Tag: frances mcdormand

  • Crítica | Nomadland

    Crítica | Nomadland

    Se fosse um sentimento, seria timidez. Um signo, peixes, e uma comida, light. Nomadland virou o queridinho das premiações de 2021, e a resposta vaza de cada poro, ou melhor, cada enquadramento do filme. Ao adaptar o livro homônimo de Jessica Bruder, Chloé Zhao migrou a sensibilidade asiática para a América, e assim, fez um faroeste contemplativo, sem cavalos e armas porque os tempos são outros, agora que o homem volta ao oeste porque a cidade não tem mais emprego, e o que sobrou foi a tentativa de ser nômade em pleno século XXI. Nesse contexto de Depressão Econômica não-oficial, ninguém conseguiria encarnar esse drama nos olhos melhor do que, provavelmente, a maior atriz americana viva: Frances McDormand. Uma atuação feita para proteger qualquer filme atrás de si, mas Zhao faz de McDormand o seu coringa na manga, extraindo da história a força da resistência, individual e coletiva, ao debater na mais realista das ficções, os problemas talvez crônicos de uma nação e seu povo.

    Eis então um exercício de Zhao sobre os limites da sensibilidade no cinema americano, mais e mais obcecado no lucro dos filmes da Marvel, e no poder do espetáculo barulhento. A diretora claramente tenta alcançar o nível de inteligência emocional de um Ingmar Bergman, observando por exemplo as mulheres de Persona, como se o filme fosse o mais fino véu de seda, sob a luz da lua cheia. Em solo americano, isso é uma proeza, visto que o país, e seus críticos, não são reconhecidos exatamente por sua sensibilidade artística – daí o termo “artsy”, usado por eles para zoar filmes de arte europeus que não têm ação. Da mesma forma que Ang Lee filmou dois cowboys se apaixonando com extrema leveza e intimidade, Zhao faz de Nomadland um microscópio incoerente para se analisar o cidadão mais banal, refém de uma crise econômica sem fim no país mais rico do mundo (ainda), e sem uma casa própria para chamar de sua.

    E digo incoerente porque o longa, talvez pela falta de habilidade atual de Zhao, é uma experiência um tanto incompleta por pecar demais no ritmo da história. Às vezes, o drama se arrasta não a ponto de nos desinteressar, mas de enfraquecer a potência dos relatos de uma gente esquecida (muitos reais, para transmitir a sensação de documentário). Contudo, em dado momento, McDormand senta com um grupo de mulheres também entediadas para refletirem sobre a vida, os homens, o futuro, e por ser um filme de momentos pontuais, tais instantes brilham, discretos, em uma grande direção de atores que nos faz engajar com cada diálogo, cada lágrima. Nomadland é obra de detalhes, sendo que um sorriso de McDormand é mais espalhafatoso que qualquer explosão de Velozes e Furiosos. Os gestos que vemos em tela, aqui, dos refugiados em suas vans, ainda que presos num sistema injusto, pagam tributo aos deuses antigos do cinema, e que tanto contribuíram a refinar o gênero, seja com um close bem dado, ou com a força de um beijo na hora certa.

    Fato é que os Estados Unidos deixou escorrer pelos dedos a ilusão do sonho americano, e o que sobrou é um país de segundo mundo, cheio de desempregados e uma Amazon que os emprega, como gado atrás da cerca. Agindo como um retrato poderosamente leve do momento socioeconômico do país, Nomadland mostra um povo sobrevivente e cético, sem rumo sob um céu de brigadeiro, na espera da “chuva” passar. O que mais podem fazer, se rebelar contra o império? Zhao evita tais questionamentos, passa longe de um A Classe Média Vai ao Paraíso, mas conjura uma obra amparada por um silêncio esmagador, orgulhosamente introspectiva a ponto de nos tornar íntimos dos seus personagens e seus sentimentos em questão de minutos. Mesmo assim, acredito que esta não será a obra-prima de Zhao, até porque não é para tanto. Há espaço ainda para aprimorar o domínio dramático dessa jovem cineasta chinesa, mas certamente o longa a colocou no mapa, e no Olimpo de Hollywood. Veremos.

  • Review | Good Omens

    Review | Good Omens

    Adaptação da literatura de Neil GaimanTerry Pratchett, conhecida como Belas Maldições, Good Omens é uma minissérie em 6 episódios com um caráter satírico, que mostra a historia de dois seres divinos que se vêem obrigados a voltar a conviver juntos graças a chegada do apocalipse. A produção original da Amazon teve muitos recursos gastos em divulgação, e aposta nos seus dois atores principais para fazer sucesso, em Michael Sheen, que faz o anjo Arizaphale, e David Tennant que interpreta o demônio Crowley, em compensação, não há tantos gastos com efeitos de pós produção e afins, o foco é no texto engraçado e nas atuações do elenco estrelado.

    Primeiro há de se notar que a série  não se leva a sério, sua estética se assemelha ao que se faz na TV britânica, como é visto em Doctor Who, com efeitos especiais bem baratos, parecidos com os vistos nas produções do canal B Syfy. O programa não é exatamente trash, mas o cunho cômico ajuda a normalizar o fato de claramente não ter muito investimento em efeitos em CGI. A trilha sonora, repleta de sucessos do rock inglês – em especial Queen – também facilita a adaptação de olhos e ouvidos do espectador, além do que, ajuda a fortalecer o senso de humor que lembra bastante Dogma e outras comédias nonsense.

    O começo é um pouco truncado, mas melhora bastante seu ritmo no segundo episódio. Jon Hamm faz Gabriel, um anjo que não sabe parecer um humano normal, sendo nada sutil ao tentar disfarçar sua condição. Para emular normalidade, ele diz em um lugar publico que seu objetivo é comprar pornografia, em uma mostra do quanto o humor, apesar de bem trabalhado pode se fundamentar em idiotice implícita.

    Outro ponto importante  do caráter do seriado, é que ele adora debochar de seus espectadores, fazendo piadas com astrologia, sempre mostrando os personagens divinos acima dessas crenças mundanas, sem deixar de discutir clichês dogmáticos em especial as religiões judaico-cristãs, a começar por ter Deus dublado por Frances McDormand, uma figura feminina que apesar de forte, desafia a mentalidade misógina que é bem presente nos círculos internos das igrejas. A rivalidade do Diabo e do Divino faz criar a humanidade, e através da biografia de Adão e Eva, Crawley e Arizaphale interferem no Status Quo, de maneira muito pontual, aliás, com cenas de um chroma key terrível com a cobra do Jardim do Éden. Ambos personagens acham que suas ações não interferirão no universo, mas obviamente mudam toda a configuração das criaturas terrenas, fazendo o homem pecar, descobrir o fogo e as armas. O desespero deles aumenta quando percebem que em suas ações conjuntas, podem ter condenado o universo, e se pensa numa possibilidade de terceira via, mas se eles tem contato com os homens, obvio que eles mudam seus passos. É  incrível como essa parte da trama conversa bem com a mentalidade de primeiro contato presente em séries de ficção científica como Jornada nas Estrelas: Série Clássica.

    O drama vai aumentando seu grau com o decorrer dos outros episódio. A estética da série também melhora, cada cenário e núcleo diferente tem sua própria identidade visual e seu conjunto de personagens. Da parte dos anjos caídos, há todo uma aura pós apocalíptica que faz crescer quando o Armageddon se aproxima. Para a surpresa do grande público – não para quem conhece a obra original – há um núcleo infantil onde reside o possível/futuro Anti-Cristo, e esse personagem, feito por Sam Taylor Buck é bem humanizado, e faz lembrar muito eventos da cultura pop, como Os Goonies. Os anjos que não são os protagonistas seguem numa aura típica dos seriados da HBO, com glamour, fotografia que faz a luz prevalecer e alguns luxos.

