Tag: Harvey Keitel

  • Crítica | A Chave do Enigma

    Crítica | A Chave do Enigma

    A Chave do Enigma faz Jack Nicholson retornar ao papel de Jake Gittes, em mais um roteiro do veterano Robert Towne, dessa vez trabalhando no caso de Jake Berman (Harvey Keitel) que acredita que sua mulher e seu sócio estão tendo um caso amoroso. Este é bem mais explicativo que a obra de Roman Polanski, seu antecessor Chinatown, o que é natural, uma vez que ele foi lançado quase treze anos depois do original

    Passados onze anos depois da morte de sua amada Evelin Muwray, Jake segue seus dias como um homem solitário, desconfiado e muito paranoico. O caso que ele toma logo se torna algo maior, envolvendo um assassinato e muitas mentiras sobre as razões que inspiravam cada um dos personagens.

    O filme dirigido por Nicholson prossegue didático de maneira desnecessária, se debruçando um pouco sobre o ofício de detetive matrimonial que  se dedica a explicar algumas das nuances que incorrem no trabalho de verificar a paranoia ou o motivo das infelicidades. Além de investigador, o detetive tem de agir em alguns pontos como psicologo de casais, face essa bem diferente do cinismo típico que ele tinha que impor na outra adaptação da literatura de Towne.

    A inversão de causo, entre ser um adultério e um crime a sangue frio com motivos empresariais faz o personagem ter dolorosas lembranças sobre o caso do primeiro filme, ocasionando até uma catarse pela morte mostrada no encerramento do primeiro capítulo da saga, e justificando bem a tardia digestão da perda de seu par, somente uma década depois do ocorrido. A briga em que Gittes se mete serve de gatilho sentimental, liberando enfim as lembranças reprimidas, para que pudesse se liberar do fardo de não ter conseguido desabafar sobre a perda de um grande amor.

    A aura de noir colorido não predomina nesse, dessa vez ganham destaque os tons pastéis, assemelhando a escolha das cores numa amalgama entre o Scarface de Brian de Palma, com um tom escurecido semelhante aos filmes oitentistas de Martin Scorsese em especial Cassino. Nicholson consegue estabelecer uma direção concisa e que não cai no erro de imitar a de Polanski.

    Próximo ao final a trama discorre sobre um realismo fantástico envolvendo o retorno do cliente junto ao prestador de serviços, e isso causa um certo estranhamento, já que a saga de Gitter sempre foi muito calcada no real. Apesar de resvalar em uma grave pieguice, o final escolhido para o detetive é cabível e demonstra a evolução do personagem enquanto pessoa repleta de sentimentos conflitantes e que finalmente tem  alguns sinais de possibilidade de se resolver. A Chave do Enigma consegue ser uma continuação enxuta e que não denigre o filme original, e mesmo não sendo tão brilhante, também não cai na armadilha de utilizar o mesmo como muleta.

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  • Crítica | Um Drink no Inferno

    Crítica | Um Drink no Inferno

    Uma viagem de loucos pelo deserto, cuja estrada por onde passam predomina o sangue das vítimas desses dos irmãos Gecko. Esse é o tom inicial de Um Drink no Inferno. De certa forma, a loucura em que se metem Seth e Richard tem eco na antiga parceria entre o diretor Robert RodriguezQuentin Tarantino, que adaptou um roteiro a partir do argumento de Robert Kurtzman, um sujeito muito mais acostumado a trabalhar no setor de maquiagem e efeitos especiais do que com roteiros.

    A primeira sequência do filme é inacreditável, mostrando o confronto dos personagens de Tarantino e George Clooney com o dono de um armazém/loja de conveniência. Em poucos minutos o espectador vê o assassinato de um policial, por meio de um assassino sangue frio e com claros distúrbios mentais. No caminho, os dois andam em um carro surrado pela areia, com uma mulher de meia-idade no porta-malas, ao som do clássico Dark Knight tocada por The Blaster, de certa forma prevendo o que ocorreria com os dois, no Titty Twist mais tarde.

    É impossível não pensar neste filme e não lembrar da Miramax, estúdio que ajudou a reunir Tarantino e Rodriguez. A realidade é que mesmo com os sucessos de Pulp Fiction, Cães de Aluguel, A Balada do Pistoleiro e El Mariachi, essa história envolvendo desajustados não teria sido finalizada e comercializada, já que o filme apesar de se pagar, não foi muito alem disso. O longa se tornou um dos muitos fenômenos de locadoras, sendo redescoberto no mercado de vídeo, só então ganhando o status de cult, além do trash que muitos já amputavam a si.

    Há dois dramas familiares na história, que na maioria das vezes não são explorados de maneira séria, mas que não deixam de soarem pesados. Pelos Geckos, há a preocupação de Seth com a sede assassina do caçula, feito por sua vez por um Tarantino que representa um completo desequilibrado. Da outra parte, existe a fé falida de Jacob Fuller, que viaja com seus filhos, Kate e Scott, a procura de se distrair após a morte da mãe da família. Harvey Keitel faz um ex-presbítero que diz não acreditar mais em Deus, pela perda que teve e ainda tem que lidar com a criação de dois adolescentes, sendo um deles interpretados por Juliette Lewis no auge da beleza, claramente sem idade para interpretar uma pessoa na puberdade.

    Há também duas ideias de moralidade bem distintas, uma adormecida, em Jacob que diante da situação limite de quase morte, não permite que seus filhos façam algumas coisas pequenas como beber em um bar latino de strip-tease, e outra a de Seth, que agride seu irmão após o mesmo estuprar e matar a senhora que era sua refém. Ainda que seja um ladrão, Seth tem alguns limites morais e éticos e é uma decepção que seu irmão não compartilhe desse pensamento. Obviamente que esse pensamento ético não o impede de fazer dos Fuller seus reféns, inclusive deixando a jovem Kate a mercê das fantasias e assédios de seu irmão.

