Tag: oscar 2021

  • Critica | Collective

    Critica | Collective

    Collective é um documentário sobre um incidente incendiário em Bucareste, na boate Colectiv, que matou 27 e feriu 180 pessoas. O longa-metragem de Alexander Nanau investiga as fraudes do sistema político da Romênia a partir do vazamento de informações que um médico fez a um grupo de jornalistas. Fraudes que assustaram a opinião pública local mas que são bastante comuns em outros cenários, como a política brasileira. O diretor teve acesso aos bastidores políticos e apresentou o seu panorama jornalístico e cinematográfico a respeito do incidente.

    O filme indicado ao Oscar na categoria Melhor Filme Estrangeiro e Documentário trata primeiro da tragédia em si,  do impacto que ela causou em quem estava no momento que o fogo tomou a casa e nas pessoas que cercam as vítimas. Depois, explora a historia periférica da politica romena e, em meio a isso, sem esquecer dos detalhes das historias dos sobreviventes. Aborda questões pesadas de quem teve a vida comprometida por conta do fogo, momentos que conseguem emocionar sem soar piegas.

    Os personagens são meticulosamente escolhidos. Há sutileza ao se tratar dessas tramas, as personagens não são tratadas com comiseração. Nanau traz uma estética que foge do simples clichê e da estrutura quadrada de documentários com entrevistas e voz em off. Há inclusive cenas do dia em que ocorreu o incidente, imagens de câmeras internas cuja resolução é bastante aprimorada e que mostram detalhes do horror ali presente. A cena que mostra o show de metal com o fogo correndo o teto e caindo sobre o tecido improvisado, logo após o termino de uma música, é dantesca. Mesmo nessas gravações se nota que a performance musical poderia ter tornado aquele momento em algo ainda mais trágico.

    O impacto do filme é amplificado por conta dos infelizes escândalos de corrupção ligados a pandemia que ocorreram no Brasil e no mundo, pois o caso da Colectiv também deveria causar nas autoridades certa solidariedade e não ganância desenfreada. A exemplo do que ocorreu em várias praças durante a pandemia do novo coronavírus, houve aproveitamento ilícito e inoportuno de autoridades desonesta. Mesmo que o longa tenha alguns problemas de ritmo, sendo bem arrastado em vários pontos, o seu apelo é real, trata de questões muito delicadas e importantes não só dentro do seu cenário nacional, mas também além fronteiras já que encontra eco em situações vistas no mundo inteiro.

  • Crítica | Quo Vadis, Aida?

    Crítica | Quo Vadis, Aida?

    Concorrente de premiações pelo mundo, entre elas a categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira no Oscar 2021, Quo Vadis, Aida? se passa em 1995, durante a Guerra da Bósnia. O longa de Jamila Zbanic narra um pouco da vida da tradutora Aida, personagem de Jana Djuricic, que vive com sua família em uma pequena cidade na área montanhosa de Srebrenica. Em seu trabalho com a ONU, traduz mensagens da organização junto ao exercito dos países que intervém na invasão do exército sérvio na localidade.

    O cenário é caótico, os cidadãos estão em perigo frequente, procurando abrigo nos acampamentos da Organização das Nações Unidas, agindo como refugiados em sua própria terra natal. O Quo Vadis? presente no título remete a um termo em latim que significa “Aonde vais?” e também dá nome ao épico de Anthony Mann de 1951, um clássico do cinema sobre o reinado do imperador Nero. Tal qual no filme antigo, aqui o tema também se refere a  situações desesperadoras.

    Aida tem uma posição privilegiada, tanto em acesso aos lugares quanto a uma informação mais acurada em relação ao que acontece em seu país, com o infortúnio da percepção do quão calamitoso é o cenário do país. Poucas vezes o ditado popular de que a ignorância pode ser uma bênção coube tanto em uma história. Pois, além do receio da morte, sentimento compartilhado com todos compatriotas, ela ainda carrega a responsabilidade de responder pelas possibilidades de sobrevivência de sua família e de seu povo.

    Os tanques nas ruas, a pressa das pessoas para fugir do conflito são pontos positivos do filme. O apelo a universalidade funciona, pois as plateias do mundo são capazes de identificar em sua própria realidade ao menos um aspecto daquela violência extrema. As cenas são naturais, a criação da atmosfera é real. O problema reside na carga emocional que apela para clichês baratos e de péssimo gosto. Questões pontuais como restrição à banheiros nos abrigos, escassez de produtos básicos de higiene e alimento, enfim, maus tratos dados ao povo que mora em área de conflito bélico não parecem tão graves em cena, pois caem em um melodrama desnecessário, que só vai agravando até o final.

    Quo Vadis, Aida? recebeu elogios no Festival de Veneza. Um feito esperado já que apela para todos os clichês típicos de filmes voltados para o circuito de premiações. Seu maior problema é que o tom de denúncia se perde em meio a extravagância emocional, que desequilibra toda a história e que fica ainda mais flagrante quando apela para os muitos chavões de antigos filmes melodramáticos.

  • Crítica | Mulan (2020)

    Crítica | Mulan (2020)

    A nova versão de Mulan, dirigida por Niki Caro, esteve envolta em polêmicas praticamente desde que foi anunciada pelos estúdios Disney. A maior preocupação dos produtores era em arredondar o conteúdo para fazer sucesso entre o público chinês e, para isso, a diretora assumiu que cortaria a maioria das músicas, tiraria o mascote Mushu substituindo pelo símbolo da Fênix (que não seria o alívio cômico), e daria outro panorama a parte mágica bastante presente no clássico animado. Fato é que o Mulan de Tony Bancroft e Barry Cook não fez sucesso na China, e isso influenciou na escolha de  Yifei Liu, tradicional atriz com sucessos O Reino Proibido (e outros mal sucedidos, como O Imperador) para ser a personagem principal. Da parte dela, não há o que reclamar, afinal o desempenho é razoável, equilibrando bem as questões relacionados as batalhas e a carga mística que, por mais que tenha sido suavizada, ainda existe neste ponto.

    Devido a pandemia do novo coronavírus, o longa foi adiado algumas vezes e se tornou um dos testes entre os blockbusters a ser exibido direto no streaming, no  premier access do Disney + em que o assinante pagava um valor extra pelo filme. Caro ao menos teve uma coragem que Bill Condon não teve em A Bela e Fera, pois as mudanças no enredo são consideráveis. A estética de filmes de Hong Kong do sub gênero Wuxia também é acertada, há um bom resgate de momentos clássicos de obras como O Tigre e o Dragão e O Clã das Adagas Voadoras.

    Outra boa ideia desta encarnação, é o acréscimo da personagem Xianniang, de Gong Li, que serve de exemplo para a protagonista de como uma mulher de grande potencial desperdiçado. A associação das forças militares ao mal é uma ideia boa em premissa, mas é mal desenvolvida no roteiro, assim como a personagem de Li, mostrada como uma bruxa repleta de poder e com passado trágico mas que não é detalhado. Em um roteiro tão expositivo e óbvio, que faz questão até de explicar o que é ki, poderia contém espaço para nuances.

    Retirar as músicas não seria um problema se Mulan não parecesse tão genérico e isento de alma. O longa tem um vilão caricato e menos imponente que o Shan Yu original. E mais parece uma imitação dos filmes de época chineses do que outra versão de clássico Disney. Não acerta a lenda da personagem como Hua Mulan já havia feito, e pouco serve para refletir a respeito de uma jornada feminina edificante. Por mais que seja visualmente belo, fica aquém das expectativas mesmo do publico que aceitou as mudanças entre diferentes versões da mesma obra.

  • VortCast 98 | Pós-Oscar 2021

    VortCast 98 | Pós-Oscar 2021

    Bem-vindos a bordo. Flávio Vieira (@flaviopvieira) e Filipe Pereira (@filipepereiral) batem um papo descontraído sobre os indicados e vencedores da 93ª edição do Oscar, as mudanças realizadas na cerimônia e a audiência mais baixa da história da premiação.

    Duração: 124 min.
    Edição: Rafael Moreira e Flávio Vieira
    Trilha Sonora: Rafael Moreira e Flávio Vieira
    Arte do Banner:
     Bruno Gaspar

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    Lista de críticas dos filmes indicados ao Oscar 2021.

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  • Crítica | O Tigre Branco

    Crítica | O Tigre Branco

    “Olha como eles veneram a natureza, quem faria isso em Nova York?”

