa na qual foi construída. Seus fortes apelos não passam em vão, mas tampouco fazem Uma Noite de 12 Anos ser tão marcante quanto poderia ser. Filme que se vale pelos seus temas, sua ambientação, e se isso já basta ao espectador, temos aqui um bom registro de uma época premiado na Mostra Horizontes do Festival de Veneza, e também no prestigiado Festival de Berlim, em 2018.

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  • Crítica | Tá Rindo de Quê?

    Crítica | Tá Rindo de Quê?

    Do trio de diretores Cláudio Manoel, Álvaro Campos e Alê Braga, o documentário Tá Rindo de Quê? tem o objetivo pessoal de mostrar como era a inglória missão dos humoristas e comediantes durante os anos pós-golpe de 1964, no regime civil-militar que se instaurou. Já no  início do filme são mostradas imagens da época, em preto e branco, com frases que variam entre idealistas de direita e de esquerda, tentando achar ali respostas para o povo, sobretudo os trabalhadores, mas a escolha da ordem delas faz um sentido diferente aparecer, o da confusão e a tentativa do longa  em emular a ambiguidade que era transmitida ao povo pela paranoia típica da época, já que o povo não entendia exatamente o que se passava.

    Entre os entrevistados estão Juca Chaves, Daniel Filho, Ary Toledo, Boni, Chico Caruso, Eliezer Motta, Bemvindo Sequeira, Agildo Ribeiro, Jaguar, Carmen Siqueira, Fafy Siqueira, e dentre esses há dois que se destacam: Carlos Alberto de Nóbrega, o mais veemente na ojeriza a ditadura, que afirma que a falta de liberdade é assassina, e Roberto Guilherme, que honra o nome de farda que usava como Sargento Pincel e defende que naquele período havia respeito e o sujeito podia andar na rua com ouro que não seria perturbado. Essa última fala grafa bem a ideia maniqueísta e egoísta de que se não ultrapassasse o bem estar pessoal, o cotidiano dos outros pouco importava. Essa alienação do povo era comum, assim como a inquietação de quem vivia de fazer rir, que era evidentemente uma função social realmente subversiva.

    Uma boa parte do documentário se dedica a falar de Chico Anysio (e de suas referências, brevemente, como Costinha e Ronald Golias, que era seu ídolo) e o fato dele conseguir tanto sucesso é muito por conta de dois fatores, o primeiro é que Chico City foi inaugurado em 1962, dois anos antes da “revolução” ter ocorrido, com o termo em atenção pela fala de Boni. O segundo era o largo uso de personagens que ele fazia, e isso tornava seu texto impessoal de certa forma.

    Em algum ponto, os roteiristas passaram a brincar com os textos e os limites dos censores. Faça Amor, Não Faça Guerra por exemplo era um programa de TV que usava de cacófagos demais para fazer insinuações sobre o caráter do Brasil político e piadas de cunho sexual. Outra discussão era a das mulheres no humor, que tinham seus papéis normalmente reduzidas a tipos e estereótipos, se resumindo basicamente objetos de cena. Para Fafy Siqueira, quem ajudou a modificar isso a força, foi Dercy Gonçalves e isso é largamente reconhecido, pois ela foi inspiração para que inúmeras outras humoristas também pusessem para fora seu desejo de fugir desses estereótipos sexistas.

    No final do longa, Henfil (em entrevistas antigas), Caruso e Daniel Filho falam sobre a censura, com o primeiro argumentando que ter seu trabalho revisado e podado não o ajudava em nada, enquanto para Caruso sim – isso demonstra os diferentes modos de criar e fazer humor – mas de certa forma, quando os cortes caíram, muitos sofreram um tipo de bloqueio mental. Para Caruso e Daniel Filho, a situação era tão traumática que mudou até seu modo de lidar com a própria arte. Tá Rindo de Quê? acerta principalmente na questão de ser um retrato bem amplo da época em que estuda, e compensa o fato de ser um documentário um pouco à moda antiga, com linguagem semelhante a televisiva e curadoria de entrevistas com informações bastante ricas, aliado a um ritmo fluido e que faz passar rápido seus 85 minutos de duração.

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  • Crítica | Zoya

    Crítica | Zoya

    Produção do estúdio de cinema Soyuzderfilm lançada em 1944, Zoya é uma produção soviética, em preto e branco e um registro cinebiográfico da vida de Zoya Kosmodermyamskaya, uma militante e combatente russa que lutou contra a invasão nazista na URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). O filme começa com a chegada de uma pessoa estranha numa instalação militar que só tinha homens. Logo, percebem ser essa pessoa uma mulher e a levam até os lideres do regimento nazista. O sujeito dá um tapa com as costas da mão na mulher, interpretada por Galina Vodyanitskaya, basicamente porque ela se mantem em silêncio. Aos poucos, a história da personagem real é desenvolvida, com direito a um retorno à época de sua infância.