    É curioso como o roteiro trata dessas questões de maneira leve, mas sem deixar de julgar tais fantasias e loucuras como algo nefasto. A questão do retardo de Richard deixa de ser uma opção teórica para se demonstrar factual, quando o irmão mais velho manda ele colocar seu aparelho dental, ele é um sujeito capaz de matar alguém mas não se lembra de cuidar de seus dentes, e precisa de outro “adulto” para tal. Dos 108 minutos de duração, quarenta e poucos são para construir a ideia de um filme policial clichê com dois bandidos inconsequentes em fuga.

    O grito do mestre de cerimônias, que é um dos três personagens de Cheech Marin é o resumo básico de como funciona o Titty Twister, um lugar onde as pessoas agem de forma libertina, e onde acontecem coisas tão bizarras que sequer parecem reais. Uma caricatura, onde mexicanos, americanos, motoqueiros e caminhoneiros brigam, bebem enquanto são servidos por mulheres seminuas. Além de acontecerem algumas brigas e um quase conflito entre Seth e os funcionários do bar, há um sem número de personagens engraçados e carismáticos, a banda Tito e Tarantula fazendo eles mesmos, o mestre de efeitos especiais Tom Savini fazendo o canastrão Sex Machine, o personagem de Fred Williamson Frost, que não tem seu nome citado nem por si e nem por ninguém, e claro, Satanio Pandemonium a dançarina que Salma Hayek encarna, que carrega o nome de um filme mexicano de horror de 1975, também conhecido como  Sexorcista, de Gilberto Martinez Solares, que foi lançado na esteira de O Exorcista.

    Tudo ocorre na mais perfeita ordem, até um trio de funcionários atacar Richard, agravando o ferimento de sua mão. Esta parte tem um mise-en-scène muito bem trabalhado. Os detalhes que Rodriguez utiliza neste momento são sutis inicialmente, para dali em diante se tornar ponto de virada onde até as poucas amarras com a realidade tangível são largadas para tornar-se este uma completa fantasia com momentos dignos das comedias pastelão.

    Começa uma guerra campal, onde corpos são guitarras e onde os monstros atacam e se alimentam das pessoas. Cabeças decepadas rodam pelo assoalho, e há milhares de móveis que podem imediatamente se tornarem armas contra essas criaturas da noite. O fato das regras inteligentes dos filmes de vampiro serem completamente ignoradas combinam perfeitamente com a aura irônica do longa, a prudência dos mortos-vivos inexiste, a dos vivos também, seja nas travadas de Satanico, que se gaba em frente a Seth, ou do próprio personagem de Clooney, que quase permite que seu irmão ande, mesmo já não tendo alma.

    Rodriguez resgata a aura dos filmes de monstros da Universal, e as perverte completamente, adicionando a isto a estética dos filmes de zumbi de George Romero com o gore dos giallos que Mario Bava e Dario Argento faziam na Itália. Uma marca de Tarantino no filme é a conversa entre sobreviventes que falam sobre teorias de como matar os vampiros, de suas fragilidades e das fraquezas que a cultura pop amputou a esse segmento, linhas de diálogos essas que jamais ocorreriam se não fizessem parte de um conto fantasioso com participação do próprio.

    Apesar de brincar com crenças sérias e de aludir ao cristianismo como fonte segura de defesa contra o mal, a graça de Um Drink no Inferno reside no total desprendimento da realidade ou das normas de um bom filme de gênero, ele é uma mistura de muitos elementos e uma ode ao cinema de Wes Craven, Tobe Hooper, John Carpenter e até alguns cineastas menores como Tom Holland (Brinquedo Assassino) e Mick Garris, temperado é claro com toda a iconografia do cinema e cultura do México aludindo a um oeste de Alejandro Jodorowsky e as comédias de humor negro, em uma mistura que tinha tudo para dar errado, mas que acertou em tom e que certamente entrou para história do cinema como um clássico do cinema escapista da década de noventa.

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  • Crítica | Ilha dos Cachorros

    Crítica | Ilha dos Cachorros

    É fácil perceber que se está diante de um filme de Wes Anderson, mas não só pelos motivos “aparentes” e esperados, em especial neste filme de 2018. Incorporando sua identidade rigorosamente meticulosa na elaboração visual de toda a sua mise-en-scène, com a história do garotinho Atari em busca de seu cachorro numa ilha japonesa dominada por raças caninas simpáticas e inteligentíssimas, forma-se uma (tentativa raquítica e apática de) jornada sobre liberdade e amizade e que começa e termina na vã estratégia de ser um Cinema autoral e de entretenimento ao mesmo tempo, algo que Anderson sempre conseguiu, mas que aqui simplesmente não consegue basilar-se nas suas pretensões. Resumindo: Sobra estilo e esquematização, e faltam conflitos e emoções reais em Ilha dos Cachorros, como se isso fosse tudo.

    Wes Anderson não acredita na sua história pois não assume risco algum; fato. Zona de conforto total, e que impressiona dada a mente brilhante que está por trás desse projeto, o filme inteiro parece ser um ato só: Coisas se desenvolvendo com a leveza do vento e sem alcançar patamares significativos em absoluto – nem na filmografia de Anderson, nem no Cinema recente. Mesmo quanto as peculiaridades do cineasta, seus travellings ultra planejados e seu ritmo incessante, ágil e palco para um humor negro irresistível, em A Ilha dos Cachorros tudo torna-se desinteressante pela primeira vez na carreira do cara. E, caso a obra não mereça ser chamada de “desinteressante”, o oposto tampouco atinge na percepção sensorial de quem esperava a regularidade de sempre do autor de Moonrise Kingdom, e de uma das grandes animação dos últimos anos: O Fantástico Sr. Raposo.