    Primeiro que O Tigre Branco não foi indicado ao Oscar (e entrou no mapa), à toa. O primeiro mundo só finge olhar pro terceiro, quando seus filmes vêm embalados por uma ótima parte técnica, como foi o caso de Cidade de Deus ou Timbuktu, ou ainda, quando um cineasta deles (Danny Boyle) lança o seu olhar não imperialista aos subdesenvolvidos – Quem Quer Ser um Milionário?. Tendo várias semelhanças estéticas e narrativas ao sucesso de 2008 (8 Oscars, na época), O Tigre Branco é o produto perfeito da Netflix para o selo “reconhecemos sua existência, podem se sentar à mesa” que o Oscar vem tentando imprimir, na última década. De ótimas intenções vale a festa, e de fato, eis uma grande oportunidade para o filme de Ramin Bahrani ser valorizado e discutido também pelo que é: uma fábula americanizada do capitalismo em plena Índia, tão desigual quanto o Brasil, aos olhos do jovem e promissor Balram.

    Balram aprendeu, desde pequeno na escola, e no “hospital” ao lado do pai, o fedor da miséria. Das promessas eleitorais vazias, a dor da fome. O sofrimento e a limitação, para o bem e para o mal, fez Balram buscar o dinheiro com uma ambição vingativa à pobreza que nasceu, e claro, ver sempre nos Estados Unidos um exemplo brilhante de país – Eldorado dos lobos. Assim, enquanto Jordan Belfort venderia até a mãe para conseguir uma promoção em Wall Street, Balram possuía valores familiares que o dinheiro não conseguiu comprar, pelo menos não tão fácil, assim. Ainda que benevolente e humilde, aos poucos Balram troca de time na luta de classes ao virar o motorista de um magnata indiano. Ao invés de focar nos excessos e no estudo da ganância, toda a irreverência e a comédia de O Tigre Branco convivem em perfeito equilíbrio junto ao drama de um alpinista social, tentando subir sem sujar suas mãos.

    Mas é claro que Balram falha, nisso. Se até metade da história, temos uma fábula de possibilidades, o crime e a ganância pós-ambição geram um conto de impossibilidades. Isso porque, num comentário crítico a respeito da globalização muito bem adaptada do livro homônimo, de 2008, é impossível para o capitalismo predatório não corromper o sagrado. Se antes Balram venerava as árvores da Índia, o tempo descalço com sua família, e os deuses de sua cultura, agora um iPhone vale muito mais que tudo isso. Como cantou Beth Carvalho e Nelson Sargento, “mudaram toda a sua estrutura, te impuseram outra cultura, e você nem percebeu”. Balram percebeu sim, mas seu medo da miséria foi mais forte. O Tigre Branco acerta em não torná-lo uma vítima do seu meio-ambiente, mas sim em um lutador, um sonhador, que faz o necessário para vencer na vida, e sangrar para sobreviver entre os lobos corruptos. Ele quer ser um deles…

    Há um motivo para os inocentes serem assim, inocentes, protegidos do poder que atrai os piores e destrói os melhores pelo egoísmo, pelo viés das exclusões. Sem trilhar o caminho do vitimismo ou da rebeldia dos oprimidos, o cineasta Ramin Bahrani retrata a ironia do destino ao explorar com naturalidade e precisão um Ícaro indiano, que apostou tudo em seu voo, mas que ao tocar no Sol, enxerga o perigo dos apoios que escolheu até lá – chegando talvez num ponto de “tudo ou nada”. Difícil mesmo é imaginar outro ator senão Adarsh Gourav como Balram, à vontade no papel de quem tem todos os sonhos do mundo, e é atormentado por eles mesmos, descobrindo antes dos 30 que nem o dinheiro, nem a América, fazem da vida uma experiência justa. Um legítimo conto do terceiro mundo, cuja sinceridade sobre o custo (não apenas financeiro) da liberdade do cidadão comum, faz com que os do primeiro também consigam admirá-lo, graças a seu forte apelo emocional, e sem fronteiras.

  • Oscar 2021 | Indicados e Ganhadores da Premiação

    Oscar 2021 | Indicados e Ganhadores da Premiação

    Todo ano a Academia premia em sessão exclusiva os filmes feitos por ela e pelos que compõem a nata de Hollywood. Esse processo se renova em níveis de tendências, em alguns momentos se louvam obras que falam sobre a arte, sobre a própria Hollywood, cinebiografias de figuras políticas ou notáveis e vez ou outra os figurões americanos permitem que obras não feitas nos Estados Unidos e Grã-Bretanha cheguem ao apogeu do louvor.

    2020 foi um ano difícil, inclusive para o meio artístico, mas surpreendentemente os escolhidos para concorrer as principais categorias tiveram destaque. Filmes sensíveis, políticos, que valorizam o período histórico que vivemos, enquanto outros apontam a triste sina do capitalismo no século XX e XXI e suas desigualdades.

    Por mais que soe piegas, a premiação da Academia a dramas reflete a sociedade ou ao menos os desejos de frações dessa sociedade, com suas projeções e ilusões, sejam elas poéticas ou pragmáticas. A vida e o destino são por vezes tão limitantes que mesmo o sonho pode ter freios, e apesar de sonhar não custar nada, a frustação oriunda do seu não cumprimento pode causar o receio de voar alto na imaginação.

    Achar que a escolha ou curadoria de uma premiação X ou Y reflete o social é pretensiosa, e é fato que a Academia subestima o mundo moderno, e tenta encaixotá-lo, mas em alguns momentos, poucos mesmo, a pretensão acerta, escolhendo obras, histórias e trajetórias que valem ser vistas. Sem mais delongas, confira abaixo os indicados e ganhadores do Oscar 2021.

    Melhor Filme

    Nomadland (vencedor)
    Mank
    Judas e o Messias Negro
    Minari: Em Busca da Felicidade
    Meu Pai
    Os 7 de Chicago
    Bela Vingança
    O Som do Silêncio

    Melhor Atriz

    Frances McDormand, Nomadland (vencedora)
    Viola Davis, A Voz Suprema do Blues
    Andra Day, Estados Unidos Vs Billie Holiday
    Vanessa Kirby, Pieces of a Woman
    Carey Mulligan, Bela Vingança

    Melhor Ator

    Anthony Hopkins, Meu Pai (vencedor)
    Chadwick Boseman, A Voz Suprema do Blues
    Riz Ahmed, O Som do Silêncio
    Gary Oldman, Mank
    Steve Yeun, Minari: Em Busca da Felicidade

    Melhor Diretor

    Chloé Zhao, Nomadland (vencedora)
    Thomas Vinterberg, Druk: Mais uma Rodada
    David Fincher, Mank
    Lee Isaac Chung, Minari: Em Busca da Felicidade
    Emerald Fennell, Bela Vingança

    Melhor Atriz Coadjuvante

    Youn Yuh-jung, Minari: Em Busca da Felicidade (vencedora)
    Maria Bakalova, Borat: Fita de Cinema Seguinte
    Glenn Close, Era uma Vez um Sonho
    Olivia Colman, Meu Pai
    Amanda Seyfried, Mank

    Melhor Ator Coadjuvante

    Daniel Kaluuya, Judas e o Messias Negro (vencedor)
    Sacha Baron Cohen, Os 7 de Chicago
    Leslie Odom Jr., Uma Noite em Miami…
    Paul Raci, O Som do Silêncio
    Lakeith Stanfield, Judas e o Messias Negro

    Melhor Roteiro Adaptado

    Meu Pai, Florian Zeller e Christopher Hampton (vencedor)
    Nomadland, Chloé Zhao
    Borat: Fita de Cinema Seguinte, Sacha Baron Cohen, Anthony HinesDan Swimer e outros
    Uma Noite em Miami…, Kemp Powers
    O Tigre Branco, Ramin Bahrani

    Melhor Roteiro Original

    Bela Vingança, Emerald Fennell (vencedor)
    Judas e o Messias Negro, Will Berson, Shaka King, Kenneth Lucas e Keith Lucas
    Minari: Em Busca da Felicidade, Lee Isaac Chung
    O Som do Silêncio, Darius Marder, Abraham Marder e Derek Cianfrance
    Os 7 de Chicago, Aaron Sorkin

    Melhor Filme Estrangeiro

    Druk: Mais uma Rodada (Dinamarca – vencedor)
    Shaonian De Ni (Hong Kong)
    Collective (Romênia)
    O Homem Que Vendeu sua Pele (Tunísia)
    Quo Vadis, Aida? (Bósnia e Herzegovina)

    Melhor Documentário

    My Octopus Teacher (vencedor)
    Collective
    Crip Camp
    The Mole Agent
    Time

    Melhor Edição

    O Som do Silêncio (vencedor)
    Meu Pai
    Nomadland
    Bela Vingança
    Os 7 de Chicago

