Tag: Jason Schwartzman

  • Crítica | Scott Pilgrim Contra o Mundo

    Crítica | Scott Pilgrim Contra o Mundo

    Adaptação de quadrinhos que foi malfadada no quesito bilheteria, Scott Pilgrim Contra o Mundo talvez seja o passo mais pretensioso e grandioso da carreira do cineasta Edgar Wright, ao menos até então, já que contava com participações de muitos atores que ganhariam notoriedade com o passar dos anos, além de também possuir uma necessidade grande de cenas em CGI, caraterística normalmente driblada na parte britânica da carreira do diretor.

    O filme conta a história de Scott (Michael Cera), um jovem de 22 anos, sem muitas perspectivas de futuro, que gasta seu tempo tocando com a sua banda, além de colecionar decepções amorosas, entre elas, uma relação com uma menina que ainda está no colegial. As suas experiências são mostradas como as de um fracassado inveterado, que mal percebe o tempo passar, sensação essa maximizada pelas caricatas (e estilizadas) passagens de tempo que seu diretor escolhe empregar entre uma cena e outra.

    As razões para o insucesso financeiro do longa são até hoje misteriosas. Um dos fatores ditos é que nos quadrinhos Scott Pilgrim, de Bryan Lee O’Malley, as referencias aos videogames podiam ser mais explicitas, enquanto o produto da Universal não poderia mostrar os mesmos easter eggs, em razão de questões envolvendo direitos autorais. Outro motivo levantado é o excesso de cores utilizados nos figurinos e cabelos dos personagens, com tons gritantes, fator que reafirma o clima e a atmosfera camp do produto, e lhe conferem um charme. De certa forma, Wright prevê uma tendência dos futuros blockbusters, e paga pelos pecados medíocres de seus contemporâneos.

    A edição dinâmica e moderna ajuda a aplacar até o que seria um defeito do filme, que é a maratona de dramalhões adolescentes. O caráter lúdico das sequências dos sonhos de Pilgrim envolvendo especialmente sua amada inalcançável, Ramona Flowers (Mary Elizabeth Winstead). Tal ideal o faz enfrentar alguns guardiões, desde suas próprias decisões mal pensadas, assim como alguns de seus ex-namorados. Os embates são estilizados, tanto as lutas quanto as provações que o herói sofre.

    A mistura presente nas piadas é sensacional, em especial quando se coloca em cheque a questão dos vegetarianos serem considerados pessoas evoluídas em comparação com todo o resto – arquétipo esse explorado no personagem de Brandon Routh. As referências a cultura pop também soam afiadas quando se trata de seu personagem, Todd Ingram, principalmente graças as comparações dele com a versão do Azulão que Routh executou, em Superman: O Retorno.

    O fato de Michael Cera exalar um ar de homem patético só acresce ao filme, mesmo que Pilgrim não seja exatamente um fracassado na sua versão original. A escolha por mostra-lo como um loser é acertada, uma vez que abrevia questões como a insegurança enorme que acomete o herói falido. O embate que ele tem com o último dos interesses amorosos de Ramona, Gideon Graves (Jason Schwartzman) é não só ideológico, e mirado na garota ideal, mas serve também ao propósito da jornada de autoconhecimento.

    As lutas entre Scott e os adversários da liga dos ex-namorados de Ramona servem não só para Writght exorcizar seus demônios, podendo finalmente colocar em tela toda sua admiração por produtos pop antigos que normalmente são subestimados – em especial Buffy: A Caça-Vampiros e os filmes de ação dos anos oitenta que se valiam de flashs, cores vibrantes e neon – além é claro de servir ao propósito básico de mostrar a evolução do personagem título, que deixa a tela mais maduro do que era no início. A cafonice de Scott Pilgrim Contra o Mundo é proposital e confere ao filme um charme nostálgico, sendo um belo manifesto de um cineasta que consumia a iconografia visual da TV e cinema durante as décadas de 1980 e 1990.