    Entre gangues formadas por diversas raças de cães e que lutam pela sobrevivência em um território que dominam, e muito corre-corre vazio, a história grita desesperada por um nível básico digamos de naturalismo que jamais poderia encontrar junto a alguém cuja frontalidade sempre foi orgulhosamente cênica, à beira do artificial. Parece que Anderson quer escapar um pouco do seu estilo e tentar ser mais solto, mais humanizado igual sua cachorrada solta em terreno japonês seguindo Atari. Mas nesse desejo de se expandir, poucas vezes nessa década se viu uma animação tão carente de carisma e tão atolada por uma artificialidade oca; um vai e vem que, se diverte mais ou menos, não chega em lugar algum. Entre um cinismo estrutural e um apoio extremo na beleza e outras virtudes da sua técnica, Ilha dos Cachorros é o típico filme calculado em demasia que não aguenta a essência da sua sensível trama frondosa, e banalmente desenvolvida.

    Neste exemplar do seu gênero, nem a boa trilha-sonora de um Alexandre Desplat ou o fascínio que técnicas de animação promovem não enganam ninguém (pelo menos aqui), e apenas embalam superficialmente a falta de envolvimento de todos os lados com a produção. Anderson apresenta uma mão surpreendentemente pesada na direção, e a trama centrada em amigos inesperados (e uma subtrama política feita às pressas por meio de analogias baratas) tampouco combina com o seu estilo de aventuras hiper organizadas em seu espaço/ tempo tão particular, e sempre tão delicioso – até agora. Estamos falando de um quase filme, de uma ideia que talvez merecia ser contada mas de uma forma muito mais calorosa – o clímax do filme é ordinário. Nem as boas sacadas visuais evitam a apatia e o aborrecimento em meio as tramoias de espécies humanas e caninas, aqui. Parece que todo cineasta precisa ter um mau exemplo da sua visão no currículo, e é uma pena Anderson não ser uma exceção.

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  • Crítica | Alice Não Mora Mais Aqui

    Crítica | Alice Não Mora Mais Aqui

    Alice Não Mora Mais Aqui sofre de um eclipse eterno na carreira de Martin Scorsese. Isso por estar sempre nas sombras de duas gemas intocáveis do cineasta, Caminhos Perigosos e Táxi Driver, rodado entre esses dois marcos do Cinema americano na divina década de setenta, em plena ebulição da Nova Hollywood, rotulada por tantos clássicos que começavam a não depender mais dos limites dos grandes estúdios. Tampouco dos faraônicos produtores que gente como John Ford, Frank Capra e Alfred Hitchcock tiveram de lidar, sem exceção, antes de Francis Ford Coppola, Steven Spielberg, Robert Altman e Scorsese, principalmente antes desses quatro (sem esquecer de John Cassavetes e o Brian De Palma dos anos 80) ganharem as ruas e filmarem sem tabus e buscando na verdade a naturalidade e a reinvenção do irreal, a todo custo, nos elementos de um mundo cada vez mais realista, e com grande sentido de autorialidade, e liberdade, sobretudo.

    Nesse novo frescor histórico para a indústria, ou ainda, em Tubarão e O Exorcista por exemplo, durante essas típicas inserções embrionárias de ideologia e novas percepções da realidade e ficção, trazendo novas possibilidades e novas tecnologias a normatividade até então do exercício cinematográfico americano, cada vez menos quadrado e menos conservador quanto aos ex-espetáculos fullscreen dos anos 40/50/60, o poder era da criatividade, da ousadia. Scorsese e seus amigos universitários, portanto, podem-se dizer que nasceram na hora certa, e no lugar certo. Eles sabiam que a festiva América de Amor, Sublime Amor não era mais daquela forma colorida, otimista e cheia de finais felizes de antes, não em meio aos efeitos das transformações sociais após o trauma que foi a Segunda Guerra, do boom cultural e do tráfico de drogas, principalmente nos EUA que eles viviam e estavam prontos a retratar com uma câmera Panavision no ombro, mil ideias na cabeça e, principalmente, sem grandes pudores pra isso.

    A nova Hollywood adveio de uma nova América, tão bem representada em seus valores e sua vibração, seu jogo capitalista e seus vícios em Nashville e M.A.S.H., ambos de Altman, mas também em Sem Destino, Perdidos na Noite, Rocky, Essa Pequena é Uma Parada, Nos Embalos de Sábado a Noite e, claro, os dois primeiros O Poderoso Chefão de Coppola. E o que todos têm em comum? Simples: A espécie de libertação reencenada de grupos do pós-guerra em diante (homens, gente branca ou pessoas de classe média), e por não retratarem a libertação de quem nunca teve liberdade, antes ou depois das mudanças sociopolíticas que floresciam. Nisso, devem-se destacar três filmes transgressores: Alice Não Mora Mais Aqui, sem dúvida a melhor obra de Scorsese sem um protagonista masculino, algo raro na carreira do diretor, Adivinhe Quem Vem para Jantar, e Os Rapazes da Banda. Uma trindade extremamente representativa ao momento e as questões da época, que só poderia ser produzida nos anos 70 em diante, e que veio a exaltar, em respectivo, a emancipação feminina, negra e LGBT na sociedade moderna, levemente mais tolerante defronte a debates oriundos das novas literaturas, músicas e peças audiovisuais.

    Contudo, além de Alice estar entre dois filmes mais famosos de Scorsese, houve um outro fator importante que retirou parte do crédito histórico, e artístico do filme em questão, protagonizado por Ellen Burstyn e ganhadora do Oscar, aqui: O arrebatamento do prêmio de Gena Rowlands, por sua assombrosa e inesquecível atuação em Uma Mulher Sob Influência – diga-se de passagem, dois trabalhos impressionantes. Rowlands sempre será lembrada por ter entregue um dos grandes momentos mitológicos de uma mulher em qualquer filme, mas foi Burstyn que levou a melhor, algo que os críticos mais justiceiros nunca conseguiram perdoar, mesmo se tratando de um grande estudo muito franco e bem-humorado sobre a figura feminina, de uma mãe como uma sobrevivente num mundo sem quaisquer certezas, longe disso. Após perder seu marido, a doce Alice (uma referência talvez a ingenuidade da personagem literária) se envolve com um homem brutal e absolutamente tempestivo em sua violência (Harvey Keitel, excelente). Destemida, resolve com seu filho, ainda mero infante, deixar tudo para trás e partir mundo afora para se encontrar, finalmente, e tentar respirar numa realidade que talvez foi feita para uma mulher sonhar e vencer, também.