    Melhor Fotografia

    Mank, Erik Messerschmidt (vencedor)
    Judas e o Messias Negro, Sean Bobbitt
    Relatos do Mundo, Dariusz Wolski
    Nomadland, Joshua James Richards
    Os 7 de Chicago, Phedon Papamichael

    Melhor Maquiagem e Cabelo

    A Voz Suprema do Blues (vencedor)
    Emma
    Era Uma Vez um Sonho
    Mank
    Pinóquio

    Melhor Som

    O Som do Silêncio (vencedor)
    Greyhound: Na Mira do Inimigo
    Mank
    Relatos do Mundo
    Soul

    Melhor Figurino

    A Voz Suprema do Blues (vencedor)
    Emma
    Mank
    Mulan
    Pinóquio

    Melhor Canção Original

    Fight for you, Judas e o Messias Negro (vencedor)
    Hear my voice, Os 7 de Chicago
    Husa’vik, Festival Eurovision da Canção: A Saga de Sigrit e Lars
    Io sì, Rosa e Momo
    Speak now, Uma Noite em Miami…

    Melhor Trilha Original

    Soul, Trent ReznorAtticus Ross e Jon Batiste (vencedor)
    Destacamento Blood, Terence Blanchard
    Mank, Trent Reznor e Atticus Ross
    Minari: Em Busca da Felicidade, Emile Mosseri
    Relatos do Mundo, James Newton Howard

    Melhor Design de Produção

    Mank (vencedor)
    Meu Pai
    A Voz Suprema do Blues
    Relatos do Mundo
    Tenet

    Melhor Efeitos Visuais

    Tenet (vencedor)
    Amor e Monstros
    O Céu da Meia-Noite
    Mulan
    O Grande Ivan

    Melhor Animação

    Soul (vencedor)
    Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica
    A Caminho da Lua
    Shaun, o Carneiro: O Filme – A Fazenda Contra-Ataca
    Wolfwalkers

    Melhor Curta de Animação

    If Anything Happens I Love You (vencedor)
    Burrow
    Genius Loci
    Opera
    Yes people

    Melhor Curta-Metragem

    Two Distant Strangers (vencedor)
    Feeling Through
    The Letter Room
    The Present
    White Eye

    Melhor Curta-Documentário

    Collete (vencedor)
    A Concerto is a Conversation
    Do Not Split
    Hunger Ward
    A Love Song for Natasha

  • Crítica | Amor e Monstros

    Crítica | Amor e Monstros

    Num primeiro momento, Amor e Monstros parece só mais uma aventura para adolescentes e jovens adultos que em muito se assemelha à Zumbilândia. Essa impressão fica mais acentuada após assistir o trailer, que segue bem a cartilha de Hollywood para filmes desse estilo. Entretanto, a película lançada pela Netflix se mostra uma ótima surpresa, pois ao mesmo tempo em que tem ótimas doses de aventura e humor, traz uma reflexão muito bacana sobre o amor, amizade, luto e amadurecimento.

    Na trama do filme, após a detecção de um meteoro que vem em direção à Terra, os governos lançam uma ofensiva de mísseis nucleares para o destruírem. Porém, o que ninguém contava era que destroços radioativos caíssem no planeta e provocassem mudanças profundas na fauna. Com insetos e outras criaturas gigantes e mutantes, a humanidade é dizimada e os sobreviventes são obrigados a viver em bunkers subterrâneos e outras fortalezas ao redor do globo. É nesse contexto que Joel, um jovem que perdeu a família e foi separado do seu grande amor, resolve contrariar as previsões e partir em busca da sua amada.

    Nenhuma sinopse do filme faz jus ao que ele realmente é. O que aparenta ser uma comédia adolescente vai apresentando cada vez mais camadas que são trabalhadas de forma muito esperta pelo roteiro de Brian Duffield. Fazendo constante uso de metalinguagem, o filme apresenta o contexto dos eventos passados e suas consequências no presente. O protagonista Joel em sua narração em muitas vezes em tempo real e com seu caderno onde cataloga as ameaças e eventos serve como um grande guia por este mundo que nos é apresentado.

    O roteiro ainda é bastante sensível em trabalhar pontos como o amor, a amizade e o luto. O protagonista é um cara puro, romântico, fato esse que o coloca sempre em evidência perante seus pares, mas que funciona como sua força motriz. Chega a ser comovente e o filme trabalha isso com delicadeza. Já sobre a amizade, o filme mostra como em certos momentos as pessoas não parecem perceber a importância que tem para os outros e isso é demonstrado aos poucos em alguns momentos comoventes que fogem de qualquer pieguice ou gratuidade. E ainda, o luto de Joel é constante, com os eventos que o provocaram sendo apresentados em conta gotas, no entanto, a forma como ele lida é bem construída e importante para a narrativa.

    A direção de Michael Matthews é outro ponto forte. Em conjunto com o roteiro, evita o tom sombrio e cínico que assola as produções de Hollywood. Num determinado momento, parece que o filme vai virar um Zumbilândia genérico, porém o clichê é subvertido e o filme assume uma identidade própria, com um tom leve e divertido. O elenco é bem aproveitado, principalmente o protagonista Dylan O’Brien, promovendo dinâmicas interessantes entre ele e o cachorro Boy, além da dupla de sobreviventes que ele encontra pelo caminho (vivida pelo craque Michael Rooker e pela engraçadíssima Ariana Greenblatt) e um robô chamado Mav1s, naquela que talvez seja a grande cena do filme. O filme explora bem os clichês, inclusive os subverte de forma inesperada, fazendo com que a recompensa da jornada, tanto a de Joel quanto a do espectador, seja grandiosa.

    Na parte de ação, Matthews claramente bebe da fonte dos filmes de aventura dos anos 80. As cenas são sempre empolgantes e com a dose certa de humor. Ajudam também os efeitos especiais caprichadíssimos, tão bons que em vários momentos parecem efeitos práticos e não computação gráfica. A indicação ao Oscar de melhores efeitos visuais é mais do que justa e merecida.

    Enfim, Amor e Monstros é um grande filme. Talvez inesperadamente, porque tinha tudo pra errar ou se perder em algum momento, mas é um filme de encher os olhos, seja pelas cenas de ação e efeitos ou pela jornada do protagonista. Vale demais a pena.

  • Crítica | Shaun, o Carneiro: O Filme – A Fazenda Contra-Ataca

    Crítica | Shaun, o Carneiro: O Filme – A Fazenda Contra-Ataca

    Em 2007 o mundo conhecia uma nova série de animação em stop motion derivada do estrondoso sucesso de Wallace e Grommit. Spin off do episódio “Tosa completa”, o carneirinho Shaun ganhou seu próprio universo de aventuras, vivendo em uma fazenda com outros carneiros e ovelhas e sendo pastoreado pelo cãozinho Bitzer. A série fez sucesso entre as crianças e logo ganhou o mundo, com seis temporadas até agora e uma nova série derivada, voltada para um público ainda mais infantil. Tamanho sucesso rendeu ao carneirinho o filme Shaun: O Carneiro em 2015 e uma sequência lançada em 2019, intitulada Shaun, o Carneiro: O Filme – A Fazenda Contra-Ataca.

    O novo filme de Shaun, dirigido por Will Becher e Richard Phelan,  é muito mais do que uma simples sequência de esquetes ou um episódio comprido da série. Ele apresenta os personagens de forma bastante orgânica para aqueles que ainda não estão familiarizados com os bonequinhos de massinha, de forma leve e divertida. Logo de cara, espectadores mais velhos e atentos podem perceber referências a clássicos da ficção científica em easter eggs espalhados pelo cenário (a loja de pneus “H.G.Wheels” é uma delas) e pela própria trilha sonora. A pacata cidadezinha de Mossingham se torna alvo de olhares curiosos devido ao avistamento de um disco voador nos seus arredores. E é na fazenda que o contato imediato de terceiro grau ocorre, quando Shaun descobre a existência de Lu-La, o simpático alienígena perdido na Terra.

    Temos então alguns núcleos de personagens cujas histórias são contadas em paralelo. Vemos Shaun e Lu-La interagindo e buscando uma volta ao lar para o ET, o governo caçando evidências de OVNIs e o fazendeiro tentando de alguma forma lucrar com o novo interesse dos seus conterrâneos em ficção científica. Tudo é feito com muito humor e gags visuais, já que não existe diálogo algum em seus 86 minutos de exibição.