  • Crítica | Cala a Boca, Philip

    Crítica | Cala a Boca, Philip

    Cala a boca Philip - poster - Zeta Filmes

    Ciente da capacidade de emitir ideias criativas e opiniões, o intelectual – seja ele um escritor, pensador político, entre outros – muitas vezes apoia seu trabalho criativo na reclusão como espaço para externalizar seus pensamentos no papel. Ao mesmo tempo que o desejo de comunicação é intrínseco, há um abismo entre seu bom trabalho profissional e o cotidiano que revela uma personalidade obtusa e, não raro, conflituosa com os próprios pensamentos.

    Dirigido por Alex Ross Perry, cineasta sempre presente em festivais de cinema independente, Cala a Boca, Philip é uma destas representações conflituosas entre o autor e sua obra. Seu personagem-título é indigesto, refletindo um tipo de personalidade comum que transforma o trabalho criativo em uma ilusão superior. Autor prestes a lançar um segundo romance, Phillip Lewis (Jason Schwartzman) é um homem egocêntrico, convicto de seu brilhantismo, que não hesita em afastar qualquer relacionamento de sua vida, desde ex-namoradas e amigos, aos quais faz questão de expor sua raiva e agressão, até sua atual namorada (Elisabeth Ross), da qual se afasta cada vez mais. Sua narrativa é elogiada por um renomado escritor, Ike Zimmerman (Jonathan Pryce), e tais leituras marcam o início de uma amizade.

    A obra, cujo roteiro também é assinado por Ross Perry, mantém a narrativa em off como uma semelhança à literatura, trazendo uma vertente descritiva sobre personagens e seus sentimentos além das imagens. A desconexão das relações atravessa todas as pessoas deste universo, não à toa todas relacionadas com a arte de alguma maneira: literária, fotográfica ou acadêmica.

    O panorama estabelecido intenta destruir a visão positiva e adoradora que se tem popularmente a respeito de intelectuais. Mesmo geniais em sua obra artística, esses seriam falhos como qualquer outro ser humano, e sentem uma solidão inerente que nenhum de seus trabalhos é capaz de aplacar. No papel central, Jason Schwartzman mantém sua característica interpretação deslocada, funcional para um personagem que deixa a vida de lado ao se autointitular escritor. Seu personagem não é empático e reúne características comuns entre intelectuais, como a prepotência e o egocentrismo. Philip é incapaz de conviver com quem não compartilha seu sucesso e seu brilhantismo.

    Mesmo com uma boa reflexão como argumento, o longa-metragem parece incompleto. Os dramas de cada personagem são apresentados com pouco desenvolvimento, retirando parte do fôlego da obra, que acaba caindo na mesma armadilha de seu protagonista: a pretensão de ser brilhante demais sem a consciência de sua própria limitação.

  • Crítica | Grandes Olhos

    Crítica | Grandes Olhos

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    Em plena audiência, diante do juiz e sob o olhar atento dos jurados, uma mulher vai deslizando seu pincel pela tela, imprimindo no espaço em branco traços de melancolia que transbordam dos grandes olhos de um rosto de criança!

    Parece cena de um filme, e o é, na verdade! Mas é também uma cena que retrata a realidade da vida de uma mulher dos anos 50, e marca o emergir de sua liberdade. No entanto, tanto quanto um discurso feminista ou uma evidência de como o papel da mulher, fora dos afazeres domésticos, nada mais era do que uma apagada sombra do marido, Grandes Olhos é quase uma metalinguagem. É uma criação visual (paleta de cores que sussurram e que gritam), orquestrada com sensibilidade, onde o diretor expõe a dualidade de Margaret (silêncio e voz), a qual, por sua vez, se mostra através das expressões dela mesma e do que nos falam os grandes olhos das suas obras.

    Em sua segunda cinebiografia (a primeira foi Ed Wood, de 1994), Tim Burton conta a história da artista plástica Margaret Keane, cujos quadros, com nuances peculiarmente perturbadores, representavam o conjunto de obras mais rentáveis comercialmente das décadas de 1950 e 1960. Ainda que ela e sua filha pudessem usufruir do conforto proporcionado pela venda dos quadros, e das cópias impressas que os popularizaram, era Walter Keane, seu marido, quem recebia os holofotes da fama pelo sucesso das obras, já que induzira sua mulher a assinar com o sobrenome comum aos dois.