    A postura galhofeira de Crawley  contrasta bem demais com a postura reta e conservadora de Arizaphale, e a maioria dos momentos dramáticos só funciona por esse choque cultural. As discussões sobre os anjos desencarnarem, como parte do processo apocalíptico abre possibilidades para comentar até sobre mitos gregos, como Prometheus, ligando isso ao Hiper  Mito que Joseph Campbell sempre defendeu, em uma versão quase ecumênica da origem e fim da humanidade. A brincadeira com a distância idealista entre um anjo e um demônio é muito bem exposta, mostrando que a percepção do mundo que os dois personagens não é tão diferente, pois ambos são alienados em comparação ao homem, que vive e sofre seus flagelos diariamente.

    A rebeldia de Sam é voltado para um lado não maniqueísta, é incrível a subversão da religiosidade comum, e o modo irônico que os roteiros empregam nesses seis capítulos. Mesmo a desculpa de que a confusão que ocorre no final, que trata o fim do mundo”cancelado” como um  devaneio coletivo tão grosseiro que faz o povo esquecer automaticamente o que acabou de acontecer é sensacional. Incrivelmente a historia termina ao mesmo tempo como mantenedora do status quo e ousada, pervertendo a ideia cristã de como o mundo acabaria.

    Há muita inteligência na tradução de Good Omens para um programa de TV, mostrando os anjos caídos ou não como personagens falhos, atrapalhados, e que tendo um poder imenso, podem interferir  de maneira arbitrária na vivência comum dos homens, mesmo em pequenos atos, mudando toda a situação dos seres vivos comuns, mostrando o quão frágil pode ser a obra-prima de Deus, mesmo os formados a sua imagem e semelhança. A conclusão filosófica sobre o homem e o divino é muito sagaz e inteligente, e faz sentido na maior parte dos minutos em tela.

    https://www.youtube.com/watch?v=hUJoR4vlIIs

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  • Crítica | Ilha dos Cachorros

    Crítica | Ilha dos Cachorros

    É fácil perceber que se está diante de um filme de Wes Anderson, mas não só pelos motivos “aparentes” e esperados, em especial neste filme de 2018. Incorporando sua identidade rigorosamente meticulosa na elaboração visual de toda a sua mise-en-scène, com a história do garotinho Atari em busca de seu cachorro numa ilha japonesa dominada por raças caninas simpáticas e inteligentíssimas, forma-se uma (tentativa raquítica e apática de) jornada sobre liberdade e amizade e que começa e termina na vã estratégia de ser um Cinema autoral e de entretenimento ao mesmo tempo, algo que Anderson sempre conseguiu, mas que aqui simplesmente não consegue basilar-se nas suas pretensões. Resumindo: Sobra estilo e esquematização, e faltam conflitos e emoções reais em Ilha dos Cachorros, como se isso fosse tudo.

    Wes Anderson não acredita na sua história pois não assume risco algum; fato. Zona de conforto total, e que impressiona dada a mente brilhante que está por trás desse projeto, o filme inteiro parece ser um ato só: Coisas se desenvolvendo com a leveza do vento e sem alcançar patamares significativos em absoluto – nem na filmografia de Anderson, nem no Cinema recente. Mesmo quanto as peculiaridades do cineasta, seus travellings ultra planejados e seu ritmo incessante, ágil e palco para um humor negro irresistível, em A Ilha dos Cachorros tudo torna-se desinteressante pela primeira vez na carreira do cara. E, caso a obra não mereça ser chamada de “desinteressante”, o oposto tampouco atinge na percepção sensorial de quem esperava a regularidade de sempre do autor de Moonrise Kingdom, e de uma das grandes animação dos últimos anos: O Fantástico Sr. Raposo.

    Entre gangues formadas por diversas raças de cães e que lutam pela sobrevivência em um território que dominam, e muito corre-corre vazio, a história grita desesperada por um nível básico digamos de naturalismo que jamais poderia encontrar junto a alguém cuja frontalidade sempre foi orgulhosamente cênica, à beira do artificial. Parece que Anderson quer escapar um pouco do seu estilo e tentar ser mais solto, mais humanizado igual sua cachorrada solta em terreno japonês seguindo Atari. Mas nesse desejo de se expandir, poucas vezes nessa década se viu uma animação tão carente de carisma e tão atolada por uma artificialidade oca; um vai e vem que, se diverte mais ou menos, não chega em lugar algum. Entre um cinismo estrutural e um apoio extremo na beleza e outras virtudes da sua técnica, Ilha dos Cachorros é o típico filme calculado em demasia que não aguenta a essência da sua sensível trama frondosa, e banalmente desenvolvida.

    Neste exemplar do seu gênero, nem a boa trilha-sonora de um Alexandre Desplat ou o fascínio que técnicas de animação promovem não enganam ninguém (pelo menos aqui), e apenas embalam superficialmente a falta de envolvimento de todos os lados com a produção. Anderson apresenta uma mão surpreendentemente pesada na direção, e a trama centrada em amigos inesperados (e uma subtrama política feita às pressas por meio de analogias baratas) tampouco combina com o seu estilo de aventuras hiper organizadas em seu espaço/ tempo tão particular, e sempre tão delicioso – até agora. Estamos falando de um quase filme, de uma ideia que talvez merecia ser contada mas de uma forma muito mais calorosa – o clímax do filme é ordinário. Nem as boas sacadas visuais evitam a apatia e o aborrecimento em meio as tramoias de espécies humanas e caninas, aqui. Parece que todo cineasta precisa ter um mau exemplo da sua visão no currículo, e é uma pena Anderson não ser uma exceção.

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  • Crítica | Três Anúncios Para um Crime

    Crítica | Três Anúncios Para um Crime

    A impunidade diante de um sistema policial sempre injusto e parcial às condições classicistas e raciais de um povo são o tema principais que movem uma mãe em busca da famosa justiça com as próprias mãos em Três Anúncios Para Um Crime. Destacando o peso da memória de sua filha estuprada e morta, cuja investigação foi encerrada pela polícia local. É nessa situação difícil que a mãe coloca três anúncios na cidade, em cada um deles pedindo explicações sobre o que acontecerá agora, caso aconteça, com os criminosos protegidos sob a aparente égide das leis do Missouri. Uma ação inconformada que simboliza o codinome pelo qual o estado é mais conhecido: The Show Me State! (Estado do Prove-me!), ou seja, não é lá que um bando de policiais bundões iriam tentar fingir que está tudo normal, abafar um caso de grave feminicídio jovem para manter a normatividade pública.

    Outra novidade: Dramas como esse exibido, em que a protagonista enfrenta bravamente fora (e dentro) de casa, em  um compêndio de cenas às vezes hilárias e outras bastante pesadas, são situações que ocorrem todos os dias em diversos lugares de violência, inclusive com maior índice de violência do que aquela visto na película, como nos atuais estados da Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, onde a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado por, bem, ser negro. Num mapa de violência muito além do que qualquer mãe, mesmo com cem filhos, pudesse suportar. Ao traçarmos panoramas desta magnitude, vemos como é urgente o debate da violência seja pela mídia e instituições de segurança pública que sempre abafam nossos genocídios, seja pelas plataformas modernas que podemos usar para contextualizar o problema e buscar força para soluções que só chegam, teoricamente, de quatro em quatro anos.

    O cineasta Martin McDonagh, vindo de comédias de humor negro como Na Mira do Chefe, conseguiu relativamente entender e traduzir, na forma de personagens, essa aflição social vivida por todas as tribos nem tão civilizadas assim. Uma angústia por isonomia, fazendo a releitura da vida real conforme uma visão mais leve e com muita influência do cinema dos irmãos Coen, desenvolvendo com boa sustentamento um víes que muitos julgam como ofensivo ou de mal gosto: ironizar situações extremamente pesadas por si só.

    Ao longo da projeção, nota-se como Três Anúncios para um Crime é um filme indeciso. Não sobre o que mostra, mas como expõe certos desdobramentos básicos, como escolher se é enfim um filme de situações, ou de personagens tão curiosos quanto. O diretor parece ter noção desse desafio, mas ao tentar equilibrar a força das suas intenções pessoais, enquanto autor fazendo cinema autoral pra premiações anuais, e a força natural de um enredo que incluiu casos de barbárie contra uma jovem mulher, e por conseguinte com sua instituição familiar, falha por não achar uma coerência particular ao conto de uma mãe contra Deus, o mundo e a realidade deste.