    Becher e Phelan conseguem trazer para um longa-metragem toda a diversão da série animada, porém de forma mais grandiosa e cheia de detalhes. Tudo parece ser muito bem pensado para funcionar nesse universo, e por vezes a excelência nos detalhes nos fazem acreditar que esse mundo é de verdade, seja nos objetos cênicos ou nos cenários muito bem elaborados. O desenrolar da trama também se faz presente nesses detalhes, seja através da iluminação ou do timing correto de uma piada, passando pela trilha sonora, é realmente impressionante a qualidade do material exibido. Shaun, o Carneiro: O Filme – A Fazenda Contra-Ataca é um ótimo filme para crianças e, apesar de se escorar em um tema bastante clichê, também tem seus atrativos para o público mais velho, que  poderá notar uma boa releitura de elementos já considerados batidos em outras produções, mas que aqui se torna bastante agradável.

  • Crítica | O Céu da Meia-Noite

    Crítica | O Céu da Meia-Noite

    Podemos dizer que filmes de viagens espaciais existem “desde sempre”, quando em 1902, o cineasta francês Georges Méliès dirigiu o ótimo Viagem à Lua, que já nasceu clássico por se tratar do primeiro filme de ficção científica da história, além de também ser o ponto de partida para a criação dos subgêneros da ficção, como os contatos imediatos com alienígenas.

    Apesar da ficção científica estar sempre em evidência no decorrer dos anos, um gênero específico possui pouquíssimos filmes que são muito bem representados, como é o caso dos dramas das viagens espaciais. Talvez, tem-se em 2001: Uma Odisseia no Espaço e em Interestelar os dois maiores filmes do gênero já feitos e podemos adicionar à lista outras produções como Apollo 13: Do Desastre ao Triunfo que é baseado em fatos reais, além dos ótimos Gravidade, Perdido em Marte e O Primeiro Homem, também baseado em fatos reais e o mais recente deles, Ad Astra: Rumo às Estrelas.

    Vale destacar que com exceção de “2001” e “Apollo 13”, que foram lançados em 1968 e 1995, respectivamente, todos os outros foram lançados na última década e olha que não estamos falando da enorme quantidade de seriados do gênero.

    E tudo isso, provavelmente, se deve às últimas pesquisas e missões feitas pela NASA, aliada à Spacex, de Elon Musk, que quer que humanos colonizem Marte o mais rápido possível. Nunca se mandou tantos astronautas e sondas para o espaço como atualmente e, como a vida imita a arte, fica claro que o mercado cinematográfico está aquecido.

    Mas como dito, são poucos os representantes do gênero e O Céu da Meia-Noite, produção da gigante Netflix, busca registrar seu nome neste hall da fama dos dramas de viagens espaciais.

    Dirigido e estrelado pelo astro George Clooney, acompanhamos a história do cientista Augustine (Clooney), que, num Planeta Terra já condenado, decide ficar sozinho numa base no Ártico para tentar alertar os vários astronautas que estão viajando pelo espaço a não voltarem à Terra, dada a sua rápida degradação. A missão destes astronautas é clara: encontrar planetas habitáveis para que possamos sobreviver e perpetuar nossa espécie. E é justamente aí que conhecemos a equipe de astronautas da nave comandada por Sully (Felicity Jones), que está retornando ao nosso planeta com ótimas notícias.

    Então, vemos em tela dois fronts de desespero, sendo um de Augustine buscando contato com as naves fora do planeta e outro da Comandante Sully buscando contato com a Terra que, estranhamente, não responde os seus chamados. E, para piorar a situação, Augustine descobre uma criança que está abandonada na base. A menina Iris, vivida pela atriz Caoillin Springall, provavelmente foi esquecida por alguma das pessoas que abandonaram a base e que motivaram a estadia do protagonista.

    Curiosamente, o filme se destaca mais pela dinâmica da dupla sozinha no Ártico do que pela dinâmica dos astronautas que são responsáveis pelos momentos de maior ação no filme, justamente porque todos os percalços vividos pelos viajantes do espaço já foram vistos no cinema pelo menos uma vez. A direção de Clooney é muito competente. Sua atuação e a química entre os personagens funcionam bem, mas infelizmente, a parte espacial não traz nada de novo para o espectador.

    Mas, ainda assim, visualmente falando, o filme é lindo e esse adjetivo não está somente presente no aspecto estético, já que passa diversas mensagens para aquele que assiste, principalmente na atual condição do nosso mundo hoje, que está doente, ambientalmente falando, pandêmico, com uma população que vem sofrendo constantemente com a saúde mental fragilizada, dentre outros diversos problemas.

    Apesar de ter figurado na lista dos filmes mais vistos na Netflix, só o tempo irá dizer se O Céu da Meia-Noite, figurará na seleta lista mencionada no início deste texto.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Crítica | Wolfwalkers

    Crítica | Wolfwalkers

    Há 400 anos, o norte da Irlanda era tão medieval quanto qualquer episódio de Game of Thrones. Os habitantes da cidade ao norte do país, Kilkenny, jamais poderiam sonhar que, séculos e séculos depois, a cidade teria uma das mais populares lendas de seu folclore levada ao Cinema, e com um primor inesquecível: os homens que falam com lobos, também chamados de Wolfwalkers – e possuem um forte espírito de cura, dentre os seus dons. Assim, Kilkenny é palco desta fábula orgulhosamente nórdica, sobre forças místicas que vivem em suas florestas geladas, um infinito outono, e sempre perseguida pelo Lorde Protetor que vê nos lobos da região, uma ameaça bestial aos moradores da sua cidade, e que deve ser extinta! Mas se a humanidade sempre teme os mistérios que não entende, sobra para as crianças compreendê-los com os olhos do coração.

    E é Robyn, filha de um caçador que é chamado à cidade justamente para acabar com essa “praga” dos lobos que a rodeiam (mas não possuem um histórico violento), a quem é incumbida pelo destino a missão de tentar equilibrar essa relação entre o homem, o ecossistema, e com animais muito menos perigosos que os “seres racionais”. Assim, Robyn descobre um novo mundo nas florestas da Irlanda, as dádivas e perigos que lá se escondem sob a luz do sol, e da lua, e que o diferente não precisa ser uma ameaça apenas por ser… diferente. Além da coerência e profundidade impecáveis da história, Wolfwalkers se beneficia da beleza dos seus traços. Isso porque o cineasta Tomm Moore (O Som do Mar) e Ross Stewart, evitam o CGI cada vez mais realista da Pixar, e aposta num estilo de ilustração em 2D bem estilizado, que remete a aquarela, inserindo ao filme um visual esotérico muito bem-vindo.

    Um diferencial e tanto para um mercado dominado pelo 3D. Ao adaptar uma lenda europeia dos anos de 1600 para o público de 2020, Moore e Stewart entendem o brilhantismo atemporal da história, e não apenas o traduz em som e nessas imagens exuberantes, produzidas para nos tragar para dentro dessa floresta e seus mitos, como também encaixa na mais pura e deliciosa das fantasias inúmeras questões contemporâneas. Numa época que a humanidade precisa se importar com o meio ambiente, enquanto certos “líderes” nacionais o desprezam, e o castigam sem um pingo de dó – o paralelo com a destruição dos lobos comandado pelo Lorde Protetor é claro. Longe de ser uma simples crítica fantasiada de animação, Moore faz reconhecer o potencial metafórico da história como um de seus principais trunfos narrativos, e o destila com uma paixão atestada em cada detalhe.

    Talvez seja essa mesma paixão, afinal, que torna Wolfwalkers uma aula referencial de como fazer o mundo se identificar com uma fábula regional até então fadada ao norte da Irlanda, e que pouco ou nada dialogava com o Brasil ou a Índia, e mesmo assim, todos agora podem ser seduzidos por este conto de Robyn, sua amiga Mebh, seus lobos, e a injustiça institucional dos homens – a raça dos corruptos. Sua graça é universal, suas cenas são apaixonantes, e sua literal magia colorida nos atrai e preenche os nossos sentidos com um magnetismo que poucas vezes a Pixar (Wall-E) e os estúdios Ghibli (Nausicaä do Vale do Vento) alcançaram, e com tamanho impacto, e admiração. Provavelmente, temos a melhor animação desde Divertida Mente no Cinema, lançada no streaming da Apple TV+ (uma pena que poucos conseguiram-na ver na tela grande). Um trabalho digno de todos os aplausos.