    Trancada em seu estúdio, escondida do mundo e mesmo da filha, era no movimento do pincel e no preencher da tela, que Margaret (Amy Adams) desabafava sua frustração e melancolia. A sociedade estabelecia as regras! Artistas do sexo feminino eram colocados à margem, ou sequer percebidos! E Walter (Christoph Waltz), que não mostrava qualquer talento para a pintura, o tinha de sobra para convencer a esposa a curvar-se diante das normas. Mas não para sempre! A angústia que se contorcia em sua alma, ao perceber que lhe eram roubadas suas sensações mais íntimas, refletidas na pintura, resolve rasgar as amarras da submissão, e enfrentar um tribunal para legitimar a autoria das obras.

    Christoph Waltz tem em seu histórico dois brilhantes desempenhos, os quais, sob a direção de Quentin Tarantino, lhe renderam dois troféus no Oscar (e outras premiações) como Melhor Ator Coadjuvante. Quem não se lembra do incrível personagem Landa, em Bastardos Inglórios, e do Dr. King Schultz em Django Livre? Mas permita-me confessar que, ainda que alguns tenham ovacionado a atuação de Waltz em Grandes Olhos, destacando a cena do tribunal, eu o vejo uma tanto caricato, e é inegável que perde a cena para Adams.

    Amy Adams incorporou, com intensidade, uma mulher dos anos 50, cuja alma de artista lhe dá a capacidade de tecer traduções sobre os códigos da vida, mas que se vê transitando entre a coragem em romper padrões sociais e a coragem (sim, eu escrevi “coragem”) em se curvar a eles.

    Não é por acaso que esta atuação lhe rendeu o Globo de Ouro de Melhor Atriz de Filme Musical ou Comédia. No ano anterior, havia ganho também por Trapaça, filme pelo qual também recebeu uma indicação ao Oscar, após outras nomeações ao prêmio da Academia como Melhor Atriz Coadjuvante em Retratos da Vida, Dúvida, O Lutador e O Mestre.

    Talvez, numa primeira impressão, você não reconheça a assinatura de Burton em razão do realismo do filme, em contraste com o tema fantasioso do envolvente Edward Mãos de Tesoura, Batman: O Retorno e Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas, entre outros. Mas perceba como Tim deixa as suas digitais! Se não por outros aspectos, pincelados aqui e ali, elas estão visualmente traçadas nas olheiras escuras das crianças, pintadas por Margaret, numa incrível identificação com a mesma característica constante em tantos outros personagens do diretor, como o tímido Edward, o barbeiro Benjamin Baker, o corajoso Jack Sparrow… Seria isto apenas uma coincidência? E coincidências existem, principalmente em um universo onde cada detalhe, sob a lente da câmera, é minuciosamente escolhido?

    Texto de autoria de Cristina Ribeiro.

  • Crítica | Grandes Olhos

    Crítica | Grandes Olhos

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    Grandes Olhos, novo filme de Tim Burton, é uma autobiografia velada do diretor e ao mesmo tempo o filme com a assinatura menos marcante de Burton. O cineasta, outrora tão profícuo, é frequentemente visto como alguém que se tornou refém de si mesmo e da marca que ele mesmo criou. Desde as participações de Johnny Deep e Helena Bonham Carter em seus filmes, até o uso que faz da estética padrão, tudo é apontado como mais do mesmo, como uma caricatura de si. Sendo assim, a obra nasce com duas grandes oportunidades: discutir o lugar da arte e do artista, e agarrar com unhas e dentes sua assinatura de diretor. Infelizmente, desperdiça ambas cena por cena.

    O filme baseia-se na vida da pintora Margaret Keane (Amy Adams – aqui, subaproveitada) e seu marido, o falso pintor Walter Keane (Chistopher Waltz – magnético como sempre), e na vida daqueles que redefiniram o mercado da arte durante a década de 1950 ao licenciarem seus produtos para estampar todo tipo de coisa. Negados em galerias de arte, e como artistas pela crítica, argumentam em certo momento que a arte não precisa ser elaborada ou sequer ser chamada de arte. Só precisa impactar.