    Quando retorna ao passado, o filme relembra os períodos da Revolução Soviética e utiliza imagens reais de Josef Stalin, soando como uma propaganda do governo, mas sem compromisso de louvar a figura do líder soviético, mas demonstrando apenas o teor informacional. A forma como aparecem essas referências não tem demora, o foco narrativa nesse trecho é na construção do código ético da personagem, que já no início, era estabelecido pela sua militância e estudos, visando tornar a juventude em algo mais que apenas massa de manobra.

    No longa é retratado que durante a ofensiva alemã, uma das maiores armas contra a ideologia nazifascista foi a instrução da juventude, que ocupava sua mente com conceitos que punham o povo como soberano, um pensamento que tinha nos trabalhadores seu foco central e suas articulações, dessa forma, a ascensão do Fuhrer e de uma mentalidade segregadora batiam de frente com o ideal não só de Zoya, como de todos os seus contemporâneos. Ora, para aquele juventude não existia alternativa senão o combate de forma veemente a ideologia de Adolf Hitler, Benito Mussolini e outros líderes de extrema-direita.

    O filme foi lançado em Novembro de 1944, alguns poucos meses depois de Dia D onde as forças aliadas invadiram a Normandia, ou seja, é uma obra bem contemporânea. Os letreiros que descrevem as ações de Zoya dão a ela um caráter de heroísmo, mas não tornam ela um incidente isolado, ao contrário, fica claro que ela e tantos outros compatriotas se juntaram no esforço de guerra contra o Eixo. Falando assim parece maniqueísta a premissa, e de fato é quase impossível não soar assim dada a época do filme, mas o exemplo da personagem-título serve demais ao propósito de mostrar como prevenir a simpatia ou tolerância ao nazifascismo.

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  • Crítica | Lida Baarová

    Crítica | Lida Baarová

    Especial para a TV alemã, Lida Baavorá também conhecido como Devil’s Mistress conta a história da atriz checa que dá nome ao filme, interpretada em sua juventude por Tatiana Pauhofová. Sua trajetória rumo ao estrelato começa quando com sua viagem a Berlim em busca de notoriedade, já que não conseguia papéis em seu país natal.

    O filme é didático, ainda que possua um orçamento considerável em comparação com outros telefilmes. Os cenários, figurinos e aspectos visuais em geral são bem desenvolvidos. A trama demora um tempo mostrando os percalços de Lida e sua dificuldade em lidar com seu sotaque, e isso era algo importante, visto que acabavam de sair do cinema mudo. Não demora a ela achar um par, Gustav Frölich (Gedeon Burkhard, de Bastardos Inglórios), mas a lua de mel não demora a acabar.

    Lida morreu nos anos 2000 e fez centenas de filmes, mas sua carreira foi cortada por conta do envolvimento que teve com Goebbels, e os elementos do romance que ali ocorreram são desenvolvidos aos poucos. O ministro se aproveita de algumas das fragilidades que a vida de ator que Frölich tem, para se fazer mais presente na vida da protagonista, no entanto, o olhar da moça para ele enquanto é abordado por jovens que querem seu autógrafo é estranho, pois aparentemente carrega admiração, mas também questionamento.

    Os momentos mais dramáticos, onde o over action ganha força ficam um bocado caricatos, em especial por que Frölich é dublado por Martin Stránský e não por seu intérprete, assim como Goebbels, mas ao menos é dado espaço a Karl Markovics atuar, pois seus momentos mudos são os melhores de todo filme. Quando finalmente a moça decide se entregar a ele sua expressão é feia, quase como a de um monstro, semelhante a Max Schreck em Nosferatu de Murnau. As cenas que Goebbels chora por sua amada, logo depois de uma briga com Hitler dão o tom do quão novelesca é a produção, que tenta mostrar os mandantes do Terceiro Reich como passíveis de ciúmes e invejas.

    Lida teve uma vida difícil após a guerra, transitava na época entre o cinema italiano e alemão, mas quando estava na Checoslováquia era tratada como traidora por ter se envolvido com amantes nazistas. O diretor Filipe Renc parece não ter tanta experiência para lidar com uma história de natureza tão complexa e cheia de camadas, pois segundo seus olhos, a postura do governo tcheco era quase tão cruel quanto os subordinados ao Fuhrer, e por mais que não houvesse santos em época de guerra, também não havia necessidade dessa generalização. Como dita pela própria Lida aos oitenta anos (feita por Zdenka Procházková), toda história contada por alguém possui invenções, mentiras e boatos que fingem ser verdade. Surpreendente como um filme assim tenha sido produzido e veiculado, ainda mais pelas características humanas de seus personagens, patéticos e simpáticos de certa forma.

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  • Crítica | A Queda! As Últimas Horas de Hitler

    Crítica | A Queda! As Últimas Horas de Hitler

    No ano de 2004, chegava aos cinemas mundiais o filme A Queda! As Últimas Horas de Hitler, longa de Oliver Hirschbiegel que tinha a difícil tarefa de retratar os momentos finais da trajetória do Fuhrer, da maneira mais fiel possível. Grande parte do êxito disso se dá pela interpretação de Bruno Ganz como o tirano austríaco, onde o ator se dedica de maneira visceral ao papel, sendo parecido não só em aparência mas também em trejeitos e comportamento. Depois de um intenso trabalho de pesquisa com vídeos da época e com relatos de quem esteve próximo do político ele chegou ao ideal visto em tela.