  • Crítica | Bela Vingança

    Crítica | Bela Vingança

    Cassandra está cansada de homens tóxicos, todos estamos, até eles estão cansados deles mesmos – como se fosse um comportamento inevitável, algo natural e não construído socialmente. Cassandra não está virando uma Arlequina à toa, mas na verdade, ela está bem distante do estereótipo “bonitinha, mas ordinária”, imortalizado pelo sarcasmo cáustico de Nelson Rodrigues. Ela é uma jovem mulher promissora na vida, mas que traumatizada por circunstâncias passadas, não vai mais aturar abusos de moleques de trinta anos que se acham Homens. Essa “femme fatale” do século XXI está vestida para matar, mas sua sede por vingança a raça masculina torna sua vida vazia, chata, a ponto de precisar continuar na sua “limpeza” para subverter qualquer crise existencial, escondida por detrás de seu rosto de boneca. Cassandra está cansada, mas alguém precisa pagar pelas cicatrizes abertas.

    Indiretamente, Bela Vingança desdobra-se numa autocrítica a uma postura de rivalidade que parece ser infinita, mas muito aos poucos, o que pode causar desconforto aos espectadores mais sensíveis, que amam usar “feminista” como ofensa. Cassandra está mais para a noiva de preto, de François Truffaut, que para a Noiva de amarelo de Quentin Tarantino, uma vez que sua revolta é mais contida e menos glamourizada, revestida mais pelo suspense e o drama, que pela ação e caminhões de sangue. Cassandra também quer sangue, mas a partir de certo momento, sua luta para superar com uma violência cármica suas tragédias, toma outra direção: com o filme revirando a fragilidade do seu psicológico, Cassandra passa a avaliar o seu enorme esforço, sua solidão, sua sanidade mental posta à prova. Não tem graça ser Arlequina. Há de se lembrar do clássico Possuída, com a diva Joan Crawford gritando contra o machismo institucional, presa numa cozinha.

    Mas isso foi lá em 1931, sabendo-se que, na prática, ainda há muito avanço a se conquistar nos mais diversos aspectos da vida de uma mulher. Em Bela Vingança, a cineasta Emerald Fennell entende Cassandra, a empodera quando precisa e a julga quando merece, e transforma o que poderia ser um filme super polêmico, em um estudo de motivação (e desmotivação) de uma amazona, Carey Mulligan, versus o mundo fora de Themiscera. Maior do que nunca, é Mulligan que incorpora a indignação dos abusados com absoluto charme, numa atuação repleta de camadas e uma riqueza de detalhes impressionante, e que na retaliação de quem cruza o seu caminho, confronta os próprios impulsos para sobreviver à vingança necessária, mais forte do que ela. Quanto ao espectador, o conflito também é grande: temos dó, ou raiva de Cassandra? Devemos torcer por ela, ou repreender seus absurdos? Eis um debate que vale demais.

  • Crítica | Relatos do Mundo

    Crítica | Relatos do Mundo

    Um desejo: eu realmente espero que todos que assistam a Relatos do Mundo, já tenham visto bons ou ótimos faroestes antes. Caso contrário, há chance de o espectador casual achar que todo western é assim: fraco, disperso e entediante. Isso porque, tirando Django Livre e Bravura Indômita, o século XXI não construiu até agora um bom histórico para essas histórias ambientadas no velho oeste, e que num passado distante, já tiveram a mesma popularidade e sucesso que a Marvel e DC têm, hoje em dia. Assim sendo, Relatos do Mundo é mais uma tentativa fracassada desse gênero tão esquecido pelo grande público, voltar à cena. Só que não: se um dia houve uma vontade de revitalizar alguma coisa ou tornar interessante as jornadas da humanidade nesse cosmos ancestral de poeira e cavalos, essa foi destruída pela direção de Paul Greengrass, ou perdida na sala de edição do filme. Nunca saberemos.

    A adaptação da Netflix e Universal para o romance homônimo de Paulette Jiles é tão inovadora, e atraente, quanto um cubo de gelo na Antártida. No final dos anos 1800, os Estados (Des)Unidos enfrentavam impasses morais que mudariam para sempre a sociedade americana, e por consequência, o mundo ocidental. No ápice da polêmica sobre a abolição dos escravos no sul do país, o norte do Texas estava prestes a explodir em revolta social, e grandes mudanças na mentalidade e no bem-estar do cidadão estavam prestes a começar. Nesse clima quase instaurado de tensão pública e institucional, o homem precisa trabalhar (mesmo que num país hostil, desses), e Tom Hanks interpreta o capitão Jefferson Kidd, um veterano de guerra branco a se embrenhar nas cidades ultraconservadoras do norte, espalhando notícias de muito além da região, em troca de algumas moedas, e uma certa liberdade.

    Tal um rádio ambulante, ou no contexto de 2021, um WhatsApp viajante, Kidd é um homem marcado e solitário por razões que nós nunca nos envolvemos a fundo, no filme, sendo que, aos 30 minutos de exibição, Relatos do Mundo exige que sejamos íntimos dele, e da garota alemã perdida que Kidd passa a proteger. Mas quando nem Tom Hanks, com seus olhos de tio emocionado nos convence disso, temos um problema bem na frente dos olhos. Kidd não sabe que está adotando um ímã de problemas, por onde quer que eles passem, mas nós realmente nos importamos com isso? O diretor Paul Greengrass (escolha errada para a direção) não dá a mínima para as mensagens por trás das imagens naturalistas dessa pseudo-história de perseverança, e resistência, e filma o road-movie de maneira arrastada e esquecível – apesar da excelência da parte técnica presente, em especial a dos cenários barrocos e fotografia. Relatos do Mundo parece um ensaio de um bom faroeste que, talvez, um dia, quase foi concebido.

  • Crítica | O Som do Silêncio

    Crítica | O Som do Silêncio

    Como é bom quando um filme vem “do nada” e assalta todo mundo com sua força e criatividade. Foi assim com Um Lugar Silencioso, ou mesmo com John Wick, e agora se repete com O Som do Silêncio, filme da Amazon Prime para ganhar prêmios e melhorar a imagem da plataforma nessa guerra dos streamings pela nossa atenção. O resultado não poderia ser melhor: um dos filmes mais aclamados do ano de 2020, justamente por ser tão inventivo de várias formas. A principal, claro, está em contar uma história na perspectiva de um deficiente auditivo, ou seja: inserir o espectador a fundo nesta experiência sonora, ou na falta de som, que a surdez acarreta. E o impacto do filme de Darius Marder não poderia ser mais estarrecedor.

    Primeiro porque o diretor aposta tudo num drama pesado e ultra realista, que envolve o desespero do metaleiro Ruben Stone (Riz Ahmed, atuação da carreira). Cada vez mais surdo, Ruben vê seus dias de rebeldia e liberdade com sua banda underground começarem a sumir, já que o seu mundo da música desaparece a cada batida, a cada ritmo perdido (o trabalho sonoro do filme é espetacular). O baterista então se torna impotente, e aos poucos tem o seu emocional devastado, contando com sua namorada Lou (Olivia Cooke) até mesmo para garantir a pouca sanidade que lhe resta em um primeiro momento. Enquanto assistimos a sua árdua transição para o mundo dos gestos e da mudez – não ouvir a própria voz pode ser um pesadelo. A instabilidade de Ruben é total, caindo num abismo e numa revolta sem fim e nada parece ser capaz de salvá-lo… exceto a pobre Lou, bem quando o mundo dá as costas para Ruben. Ou seria o contrário?

    Assim, o baterista é levado a um grupo de ajuda a deficientes sonoros e são essas reuniões que fazem o homem encontrar uma chance (que cabe a ele, e mais ninguém) de superar as condições e voltar a sorrir. Uma questão de aceitar que o heavy metal ficou para trás, quase numa outra encarnação, e o desafio agora foi reservado por um destino implacável. O Som do Silêncio investiga o poder do espírito diante da fatalidade e como podemos ser a versão Super de nós mesmos, quando isto se torna necessário. Marder comanda o show pelo viés das conexões: das nossas relações, das nossas dependências, medos e resistências que carregamos, com total paixão pela história e os seus atores (os closes são ótimos e oportunos), sempre propondo e visando uma catarse redentora, rumo aos confins do instinto de sobrevivência humano – individual, e coletivo. Imperdível.

  • Crítica | Minari: Em Busca da Felicidade

    Crítica | Minari: Em Busca da Felicidade

    Se tem uma coisa que americano adora é um gringo na terra do Tio Sam valorizando o país de algum jeito. Essa gratidão do artista com os EUA sempre gera prestígio na máquina mainstream de Hollywood, mas isso cria o risco de Minari: Em Busca da Felicidade ser visto só como “filme de Oscar” – draminha passageiro. De fato, a obra de Lee Isaac Chung não tem o mesmo impacto cultural e contemporâneo do também coreano Parasita, muito devido ao poder da encenação do mestre Joon-ho Bong (já podemos chamá-lo de mestre?), mas há no filme de 2020 O diferencial, agora: o uso de uma simplicidade e uma poesia encantadoras como artilharia emocional para ser um drama devastador com os seus atores, ainda mais nos momentos finais. Porque quando a família de Jacob e Mônica chegam no interior dos Estados Unidos nos anos 80, Jacob olha para o mato como se fosse uma mina de ouro, e Mônica é a única que percebe as dificuldades que o casal e as crianças enfrentarão nesse novo mundo, de emprego instável e sem grandes amigos para contarem nos Estados Unidos.