    Um dos pontos mais marcantes de uma obra de sucesso não são suas qualidades, mas sim seu apelo popular. A reação da academia e da crítica profissional então é rapidamente rejeitar aquela obra como arte, aplicando então o rótulo de obra comercial. Não é incomum que esta seja a crítica máxima a uma obra quando esta suscita alguma emoção mais passional. A grande dificuldade de entender o lugar da arte atualmente é que “contemporânea” é um termo esgarçado, pois é capaz de aceitar tudo. Neste ponto, mesmo o pior artista irá tornar-se um grande artista caso explique suas motivações artísticas com argumentos convincentes. Esta situação não é ruim ou degradadora da “verdadeira arte”, mas deixa as coisas mais confusas para aquele que buscar encaixar tudo em gavetas.

    É inevitável neste ponto pensarmos em artistas como Romero Britto e outros que são abominados por chamarem-se artistas, mas estampam mais produtos licenciados do que galerias. Claro que há como defender Britto como artista, mas ele não parece se importar muito com isso, e se mostra feliz nas caixas de lenço de papel. Burton, aqui, assume a mesma postura, já que a forma que encontrou para defender a arte de Margaret não é através de argumentos, mas sim pela exploração de sua meiguice e a contraposição desse seu predicado com a maledicência de seu marido, tão atraente e maldoso quanto o mercado artístico. Sem conseguir comunicar algo de relevante, a película vende a artista sob o mesmo pretexto de suas obras, que é sua fofura, o que acaba por tornar a narrativa um exercício de futilidade. Não à toa, embora a simpatia com a personagem formulada por Adams seja imediata, o que atrai realmente no filme é seu marido. Como grande vendedor que é, vende sua persona falsificada para todos, com eficiência e elegância. E talvez este seja mais um dos pontos fracos do filme, pois escanteia sua Margaret fazendo dela uma mera espectadora de sua própria vida.

    Nos poucos momentos em que foi possível tratar o assunto de forma producente, Burton se desloca do projeto e insere cenas constrangedoramente inverossímeis que acabam por destoar de todo o resto do projeto, como quando um crítico de arte interpretado por Terrence Stamp se digladia com Keane em um jantar, chegando a assumir habilidades sobre-humanas. Outro desperdício foi a tentativa de relacionar suas figuras de grandes olhos com o estado mental de Margaret − que só vale por ser um dos poucos momentos em que vemos características de Burton no filme −, que por não conduzir a narrativa, ou exigir demasiada boa vontade do espectador em buscar o conteúdo semiótico das cenas onde isso ocorre, novamente soa gratuito e fútil, exatamente como tenta negar ser.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | O Grande Hotel Budapeste

    Crítica | O Grande Hotel Budapeste

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    O Cinema de Wes Anderson, sendo a arte antes do artista, é claro, é um corredor de pinturas, uma ida ao museu numa tarde chuvosa onde não há mais nada a se fazer senão apreciar a viagem histórica. O cineasta tem a preferência de centralizar seus mundos enquanto expande os significados deles através de uma simbologia única em nível de identificação universal. Mundos onde todos os personagens são totalmente imprescindíveis à história ao mesmo tempo em que são totalmente desnecessários à narrativa em retalhos: substituíveis e relevantes ao mesmo tempo. O Grande Hotel Budapeste é o Cinema de Jacques Tati e Stanley Kubrick feito para todas as idades e mentalidades. Lindo, matemático, extremamente planejado em planos cênicos milimétricos, mas não é superficial em toda a sua estilização, afinal de contas, apenas por denunciar a beleza existencial do mundo a partir dos valores humanos de cada vida vinculada à teia apresentada.