    O autor, sendo corajoso, tenta abraçar a sociedade num projeto aberto a tanto, contando com bons agentes no enredo em ordem de esclarecer suas mensagens principais (O xerife de Woody Harrelson resume tudo aquilo que o filme expressa, sendo o elemento personificado de uma racionalização sobre tudo), mas por sua clara inexperiência com um material rico de significados, e também pela falta de sensibilidade na composição e no manejo dessa realidade mencionada antes, fica claro que a apropriação de um mundo de relações e valores cada vez mais obscurecidos e labirínticos, devido a aparente impunidade e revolta dos  cidadãos perante a justiça mundana, resulta numa indecisão significativa que atrapalha a execução da obra, refletindo num filme incoerente e possivelmente fragilizado por reflexões posteriores advindas dele – as quais certamente surgirão por parte de vários espectadores, exibições afora.

    Mesmo assim, desequilibrado entre seus fatores, a produção é uma dessas que, por mais formulado que seja para o Oscar, ainda consegue ser gostoso de se assistir (algumas soluções visuais são boas e mostram o domínio da iconografia que existe em McDonagh), a ponto desse mergulho narrativo, tipicamente estadunidense, e repleto de problemas universais, beirar certa diversão reflexiva. E sobre a atuação de Frances McDormand aqui? Quase duas horas de deleite total. Inestimável.

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  • Filmografia Comentada: Os Irmãos Coen – Parte 2

    Filmografia Comentada: Os Irmãos Coen – Parte 2

    De Gosto de Sangue a Inside Llewyn Davis, uma análise geral e não-datada sobre as diretrizes da obra de Joel e Ethan Coen. Da parceria primordial com Sam Raimi a dois lugares cativos nas expectativas de crítica e público, feito mais que raro, senão raríssimo. Suas obras são trabalhadas com mãos de pelica juntamente a todas as possibilidades do cinema, em seu estado humilde, para apostar em temas ricos, intentando criar algo inédito, como que com o ímpeto de um fracassado que aposta tudo na única chance de sua vida.

    A moral e a força dessas obras vêm em forma de lenta infiltração atrás da parede da sala, apesar da rápida duração, geralmente, das mesmas. Em um punhado de entrevistas dedicadas a dissecar o que está por trás dos estímulos da filmografia vigente, os cineastas não cedem a surtos didáticos sobre seu caminho no cinema, carregado de marcos em dobro.

    O Homem que Não Estava Lá(2001)

    O expressionismo alemão que não se mostra herdeiro das consequências do passado, mas de uma irrevogável essência dúbia e ambígua da composição do mundo surreal desses realizadores, corajosos por experimentar de tudo, um pouco; formados na fórmula de como se sustentar na corda bamba da criatividade. As sombras do interior de um homem expostas nas calçadas no contra plongée de um enquadramento, na possibilidade do filme ser mudo, sem carência de pantomima, na caricatura de uma história contida, prestes a explodir a qualquer segundo como um dínamo desconfiado. Até onde pode se estender a luz nas sombras do mero ser, quiçá os domínios da técnica numa produção com coração e possibilidade de submersão, além do visual. O Homem Que Não Estava Lá é um convite para o espectador ter a responsabilidade de sentir a história separadamente ao belíssimo arranjo e aquisição do fotógrafo Roger Deakins, o oposto do que as produções bilionárias de Hollywood tentam evocar. É como se os irmãos, através de cada frame e close facial do ator Billy Bob Thornton, levassem o público pelas mãos por um campo já arado, esperando uma semeadura de consciência para algo poder ser colhido dali. É claro que o potencial poético do filme não é de todo renegado, mas desde que a estrutura dialoga em primeira e terceira pessoa, o que é unilateral nos filmes de Joel e Ethan não tem vez.

    O Amor Custa Caro (2003)

    Crises existenciais sempre foram inerentes aos Coen, e aqui, em plena era da infinitamente atrasada igualdade entre os sexos, eles homogeneízam em uma inusitada paleta de cores quentes o que há de bom e ruim no interior humano, na fronteira entre o distinguível e as miragens da neblina moral, no caso, existencial. A ênfase às contradições, revogáveis vistas do lado de fora, da natureza do homem e da mulher são colocadas no microscópio conhecido por Cinema, imagens e sons novamente sob o prisma da interpretação variável. A começar por ser boêmio e não menos que simbólico, há alguns “novamentes” aqui, seja a repetida parceria com Thornton e Clooney ou o raro esforço por não serem tão óbvios no tratamento de um contexto pré-montado, há mais no sorriso de George Clooney e no vermelho de Catherine Zeta-Jones do que sonha nossa vã filosofia. Como nós aceitamos ser guiados por dois seres desprezíveis é cortesia nossa, só nossa, nascida do simples ímpeto de se envolver com uma boa história, humilde sem demais alegorias no fluxo de ideias velhas bem retocadas, num cenário de roupagens e vocabulários requentados; poucos podem ser culpados por tentar a nobre arte da revitalização clássica.

    Matadores de Velhinha (2004)

    O humor universal é o que há de mais caro no gênero. Tudo se assemelha em âmbito cultural e de repente a satisfação se esvai em prol da sede pelo original. Quase não há espaço para a inovação nessa questão, a menos que essa seja obtida por legítimos punhos de aço; um empurrãozinho da sorte, aliás, não faz mal a ninguém. Só nos resta ser o gato à margem da ponte, na cena derradeira de Matadores de Velhinha, filme que se recusa a ir ou a voltar no espaço-tempo: Vaga nesta filmografia como um espectro do que ficou na vontade, e do que os Coen poderiam ter sido na pior instância. O maior risco intelectual dos Coen se concretizou em escorregão, convertido aqui em plena irresponsabilidade no material final: É lugar comum, é a espreguiçada que se dá ao acordar no domingo de manhã. Equívoco que todo cineasta merece e faz bem de cometer para se mostrar hábil o bastante de espantar o pó e seguir de cabeça erguida adiante.

    Onde os Fracos Não Têm Vez (2007)

    E seguiram. Quando um(a) artista, no sentido amplo do termo, chega no auge do exercício almejado com unhas e dentes, ele(a) retorna talvez injustamente ao ponto de partida, pois sente que foi naquele ponto onde sua autenticidade falou mais alto, gritou e berrou ao mundo. Onde os Fracos Não Têm Vez é uma constatação rara que não tem espaço para nada mais do que a maturidade absoluta no ofício do realizador, este que arrisca toda a reputação até aqui conquistada para fazer o que é preciso dentro e fora da conjetura que se equilibra para não arredar o pé, com ou sem esforço. Tipo de peça que toda filmografia deve ter, é o currículo dos Coen falando lado a lado com a história árida e que casa mais que perfeitamente com os fundamentos dos irmãos, na hora certa e com o material certo. Estimulante a qualquer profissional da área, nota-se que, através dos paradoxos psicológicos e do desenvolvimento harmonioso do mosaico de sensações a ser desembrulhado, conforme a projeção se encarrega do próprio desfecho, a adaptação de McCarthy é a mais notável evolução moral desta dupla de mentes. Sua maior proeza extraestrutural é ser denso enquanto flexível, aberto a todo o tipo de interpretação a quem acompanha o cão (Tommy Lee Jones) perseguir o gato (Javier Bardem), que persegue o rato (Josh Brolin) e rata (Kelly Macdonald). De câmera intimista num mundo desesperado por lógica, intenções se desenham em terreno abstrato diante dos olhos; um manifesto imprevisível e amargo contra a violência e a favor do que pode ser ridículo nela. Os irmãos aqui assumem a figura de dois palhaços tristes que sempre nos fizeram rir com signos derivados de tiros a queima roupa e sangue sobre carne, se posicionando desta vez na lateral oposta do mesmo, sem máscaras ou maquiagem, acerca de uma modernidade ainda deficiente de humanidade. Se eles não conseguiram ser pretensiosos aqui na abordagem, por mais ativa que seja, eles certamente não mais poderão ser, pois sem o habitual humor negro, qualquer um morreria sufocado assistindo Onde os Fracos Não Têm Vez.