    Sonhador Vs. Realista, ou melhor: a importância (e as agruras) dos opostos para encarar uma vida difícil. O tema migratório é bastante forte, das dificuldades que os outsiders passam para se estabelecer na América (ou em qualquer país) e sobreviver com novos costumes, novos valores também para se adaptar. Mas são as promessas impossíveis que dão o tom de “desesperança combatida”, enfrentada pela teimosia que rege os sonhos dos homens num terreno a ser explorado – representado aqui pela vontade de Jacob em criar uma fazenda e germinar algum tipo de segurança financeira. Jacob tem uma família para criar e mesmo sem cumprir com tudo o que “vendeu” ainda na Coréia do Sul para Mônica e seus filhos, nunca para de lutar de forma honesta, mesmo que o destino atire inúmeros desafios (não apenas pessoais) em seu caminho sinuoso. Na verdade, Minari é a adaptação da famosa frase de Sylvester Stallone em Rocky Balboa, mas com atores orientais: Não se trata de bater duro, se trata de quanto você aguenta apanhar e seguir em frente, o quanto você é capaz de aguentar e continuar tentando. Isso é Minari.

    E com uma sensibilidade asiática que americanos sempre admiram (vide o sucesso de Nomadland e até Brokeback Mountain), qualquer diretor hollywoodiano de raiz filmaria esse drama abusando da trilha sonora, forçando lágrimas, e ainda iriam colocar uma cena de ação ou forte tensão no meio – Steven Spielberg sempre seguiu essa fórmula até cansar o seu mais fanático seguidor, com o apogeu da breguice em Cavalo de Guerra. O diretor Chung faz o oposto e esse é o triunfo do seu trabalho: a formação e o foco em um único núcleo narrativo (a unidade familiar coreana), e na força que existe na leveza, na resistência que existe no silêncio – há uma revitalização do cinema poético de Yasujiro Ozu, podendo-se sentir o gosto de clássicos como Era Uma Vez em Tóquio e Bom Dia, o tempo todo. Assim, Minari também dialoga com a coerência, a importância da rotina para o espírito vencedor, que sabe onde quer chegar, e não para de fazer a sua parte na escola injusta da vida. Afinal, ser um vencedor é ter uma família ao seu lado, custe o que custar, mesmo que o preço seja caro a se pagar.

  • Crítica | Meu Pai

    Crítica | Meu Pai

    Logo, logo, Anthony não vai mais lembrar quem é. Nem seu nome, nem seu endereço, muito menos sua família, ou a história da própria vida. Meu Pai é a adaptação da peça homônima que nos convida à verdade: a pior dor, vem a conta-gotas. Perder o pai, aos poucos, dia após dia, acaba com sua filha Anne, que precisa viver sua vida (mulher casada e prestes a viajar a trabalho) numa Londres ensolarada, que convida ao progresso, a ser feliz. Sem enxergar o pai como âncora, Anne faz o seu melhor, contrata cuidadoras, mas às vezes chora na cozinha, na cama com seu marido que não aguenta mais ser “vítima” dos problemas de demência do velho sogro. Todo dia, um absurdo diferente, “roubaram meu relógio”, grita o idoso. “Eu quero minha mãe.”, “Quem é essa mulher?”, e enquanto isso, Anthony definha a olho nu. Um bebê de oitenta anos.

    Mas Anthony não quer ser um problema para ninguém, não admite ser vítima do próprio transtorno. Entre as várias possibilidades de interpretação, Meu Pai explora o caminho para o fim numa contagem regressiva hipnótica, graças também à sua ótima e discreta edição. A questão, portanto, é clara desde o início, e nosso subconsciente percebe isso desde os primeiros cinco minutos do filme: até que ponto vale a pena tornar menos doloridos os nossos dias, e achar caminhos para isso, já que o pesar não é uma escolha para uma situação familiar tão difícil, como essa? Se enganar é uma boa opção, ou seria melhor aceitar o desafio, e se preparar, ao invés de fugir, ou pior: fingir que tudo irá melhorar? Anthony só vai piorar, mas Anne mente a si mesma, chegando a ponto de imaginar a morte do patriarca, até que chega uma hora que a demência do pai não tem mais volta, e é preciso ser adulto em relação a vida. Seja lá o que isso signifique.

    É de Florian Zeller a peça original, e o filme de 2020 também, sendo que grande parte do sucesso indiscutível de Meu Pai deve-se ao fato de Zeller não transformar seu filme, em teatro filmado – como é o caso de A Voz Suprema do Blues, infelizmente. Produto cinematográfico de altíssimo nível, Meu Pai torna-se graças a astúcia de Zeller um legítimo representante do cinema francês (europeu, mas especialmente francês) falado em inglês, aprofundando o drama humano sem exageros, orgulhosamente elegante em cada plano, mas repleto de pequenos grandes momentos pontuais, coerentes a trama como um todo. Mas o clímax do show são dois titãs em cena: um monstro sagrado de Hollywood, e uma rainha em ascensão. Anthony Hopkins faz, aqui, apenas a atuação da sua carreira, e Olivia Colman volta a interpretar uma mulher simples, bem longe do luxo monarca, com absoluto brilhantismo. De se rasgar elogios, e não apenas lágrimas e espanto, para suas atuações que contribuem, e muito, para tornar a obra uma experiência devastadora.

  • Crítica | Pieces of a Woman

    Crítica | Pieces of a Woman

    Durante um parto doméstico, um bebê falece por causas ainda a serem investigadas. Pai e mãe ficam desesperados e a parteira não sabe o que fazer. Tudo dá errado, e se Deus não está entre nós para ser culpado, alguém precisa ser. Há dois filmes em Pieces of a Woman, dois filmes complementares. O primeiro é sobre os fragmentos internos de um casal depois de um evento desses, e principalmente de uma mulher que vê o sonho de ser mãe acabar bem na sua frente nos primeiros segundos de uma vida tão breve. A segunda história aborda o dia seguinte, a semana seguinte. A vida não para. E o trabalho, e a família, o futuro? Assim, o filme da Netflix (com um elenco fantástico) é sobre juntar os cacos e se amar e o que fazer enquanto a tempestade não cessa – e tudo sem apelar para o melodrama fácil ou maniqueísmos. Feito raro.

    A cineasta Kornél Mundruczó (do fantástico Deus Branco) faz um típico filme europeu nos Estados Unidos, apostando tudo e mais um pouco nas atuações magistrais dos seus atores, muito mais do que em reviravoltas mirabolantes de roteiro ou diálogos espertos em inglês. A problemática que esse jovem casal vivido por Vanessa Kirby (a alma do filme até Ellen Burstyn entrar em cena) e Shia Labeouf (bem longe dos blockbusters milionários) enfrenta durante e depois do parto fracassado é extremamente pesada – o que rende momentos perfeitos para ganhar o Oscar. Momentos de total entrega nas atuações de homens e mulheres aos cacos. Pode-se dizer, portanto, que Kornél dirige algumas cenas com uma força e controle dramáticos extraordinários, muito mais que qualquer cena do recente História de um Casamento, por exemplo. E mesmo assim, sem exageros nas encenações. Trabalho de mestre.

    Por se tratar de um veículo para Kirby e Labeouf brilharem junto de Burstyn (o retorno as premiações) como a avó que quer dar ao quase-neto um funeral decente, Pieces of Woman prende nossa atenção pela tensão presente a cada minuto – filme de suspense mesmo e que começa como um drama bem despretensioso, manipulado a olho nu numa espécie de tour de force sentimental bastante discreto e elegante. A obra cresce, e ao terminar, no tribunal, com a parteira Eva (Molly Parker) sendo finalmente julgada como possível culpada pelo destino do natimorto, temos um arco completo de três mulheres (a mãe, a vó e Eva) que buscam respostas mundanas para a crise existencial que o filme, como um todo, bem representa. Essa é a sensação, afinal, para o espectador: passar por esse abismo emocional junto com essas mulheres e que, no fundo, tentam sair dele ao se agarrar em algo, nem que seja justiça, vingança, alguma coisa! E enquanto os pedaços são colados, a vida teima e continua.