    Certamente, não é essa espécie de romance dramático que descamba num road-movie inusitado o forte de Scorsese, como também não foi em New York, New York, um musical oitentista sobre o papel da cultura naquele período da América, um dos seus grandes momentos. Porém, seu amor pela história e pela força de uma mulher diante de um presente que precisa ser mudado pode ter motivado o cineasta a fazer deste um dos seus grandes filmes, até hoje. Simboliza, em meros 90 minutos, mais ou menos, um marco absolutamente histórico, divertido e carismático a ponto de nos deleitar com a certeza que nunca é tarde para recomeçar, e de nos lembrar da saudade que certas jóias dos anos 70 nos evocam, mesmo sem muitos de nós nem termos vivido aqueles (esses) idos de som e fúria não tão distantes e que ainda ecoam, livres, em praticamente tudo o que taxamos a alcunha, pedantes como só, de contemporâneo.

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  • Crítica | Táxi Driver

    Crítica | Táxi Driver

    É engraçado, sempre que revejo Táxi Driver, clássico de Martin Scorsese cuja graça já foi discutida e exalada por tantos artigos, cada vez mais parece ser um conto de horror que o notório vagabundo alemão Charles Bukowski dedilhou em alguma guia de calçada, de madrugada, num acesso elegante de um fôlego só. É um tour desavergonhado pela marginalidade mais urbana e orgulhosa do mundo. Na figura de um taxista, e seu carro, onde não se sabe onde começa um e termina o outro, Nova York explode, se escancara num strip-tease de consciência e culpa mundanas, sem jamais ressoar ou fazer sentir-se superficial.

    Scorsese, sem querer (querendo), cria a própria mitologia de sua carreira: O neon das noites, o amargo das relações, a escuridão rachada pelas luzes, a violência sem propósito definido… Sintomas de uma selva nunca tão colorida e tão vasculhada assim por Travis Bickle, o motorista que já viu de tudo e não se importa com mais nada, banhado pela danação existencial dos arredores conflitantes. Só que Táxi Driver nunca se desarma, empacotando o personagem da revolta sobre tudo e todos, uma figura unilateral para muitos, só para esconder os chamados de um artista às inúmeras reflexões muito além da sua era, sua realidade, sua (falta de) moral.

    Nisso, pode-se constar a genialidade do Scorsese dos anos 70. Não que o mesmo esteja mais óbvio (e está mesmo, desde Gangues de Nova York), mas o caso não é esse: Seus confrontos eram mais fundamentados na ética que na dialética objetiva do ser e seus locais; no interior sobreposto a qualquer interesse pelo exterior, diferente de um Fellini (ídolo do diretor) que sabia trabalhar todas as vertentes de uma forma ainda mais eloquente, e épica mesmo, porque não. Por isso que fica difícil acreditar que o cara de Touro Indomável tenha se submetido a estudos técnicos tão dessemelhantes ao seu passado, de 2004, pra cá, flertando com um Cinema mais aceitável, mais dócil e menos filosoficamente sofisticado, por assim dizer…

    Mas como será que Táxi Driver seria imaginado hoje, haveria espaço em 2018 para as andanças e a revolta crescente de um taxista na América decadente de Trump? Provavelmente sim, e de uma forma ainda mais frontal que a mostrada no clássico de 76, algo que talvez retirasse a elegância encenada em tempos mais propícios a romanização do todo. Contudo, algo indica que não valeria a pena, vide todo o charme temporal e o espírito tão característico (e conveniente) do pós-guerra americano que dificilmente seria reconstruído sob o mesmo fascínio conjectural, mais uma vez.

    Isso porque a psicologia dostoievskiana que rege o espírito de Bickle na busca por explicações, de rua em rua, para uma vida cheia de conflitos inexplicáveis justamente por estarem cruzados com os caminhos das outras pessoas, incontroláveis como a cidade que constroem dia e noite, ela se expande na tela como se girasse em torno da poluição mental que verte dos bueiros, resultando em absolutamente todas as ações e reações de uma trama tão New Hollywood que chega a doer. Quando o personagem de Robert de Niro, este presente no Top 3 do ator, começa a se relacionar com a jovem prostituta interpretada por uma divina Jodie Foster, assistimos uma tormenta tentando lavar toda a maldade do mundo, mesmo que com sangue. Há ingenuidade no caos.

    Há limites para o inferno na Terra. Terror, romance, drama… Agora, acredito mais ainda que nas circunstâncias e peculiaridades culturais e sociopolíticas dos anos 70, para que a história se contextualizasse ao máximo, Bukowski estava sentado naquela guia evocando um dos mais famosos estudos de personagem com a ajuda d’outro cara, tão louco quanto, um tal de Paul Schrader na tentativa de um manifesto tão franco quanto atencioso ao lugar de um cidadão num mundo que ele não entende mais, não se vê íntegro nele e tampouco assim o deseja, tampouco desejado. Scorsese, nisso, resolve filmar um peixe amarelo se debatendo no meio do deserto cujo oásis ele caça, sem saber, de bica em bica, e o resto é mitologia. Um grande filme, contemporâneo como poucos, e que não deve ser inteiramente desbravado, mata virgem que é e merece continuar sendo na posterioridade das artes.