    A historia é narrada pelos olhos de Traudl Junge (Alexandra Maria Lara), uma mulher que recém assumiu como secretária de Hitler. Há uma construção de normalidade politica no inicio, que faz o filme soar até moroso de tão lento que é, mas isso é extremamente necessário, pois a ideia de mostrar os bastidores  de como era o principal país do Eixo.

    Uma grave situação envolve o médico e oficial Prof. Ernst-Günther Schenck, que é interpretado por Christian Berkel. Sua inserção na trama se dá quando os militares estão se livrando das provas documentais, fazendo uma bagunça nas partes internas dos quartéis se livrando de papelada para queimá-las atrapalhando obviamente todo o trabalho de manutenção de mantimentos das tropas. Os soldados ficariam sem suprimentos, sem comida e essa preocupação foi dita por Schenck, que vai falar com outro oficial da parte operacional. A condição de não ter comida não era uma preocupação do partido nazista e de suas lideranças, e por mais explicito e didático que o roteiro de Bernd Eichinger seja nesse quesito, é um ponto importante de ser levantado, afinal, deflagra a total falta de compromisso com as tropas, e com os civis, pois os soldados certamente roubariam a comida destes para não padecerem de fome.

    O visual do filme se vale de uma cenografia e fotografia onde predominam tons mais claros, que facilitam a visualização de toda a grandiosidade visual que o Terceiro Reich tentava imprimir no detalhes de sua arquitetura e na construção do visual de seus líderes. Chega a ser irônico o contraste entre toda esse verniz que foi jogado em cima dos líderes nazistas com os ambientes mal acabados dos corredores dos bunkers, que obviamente não tinham o mesmo cuidado em serem construídos, pois eram abrigos de emergência.

    O contraste entre a alegria de Eva Braun (Juliane Köhler), dançando mesmo ao ter a noticia de que a Alemanha poderia cair e os  bombardeios que acontecem minutos depois as bases onde o exercito alemão está é impressionante. Não acontecem mortes gráficas, como nos filmes dirigidos por Mel Gibson, mas há apego a realidade o suficiente para que o espectador sinta que a situação é de calamidade.

    Adolf se sente sempre traído e injustiçado. Os soldados que desistem são chamados por eles de covardes e traidores da pátria o que demonstra mais uma vez o total distanciamento dele com relação as tropas e o desapego ao bem estar do povo, não só o civil como visto anteriormente, mas também aos alistados. Essa alienação e indecência moral é muito vista em lideranças autoritárias que emergiram recentemente e é catastrófico o rumo histórico que os países tomam, elevando figuras semelhantes a essa versão que normalmente sobre ao poder utilizando um discurso completamente inverso a isto, com foco no combate a corrupção e primando por caça a minorias.

    A Queda termina de maneira melancólica obviamente, dando o destino de cada um dos personagens que o publico acompanhou pelos quase 150 minutos de duração, mostrando a personagem que foi entrevistada para fazer o filme declarando que apesar de lamentar pelo numero absurdo de mortes que ocorreram na época, não poderia se sentir responsável por aquilo, dada a natureza burocrática de seus serviços, e isto é bastante simbólico, pois reflete o pensamento e o argumento geral de quem esteve ao lado do poder enquanto os governos tirânicos ocorriam, onde normalmente ocorria a ignorância aos fatos óbvios e aos acontecimentos nefastos praticados pelo poder em si, e apesar da linguagem visual se assemelhar demais aos especiais de televisão, a mensagem do roteiro é muito bem transmitida.

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  • Crítica | 22 de Julho

    Crítica | 22 de Julho

    É difícil imaginar alguém além de Paul Greengrass, ou O único cara que sabe fazer uma câmera tremida parecer espetacular, em Hollywood, comandando o filme em questão – talvez o soberbo Michael Mann dos anos 80, 90, mas certamente não o cineasta pós-Hacker, de 2015. 22 de Julho, tal Jogador Nº 1 e Infiltrado na Klan, parecem ser projetos moldados estritamente sob medida para seus cineastas, mantendo suas peculiaridades e acentuando seus talentos para determinados temas e proporções, por mais conveniente que isso seja, e por mais que esse problema, o da conveniência, seja o verdadeiro calcanhar de Aquiles do filme que Greengrass fez para a poderosa Netflix.

    Na Noruega, como parte de uma célula muito maior contra o multiculturalismo que assola a Europa, com os números de imigrantes crescendo e alarmando cada vez mais os seus detratores racistas, um jovem e insuspeito terrorista planta uma bomba numa van em frente de um edifício do governo, perto do gabinete do primeiro ministro do país, em Oslo, logo antes de estender calmamente o seu caos planejado a um alegre e divertido acampamento de férias, com centenas de jovens submetidos ao terror ambulante que chega com uma bazuca em mãos. Lá, eles os avisa ser um dos quatro cavaleiros do apocalipse, e extermina setenta e sete pessoas, deixando para trás, entre suas vítimas, um dos únicos sobrevivente do seu segundo ataque em estado gravíssimo.