    Queime Depois de Ler (2008)

    Do veterano roteirista Marshall Brickman: “A mensagem do filme não pode estar no diálogo”, e para quem não tem ideia de onde mais poderia estar, os filmes desses instáveis irmãos chegam a ser uma boa resposta. Infelizmente, sendo uma resposta reflexiva para alguns, fato é que Queime Depois de Ler, dotado de um elenco estelar, faz parte do que já pode ser analisado como a segunda fase dos Coen: A fase que eles não precisam mais provar nada a ninguém, quando o motor do carro para de ranger após subir a colina e chegar ao topo do planalto. É possível descansar nessa hora, esticar as pernas e deixar rolar tudo o que o desejo assim apontar. Instáveis, porém incansáveis, o céu não é o limite para quem anda com a cabeça nas nuvens, e à medida que a câmera desce na abertura do décimo quarto filme da dupla rumo ao foco no teto de uma instalação governamental em Washington, Estados Unidos, é como se o tempo tivesse parado e aquelas comédias, dos tempos de Arizona Nunca Mais, nunca tivessem saído do lugar para alçar voos mais altos. Premissa claramente iniciada do zero, um filme interessante de corroer as bases, morder os princípios ao longo da projeção, por lá estar contido um punhado de estruturas submersas, à tona aos poucos: Um strip-tease ofertado pelas toneladas de relações humanas trágicas apresentadas, terrivelmente familiares para muitos de nós, e em constante impacto quase cármico. Um círculo social de diálogos subversivos vindos de condições, apenas e, sobretudo, masoquistas por excelência. A obra é o picolé de limão mais ácido no dia de verão mais quente, conquistando quem vive a vida real e acha graça nos imprevistos irresistíveis e contínuos. Como Cartola já cantou: “Rir, pra não chorar”. É a vida.

    Um Homem Sério (2009)

    Uma rara metalinguagem não-admitida. Por mais abstratas que sejam suas cognições, Um Homem Sério é um antifilme onde os Coen brincam de ser Deus e se fazem ilegíveis, portanto. O excesso de subjetividade é totalmente proposital, e entre fenômenos naturais improváveis e a lógica matemática que também não chega a lugar nenhum, os irmãos assumem a ironia de o cineasta ser capaz de criar seus mundos, mantê-los e destruí-los quando e como bem quiser, seja através de um divórcio ou de um furacão geológico. Indo além do masoquismo e sendo tão imparcial quanto as constelações nos são, Um Homem Sério não parte mais do pressuposto artístico de investigar os mistérios da vida, mas passa a aceitá-los sem a pretensão de entendê-los, como sugere um personagem em devido momento quando a força do que vem a ser dispensável pontua qualquer julgamento, cético ou não, agnóstico ou não, quanto a confusão que é provável de se formar da abrangência da produção em relação ao tudo e ao nada. Os rostos interrogatórios de todas as figuras no filme promovem signos indecifráveis, embora para com a dupla de cineastas, sempre serenos e donos das verdades que não aceitam compartilhar, no caso, os rabinos desta história que olha para si mesmo e rejeita um final, pois é um retrato do ciclo da vida que só termina quando a montagem exibe os créditos finais e tudo fica escuro, na técnica do fade out. Filosófico sem levantar bandeiras, e bem sucedido enquanto amplo em torno de embalagens melancólicas, como projetos cinematográficos no início foram idealizados a ser, aqui os Coen riem baixinho da vida com as mãos na frente da boca, após gargalharem do caos existencial em Queime Depois de Ler. Logo, a filmografia desses irmãos tem humor negro próprio, caso seja procurado um sentido para cada filme existir.

    Bravura Indômita (2010)

    Silenciar as impressões dos Coen quanto a um gênero não funciona com eles. É tentador imaginar os irmãos na premissa de um terror a seus moldes, assim como era um western visto a temperatura e o fluxo de calor que suas produções são submetidas, de vez em quando, na direção que o gênero imortalizado por LeoneFord e Hawks era inevitável, em uma visão senão mais próxima de Sam Peckinpah, é verdade, se esse fosse adepto de Proust. Se de estereótipos se faz o gênero, os irmãos se aproveitam disso e mostram a jornada da vida através de quem vai, e só não ignora o cenário devido à beleza das pradarias e do céu do meio-oeste dos Estados Unidos captados pela câmera de Roger Deakins, mais uma vez na sua melhor parceria com a dupla criadora. Metáfora sobre a coragem do “fazer humano” reflexiva e caricatural em suas causas, e seus efeitos. O rosto deformado de Jeff Bridges, a bravura cega da jovem figura de Hailee Steinfeld e, principalmente, a ineficiência do personagem de Matt Damon apontam para o fim de um jeito seco, sem conclusões, aqui substituídas pela, artisticamente falando, analogia moral de se realizar a arte que reúne as outras, o cinema, da concepção notória do movimento com ou sem final feliz, tanto faz, na ubiquidade do invólucro narrativo aqui presente até a última cena. Toda a beleza fotografada indica qual beleza? Uma beleza que não se pode ver, apenas ouvida, quiçá pela força dos diálogos, os olhares que dizem tanto? Daí a principal indagação, de dentro pra fora, no frescor da nobre odisseia para prender um bandido. De uma mera vaidade surge a obra mais sábia e onisciente de seu poder de persuadir o espectador desde Onde os Fracos Não Têm Vez, a partir do momento que retira a bravura do título da humildade com que tudo nos é configurado, sem pressa na familiar esquematização cênica dos irmãos que quase nos permite ver seus filmes com nossas avós ao lado, numa dramatização econômica e cirurgicamente precisa, não mais que satisfatória; uma máquina que chega com o manual necessário, porém, obviamente, escrito em uma língua que só as emoções sabem falar. No dia mais escuro, quando os Coen se tornarem objetivos em suas razões então deturpadas, nada mais poderá fazer sentido.

    Inside Llewyn Davis: A Balada de um Homem Comum (2013)

    O folk de Joan BaezDave Van Rock e Bob Dylan é o ritmo que melhor casa com o ritmo dos Coen, se tornando irresistível de representar; o frenesi de discos como The Folkways Years e Highway 61 Revisited exemplificam perfeitamente a semelhança ideológica nas intenções conjuradas em mensagens sociais (e atemporais, como as do folk), oriundas da desconexão com o que e quem essas mensagens pretendem tocar. O músico Llewyn Davis de decadente e ascendente social não tem nada, é apenas um nômade feito com pernas incansáveis, junto a seus sapatos surrados, violão e cabelos despenteados, a materialização do espírito musical em pauta, de uma geração e de um artista. No primeiro musical convencional dirigido em dobro pelos Coen, a predominância do tempo presente é mais uma vez redigida com gosto, uma espécie de limpeza de alma, do poder que a música empresta ao cinema quando esse se habilita em aperfeiçoar melodia com o audiovisual sem perder fatores de fidelidade. Retratar o som em nome da expressão não verbal que A Balada de um Homem Comum termina por ser é tarefa árdua, que aqui parece ser das mais simples, tímida, mas masoquista até a medula. O foco dos diretores continua sendo a potencialidade do que é retratado, num processo de destilação vertiginosa no conteúdo da história, um descobrimento leve do que pode vir a ser – sempre no tempo presente já mencionado – e um polimento do interesse bruto do público. Os Coen aqui assumem que suas zonas de conforto são amplas e seus domínios, largos, e há ainda muito a que se agarrar e discursar em prol daquela visão 360° que eles têm sobre seu terreno, e nos querem fazer ter também.

  • Filmografia Comentada: Os Irmãos Coen – Parte 1

    Filmografia Comentada: Os Irmãos Coen – Parte 1

    De Gosto de Sangue a Inside Llewyn Davis, uma análise geral e não-datada sobre as diretrizes da obra de Joel e Ethan Coen. Da parceria primordial com Sam Raimi a dois lugares cativos nas expectativas de crítica e público, feito mais que raro, senão raríssimo. Suas obras são trabalhadas com mãos de pelica juntamente a todas as possibilidades do cinema, em seu estado humilde, para apostar em temas ricos, intentando criar algo inédito, como que com o ímpeto de um fracassado que aposta tudo na única chance de sua vida.