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  • Crítica | Caminhos Perigosos

    Crítica | Caminhos Perigosos

    Mais de dez anos após o mestre Luis Buñuel tecer a marginalidade e a podridão social nas ruas do México, no meio do século, no insuperável clássico Os Esquecidos, em 1950, foi a vez de Francesco Rosi apresentar do mesmo modo cru e objetivo as motivações dos vários tipos de brutalidade humana, e a degradação do seu habitat relativo em O Bandido Giuliano, exemplar italiano um tanto esquecido ao longo da história da arte. Inserido em um forte cenário histórico, é possível desde o início da projeção atestar sua influência para um sem-número de produções que viriam depois, inclusive mais famosas e que também reproduziram a efervescência do filme de Rosi, tais quais os ultra realistas O Poderoso Chefão – Parte II, Tragam-me a Cabeça de Alfonso Garcia, e o primeiro nocaute de Martin Scorsese, um tal de Caminhos Perigosos.

    Este foi basicamente um filme necessário para o próprio realizador, sendo uma espécie de desabafo cruelmente sincero da realidade que ainda vivia, na implacável Nova York dos anos 60, 70 e 80, em paralelo a tudo aquilo que sua psique gravou ao longo de sua vida em meio à loucura nova iorquina daquela época. Não por à toa, Scorsese soube como ninguém eleger seus filmes favoritos para a Sight and Sound, em 2012 (O que inclui O Bandido Giuliano, que ele tanto venera), baseando-se apenas em critérios pessoais de uma formação de vida que nunca o abandonou, mas que de fato o marcou, realmente. Tanto que Hugo se tornou o corpo estranho de sua produção justamente por não conter a violência urbana tão esperada, diria até previsível quando o assunto é Scorsese. E foi em Caminhos Perigosos onde tudo começou (inclusive a sua lendária parceria com Robert de Niro, também em plena ascensão de carreira, ambos filhos da Big Apple cuja explosão cultural parecia rivalizar com a enorme decadência social do lugar).

    Ou Mean Streets, mesmo. Ruas Malvadas, num título original mais fiel a intenção do autor em mostrar o umbral americano aonde sobrevivia. Aqui, seguimos de perto um grupo de amigos (Harvey Keitel e De Niro, ambos ainda sem um pelo na cara) pelo submundo da metrópole com ares de falência, e danação que chamam de sua (eles só têm Nova York), em ruas que parecerem eternos becos sombrios, numa verdadeira selva de concreto raivosa onde é difícil confiar até na própria família, quiçá nas amizades que acontecem e se desfazem na violência que assola o passo e a alma de todos. Como o escritor Charles Dickens já descreveu, “era o melhor dos tempos, e o pior dos tempos”, e enquanto Coppola mostrava a glamourização da criminalidade nos dois “Chefão”, Scorsese enfiava a mão no lixo, e revirava, renegando quaisquer pudores.

    É muito complicado apontar o seguinte, principalmente numa carreira cuja visão de autor sempre foi de eterno tarado e apaixonado pelo Cinema, mas talvez foi em Caminhos Perigosos que Scorsese demonstrou mais vontade, cega e absoluta de pegar uma câmera e contar uma história. Filma como se não conseguisse mais dormir sem fazer isso, é realmente uma fome de Cinema memorável. Alguns podem chamar de escapismo, outros de amor puro e simples pela arte que iria produzir e se devotar, dali em diante. Falemos o que quisermos, mas é impossível, seja o(a) espectador(a) quem for, passar indiferente pela energia impressa aqui em cada frame frenético editado Sidney Levin, montador que faz um excelente trabalho ritmado nas “aventuras” desses cavaleiros do asfalto (como o filme é porcamente chamado em Portugal), sem ainda Scorsese poder contar com sua companheira de longa data, a veterana Thelma Schoonmaker, a famosa montadora de Touro Indomável, O Aviador, Os Infiltrados, etc.

    É notável sobretudo a exposição de duas cores distintas na construção pictórica de um mundo realista de criminalidade, drogas, correria e traição. Um olhar imagético afiado pela composição de quadro, e pelas prerrogativas mais sofisticadas de uma narrativa, dividido entre o preto do submundo e o vermelho que dele verte e explode em repentino, visto em celuloide como se cada ponto rúbeo fosse um sol escarlate exclamando vários sentidos ambíguos na tela. Sentidos esses que Scorsese nunca ignorou em sua obra, e só podemos agradecê-lo, cinéfilos ou não, por tamanha honestidade consigo, e conosco. Nas palavras do próprio: “Quando contratei Keitel pela primeira vez, o achei parecido demais comigo, e mesmo ele sendo um judeu da Polônia a gente tinha muito em comum. Nossas famílias também esperavam que a gente fosse mais respeitado, mas tinha alguns atores nesse filme bem difíceis de se lidar, gente bem ruim. E com eles eu aprendi a lidar, também”, afirma o cineasta no livro Scorsese on Scorsese, da Faber & Faber (sem tradução para o português). A gente aprende, Marty. A gente aprende.

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  • Crítica | Quem Bate à Minha Porta?

    Crítica | Quem Bate à Minha Porta?

    Pode parecer exagero, ou olho que sente e enxerga por demais, só que nos primeiros três minutos de Quem Bate à Minha Porta?, já há indícios claros de vários elementos que permeiam até hoje o Cinema de Martin Scorsese: a intensidade na montagem agindo junto a batida sonora extra-diegética, personagens ansiosos, a violência inesperada, o contraponto entre a harmonia da casa e a crueldade das ruas, e a preferência a ângulos de câmera que apostam em contra campo o tempo todo, nos levando a sacar sem explicações didáticas todos os pontos de vista que uma cena ganha e tem para nos oferecer, seja qual for o seu motivo aparente.

    Uma riqueza e vibração de linguagens cinematográficas de origem claramente acadêmica (Scorsese fez um curso de cinema ainda jovem na Universidade de Nova York, onde nasceu a amizade com o protagonista de seu primeiro longa-metragem, o genial Harvey Keitel) e aberta a experimentalismos que tanto marcaram outros realizadores de sua geração que cresceu vendo mil vezes seguidas os clássicos antigos de Howard Hawks, Orson Welles e Alfred Hitchcock, e agora, enxergava Hollywood de uma maneira em partes, digamos, subversiva e revolucionária, como se mostrou.