    Toda a sequência de ataques terroristas duplos, em que Greengrass nos mostra porque deve ser considerado um mestre contemporâneo do Cinema de ação, já podem ser tidas como um dos grandes momentos de qualquer filme original presente nos catálogos da Netflix. A tensão desses momentos é absurda, em especial os instantes sufocantes que sucedem a explosão da bomba, deixando inúmeros feridos e um departamento de segurança nacional desesperado, e a sequência angustiante dos adolescentes correndo na floresta, perdidos e confusos, de um ódio inexplicável. A tensão pinga da tela, e é difícil piscar, tamanha hipnose projetada. Contudo, e a partir desse brilhante começo, 22 de Julho divide seu foco entre as consequências judiciais da captura do terrorista, e a recuperação física do garoto que viveu para contar a história – por mais eternamente fraturada que tenha ficado sua psique.

    Assim, o filme dilui sua tensão e seu poder hipnótico em duas frentes narrativas complementares, mas que apenas servem para expor as digressões de um drama que nunca sabe onde quer chegar, e no que abordar no que tange seus temas mais relevantes – a psicologia do assassino, a lógica do terrorismo, a lógica do estado tratando esses crimes, o retorno da vítima à uma vida normal após sobreviver a esse atentado a vida humana. Todos assuntos que Greengrass não consegue (e nem tenta) empregar um décimo da força que inseriu nos maravilhosos momentos iniciais do filme, tornando boa parte da obra, e sua principal, devido à importância para a história da reflexão dos temas já mencionados, o oposto qualitativo do seu início – inesquecível, para muitos espectadores.

    Em certo momento, quando o sobrevivente Viljar começa a recuperar sua autoconfiança saindo com uma garota, ou quando o matador Anders Breivik, trancado numa sala com diversos detetives policiais, admite suas paranoias confessando desconfiar que os seus pensamentos podem ser ouvidos pelas pessoas, o diretor do ótimo O Ultimato Bourne não parece querer investigar mais nada, apenas dar closes e mais closes no rosto do homicida e seus analistas, e partir para a próxima cena, num ciclo de anti-dramaticidade e desinteresse que incomoda, após duas horas de filme. Aqui, Greengrass poderia ter assistido a 12 Homens e Uma Sentença, clássico imbatível de Sidney Lumet, e ter se inspirado mais no trato com a criminalidade, a justiça e a democracia, e o quão intenso e grandiloquente esse trato pode agir a favor de uma grande e coerente abordagem cinematográfica. Pelo menos a sua câmera tremida, essa sim, continua imbatível.

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  • Crítica | Operação Final

    Crítica | Operação Final

    Ainda sob os vestígios ultra recentes de uma segunda grande guerra mundial, agentes secretos israelenses descobrem que um oficial nazista, responsável por inúmeras mortes e tragédias, está refugiado na Argentina. Nisso, uma operação toma forma para capturar o perigoso e calculista Adolf Eichmann, a fim de levá-lo a responder por seus crimes em Israel, e evitar assim a impunidade que pode parecer existir a qualquer outro que queira seguir os seus exemplos homicidas. E é justamente essa busca ambígua por justiça que norteia a trama do melhor filme da carreira de Chris Weitz, o cineasta de O Céu Pode Esperar e A Saga Crepúsculo: Lua Nova.

    Pela sua narrativa cheia de pequenos grandes episódios, todos preocupados a explicar cada detalhe de uma história de perseguição por meio de diálogos expositivos, Operação Final parece, em inúmeros momentos, ser baseado em algum livro semi ou totalmente desconhecido sobre as consequências do maior conflito da humanidade a ferir seus direitos básicos, e provocar mazelas civilizatórias e culturais ainda muito sentidas, principalmente nos idos que o filme de Weitz se passa. Todos ainda lidam com seus traumas, e tocam a vida como podem, principalmente em solo israelita, entre bares e casas de família ainda sob uma tensão que parece, aos poucos, dar lugar a uma paz ainda que ilusória.

    Na verdade, pode-se fazer aqui um paralelo bastante curioso e deveras específico com O Espião que Sabia Demais, outro exemplar desse mundo de agentes secretos cuja atmosfera de desconfiança e de paranoias onipresentes é bastante similar a obra, em questão. Ambos os filmes conseguem nos seduzir facilmente, e com muito charme e elegância, para esse mundo onde tudo é uma pista em potencial rumo a um alvo único, ou não, e ninguém é confiável nas trevas onde esses agentes operam. Uma realidade na qual seus profissionais estão condenados a ter uma vida pessoal interrompida por qualquer ligação chamando ao dever, a qualquer hora, e seria por isso que Oscar Isaac encaixa-se perfeitamente no papel de Peter Malkin, peça-chave na operação rumo ao paradeiro de Eichmann. Poucos atores conseguem atuar sem alma nos olhos igual Oscar. Eis então o típico homem de gelo.