    A moral e a força dessas obras vêm em forma de lenta infiltração atrás da parede da sala, apesar da rápida duração, geralmente, das mesmas. Em um punhado de entrevistas dedicadas a dissecar o que está por trás dos estímulos da filmografia vigente, os cineastas não cedem a surtos didáticos sobre seu caminho no cinema, carregado de marcos em dobro.

    Gosto de Sangue (1985)

    É o gatilho elencado por toda a cinefilia acumulada antes do primeiro projeto de quem é aspirante a artista e não sabe o que é ser um, mas sabe que é. Gosto de Sangue é uma barca de sushi de boa parte do que já foi produzido no gênero policial, seja das influências das fantásticas décadas de 60 e 70, ainda que oriundas do gênero noir, aqui tudo revisitado, à tona mais uma vez, sem preconceitos ou pudores através de uma visão particular de cinema, em notório, ainda sentindo a necessidade de evolução gradual. No primeiro lance é costumeiro somar a inexperiência do(s) realizador(s) diante daquele gostinho de quero mais, afinal nem todos se chamam Orson Welles ou John Houston (ambos, curiosamente, iniciaram seus passos ao rol das lendas no mesmo ano, 1941). Contudo, em Gosto de Sangue, os irmãos compram a briga dos mais exigentes e tentam assumir calmamente uma maturidade a ser comprovada, jogando com elementos que viriam determinar o “ao longo” da carreira; humor dramático, um constante drama irônico com o humor trágico dos laços humanos (o trágico aqui é literal), e uma violência doméstica indomesticável, satírica e inesperada, cada vez mais requintada daqui em diante. A quem tem olhos de lince, a história apoiada nos conflitos expostos da persona de Frances McDormand já apontava polos distintos enquanto únicos no cenário audiovisual do meio dos anos 80, povoados de inúmeros nortes, é verdade… Todo filme é uma odisseia indiscutível a quem o faz, que seja Ulysses então a melhor analogia a qualquer filme prematuro e experimental.

    Arizona Nunca Mais (1987)

    Sergio Leone imortalizou o homem desconectado da sociedade que vive, sem passado e futuro definidos, lutando para sobreviver no presente. Nicolas Cage se consagrou como a personificação pública do ator desastroso no potencial duvidoso dos filmes que resolve atuar. Antes de protagonizar o cult Coração Selvagem, de David Lynch, Cage, o “melhor pior ator” do mundo, embarcou no mundo das loucuras racionais de Arizona Nunca Mais, a última obra não esquematizada dos Coen, pois corre irresponsável sem críticas sociais, políticas ou artísticas, adiantando o tempo e dando indícios dos quebra cabeças geniais que viriam a seguir, agora com a parceria (nunca reconhecida) de John Goodman. Cheio de momentos impagáveis, Cage faz quiçá outra personificação típica dos irmãos: O desajustado que talha as próprias rugas através dos problemas que não consegue evitar rumo a lugar nenhum, ou melhor: A glória ou a tragédia, sem meios termos. Ponto decisivo na jornada dos cineastas, provando a quem se deixar convencer que sabem ser pop sem vender suas almas no mercado proibido a doutrinas autorais, o que acabou sendo uma verdade, mesmo que, na época, a constatação pareceu ter vindo cedo demais. Aqui, os Coen descobriram que podem ser masoquistas na nutrição de suas crias, e adoraram a satisfação disso!

    Ajuste Final (1990)

    Caso os Coen já tivessem a experiência obtida aqui desde os tempos de Gosto de Sangue, Ajuste Final seria o estopim dos irmãos. Possivelmente, a obra mais pretensiosa dos irmãos, vinda de uma nítida confiança tanto da indústria por eles, quanto deles para eles mesmos. Homenagem explícita a grandes clássicos do gênero que pertence e extravasa com elegância, alternando estilos e funções diferentes de filmagem para uma única proposta com base no cinema de identidade, reflexivo enquanto reflexo do que já foi feito no mural da história da arte. É em Ajuste Final, legítimo “filme de gângster”, em todos os sentidos, que os Coen se mostram de súbito exímios diretores de atores, característica que seria amplamente divulgada pela publicidade oriunda da qualidade de seus trabalhos, não puro marketing. Pop, mas pessoal demais para passar na Tela Quente. Vale uma ressalva: A pretensão aqui se torna positiva através da ambição na escala do projeto, ainda inacessível nos tempos de Gosto. Numa história tipicamente noir, em plena década de 90, o cenário diegético continua avesso a tendências e didatismos falando muito sem dizer especificidades, cebolas em formas de filmes esperando pacientemente o descascar. Além de contar com participações dos amigos Sam Raimi e Steve Buscemi, para quem pergunta o porquê dos Coen terem virado cult, este e o próximo exemplar são as melhores respostas. Eles mereceram.

    Barton Fink: Delírios de Hollywood (1991)

    Há quem diga que em Ajuste Final eles começaram a se levar a sério demais, mas na verdade seu domínio artístico que foi. Viver a vida dependente da promoção artística não é fácil, seja nos subúrbios urbanos ou no cume da montanha de Hollywood. O clímax de Barton Fink sintetiza, por meio de ação, tragédia e conclusão aberta o que é a vida do escritor, do artista que tenta ser um. Os Coen riem da própria desgraça, em um momento que eles podem ser dar a esse luxo sem serem chamados de abusados. O dom de escolher protagonistas indispensáveis segue forte, a soma rica da qualidade dos detalhes simples, a precisão em condensar pequenas ideologias em prática grandiosa sem se apoiar no quilate de superprodução, e o fantástico bom-senso impulsionado pela criatividade pulsante sempre foram exemplares nesta espécie de metalinguagem satírica, no viés da obra do grande Molière. “Eu sou um artista, eu crio mundos na minha cabeça!”, grita a persona introvertida de John Turturro em certo momento, e leva um soco da vida caindo de cara no chão. Quem nunca passou por isso, de qualquer jeito? Todavia, não é só na identificação em âmbito público que Barton Fink se consagra, senão no desnecessário segmento que faz com que Joel e Ethan não precisem se importar em se reinventar, pois têm nas mãos, para todos os estilos, todos os temperos que existem a ser misturados. Eles realmente não precisam se preocupar. Cinema é culinária.

    Na Roda da Fortuna (1994)

    A linha de raciocínio da dupla cineasta continua a mesma: Um personagem que pensa pertencer ao mundo onde permanece por vontade própria, numa metalinguagem sobre o modus operandi da indústria do entretenimento. Em uma entrevista de 2013, os irmãos deixaram claro que não assistem a seus próprios filmes após o cansativo trabalho requerido de pós-produção. Antes disso, o mesmo entrevistador aponta o quão sadio é rever suas produções, dar uma segunda olhada do ponto de vista de quem ainda precisa garimpar os pontos de quem já possui uma visão 360º de tudo. Na Roda da Fortuna inaugura esta prática na filmografia deles, pois é o típico camaleão que se camufla em uma mera diversão ainda que muito bem construída (com estereótipos inofensivos) a quem não está voltado, por exemplo, às vértices que apontam a uma análise capitalista no mercado da publicidade predatória americana – global, hoje em dia. Considerando que seria fácil demais empunhar escudos críticos em um terreno como este, os Coen definitivamente se especializam aqui no que se tornaram mestres nos próximos trabalhos: Polvilhar interrogações onde só poderiam haver pontos finais, ou pior, somente exclamações! Uma aventura descontraída no mundo dos efeitos especiais, o filme segue sendo o de mais fácil acesso dos irmãos, agradável a gregos e troianos em sua proposta de fácil adaptação pública e midiática (é extremamente fácil de imaginar uma montagem teatral à história). Ao mesmo tempo, Na Roda da Fortuna contém a oferta de enxergamos mais do que realmente existe em uma obra – na ótica de Guy Debord, os Coen seriam anarquistas. Graças a Deus.