    Scorsese já demonstrava a curiosidade básica de qualquer cineasta que se preze: o interesse verdadeiro e forte pelo movimento, pela ação, palavra essa que plateias traduzem apenas por cenas de luta e batalha onde a tônica do movimento é extirpada a favor normalmente do entretenimento, puro e simples. Para o futuro criador de Táxi Driver e Cassino, ainda muito longe de realizar esses triunfos da história do Cinema, a movimentação de sua própria mãe, matriarca de uma casa cozinhando e servindo comida a família na cozinha da residência já serve para abrir uma trama em 1967 que delineia todo o estilo de um cinéfilo tarado pela arte que venera, e ajudou a evoluir com muito questionamento existencial, e visionarismo a base de suor.

    A própria não definição das personagens do filme sobre o que elas são, e o que elas querem na vida já denota o uso inspirado de arquétipos de personas que vagam por uma cidade grande como Nova York sem rumo, apenas chocando-se umas com as outras, e o encontro romantizado de um qualquer de paletó e uma garota lendo uma revista é o grande ponto de virada, aqui. Conversam sobre Rastros de Ódio, clássico espetacular de John Ford, e dessa paixão pelo Cinema surge a de um, pelo outro, numa realidade romantizada de violência, açougueiros e cobranças financeiras. Quem Bate à Minha Porta? é o amor, flor que por vezes irrompe da dureza do asfalto.

    Já possuído por uma quase que total dependência no poder da montagem, Scorsese já imerge com graça e domínio de causa nos assuntos do seu próprio mundo real, e refilma-os na ficção com leveza, bom desenvolvimento narrativo e uma ótima direção de atores logo na sua primeira história – influenciada em gênero, número e grau por Sombras, o debute fantástico de John Cassavetes que veio quase uma década antes, numa época em que Hollywood ainda se permitia regurgitar experimentações maravilhosas como essa – é válido apontar que outros expoentes desses idos como Francis Ford Coppola, Steven Spielberg e Brian De Palma já estavam iniciando seus trabalhos, também, e Scorsese estava no lugar certo, e na hora certa quando lançou Caminhos Perigosos, em 1973.

    Ainda mais violento e confiante que sua primeira empreitada no Cinema – um ano depois da glamourização da máfia no soberbo O Poderoso Chefão –, Caminhos Perigosos foi a constatação do que Quem Bate à Minha Porta? começou a sugerir, enquanto um início generoso e principiante de um estilo que peitou um dos maiores filmes americanos de todos os tempos, e só por isso já merece um certo prestígio. Eis a obra mais inocente da carreira de quem nunca teve medo em ser honesto quanto aos seus princípios, e forte em sua visão verídica de um mundo verídico nas telas, posto que o diretor sempre encarou ambos os mundos, o de lá e o de cá, como possibilidades mais do que reais de se viver, e sobreviver, deixando assim que a morte e a finitude humanas sejam uma constante fadada apenas ao plano real que nos confina.

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  • Crítica | A Juventude

    Crítica | A Juventude

    Juventude - poster

    A terceira idade adquiriu um peso cujo significado se traduz por uma derrocada tanto do corpo quanto de estágios mentais. Uma concepção que aponta como o contemporâneo lida com tais valores em uma sociedade cada vez mais líquida, em que o novo é sempre louvado. A afirmação é delicada e profunda a ponto do próprio cinema evitar escalar atores velhos para certos papéis, visão que necessita ser mudada devido a uma percepção errônea.

    Estágio natural a todos os homens, a velhice é tratada com desprezo por parte do pensamento ocidental e da indústria cultural. A maturidade e sabedoria advinda do acúmulo dos anos são ignoradas e transformam este período em uma área de isolamento. A Juventude, nova produção do italiano Paolo Sorrentino, versa sobre esta fase ao apresentar dois amigos, Fred (Michael Caine) e Mick (Harvey Keatel), passando as férias em um luxuoso hotel, valendo-se de um elenco de primeira linha para sua história.

    O diretor ainda apresenta um estilo cinematográfico no qual o visual significa parte de sua mensagem. A trama desenvolve a amizade dos dois personagens e suas lembranças de épocas anteriores ao mesmo tempo que apresenta silenciosamente outros hóspedes do local, pessoas sem expressão, despidas, em uma suposição de que a própria vida está ausente. Inserida na questão estética, a contemplação é uma das bases fundamentais de sua narrativa. Cenários e personagens convivem em um espaço teatral, preservando uma situação que representa uma espécie de vazio em contrapartida ao que deveria ser prazeroso, vide o cenário natural do local com muito luxo.

    Ainda que cada personagem seja particularmente normal, dentro deste cenário os papéis compõem um tecido díspar de humanos que parecem estar no local como tentativa de fuga. A filha que nega o término do casamento (Rachel Weisz); o velho maestro que não assume a morte da esposa; o diretor em derrocada que não assume seu fracasso. Dentro deste cenário, a figura de Jimmy Tree (Paul Dano), representando um ator talentoso cujo papel mais famoso foi em um filme-pipoca sobre um robô, observa a todos e constata, em determinado momento, o quanto o drama interno de cada um deles é rico em dilemas existenciais que devem ser explorados. Uma visão que parece compartilhar a impressão do público e, sem dúvida, a do próprio roteirista ao compor este quadro.

    A juventude que marca o título da história se identifica com maior facilidade pela beleza. Um signo óbvio que estabelece um padrão estético ainda vigente, a beleza dionisíaca e a seu culto, um conceito de perfeição desenvolvida em eras anteriores. Ainda que coerente com sua metáfora, a bela cena que ilustra o imagético pôster internacional é um impacto parco em relação a outros símbolos inseridos na trama. A beleza da atriz é notável, e Sorrentino sabe conduzir a cena de tal modo que a mantém em uma contemplação ideológica entre a moça, o novo e perfeito, e os velhos, menores e destituídos do vigor da vida, com uma carga de admiração que não se sobrepõe ao apelo sexual.