    Junto de um pequeno grupo de aliados infiltrados na América Latina, Malkin chega a Argentina e rapidamente captura o oficial nazista, conseguindo prendê-lo sem dificuldades tamanha a precisão da operação título, só para descobrir que tudo ficaria mais difícil a partir de agora, pois Eichmann não se propõe a ajudar ninguém através de suas declarações, mesmo sendo deixado vivo e alimentado pelo povo que ajudou a executar. Ben Kingsley encarna o vilão com maestria esperada para um velho mestre do seu naipe, e nas cenas de reclusão, em seu quarto escuro manipulando oficiais israelenses com mil e uma palavras, sua atuação certamente torna-se a coisa mais preciosa de Operação Final, e quando nazista e israelense começam a estreitar laços de afinidade, e amizade, a linha entre pessoalidade e profissionalismo desfoca em todos os sentidos. A forma como Weitz acha humanidade na sua história é interessante, extraindo um drama saudável tanto de uma relação imprevista, quanto de uma fatia histórica praticamente impossível de se ignorar.

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  • Crítica | O Paciente: O Caso Tancredo Neves

    Crítica | O Paciente: O Caso Tancredo Neves

    Sergio Rezende é um diretor que em sua filmografia fez questão de fazer muitas menções ao cenário político brasileiro, normalmente levando Paulo Betti a tira colo, para ou protagonizar ou ao menos estrelar como coadjuvante seus filmes. Ao longo dos anos fez Lamarca (94), Guerra de Canudos (97), Mauá – O Imperador e o Rei (99), Zuzu Angel (06) e o recente Em Nome da Lei onde ele beatifica a figura de Sergio Moro, sem cita-lo evidentemente. Em comum, nessas cine biografias há a tentativa de evocar heroísmos, ainda que se juntar todos esses personagens, claramente não haja uma linha ideológica única que os guie. Quando recaiu sobre si a responsabilidade de fazer um filme sobre Tancredo Neves, obviamente que houve uma preocupação por parte de crítica e público.

    Mais até do que Rezende, em O Paciente – O Caso Tancredo Neves a figura mais exigida certamente é Othon Bastos, que faz o político que deveria subir ao poder após tantos anos de Regime Militar. Ao menos na construção da atmosfera e retorno a época de posse de Tancredo há um belo acerto do diretor, pois a Brasília daqui parece mesmo a da segunda metade dos anos oitenta.

    Tanto na luta por um regime democrático quanto na teimosia de não querer se tratar, o personagem de Tancredo soa  bastante fiel ao personagem histórico. Bastos acerta demais no tom, embora o elenco que o cerque como família não seja tão brilhante, sobretudo Lucas Drummond, que faz seu auxiliar, um jovem sobrinho que ao menos na construção do roteiro, ainda parecia ter alguma vida política viva. Seu Aécio Neves é um sujeito voluntarioso, indignado com o que fazem ao seu avô e desnecessariamente  falante, parece estar ali por motivos propagandista, ainda que fosse tarde demais para o (atual) senador mineiro, que nas eleições de 2018 foi eleito deputado federal e  com não muitos votos, graças a figura de paladino que foi desconstruída após os escândalos da Lava Jato.

    As conversas sobre os bastidores do planalto são muito boas, e apesar de muitos personagens conhecidos da política brasileira só tenham aparições em arquivos de vídeo como José Sarney, Ulysses Guimarães etc, há uma boa base para o entendimento de como a saúde de Tancredo era algo importante para manter o país nos trilhos democráticos e nesse ponto, todo o mérito é da atuação de Bastos.

    Há um gasto de tempo enorme no registros da briga da junta médica para decidir qual ação deveria ser tomada ou qual erro foi mais crasso para o agravamento da saúde do homem público e isso narrativamente acrescenta pouco a historia, o máximo que contribui é na construção de  thriller que o filme precisa.

    Apesar de mais uma vez Rezende incorrer em uma propaganda ideológica – dessa vez atrasada ao invés de adiantada como foi com Moro – O Paciente é um filme tenso, que mantém um suspense em aberto especialmente para o espectador que não sabe qual foi o destino final de Tancredo Neves, para plateias estrangeiras e desavisadas claramente há um mistério histórico ali muito bem construído e para quem obviamente conhece minimamente a historia do Brasil, é um prato cheio de boas referencias, em especial pelo desempenho de Bastos, que engole todo o resto do elenco, mesmo quando seu personagem está desacordado.

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  • Crítica | A Valsa de Waldheim

    Crítica | A Valsa de Waldheim

    De Ruth Beckerman, A Valsa de Waldheim começa em maio de 1986, com uma filmagem encontrada em uma fita VHS antiga da diretora, em uma manifestação a respeito da candidatura de Kurt Josef  Waldheim, político carismático e amado pelo povo austríaco, mas que tinha um passado nebuloso e bastante confuso. Beckerman era oposição a ele, e suspeitava que a aparência de bom velhinho escondia algo.