    Até porque Anderson tem olho clínico e confiança de chamar atores do mais alto nível, assim como semi-desconhecidos, para interpretar figuras icônicas que pertencem a mentes de pessoas como Alan Moore, genial escritor inglês e famoso por sua excentricidade. Logo no começo de Budapeste, percebemos os traços marcantes da filmografia do diretor de Moonrise Kingdom, seja na (ótima) direção de arte, seja na atmosfera visual ou na musicalidade inocente e eclética de sempre. Enfim, temos, ao longo de uma hora e meia de projeção, a desconfiança da releitura artística que o filme vem a ser, na real, muito antes do clímax esperado.

    Releitura devido ao ponto alto da carreira que o cineasta já conseguiu alcançar “por acaso” é onde repousa seu belo e extravagante hotel. Um cume no qual não carece mais provar seus talentos e visão pessoal a mais ninguém, vide a falta de pretensão, de autoestima, e de altos e baixos de uma energia linear e constante ou mesmo de alguma dose de seriedade da história de corre-corre e de amizades inesperadas pelos caminhos. Veredas a partir e muito além dos corredores e escadas sinuosas do edifício homônimo.

    A fusão entre realidade e realidade particular pode ser uma das explicações para definir a arte de cada um; o Cinema, inclusive, o qual muitos chamam de “a arte completa” por ser justamente a fusão da maioria delas. Seja como for, e sem mais delongas, Anderson e seu elenco espetacular – Tilda Swinton aparece 5 minutos depois do início do filme, durante 60 segundos apenas, e é tão impressionante sua participação que a projeção poderia terminar com sua saída e tudo seria maravilhoso do mesmo jeito – defendem a teoria que abre este último parágrafo na aurora de uma realidade particular, a que todos nós aprendemos a amar, cada um à sua maneira, e que muito completa a verdadeira realidade das coisas.

  • Crítica | Walt nos Bastidores de Mary Poppins

    Crítica | Walt nos Bastidores de Mary Poppins

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    Durante 20 anos, Walt Disney (Tom Hanks) tentou adquirir os direitos de Mary Poppins, da escritora australiana P.L. Travers (Emma Thompson), que sempre se recusou a vendê-los receando que Disney fizesse “um de seus desenhos bobos”. Entretanto, a crise financeira faz com que ela tenha que negociar. Desta forma, Travers viaja até os Estados Unidos e passa a trabalhar juntamente com a equipe escolhida por Walt Disney para que Mary Poppins chegue às telas. Minuciosa e com muita má vontade, ela começa a encontrar problemas de todo o tipo. Como o contrato lhe dá o direito de cancelar a cessão dos direitos caso não concorde com a adaptação, Disney e sua equipe precisam aceitar seus caprichos para que a produção saia do papel.

    O título nacional não poderia ser mais impreciso. Provavelmente no intuito de facilitar a vida da maioria dos espectadores que não faz ideia de quem seja Mr. Banks — personagem de Mary Poppins —, conseguiram errar duplamente ao rebatizar o filme. Primeiro porque Walt Disney não é o protagonista, como o título faz pensar; segundo porque não se passa nos bastidores de Mary Poppins, mas sim antes do início de sua produção, mais especificamente durante a escrita do roteiro adaptado. No entanto, esse é o menor dos problemas do filme.

    O excesso de licença poética é, sem dúvida, o maior problema. Ao contrário do que é mostrado, Disney e Travers nunca tiveram um relacionamento amigável. Na realidade se odiavam publicamente, não só antes, mas principalmente após o lançamento do filme — não, Travers não aprovou o resultado final, diferentemente do que o desfecho lacrimoso do filme quer fazer acreditar. Ela odiou o filme e se arrependeu pelo resto da vida por ter cedido os direitos a Disney.

    Tom Hanks encarna o papel de um senhor simpático porém muito diferente da realidade, já que Disney sempre foi conhecido por seu temperamento competitivo, quase hostil. Travers, reconhecidamente uma senhora de temperamento difícil, é retratada como uma solteirona ranzinza e “do contra”, bem menos amarga e intragável do que como definiam seus próprios familiares, e mais humanizada pela interpretação de Emma Thomson. Percebe-se aí o “efeito Disney” dos personagens, minimizando tanto os aspectos negativos de suas personalidades quanto o conflito entre dois temperamentos difíceis.