    De fato, o significado da juventude dentro do filme é múltipla. Contemplativamente parece representar uma visão idealista de um passado visto com admiração. Nesse aspecto, a juventude e a beleza, principalmente a feminina, seriam grandes representantes deste ideal. Em contrapartida, denota uma imaturidade a qual qualquer homem estaria sucessível quando não desenvolve um equilíbrio interno, uma juventude interna e cenário de incompreensão e imaturidade.

    O filme mantém uma lacuna para a interpretação do público sobre parte dos símbolos desta narrativa, que é bem conduzida entre tais espaços para possibilidades e uma intenção firme de seu autor.

  • Crítica | The Ridiculous 6

    Crítica | The Ridiculous 6

    The-Ridiculous-6-Poster

    O cinema de Adam Sandler, salvo raras interpretações dramáticas, se divide em duas vertentes de comédia. Uma delas, a primeira na qual o astro se tornou conhecido, dedica-se a um humor explícito entre ironia, paródia e piadas físicas de apelo fácil. Outra se ancora em certa tradição da comédia romântica, transformando o ator em uma espécie de galã em histórias em que o conhecido humor exagerado fica mais leve, integrando melhor com a trama.

    Em ambos os caminhos, porém, o ator é criticado e ainda mantém o status de um dos atores menos rentáveis da indústria. O forte apelo de algumas produções se somam a outras obras pouco frutíferas, promovendo um caminho difícil em que o público nunca parece receptivo com suas histórias. Um fato que ainda não o impediu de ser personagem principal de diversos filmes e de manter sua popularidade fora dos Estados Unidos. Em nosso país, por exemplo, seus filmes sempre estreiam em primeiro lugar e se mantêm na lista dos mais assistidos.

    Assinando com a Netflix para produzir quatro longas-metragens, The Ridiculous 6 é o primeiro fruto dessa parceria que equipara o cinema tradição e o serviço de streaming em um mesmo patamar, com grandes produções e estrelas de destaque. Na trama, Tommy “Faca Branca” Stockburn parte em uma jornada para resgatar seu pai fora da lei, e no caminho descobre que tem cinco irmãos.

    Logo após o lançamento, as críticas negativas atribuíram o humor de Sandler como preconceituoso com os personagens abordados. Como em outras obras anteriores com o comediante, o roteiro utiliza clichês comum, no caso, o Velho Oeste, para produzir personagens caricatos. Como humorista, o ator nunca renovou seu repertório cômico e seu estilo de sempre é o visto em cena com piadas sobre escatologia, personificando figuras deslocadas e usando o riso como paródia. Nada de novo dentro de seu estilo de humor. A comédia sempre visa um alvo, afastando a realidade para rir de si mesma e, neste cenário, a produção ainda é capaz de rir do conceito que o cinema americano criou do cinema Western.

    Em cena se destacam as parcerias costumeiras do ator, como Rob Schneider e John Turturro, compondo certa química para uma história que não apresenta nada de novo. Dado que o humor de Sandler está preso à própria formula criada, aos poucos parte do público começa a rejeitá-lo pelo cansaço.

  • Crítica | Dragão Vermelho

    Crítica | Dragão Vermelho

    Dragão Vermelho - Poster

    Um ano após o lançamento de Hannibal, a esperada continuação de Silêncio dos Inocentes, foi o tempo suficiente para que uma refilmagem de Dragão Vermelho, primeiro livro sobre o canibal de Thomas Harris, fosse anunciada e, de maneira às avessas, finalizasse a trilogia sobre a personagem.

    A obra já havia sido adaptada para as telas por Michael Mann em lançamento anterior ao filme consagrado. Embora seja uma obra elogiada, Anthony Hopkins não interpretava a enigmática personagem, o que motivou esta nova versão. Inicialmente, o ator seria substituído por um ator mais jovem, mas uma maquiagem rejuvenescedora foi o suficiente para que o ator assumisse novamente Hannibal.

    A narrativa de Dragão Vermelho possui pontos estruturais semelhantes com Silêncio dos Inocentes. O agente do FBI Will Graham pede ajuda ao renomado psiquiatra para resolver um caso de assassinato envolvendo duas famílias. Diferindo-se de Clarice, Graham possui uma relação de trabalho com Hannibal quando suspeita do psiquiatra em uma série de assassinatos e se torna responsável por levá-lo a prisão.

    No papel de Graham, Edward Norton compõe um interessante personagem que, graças à série, Hannibal, ganhou o destaque necessário na interpretação de Hugh Dancy. Até então, Graham nunca havia sido páreo para a popularidade de Clarice Starling de Jodie Foster. Inteligente e destacado por sua aptidão em compreender a mente de criminosos e interpretar com precisão cenas de crimes, o policial sente um medo aparente de Lecter, ainda que tenha sido responsável por sua prisão e, consequentemente, provado sua superioridade intelectual. A caracterização de Norton – exceto pelo estranho cabelo aloirado – é contida, mas suficiente para transmitir a insegurança diante do canibal e destreza na condução da investigação.

    Abordando tanto a investigação quanto o vilão do título, a história tem um interessante equilíbrio entre as frontes conflitantes de bem e mal. O Dragão Vermelho é composto entre o grotesco de suas ações – crimes chocantes que atraem o leitor da narrativa policial em geral – e um escopo psicológico que justifica os atos desse homem que viveu a infância com uma mãe agressiva. Desenvolvem-se tanto a batalha do policial versus assassino como a relação entre Will e Hannibal, um monstro aparente que transita entre os dois polos, ajudando a polícia ao mesmo tempo que se comunica com o vilão, um fã assumido dos feitos de Lecter.