    O filme é narrada pela diretora, fato que proporciona ao filme uma aura de pessoalidade extrema, mesmo que o objeto focado seja uma figura pública tão polêmica. Uma das situações que mais marca no depoimento de Beckerman é a descrição dos gestos que Waldheim vivia fazendo, sempre com movimentos de mãos que imitavam abraços. Sua linguagem corporal transparecia o seu discurso, de ser o homem da família. As filmagens de 86 lembram Opinião Pública, de Arnaldo Jabor, e em muitos outros momentos esses dois filmes conversam.

    O longa participou do Festival de Berlim esse ano, e curiosamente a história apagada de suas filmografias tem proximidade com a Alemanha, uma vez que ele foi um ex-soldado da SA (abreviação de Sturmabteilung), polícia de assalto nazista. Em alguns materiais biográficos, fala-se que ele foi dispensado por doença, e em algumas entrevistas ele simplesmente nega que tenha servido, apesar de seu nome constar nos registros e essas contradições fizeram sua reputação cair ainda mais. A diretora escolhe muito bem algumas imagens de julgamentos onde o filho do político passa uma vergonha tremenda ao tentar defender seu pai, ao mesmo tempo em que as autoridades internacionais afirmam que ninguém além da família dele acredita nessa versão açucarada que a campanha faz dele.

    Waldheim antes de tentar a presidência foi embaixador da ONU, pessoa respeitada apesar de ter em seu passado fatos que depunham contra si. Quando representava a Áustria em uma solenidade relacionada ao holocausto, ele não cobriu a cabeça como manda a tradição e a repercussão apesar de negativa, não foi tão execrada quanto poderia. Há um trecho de falas do político que se destaca em meio as muitas coisas que ele falava, todo momento ele perguntava se durante a segunda guerra mundial só morreram judeus. Beckerman quer reforçar ao público que esse argumento é tendencioso e perigoso, podendo esconder um preconceito interno e a vontade de se vitimizar para esconder os seus próprios pecados.

    Houve uma espécie de anistia aos austríacos nazistas e durante anos se acreditou que a Áustria não contribuiu com o Terceiro Reich, sendo sempre encarada como vítima, apesar da presença de pelo menos 550 mil nazistas no país. A construção da figura de homem justo em torno de Waldheim é muito bem orquestrada e conversa demais com algumas figuras políticas atuais, entre elas Jair Bolsonaro ainda que no caso do brasileiro essa construção seja muito mais escrachada e desavergonhada quando se trata de discurso de ódio. Ao final, uma cena chama a atenção: Kurt discursando para o povo em meio a uma forte chuva, uma amostra de sua importância para a população em geral.

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  • Crítica | O Doutrinador

    Crítica | O Doutrinador

    Baseado na história em quadrinhos de Luciano Cunha, O Doutrinador é um filme de Gustavo Bonafé, com codireção de Fabio Mendonça, e mostra um justiceiro brasileiro agindo como vigilante e cai como uma luva para os tempos de simplismo político, combinando quase à perfeição com a redução de crivo político do povo, ao menos é o que se pensa sobre esse projeto multimídia, que ano que vem terá o acréscimo de uma série.

    As primeiras cenas mostram o DAE – Divisão Armada Especial, entrando na casa do governador Sandro Corrêa (Eduardo Moscovis) e entre eles, há Miguel, interpretado pelo forte Kiko Pissolato. O político é levado a força para o quartel policial, mas não responde a quase nenhuma pergunta, e logo é liberado graças a um habeas corpus. Correa é um dos investigados da Operação Linfoma.

    O grave problema do filme é seu roteiro, com sete pessoas creditadas e graves questões de plano de fundo. Miguel é um homem justo, que tem uma filhinha, e obviamente é tratada como uma apelação dela como vítima, em uma manobra parecida com a série O Mecanismo, de José Padilha, embora os detalhes sejam diferentes. Além disso, a pequena menina é uma criança super-esperta, que fala muitas gírias e não soa nenhum pouco natural. Naturalidade também falta aos efeitos especiais. Os prédios das cidades, por exemplo, são digitais, e soam falsos ao extremo.

    O evento que muda radicalmente o pensamento de Miguel envolve um jogo da seleção brasileira, onde sua herdeira veste uma blusa amarela com as cores do time de futebol e passa um sujeito com um radinho de pilha, artigo esse quase em desuso (ao menos em larga escala) há mais ou menos uns 15 anos. Tais coisas destoam de realidade, mas o evento em si, apesar de pautado em clichês, faz sentido em especial por aproximar O Doutrinador de uma de suas inspirações de O Justiceiro, da Marvel.

    O filme não é ruim, as partes técnicas são bem produzidas, a direção de arte de Margherita Pennacchi, fotografia de Rodrigo Carvalho e figurinos ajudam a criar uma atmosfera diferenciada que só não é tão crível graças ao roteiro simplório que apela para obviedades. A sensação ao assistir esses aspectos em comparação com o restante da história é que todos os pontos positivos soam como uma capa bonita para um livro medíocre.