    Fargo: Uma Comédia de Erros (1996)

    Como sinônimo de atestado de qualidade, no decorrer do balado prêmio Oscar houveram três comédias as quais realmente mereceriam a premiação máxima: Jejum de Amor (1940), de Howard Hawks, Annie Hall (1977), de Woody Allen, e Fargo. Fato é que o gênero ganhou novos fôlegos, relativamente, após a estreia e dissipação das influências dessas três obras vitais para uma revitalização da satiricidade na sétima-arte, até o presente momento, é claro. Ao realizar um produto cínico e lenitivo a todos os males do mundo, os Coen, dupla naturalmente voyeur, que assiste sem se envolver, sabiam que tinham muito a falar, e conscientes do poder da narrativa entre imagens deixaram a história discursar por si mesma, em total exatidão nas segundas, terceiras e quartas intenções implícitas nos matizes de sangue, gelo e implicações sociais, como de praxe. Talvez o melhor verbete para ilustrar Fargo e suas tramas paralelas seja esse, “exatidão”, pois quem o assiste pela primeiríssima vez não se dá conta disso. É como se Jerry Seinfeld parasse de ser um bom menino e tomasse as rédeas do jogo nesta que pode ser considerada peça-chave, ou pelo menos eficiente, no processo de desconstrução criativa que consiste na definição crítica de um filme. Uma dica: A neblina que abre o sexto filme dos Coen esconde exatamente o que é sentido até o final, mas muito mais do que toda a magnitude que já foi mostrada.

    O Grande Lebowski (1998)

    Um estudo duplo de personagens que só poderia ser tramado pela mente duplicada dos cineastas, aqui encarnando as figuras icônicas de Jeff Bridges e Goodman num tour de force do cinema independente americano com nítidos ares predominantes de um monopólio libertador, sob o manto da criatividade, resvalando no ato vulgar da libertinagem, por pouco. Tudo cresce ao redor da colcha de retalhos desenvolvida, como se a pretensão germinasse em solo fértil a tanto e fosse tão bem cultivada quanto poderia ser. Os Coen continuam rindo de seus propósitos, e chamam todos para rir junto desta vez. O Grande Lebowski é um manifesto que acontecerá mais vezes na história do cinema, e cada um será oriundo da representação de uma geração que envelhece, finalmente, e quer ver suas representações temporais retratadas na arte do enquadramento. Isso, sem esquecer-se do gosto agridoce da ironia que vem da reprodução de certos elementos atemporais, como o Jesus Quintana de John Turturro, de longe a criação mais nonsense dos realizadores. De descobrimento, crítica e análise o filme não tem nada, além do masoquismo inseparável do DNA dos Coen: É um puro acerto de contas com o espírito de uma época, sem um pingo de ego na mistura, “but well, it’s just like, my opinion, man”.

    E Aí, Meu Irmão, Cadê Você (2000)

    A filosofia sensorial sóbria dos irmãos, cultivada desde os idos da Universidade de Cinema de NY, perturba com êxito o marinheiro de primeira viagem em águas serenas de tubarões invisíveis, mas há o que falar quem essas águas ainda faz afundar e revisitar, logo após sobreviver do último mergulho. Logo, E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? segue como um tiro pela culatra, em forma mais de ensaio que um verdadeiro filme dos Coen, nos moldes tradicionais da filmografia vigente. Ao adaptar o intrincado e vasto poema de Homero, fica a impressão de tentativa válida, contudo jamais páreo para os outros trabalhos da dupla. Os irmãos compreenderam que o que tinham em mãos era uma metáfora com suas criações, e simplificaram em suas decisões o material original na forma de uma belíssima fotografia que salta aos olhos, e nas expressões faciais conflituosas, basicamente, do trio de condutores deste “road-movie” frio, incomunicável nas suas ondas de sintonia que se chocam simultaneamente. Uma obra que tem vergonha de ser tudo o que poderia ser, de emoções abafadas por uma espécie de legitimidade que não chega a lugar nenhum em belos compostos cênicos, como fragmentos de uma contradição. O aperfeiçoamento prático da sabedoria pessoal dos contadores da história, todavia, são tão legíveis quanto o instinto humano de sobrevivência e de autodestruição, aqui retratados pela visão particular dos Coen, nem tanto, pela primeira vez. Na falta de experiências realmente construtivas no pacote encabeçado por Clooney, Turturro e Tim Blake Nelson, fica na memória uma cena memorável da Ku Klux Klan, e a certeza de que os irmãos Coen entram de vez na sua fase adulta deste ponto em diante.

  • Crítica | Queime Depois de Ler

    Crítica | Queime Depois de Ler

    queime depois de ler

    Após o estrondoso sucesso de uma produção de tom sério como Onde os Fracos Não Têm Vez, a expectativa em relação ao novo filme de Joel e Ethan Coen era grande. Porém, Queime Depois de Ler explora outro universo, mas no mesmo espírito do estilo de comédia de erros e humor negro que consagrou a dupla anteriormente.

    A história começa com o analista Osborne Cox (John Malkovich) sendo demitido da CIA por supostamente abusar do consumo de bebidas alcoólicas. Em uma explosão de raiva, decide utilizar seu profundo conhecimento sobre espionagem para escrever um livro de memórias. No entanto, não contava que sua mulher Katie Cox (Tilda Swinton) fizesse uma cópia de seus arquivos para usá-la contra ele em um processo de divórcio. Katie é amante de Harry Pfarrer (George Clooney), um conhecido da família e agente de segurança, mas mulherengo inveterado. A situação se complica quando o CD com os dados de Cox cai nas mãos da dupla de funcionários atrapalhados de uma academia de ginástica local. Chad (Brad Pitt) e Linda (Frances McDormand) decidem chantagear Cox para ganhar dinheiro em troca das informações, pois Linda está desesperada para pagar por cirurgias plásticas que, segundo ela, definirão sua reinvenção como pessoa.

    A partir desta intrincada rede de pessoas totalmente diferentes, os Coen vão construindo aos poucos o universo de suas relações. Com elementos clássicos dos filmes de espionagem, como a câmera imitando um satélite, ou mesmo em terceira pessoa com cenas de perseguição, o filme também desconstrói os mitos ao redor desse mundo, onde os espiões são geralmente retratados como super-heróis. Em Queime Depois de Ler os agentes são pessoas normais, com casas e famílias, cometem erros enormes e sofrem as consequências.

    Tudo isso é retratado em meio a situações separadas que, ao longo da narrativa, vão se convergindo. Usando a comédia de erros, a estrutura clássica da dupla em que cada dificuldade gera uma outra ainda maior, contribui-se para a catarse final, onde pouco faz sentido para cada personagem separadamente. Junto a isso, são inseridos vários toques de humor negro de forma a ridicularizar ainda mais a situação absurda de cada personagem, todos geralmente aparentando seriedade e profissionalismo, mas escondendo problemas reais. Esse fato é demonstrado claramente através do personagem de McDormand: Linda Litzke, tão preocupada com suas cirurgias e como elas irão salvar sua autoestima, chega ao ponto de tentar vender segredos de Estado para a Embaixada Russa.

    O elenco é também outro ponto forte do filme. As atuações exageradas de personagens à beira de um ataque de nervos garantem situações hilárias. Brad Pitt, em uma de suas melhores interpretações como Chad, segura grande parte desse humor ao retratar algo como um personal trainer inconsequente e que se acha genial. Malkovich também interpreta de forma excelente a figura do cada vez mais neurótico Cox, assim como Clooney, que começa se passando pelo sempre profissional e seguro de si Harry Pfarrer, mas que, aos poucos, revela-se exatamente o contrário.

    Apesar de todos os elementos positivos, falta a Queime Depois de Ler uma certa empatia que engaje o espectador a acompanhar a trama de uma forma menos cínica, pois o cinismo e sarcasmo exagerados dos personagens e da história acabam por contaminar de forma negativa o filme, deixando-o muito plano. Isso, apesar de estar totalmente de acordo com a proposta, gera falta de conexão com a história e seus personagens. Se em Fargo a tonalidade monocromática da neve ajuda na composição da película, aqui, a mesma escolha atrapalha.