  • Crítica | Druk: Mais uma Rodada

    Crítica | Druk: Mais uma Rodada

    E se quatro professores de ensino médio, cansados de tudo, resolvessem testar um método científico para ingerir uma pequena quantidade de álcool, todo dia, a fim de melhorar suas habilidades sociais e profissionais? Receita do apocalipse individual? Sim, é claro, mas não há nada que Martin, Tommy, Nikolaj e Peter não topem para se sentir mais jovens e dispostos. Livres dos quarenta anos que pesam nas suas costas, presos a salas de aula, a rotina, a famílias que estão perdendo valor. Druk: Mais Uma Rodada é um estudo dinâmico sobre o auto engano coletivo, fomentado em grupo até o limite da sua intoxicação – não apenas alcoólica, mas ideológica, numa revitalização contemporânea do clássico Farrapo Humano. E aqui, o dinamarquês Thomas Vinterberg dirige o filme através de uma tensão crescente, e bem modulada, a fim de esclarecer a grande dúvida: de onde nasce a necessidade de uma catarse?

    Seria do mesmo lugar que surgiu a violência de William Foster, de Um Dia de Fúria, ou pior, a rebeldia de classe média alta do jovem Alexander, de Laranja Mecânica? A arte de “chutar o pau da barraca” pode ter vários gatilhos estudados a exaustão, e em Druk, eis um gatilho tão auto destrutivo, quanto passivo-agressivo. Um quarteto que quer fugir da realidade, até então livre de vícios, e mesmo que correndo o risco de levar todos com eles, destruindo lares, seus alunos, ou qualquer chance de futuro. Mads Mikkelsen se joga (como sempre) na pele de Martin, o professor desiludido que, junto de outros, só quer um buraco pra entrar e sumir. “Você não é o mesmo Martin de antes.”, admite sua esposa, cansada de secar gelo em sua relação. Mas o experimento do álcool não para, e de repente, não há mais volta. De rodada em rodada, os quatro mudam sua história, gerando dó, e tragédia. Prisioneiros das próprias armadilhas, como alguns belos closes nos dão conta de transmitir também.

    O principal, então, é o manifesto do desespero. Aquele que assalta tantos homens de meia idade sobre seu papel na sociedade, e que os leva a uma ação imediata: beber, fugir, esquecer, e isso no fim da juventude, dos sonhos de conquistar o mundo e se casar com a Beyoncé. Martin e os outros decidiram não enfrentar a vida, e se são obrigados a isso, vão enfrentar bêbados. É claro que o tiro vai sair pela culatra, mas Vinterberg, cineasta engenhoso, ainda dá espaço no filme para a redenção. Para um lembrete que a vida não para, e a armadura da coragem, se vestida, pode render bons momentos de alegria que fazem tudo valer a pena – a vida não tem sentido e menos sentido ainda tem a nossa procura por ele, exclama o final. Druk é um filme que choca mas não merece ser polêmico, dada a sua questionável apologia ao alcoolismo, e o seu retrato ultrarrealista das consequências da cachaça, e imprudência. Usa da controvérsia para subvertê-la, e nisso, é bem-sucedido. Cinema europeu por excelência e muito bem feito.

  • Crítica | Uma Noite em Miami…

    Crítica | Uma Noite em Miami…

    “Poder é ter um mundo aonde você pode ser você mesmo.”

    Quatro homens negros numa suíte de hotel, discutindo não só seus papeis na sociedade americana de 1963, mas o seu futuro e os seus valores. Em 2021, os assuntos seriam outros, invocados através de um outro contexto, mas naquela época, no sul repleto de contradições dos Estados Unidos, o impacto igualitário de Martin Luther King ainda não tinha acontecido, e afro descendentes ainda eram obrigados a sentar no final do ônibus, e usar banheiros próprios. É sob essa tensão que Uma Noite em Miami se desdobra, num drama histórico e semibiográfico cujas raízes, profundas, dialogam com Selma, Lágrimas Sobre o Mississipi e, indo aos primórdios das tensões raciais, 12 Anos de Escravidão. É por isso que Malcolm X chama seus três amigos para aquele quarto: as cicatrizes ainda estavam expostas, além do medo de que tudo se repita. De uma outra forma, mas com os mesmos alvos oriundos de ‘Wakanda’.

    Porque a melanina é motivo de discórdia entre os injustos, e Malcolm não deixa ninguém esquecer disso na sua militância, “uma voz solitária”, como ele mesmo admite sem bancar a vítima, e sim o arauto da causa, num poço de confusão, e violência. E esse debate não poderia ser numa hora melhor: enquanto o próprio Muhammad Ali se gaba por ter ganho o título de campeão de peso-pesado mundial, o cantor Sam Cooke tenta em vão animar uma plateia de senhoras brancas que não o aceita, assim como o jogador de basquete Jim Brown, outra vítima de um racismo estrutural, sofrendo com brancos burgueses que não se consideram racistas. Juntos agora entre quatro paredes, esse quarteto apresenta uma amizade inabalável, desde a infância, mas isso não evita que tenham suas verdades e ambições colocadas à prova, nesta longa noite. “Você poderia mover montanhas, irmão”, diz Malcolm a Cooke, em uma cena. Mas Cooke só quer crescer, ser importante, respeitado pela burguesia que o excluí, e no fundo, o enoja.

    Lidando em especial com o tema da conscientização e empatia, a atriz Regina King faz um trabalho notável na direção ao confinar homens diferentes num quarto, e ver o que sai dessa situação com sensibilidade, força e precisão na dinâmica do filme. É gratificante, aliás, perceber como King entende que um close bem dado, na hora certa, rende um grande momento, superior a qualquer diálogo. A atriz faz sua estreia na direção com um drama seguro, coerente, e nem por isso sufocado pela inexperiência da diretora, mas talvez seja a grande habilidade dela em extrair o melhor dos atores, que mais surpreende: o quarteto principal e seus coadjuvantes estão sublimes, com Leslie Odom Jr. encarnando o cantor de soul cheio de talento, e revoltado por não chegar no topo, e Eli Goree, perfeito como o titã do boxe Muhammad Ali, aqui vivendo sua glória de campeão mas contestado pelo seu papel na sociedade enquanto não apenas um homem rico, mas um homem rico e negro. Se King ainda não consegue fazer um tour de force de 2 horas, a peça Uma Noite em Miami é traduzida em cinema com um charme e uma elegância que nos convidam a todo tipo de debate, e revisão.

     

  • Crítica | Os 7 de Chicago

    Crítica | Os 7 de Chicago

    O sistema se alimenta, acima de tudo se protege, e não seria contra sete cidadãos banais e determinados a expor o genocídio de uma população, por um país que atirou tantos dos seus homens para morrer na guerra do Vietnã, que isso poderia ser diferente. O sistema é infalível, e ele precisa passar essa ilusão para as formigas que acordam, o alimentam com seu esforço, dormem e repetem o clico até morrer. Tudo em nome do Deus Sistema. Os 7 de Chicago é uma alegoria a essa sentença indireta para com o cidadão submetido, e como ela foi combatida pela ousadia dos “malucos que querem mudar o mundo”. A utopia almejada é real, ainda que justificável: quando os americanos estavam sendo literalmente jogados no fogo daquelas florestas tropicais, de 1955 a 75, alguém tinha que fazer alguma coisa – além de fumar, e assistir a guerra pela TV.

    Peitar o Estado, seus cães de guarda, e antes de serem presos, ser julgados por isso. Mas aqui a arma é a palavra, e isso combina demais com Aaron Sorkin, um dos mais celebrados escritores de Hollywood. Devoto da retórica e do seu poder de sedução, Sorkin é um entusiasta cuja expertise mora no jogo silábico, no bate-boca – discutir com ele deve ser fantástico, até o Tarantino perderia. O cara saber escrever uma conversa melhor que Kevin Feige produzindo Vingadores, mas agora o “salto de fé” é outro: a direção. Aos esquematizar uma Liga da Justiça de 7 integrantes peitando um juiz a favor da sobrevivência de um povo cada vez mais recrutado para morrer, e do direito de escolher do cidadão em participar do massacre internacional, ou não, Sorkin conduz o espetáculo sem a ajuda de um David Fincher para traduzir sua metralhadora de palavras, em imagens vivas.