    Os personagens periféricos também não fazem sentido, a começar por Nina (Tainá Medina) que mistura elementos da famosa Sininho, que ganhou notoriedade nas manifestações cariocas de 2013, a Oráculo do Batman. No entanto, o mais próximo de uma reflexão sobre os atos violentos começam a partir de seu senso crítico dela, que condena os assassinatos de Miguel, ainda que isso também mude com o final.

    A catarse de O Doutrinador não é reacionária, ao menos não em discurso, já que ela busca isenção, ou seja, mira no caráter camaleônico dos que no campo eleitoral vivem no limbo dos indecisos, brancos e nulos. Isso até poderia ser bem explorado, mas ao contrário da expectativa, o texto investe em explorar tecno-baboseira, apela para merchans vergonhosos.

    O filme termina com revide de violência gratuita de seus colegas – os mesmos que pareciam simpáticos a ele durante o filme inteiro – e com devaneios de desejos de sua filha, conversando com sua fome de vingança. Ainda há uma tentativa de salvar o longa, apelando para uma cena que deveria ser vibrante mas que é permeada pelo que há de pior no longa, os efeitos especiais, com uma explosão terrível mostrando uma espécie de reforma política via assassinato, e é nesse ponto que o discurso mais extremista e ingênuo ganha força, culpando a população pelos maus rumos que são tomados pelos seus representantes, se ignorando fatos óbvios, como a desinformação geral e total falta de tradição de discussão política, seja em escolas, fábricas, firmas, escritórios ou nas ruas. Até Miguel é vitima disso, e claramente não é iluminado o suficiente nem para ser encarado como um sujeito consciente, quanto mais poderoso para ser juiz, júri e carrasco dos mandantes do país.

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  • Crítica | A Outra História Americana

    Crítica | A Outra História Americana

    Tony Kaye trouxe à luz o jovem clássico A Outra História Americana, um filme incisivo sobre questões de intolerância e preconceito, que chegava aos cinemas em 1998. O início do longa ocorre em preto e branco, mostrando uma família estranha e desajustada chamada Vyniard, comandada – ao menos no meio da noite – por Derek (Edward Norton) um jovem supremacista branco, que tem armas pela casa inteira, cartazes de louvor ao pensamento de extrema direita e uma tatuagem no peito esquerdo de uma suástica nazista.

    Os primeiros eventos do filme mostram o irmão mais velho transando com uma moça, e seu irmão Danny (Edward Furlong) acordando por conta o barulho do lado de fora da casa. Ao perceber que eram assaltantes negros, ele interrompe o ato sexual do irmão, que se levanta, toma um revólver e tenta assassinar os jovens que tentavam roubar seu carro. A câmera registra esses eventos lentamente, mostrando em detalhes a crueldade do sujeito que, para todos os efeitos, falava em tom de autodefesa, de que só havia feito aquilo para proteger sua propriedade e a vida dos seus.

    Logo, o primogênito sai de cena e o filme foca no irmão caçula, Danny, e nesse ponto é mostrado o Dr. Bob Sweeney (Avery Brooks), um professor inteligente e letrado que não desiste do menino que flerta com a delinquência. Na mente do docente, ele perdeu Derek, mas não queria perder o outro irmão, já que quando novo, Derek se revolta com uma tragédia familiar, e em meio a essa juventude sem argumentos válidos e apelando sempre para um pensamento simplista, revelou seu pensamento racista, culpando tudo que é não branco pelos males do país, inclusive por aquilo que lhe ocorreu.

    Kaye diferencia o filme através das cores, as partes coloridas mostram o presente da história, enquanto o passado é retratado em preto e branco. A identidade passada de Derek, um garoto ardiloso, capaz de travar um jogo de basquete contra os negros do bairro só para tentar provar a eles que os Vyniard e seus amigos são melhores e mais bem preparados, dignos da glória de ter uma quadra pública só para si.

    O objetivo central do filme é mostrar os personagens como humanos, seres falhos, mostrando que esse pensamento não é exclusivo de monstros, e sim de gente com mente fraca, fragilizada e desesperada, que se agarra em um discurso desonesto, imoral e oportunista por falta de opção, se valendo de valores comuns e caros a todos para se estabelecer como comportamento dominante.

    Em seu retorno, após passar pela prisão, a transformação de Derek não é só física. Ele perdeu 22 quilos, deixou o cabelo crescer e tem vergonha de ficar sem camisa exatamente por conta de suas tatuagens. Ao voltar da prisão ele realmente parece diferente, cobrando moralidade de seus parentes. Só após algum tempo de exibição é que é elucidada como terminou a cena do início, e o quão violenta e grave era ação do personagem central. Danny mudou e se tornou um skinhead após ver seu irmão matando um negro a sangue frio. Aquele foi o momento em que ambos mudariam drasticamente, o início do processo de redenção de um e deterioração do outro.