    Como resultado final, Queime Depois de Ler garante risadas pelas situações absurdas geradas. A forma com que os acontecimentos são resolvidos pelos personagens é milimetricamente calculada e estilizada com o humor característico dos Coen. No entanto, falta o gancho emocional que liga o espectador ao filme, tornando o trabalho quase que dispensável perto de outros da dupla, como Fargo e Onde os Fracos Não Têm Vez. O tom sério da obra impede que a interpretemos como pura comédia nonsense, algo que funciona em O Grande Lebowski, garantindo a sua qualidade. E a comédia está sempre no mesmo tom, raramente saindo da linha a ponto de causar o impacto necessário no espectador, que apesar de se divertir, sairá do filme praticamente da mesma maneira que entrou.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Terra Prometida

    Crítica | Terra Prometida

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    Terceira parceria de Gus Van Sant na direção, com Matt Damon nos roteiros, dessa vez sem os irmãos Affleck como fora em Gênio Indomável e Gerry, o guião é assinado em conjunto a outro ator, John Krasinski e trata de um personagem reticente quanto aos rumos que sua carreira está tomando, especialmente porque seu trabalho passa por tentar vender uma proposta a uma cidade interiorana, que o faz lembrar em muitos aspectos a sua antiga vida no campo.

    Steve Butler, Damon, acompanhado de Sue, Frances McDormand, vai até um cidade interiorana tentar convencer a população de que a instalação de uma exploradora de Gás Natural seria bom para a região, usando o tacanho argumento – suficiente para alguns dos residentes – de que a exploração tornaria os moradores em pessoas ricas. O plano parece ir para frente, até a intervenção de Frank Yates, Hal Holbrook, um professor de ensino médio que esconde um background de alto gabarito e tenta organizar um foco de resistência, que mais tarde, “parece” ser engrossada pelo esforço de Dustin Noble, um ambientalista que busca alertar a cidade para não repetir os erros de outros tantos lugares explorados pelo grupo Global. Frank jamais admitira qualquer união ou parceria com Noble, talvez demonstrando seu poder de observação e semi-onisciência, a personagem de Holbrook serve como catalisador do lado bom da consciência de Steve, sem dúvida alguma as mudanças ocasionadas na vida dele partiram primeiro do exemplo dele.

    A direção de Gus Van Sant é correta, sem maneirismos de câmera, um autêntico exemplar de narrativa clássica americana, o que fortalece ainda mais o trabalho de atuação de todo o elenco, irretocável para dizer o mínimo.

    O papel que Krasinski faz é o completo inverso do de Damon, pois Dustin finge ser atrapalhado e inseguro para se aproximar dos anseios da população, e literalmente joga para a arquibancada, especialmente quando canta o clássico de Bruce Springsteen, Dancing in the Dark – conteúdo simbólico até demais para sua trajetória no filme. Enquanto Steve parece ser o decidido e auto-suficiente empresário, mas que carece de retórica e repertório, Dustin aparenta ser um idealista preocupadinho com o bem estar geral, mas na verdade possui toda a situação em seu controle absoluto, além, é claro, de ser muito carismático e irônico, características que Butler persegue sempre, sem jamais conseguir alcançar, ao contrário, seu estado permanece o de ingenuidade até o fim. A rivalidade entre os dois é um dos pontos mais altos do filme.

    Steve acabara de receber uma promoção que tanto queria, mas o dilema moral o consome, a todo momento ele busca aceitação e redenção, diante dos outros e de si próprio, inúmeras vezes repete a fala “Eu sou um cara bom!”, além de ter essa qualidade proferida por muitos dos moradores, que sequer o conhecem, mas consideram-no um sujeito legal, apesar de sua profissão escusa. Essa inquietação ocasiona uma virada repentina em sua vida, aparentemente inesperada, mas até óbvia para quem observou suas atitudes do começo ao fim da história.

    A jornada de Steve Butler é de inexorável derrota, o plot-twist faz ele trair seus ideais profissionais em nome do código ético impresso em seu próprio caráter, e responde a indagação presente na fala geral da população: “O que um sujeito bom como você faz num trabalho como esse?”, a resposta é a mais politicamente correta possível e fecha o ciclo redentório de vida de Steve, que passa a enxergar toda a sua carreira e a sua vida sobre uma outra ótica, como uma volta às suas origens, o que torna o produto final um tanto corretamente moralista, mas não chega a ser um incômodo.

  • Crítica | O Homem Que Não Estava Lá

    Crítica | O Homem Que Não Estava Lá

    70 - The Man Who Wasn't There (O Homem Que Não Estava Lá)

    Uma das características mais marcantes dos Irmãos Coen é a homenagem que vez ou outra prestam a gêneros de cinema que os fizeram gostar dessa arte. Em O Homem Que Não Estava Lá, a homenagem é feita ao noir, grande marca do cinema americano dos anos 40, famoso pelo preto e branco, em cidades esfumaçadas, femme fatales e narrações em off feitas geralmente por um detetive que investiga um crime. Praticamente todos estes elementos estão neste filme.

    O filme conta a história de Ed Crane (Billy Bob Thornton) um barbeiro infeliz que vive com sua esposa Doris (Frances McDormand). Ao desconfiar que ela está traindo-o com seu chefe Big Dave (James Gandolfini), Ed passa a planejar uma trama de chantagem contra o amante, a fim de ganhar dinheiro para investir em um negócio que acaba de ter contato com um cliente na barbearia. Mas quando seu plano vai por água abaixo uma série de consequências desagradáveis ocorre, ao melhor estilo dos Coen.

    A fotografia é excelente e eficaz na reconstrução dos EUA da virada da década de 40 para 50, com seus figurinos, carros e até mesmo os maneirismos, como o jeito de fumar, o que praticamente todo o elenco faz exaustivamente. As sequências são todas singulares, com o objetivo de demonstrar o vazio existencial de Ed, que sempre se queixa de não gostar de conversar com ninguém.

    O filme apresenta diálogos e situações interessantes. A construção dos “erros” vai se aprofundando de tal forma que consegue de início prender a atenção do espectador. Quando essa atenção começa a se diluir por conta do ritmo lento da narrativa, um personagem interessante é inserido, que nos atrai de volta a história: O advogado Freddy Riedenschneider (Tony Shalhoub), que misturando conceitos de ciência em um tom quase místico, tenta elaborar uma defesa para o fato de que a mulher de Ed está presa, mas que ninguém sabe que a culpa na verdade é dele.

    O interessante nisso é que nem mesmo Ed parece acreditar ou se importar na ambiguidade moral de sua mulher estar presa por sua culpa. Ele continua agindo como sempre agiu, como se fosse programado por um código externo de ética, tomando decisões de acordo com o que deveria ser certo. Porém, quando ele se toca que desperdiçou a vida fugindo de contato humano, é tarde demais. Todo o seu mundo artificial já havia desmoronado, e o conto clássico de crime e castigo, por vias tortas, já havia se concluído.

    Apesar de nuances interessantes acerca das motivações dos personagens e das discussões morais a respeito de suas atitudes, o filme não chega a envolver emocionalmente. Sentimos-nos ao seu final mais ou menos como Ed, acompanhando a história e os personagens sem nos envolvermos com eles, somente por obrigação. Acho difícil acreditar que esse era o objetivo dos Coen com o filme, que apesar de sua precisão técnica e de elenco, falha em gerar um envolvimento real com a história.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Gosto de Sangue

    Crítica | Gosto de Sangue

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    Primeiro longa dos irmãos Coen, com roteiro de ambos e Joel na direção, Gosto de Sangue (Blood Simple) é um filme de 1984, praticamente ignorado no Brasil e relativamente desconhecido nos EUA, mas que começa a ser descoberto e cultuado pelo recente sucesso de Onde os Fracos Não Têm Vez e Bravura Indômita.