    As conversas entre Travers, o roteirista Don DaGradi (Bradley Whitford) e os músicos Richard e Robert Sherman (Jason Schwartzman e B.J. Novak) certamente não tiveram o mesmo tom divertido e quase gracioso mostrado no filme. Além disso, o roteiro quer induzir o espectador a acreditar que a intransigência de Travers quanto à cessão dos direitos não se devia às suas reservas quanto à padronização da indústria cinematográfica — a autora não queria que Mary Poppins fosse apenas mais um filme padrão Disney. Com uma quantidade excessiva — e irritante — de flashbacks, o roteiro insiste que sua intransigência tinha algo a ver com um trauma do passado. Os trechos da infância de Travers, que se alternam com sua estadia em Los Angeles, são por vezes confusos e comprometem a fluidez da narrativa, e parecem nitidamente escritos com a intenção de emocionar o público a cada dez minutos.

    Enfim, o filme serve mais como um lembrete de que Mary Poppins está prestes a comemorar 50 anos do que como uma obra comemorativa dessa data, já que essa nova produção não é nem marcante nem memorável.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.

  • Crítica | Huckabees: A Vida é uma Comédia

    Crítica | Huckabees: A Vida é uma Comédia

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    A introdução escolhida para este I Heart Huckabees é um arroubo de insatisfação do ativista ambiental e poeta frustrado Albert Markovski, personagem de Jason Schwartzman, inconformado com a transformação que o pântano vizinho a si sofrera, sendo praticamente dizimado, sobrando uma única rocha – sua insignificância é tão grande que chega a dar pena e não simpatizar com o personagem é praticamente impossível.

    Mais uma vez David O. Russell escolhe um protagonista neurótico e inseguro para ser o herói de sua jornada, mostrando o homem pequeno diante do destino, buscando mais uma vez uma boa razão para existir. Diferente de Procurando Encrenca, onde o personagem principal buscava sua origem, procurando a raiz de sua árvore genealógica, Albert procura a outra ponta de sua vida, tentando entender onde chegaria. A película é ainda mais idílica e surreal que a anterior do realizador, mostrando uma organização que investiga as vicissitudes da vida com uma abordagem lúdica e um tanto nonsense flertando com surrealismo, através de um transe meditativo que eleva a psiquê do paciente a um estágio em que este desconstrói as figuras importantes de sua vida para encontrar a razão de seus problemas.

    A personagem de Naomi Watts é a prova da obsolescência programada do homem dentro do sistema de extremo capitalismo. Ela quase nunca é chamada por seu nome (Dawn Campbell), mas sim por uma alcunha – a voz da Huckabees – mostrando uma demasiada falta de identidade, praticamente inexistente. Seu clamor por atenção é legítimo, já que atrás do sorriso, do corpo perfeito, sem rugas ou imperfeições esconde-se uma alma aflita que vê se avizinhar a velhice e a perda do que a distingue da multidão, sem falar que sua garota propaganda em depressão é algo genial por si só.

    Huckabees fala do mundo corporativo, da impessoalidade que um lugar repleto de empresas que só visam o lucro e de como os homens vivem neste ambiente, perdendo sua individualidade e sendo tratados por meio de estereótipos. Mesmo os ramos que deveriam não se pautar nisto sofrem com competições mil por clientes que deveriam ser únicos e não estereotipados. Artifícios como máquinas de sucção de insegurança e repositores de bons climas mostram o quão mecânico tornou-se o trabalho dos Jaffes. Uma saída plausível seria a junção de Tommy Corn (Mark Wahlberg) a Albert, a fim de que ambos conseguissem a transcendental mudança de perspectiva – outro clichê psicológico de solução por meio de apoio mútuo, associando duas almas igualmente perturbadas e alinhadas com pensamentos pró-ecológicos e até alinhados a esquerda, necessariamente avessos aos pilares de tradição, família e propriedade. Mesmo com esta jogada de sucesso pretensamente garantido, a união não garante lograr êxito, visto que o discurso dos dois é agressivo e não sabe se adequar aos adeptos mais conservadores – a crítica é clara ao problema comum das “minorias”, que tentam defender os marginalizados sem se fazer entender aos incautos.