    Isso funciona, mas a direção morna do roteirista não eleva o seu texto, muito inexperiente para construir uma verdadeira tensão, mesmo que lhe dê ritmo, realismo e consistência com uma boa encenação coletiva, e uma razoável montagem. Seja como for, enquanto filme de tribunal, Os 7 de Chicago usa e abusa de fantásticas referências jurídicas do passado para atualizar e atrair as novas gerações, ao charme do subgênero de promotores, réus e advogados. Difícil imaginar outra pessoa melhor que o Sorkin para escrever essa história original, mas dá saudades de um Fincher na direção, mesmo que o roteirista de A Rede Social brinque bem de Otto Preminger (Anatomia de um Crime), e Sidney Lumet (12 Homens e Uma Sentença), dois dos seus principais ídolos da era de ouro de Hollywood. A renovação não funciona por completo, mas o filme fica entre os melhores da Netflix, numa seara de aventuras débeis.

    Senão pela tímida construção cênica, total falta de visão estética (é incompreensível como o filme foi indicado a Melhor Fotografia no Oscar 2021), o filme vale pelas boas atuações, em especial a de Sacha Baron Cohen, um poço de carisma como o protestante que não tem nada a perder, e a de Joseph Gordon Levitt, na pele de um jovem promotor escolhido a dedo para fazer o Estado ganhar a causa – custe o que custar. Ele se protege, o império, mas a Liga dos 7 atrai a sociedade civil para representá-la, também, além dos repórteres e suas câmeras, famintos ao farejar o impacto do processo judicial. Uma pena que Sorkin não dialogue sobre a importância da mídia e da liberdade de expressão, numa situação dessas, e mesmo que o diretor não consiga nos instigar como poderia em torno do caso, eis um evento histórico que precisava ser bem contado, e de fato é. Porque nunca é demais se lembrar da importância da democracia, e dos “loucos” que a fazem resistir, de tempos em tempos.

  • Crítica | Nomadland

    Crítica | Nomadland

    Se fosse um sentimento, seria timidez. Um signo, peixes, e uma comida, light. Nomadland virou o queridinho das premiações de 2021, e a resposta vaza de cada poro, ou melhor, cada enquadramento do filme. Ao adaptar o livro homônimo de Jessica Bruder, Chloé Zhao migrou a sensibilidade asiática para a América, e assim, fez um faroeste contemplativo, sem cavalos e armas porque os tempos são outros, agora que o homem volta ao oeste porque a cidade não tem mais emprego, e o que sobrou foi a tentativa de ser nômade em pleno século XXI. Nesse contexto de Depressão Econômica não-oficial, ninguém conseguiria encarnar esse drama nos olhos melhor do que, provavelmente, a maior atriz americana viva: Frances McDormand. Uma atuação feita para proteger qualquer filme atrás de si, mas Zhao faz de McDormand o seu coringa na manga, extraindo da história a força da resistência, individual e coletiva, ao debater na mais realista das ficções, os problemas talvez crônicos de uma nação e seu povo.

    Eis então um exercício de Zhao sobre os limites da sensibilidade no cinema americano, mais e mais obcecado no lucro dos filmes da Marvel, e no poder do espetáculo barulhento. A diretora claramente tenta alcançar o nível de inteligência emocional de um Ingmar Bergman, observando por exemplo as mulheres de Persona, como se o filme fosse o mais fino véu de seda, sob a luz da lua cheia. Em solo americano, isso é uma proeza, visto que o país, e seus críticos, não são reconhecidos exatamente por sua sensibilidade artística – daí o termo “artsy”, usado por eles para zoar filmes de arte europeus que não têm ação. Da mesma forma que Ang Lee filmou dois cowboys se apaixonando com extrema leveza e intimidade, Zhao faz de Nomadland um microscópio incoerente para se analisar o cidadão mais banal, refém de uma crise econômica sem fim no país mais rico do mundo (ainda), e sem uma casa própria para chamar de sua.

    E digo incoerente porque o longa, talvez pela falta de habilidade atual de Zhao, é uma experiência um tanto incompleta por pecar demais no ritmo da história. Às vezes, o drama se arrasta não a ponto de nos desinteressar, mas de enfraquecer a potência dos relatos de uma gente esquecida (muitos reais, para transmitir a sensação de documentário). Contudo, em dado momento, McDormand senta com um grupo de mulheres também entediadas para refletirem sobre a vida, os homens, o futuro, e por ser um filme de momentos pontuais, tais instantes brilham, discretos, em uma grande direção de atores que nos faz engajar com cada diálogo, cada lágrima. Nomadland é obra de detalhes, sendo que um sorriso de McDormand é mais espalhafatoso que qualquer explosão de Velozes e Furiosos. Os gestos que vemos em tela, aqui, dos refugiados em suas vans, ainda que presos num sistema injusto, pagam tributo aos deuses antigos do cinema, e que tanto contribuíram a refinar o gênero, seja com um close bem dado, ou com a força de um beijo na hora certa.

    Fato é que os Estados Unidos deixou escorrer pelos dedos a ilusão do sonho americano, e o que sobrou é um país de segundo mundo, cheio de desempregados e uma Amazon que os emprega, como gado atrás da cerca. Agindo como um retrato poderosamente leve do momento socioeconômico do país, Nomadland mostra um povo sobrevivente e cético, sem rumo sob um céu de brigadeiro, na espera da “chuva” passar. O que mais podem fazer, se rebelar contra o império? Zhao evita tais questionamentos, passa longe de um A Classe Média Vai ao Paraíso, mas conjura uma obra amparada por um silêncio esmagador, orgulhosamente introspectiva a ponto de nos tornar íntimos dos seus personagens e seus sentimentos em questão de minutos. Mesmo assim, acredito que esta não será a obra-prima de Zhao, até porque não é para tanto. Há espaço ainda para aprimorar o domínio dramático dessa jovem cineasta chinesa, mas certamente o longa a colocou no mapa, e no Olimpo de Hollywood. Veremos.

  • Crítica | A Voz Suprema do Blues

    Crítica | A Voz Suprema do Blues

    Em 1927, quando os Estados Unidos ainda nem sonhava com um presidente negro, o capitalismo engatinhava e os afro-americanos ainda provavam o gosto da liberdade, a música unia as comunidades como nenhum outro poder, naquela sociedade. A Voz Suprema do Blues começa sendo um retrato musical deste período, suas tensões e seus costumes no melhor estilo de Uma Cabana no Céu, de 1943, ou o soberbo Carmem Jones, de 1954, mas isso não dura nem 2 minutos – contados no relógio. O diretor George C. Wolfe adapta a peça de teatro de August Wilson com a mesma emoção, potência e inteligência que Joss Whedon comandou a Liga da Justiça de 2017, e alcança a proeza de tornar um conturbado episódio na vida de uma cantora do blues, e sua banda, em um novelão mexicano vazio, sem estilo e sem representatividade alguma, e que parece ter o triplo da duração curta que tem, para dizer o mínimo.

    E se o filme faz Cadillac Records, com a Beyoncé, parecer melhor em suas principais qualidades, o que falar a respeito então? Desde a primeira cena, o filme se atira no colo de Viola Davis, um monstro como a diva sentimental Ma Rainey, e só muda de assento quando o saxofonista de Chadwick Boseman surge para roubar a atenção, em três cenas sob medida para ele ganhar o Oscar. Como é indecente o filme, ou a série que se esconde atrás dos seus atores, ou ainda: um diretor cujo trabalho consiste no brilhantismo do trabalho alheio. A Voz Suprema do Blues é um simulacro de porcelana sobre a época que retrata dentro de um pequeno estúdio de gravadora cheio de artistas com egos super inflados, sem coragem de levantar assuntos polêmicos e fortes que até Dreamgirls teve, pouquíssimas vezes, lá em 2006. Toda a conjuntura política que, percebe-se, está lá e que poderia elevar o filme a patamares de fato relevantes, quase não tem vez aqui. Falta de habilidade, ou talvez de interesse. Covardia.

    Os filmes originais da Netflix sofrem de um problema crônico: não sobrevivem a uma segunda sessão, com exceção de O Irlandês e mais uns dois gatos perdidos – e que não inclui Mank. A Voz Suprema do Blues é o que é, prato raso sem aspecto memorável algum que nos conduza a revisão. Mesmo para os fãs do Pantera Negra, digo, do Boseman, seria melhor selecionar suas cenas individuais e pagar tributo isolado ao show do jovem ator, lenda que foi tão cedo, tal James Dean e Heath Ledger. Para piorar, o projeto não se decide se é cinema ou ainda é teatro, e por via das dúvidas, o diretor acha melhor nos dar um gosto de peça filmada bem morna, bem esquecível. Péssimo. Um pouco de esforço cairia bem, e o resultado não é pior porque os atores entendem isso, e toda a parte técnica, essa sim, segue impecável – figurinos, cenários e mixagem de som. Sobra visual (como é de praxe na Hollywood do século XXI), falta o principal: visão. Direção. Viola Davis precisa escolher filmes melhores.