    O roteiro de David McKenna é tão franco e pragmático que não se permite ser sonhador ou ingênuo, mostrando que os destinos das pessoas que se envolvem ou se envolveram com ideias dessa natureza ou com a intolerância pura e simples, tendem a sofrer, mesmo que se arrependam e vivam de modo diferente. A Outra História Americana mostra de maneira certeira o quanto o fascismo pode facilmente tocar as pessoas simples, ajudando a evocar os piores sentimentos possíveis, dominando corações e mentes com facilidade, e deixando apenas um rastro de sangue e tristeza por onde passou.

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  • Crítica | Boa Noite e Boa Sorte

    Crítica | Boa Noite e Boa Sorte

    Vamos lá: Em Embriaguez do Sucesso, soberba película de 1957, nós acompanhamos uma trama aparentemente simples: dois homens de negócios no coliseu da fama, um lutando para retornar ao topo dos tabloides, enquanto o outro ousa não cair no nível do primeiro; uma roleta-russa filmada com enorme precisão, com alguns dos mais retumbantes diálogos que um roteiro já expressou – fato. Não é à toa, e não só por isso, que a estrutura básica d’outro clássico mais recente, O Informante, com Al Pacino e Russel Crowe, remete a isso, sendo mais sólida que concreto no sol de quarenta graus.

    Isso porque em 1999, o cineasta Michael Mann captou o cheiro fétido e o sabor azedo de uma história midiática através não só de imagens, mas da relação entre elas, como se nossos olhos degustassem e sentissem o poder que existe na transição entre películas. Em parte por conta da classe provada na condução do diretor, afinal a potência do conjunto redondo da obra é magistral. O Informante, tal qual Embriaguez do Sucesso, é uma aula fílmica moderna de peso e com pouca rivalidade dada a maestria na qual ambos se amparam. E agora, vamos ao real norte desta crítica, em questão.

    Mas não se enganem: Boa Noite e Boa Sorte, de George Clooney, é um wanna be movie; filmes que querem ser o que as influências fazem-nos querer ser. Tal um homem de estatura média subindo na cabeça dos gigantes do passado, em busca da visão do Eldorado, Clooney se dá por satisfeito nessa empreitada vertical e assim realizou, em 2005, um thriller político todo sério, breve e nada memorável com uma história muito boa, sobre a moral do jornalismo posta à prova, e a pressão que os guardiões das notícias na televisão sofrem quando essa é eclipsada por interesses além da básica responsabilidade social que a profissão carrega, com orgulho.

    Informação é poder, por todo o sempre, e esse bom roteiro original nos transmite esse imperialismo pela boca dos atores (esplêndidos, em cena, e esse parece o êxito verdadeiro de Clooney na direção: extrair ótimas atuações dos homens e mulheres que manipula na tela), deixando transparecer o jogo de prudência e a falta dela na conduta pela veracidade das notícias na rede CBS, em plenos anos cinquenta. O ator, sentado na cadeira de cineasta, quer tecer uma ode à influência da televisão na sociedade, mas não parece sentir direito para onde a história deve fluir pra alcançar isso, e de close em close, na mais absoluta confiança no seu elenco de peso, deixa o filme acontecer.

    No contexto de 2018, pode-se perceber o quanto Boa Noite e Boa Sorte remete a esses idos brasileiros do “Vai pra Cuba”, antipetismo e paneladas da classe-média alta, já que, segundo a experiência do veterano repórter e âncora de telejornal Edward R. Murrow (David Strathaim), e a dos seus companheiros de luta, o público está sempre à mercê do incomensurável poder da mídia (mesmo na época de mídias digitais), e nem sempre deve ouvir só aquilo que deseja. Dessa forma, caso a época demande alguns debates históricos contra acusações infundadas de políticos intoxicando a opinião popular, é exatamente isso o que um jornalismo sério deve fazer: Investigar, discutir e elucidar os fatos. Custe o que custar.

    Se de posse de uma premissa tão forte, acerca de um jornalismo que digladia contra verdades repletas de intolerância política, e com atores em ponto de bala encenando mil conflitos entre si, por que a sensação é de distanciamento e superficialidade? Nota-se, respondendo a isso, que Clooney é um estrategista contemporâneo do tipo Christopher Nolan, que não consegue pensar no filme todo, mas em artimanha atrás de artimanha até chegar ao fim. E mesmo sendo muito melhor com atores que Nolan, Clooney não extrai (ironicamente) veracidade de um universo que aqui chega as vias do perturbador e do sinistro, tamanha a dificuldade que pode surgir a um repórter que não concorda em veicular o veneno da injustiça.

    Para o filme, o ator/diretor emprega todo o seu charme natural de galã para as cenas em geral, tornando sua alegoria do começo ao fim um verdadeiro desfile de elegância que nunca desce do salto, mesmo em sequências mais fortes – para isso, conta com uma câmera tremida bem incômoda. Já o roteiro, enquanto a benção que é, garante momentos que dificilmente poderiam ser estragados por um cineasta, como toda a vez que Strathaim, em atuação impressionante, discursa para a câmera, duro e moralmente inquebrável como um jornalista incorruptível no auge da profissão, delegando ao seu público o seu “boa noite”, mas antes a verdade e nada mais do que isso. Na memória, ficam sobretudo essas cenas, muito mais que a obra por inteiro.

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