    A linha de raciocínio dos investigadores do inconsciente defendida por Vivian (Lily Tomlin) e Bernard (Dustin Hoffman) é muito pautada no otimismo, enquanto para Caterine Vauben (Isabelle Huppert), a vida é um conjunto de eventos tragicômicos organizados ao acaso, a disputa é quase como uma luta entre sofistas e niilistas pela atenção do indivíduo à procura do “algo”. Tal embate deixa Albert e Tommy confusos, e cada um embarca de forma diversa na viagem proposta pelos analistas.

    Albert precisa ver o seu nêmese Brad (Jude Law) no momento mais decadente para finalmente ter sua epifania – que serve para si e também para reflexão dos terapeutas rivais. A crise do ser e a autocomiseração são unidas, o ponto de coalizão, o lugar onde os diferentes podem achar suas semelhanças, perceber que não há tanta distinção entre seus estados de espíritos e tornarem-se um. O roteiro de O. Russel e Jeff Baena pode e deve gerar múltiplas interpretações, e as ramificações destas são infinitas, mas a linha guia dele passa pelos incômodos inerentes a vida humana e como cada individuo tende a tratar disto, mesmo os descompensados e os mentalmente desequilibrados.

    Ouça nosso podcast sobre a filmografia de David O. Russel.

  • Crítica | Moonrise Kingdom

    Crítica | Moonrise Kingdom

    Wes Anderson é conhecido por seus personagens estranhos e histórias um tanto surreais que, ao serem embaladas em uma direção de arte cuidadosa, constroem universos que parecem funcionar no limite entre a realidade e uma espécie de conto de fadas. Em Moonrise Kingdom, seu filme mais recente, essas características aparecem com clareza e montam um filme leve, divertido e extremamente autoral.

    O filme se passa em uma minúscula ilha na costa leste dos Estados Unidos, nos anos 60, onde vivem Suzy e Sam, uma “menina problema” e um garoto órfão. Os dois se conhecem por acaso, iniciam uma correspondência e planejam uma fuga através de uma trilha indígena famosa na região.

    Suzy e Sam se encontram por serem desajustados. Ele é órfão e detestado por seus colegas do grupo de escoteiro, ela é a filha problema de uma família “perfeita”, famosa pelas brigas violentas na escola para meninas. No entanto, conforme o filme avança vemos que todos os personagens, dos pais de Suzy ao chefe dos escoteiros, são igualmente desorientados em relação a vida e aos seus papeis no mundo e é Anderson ironiza com precisão esse desajuste entre as expectativas infantis e a desorientação dos adultos.

    Em vários momentos Moonrise Kingdom faz versões em miniaturas de filmes grandiosos: a uma sequência construída exatamente como um filme de guerra, a perseguição com motos de brinquedo a própria fuga que lembra clássicos como Bonnie e Clyde e Monika e o Desejo. Mas Anderson transforma os soldados em escoteiros e um casal de ladrões em duas crianças fugindo de casa, ele fala de pessoas comuns, pequenas e perdidas e do ridículo que as cerca.

    A paleta de cores do filme é toda construída com cores primárias ou pasteis e retoma os mesmos toms que o diretor vem usando desde seus primeiros filmes. Essa escolha, aliada a fotografia lavada, com cara de polaroid, ajudam a deslocar o filme para uma época e um lugar fora do tempo, tornando-o esse conto de fadas torto. O Narrador e a montagem evocam ainda os filmes da Nouvelle Vague, clara referência de Wes Anderson com sua simpatia por anti-heróis e desajustados, mas sempre de forma mais simples e infantil, como se o próprio cinema não merecesse ser levado a sério.

    Dessa forma, Wes Anderson articula os elementos recorrentes de seu cinema com um elenco notável e uma protagonista adorável e carismática para criar um filme que fala de um tema possivelmente dolorido, mas que o faz de forma leve, divertida e irônica. Moonrise Kingdom é irônico em cada imagem e finalmente faz jus ao humor ácido de Wes Anderson, além de ser seu melhor filme desde Os Excêntricos Tenenbaums.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.