    O filme conta a história de um dono de bar, Marty (Dan Hedaya), casado com Abby (Frances McDormand), que por sua vez, tem um relacionamento extraconjugal com o funcionário do bar, Ray (John Getz). Com um clima noir e cenas referenciais a clássicos desse gênero, que passam também por Hitchcock, o filme se estabelece desde muito cedo como um suspense, mas tendo também leves toques de humor negro. Aqui ainda podemos ver vários elementos da narrativa dos Coen que serão melhor desenvolvidos e utilizados nos próximos filmes, como posicionamentos de câmeras estáticos e/ou muito lentos, que escondem certos detalhes, trabalhando com o som a fim de criar uma expectativa maior, diálogos (que muitas vezes criam tensão) com sotaques e palavreados locais, closes, etc.

    Por ser um baixo orçamento e um filme de estréia, a qualidade técnica e narrativa impressiona. Claro que por vezes o som parece ficar abafado, mas nada que comprometa a qualidade geral do filme. A cena onde o assassino fica preso com a faca na mão na janela é um exemplo de construção de tensão, onde acompanhamos lentamente a progressão dos eventos com uma apreensão quase como da vítima, que naquele instante não nos dá nenhuma pista a respeito do que está fazendo e o que irá fazer em breve.

    O tom escuro, fatalístico e irônico de uma história trágica é outro ponto positivo, pois os atos dos protagonistas nos chocam a todo instante, mas a sucessão de acontecimentos que fazem esses atos escalarem em uma jornada de horror dá a história o traço de “comédia de erros”, que pautará boa parte dos filmes da dupla nos anos seguintes, sendo cada vez melhor elaborada, como em Fargo.

    Em épocas onde superproduções atingem orçamentos estratosféricos, com histórias de 180 minutos tediosas e com personagens rasos, é bom descobrir obras menores como essa, que passam desapercebidas, mas que nos fazem renovar a fé em um cinema de qualidade, com algo a dizer além do óbvio.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Fargo

    Crítica | Fargo

    fargo

    Faz tempo que tenho a mania de ver as filmografias de grandes diretorias na ordem, e recentemente quis ver a de Joel e Ethan Coen. Porém, com eles resolvi começar pelo meio. O que me fez pular a ordem cronológica de filmes dos irmãos Coen e começar por Fargo foi ter lido que eles colocam um aviso no início dizendo que a história foi baseada em um acontecimento real, quando na verdade não foi. Desde quando li isso, já fiquei intrigado, pois adoro subversões desse tipo, sem compromisso nenhum com a realidade. No entanto, apesar de não ter esse compromisso com a nossa realidade, Fargo tem compromisso com sua própria realidade, como todo grande filme deve ter. E, nesse aspecto, entrega tudo o que promete.

    O eixo da história deve ser familiar a todos. William H. Macy interpreta Jerry Lundegaard, um pai de família desesperado para arrumar dinheiro, pois estaria com problemas financeiros (o que se desenrolará em outra história posteriormente). Então, contrata dois bandidos, Grimsrud (Peter Stormare) e Showalter (Steve Buscemi) para sequestrarem sua mulher e assim dividirem o dinheiro do resgate, que seria pago pelo sogro rico e extremamente crítico em relação a Jerry. No entanto, uma sucessão de pequenos acontecimentos vai mudando a história, que vai aumentando e tomando proporções muito maiores do que as planejadas por Jerry, pois, na fuga, os bandidos matam três pessoas na estrada, sendo um policial e dois viajantes que deram azar de estarem ali naquela hora.

    Os assassinatos acontecem na pequena cidade do interior, no norte dos EUA, onde a policial Marge Gunderson (Frances McDormand) é encarregada de investigar o crime, mesmo estando grávida de sete meses. E é quando Marge entra na história que tudo passa a ficar ainda mais intrigante e emocionante. Sem deixar de passar a delicadeza e bondade de uma mulher do interior, Marge passa a firmeza, inteligência e obstinação de uma policial normal, não dos filmes americanos tradicionais, para resolver um crime baseando-se apenas na investigação.

    Conseguimos também ver os detalhes menores, que geralmente não vemos, quando Marge viaja de uma cidade a outra e chega a um hotel, telefonando para a polícia local avisando que chegou, quando estamos habituados a ver simplesmente policiais se teletransportando e estando em cidades diferentes em intervalos de minutos.

    Marge segue os passos dos bandidos e chega até a concessionária de carros administrada por Jerry, que logo começa a dar sinais claros de preocupação. Com uma investigação simples, calma e baseada apenas em instinto e interpretação, Marge vai, cada vez mais, se fortalecendo no filme, mesmo transbordando fragilidade com sua imensa barriga de grávida, o que nos deixa apreensivos em relação ao encontro dela com os sequestradores, que mostram várias vezes seu grau de violência no filme, principalmente no terceiro ato, cuja simplicidade da resolução nos deixa satisfeitos justamente pelo realismo da cena.

    Outro ponto positivo é a paisagem branca da neve do norte dos EUA, cobrindo estradas, ruas e casas. Funciona quase como um personagem à parte ao contrastar a homogeneidade e a paz do branco com o sangue derramado pela violência dos bandidos. No entanto, o forte mesmo do filme está nos diálogos, que emulam os sotaques do interior dos EUA, com palavreado local e frases feitas, dando o toque de humor negro, característico dos Coen, a cenas com potencial dramático intenso. Dessa forma, o principal mérito em seus filmes geralmente é a forma como eles a contam, e não a história em si, por mais que a história seja boa.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Moonrise Kingdom

    Crítica | Moonrise Kingdom

    Wes Anderson é conhecido por seus personagens estranhos e histórias um tanto surreais que, ao serem embaladas em uma direção de arte cuidadosa, constroem universos que parecem funcionar no limite entre a realidade e uma espécie de conto de fadas. Em Moonrise Kingdom, seu filme mais recente, essas características aparecem com clareza e montam um filme leve, divertido e extremamente autoral.

    O filme se passa em uma minúscula ilha na costa leste dos Estados Unidos, nos anos 60, onde vivem Suzy e Sam, uma “menina problema” e um garoto órfão. Os dois se conhecem por acaso, iniciam uma correspondência e planejam uma fuga através de uma trilha indígena famosa na região.

    Suzy e Sam se encontram por serem desajustados. Ele é órfão e detestado por seus colegas do grupo de escoteiro, ela é a filha problema de uma família “perfeita”, famosa pelas brigas violentas na escola para meninas. No entanto, conforme o filme avança vemos que todos os personagens, dos pais de Suzy ao chefe dos escoteiros, são igualmente desorientados em relação a vida e aos seus papeis no mundo e é Anderson ironiza com precisão esse desajuste entre as expectativas infantis e a desorientação dos adultos.

    Em vários momentos Moonrise Kingdom faz versões em miniaturas de filmes grandiosos: a uma sequência construída exatamente como um filme de guerra, a perseguição com motos de brinquedo a própria fuga que lembra clássicos como Bonnie e Clyde e Monika e o Desejo. Mas Anderson transforma os soldados em escoteiros e um casal de ladrões em duas crianças fugindo de casa, ele fala de pessoas comuns, pequenas e perdidas e do ridículo que as cerca.

    A paleta de cores do filme é toda construída com cores primárias ou pasteis e retoma os mesmos toms que o diretor vem usando desde seus primeiros filmes. Essa escolha, aliada a fotografia lavada, com cara de polaroid, ajudam a deslocar o filme para uma época e um lugar fora do tempo, tornando-o esse conto de fadas torto. O Narrador e a montagem evocam ainda os filmes da Nouvelle Vague, clara referência de Wes Anderson com sua simpatia por anti-heróis e desajustados, mas sempre de forma mais simples e infantil, como se o próprio cinema não merecesse ser levado a sério.

    Dessa forma, Wes Anderson articula os elementos recorrentes de seu cinema com um elenco notável e uma protagonista adorável e carismática para criar um filme que fala de um tema possivelmente dolorido, mas que o faz de forma leve, divertida e irônica. Moonrise Kingdom é irônico em cada imagem e finalmente faz jus ao humor ácido de Wes Anderson, além de ser seu melhor filme desde Os Excêntricos Tenenbaums.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.