    A direção de Brett Ratner mantém o estilo de Jonathan Demme, uma tentativa de simular a claustrófica ambientação de O Silêncio Dos Inocentes. O ponto mais fraco da trama seja talvez sua personagem de maior nome. Em cena, Anthony Hopkins não mantém uma presença bem composta como na história lançada em 1991. Sua personagem parece afetada demais, com uma prosódia mais exagerada do que a composição anterior e sem o mesmo brilho, como se sentisse desconfortável de alguma maneira além da personagem. A suposta maquiagem rejuvenescedora não funciona e parece limitar o ator, como se evitasse expressões faciais para não marcar sua idade avançada. Talvez, com a tecnologia atual – a qual rejuvenesceu Michael Douglas de maneira impressionante em Homem-Formiga –, fosse possível uma interpretação mais apurada que corrigisse posteriormente eventuais marcas de velhice em seu rosto. Ainda assim, a elegância ambígua de Lecter está intacta em sua interpretação.

    Mesmo esta interpretação estranha não é capaz de destruir o bom equilíbrio da trama e as outras boas atuações que sustentam o suspense, com uma boa versão de um dos grandes vilões do cinema. Uma produção que não se configura como a obra-prima de 1992, mas muito melhor executada do que o terceiro ato dirigido por Ridley Scott.

  • Crítica | A Última Tentação de Cristo

    Crítica | A Última Tentação de Cristo

    A Ultima Tentação 1

    Apelando para a dubiedade do espírito humano, Paul Schrader adapta o texto original de Nikos Kazantzakis, que por sua vez desvirtua e se desvincula de qualquer história contada nos evangelhos. Mesmo com o aviso, enquanto a trilha incidental ainda apresentava a abertura do filme, A Última Tentação de Cristo não conseguiu fugir das polêmicas, sendo constantemente censurado, editado e proibido em diversos períodos e países ao redor do globo.

    A proposta intimista exibe por quase três horas a história do carpinteiro Jesus, interpretado pelo jovem Willem Dafoe, que em seus dias sofre uma perseguição pontual de um homem ruivo e agressivo, o ativista anti-romano chamado Judas Iscariotes (Harvey Keitel). Em todas as oportunidades, humilha o protagonista da jornada, criticando-o pela letargia de trabalhar fabricando cruzes, que, em essência, é a maior arma que os romanos usam para humilhar os judeus, já que tradicionalmente a cruz simboliza maldição, sendo proibido sentenciar um cidadão romano à crucificação.

    Já nos primeiros momentos de exibição, há uma dupla inversão de valores, com a representativa caminhada de Jesus carregando a parte superior das cruzes, debochando de antemão da via crucis, tornando física a revolta anunciada por Iscariotes e a violência física contra a conhecida meretriz Maria Madalena (Barbara Hershey), agindo de modo tão sensacionalista quanto o militante arruivado, levando as joias que carrega sobre o rosto para cuspir em sua face.

    A face patética de Jesus esconde algo fundamental, tendo neste paradigma o ponto em comum com o texto bíblico, demonstrando que o Chamado Divino é o seu fardo, como espíritos amaldiçoados que vagam ao seu redor produzindo um tormento sem precedentes. A peregrinação pelo deserto emula a mesma viagem que o escritor original da Torah, Moisés, fez para ter também com Jeová. Ainda que a intenção de Jesus fosse outra, a de se livrar do pesado jugo proposto a ele, pôde-se enfim dar vazão às suas necessidades, indo de encontro a Madalena.

    Paciente, ele aguarda vendo todos os homens ao seu redor deitarem-se com sua amada, demonstrando a mesma letargia de outrora, uma dificuldade em assumir o que queria, tomado por um temor de não ser bom o bastante para nenhuma das tarefas a que foi designado, desde as que jamais escolheu até as que naturalmente assumiu. O medo é fruto do sagrado, receio de quebrar promessas a um ser invisível e supremo que determina o destino de todos os que estão sob a jurisdição terrestre, sentimento comum a muitos fiéis e devotos do cristianismo pós anos 2000.

    Aos poucos, o eremita aceita seu chamado, ainda que sua postura seja cautelosa, fruto de uma rejeição tipicamente teatral que exibe grande parte das incertezas humanas, aproximando o anunciado arquétipo, demonstrado por Nietzsche, do homem perfeito perante o homem comum, medroso, repleto de falhas e com coragem moderada, quase nula. Mesmo o “aceitar” de seu fardo não é pleno; o reconhecimento é gradativo. Enquanto outros servos trabalham durante toda uma vida para se aproximar do criador, o personagem biografado tem livre acesso às palavras do alto, chegando ao ponto de subvalorizar sua própria interferência e seus talentos.

    Logo, os caminhos de Judas e Jesus mais uma vez se cruzam, sob a pena de o militante político assassinar o nazareno. Antes de se cumprir o sacrifício voluntário do “cristo”, Judas percebe a mudança postural do seu conhecido, ainda que de forma mínima. A volta à terra de Jerusalém pontua-se pela Palavra de Conhecimento – termo que designa um dom, no livro de Atos – onde Jesus provoca o primeiro milagre político, tendo total ciência da intimidade do respeitado Zebedeu (Irvin Kershner, diretor de O Império Contra-Ataca), e o freia em sua fúria assassina e machista. Após o fato, o carpinteiro lança mão de sua origem agrícola e humilde para falar diretamente ao povo, conseguindo um alcance popular que nenhum político catedrático conseguira antes, repetindo palavras otimistas que incrivelmente fugiam do lugar comum em tempos de escravidão, e que faziam confundir a incauta plebe, a qual achava que o discurso do homem era para enfrentar os opressores.

    Nadando na contramão do óbvio, o resignado Messias faz lavar os pés da mulher que se deitou com milhares de homens, citando passagens canônicas do judaísmo e do cristianismo, mas em uma ordem conveniente à versão mais humanizada do conto. O homem do campo passa a ser chamado de Rabi, mesmo pelo sujeito que quis matá-lo, e começa a formar seguidores, homens que dependem de seus discípulos para viver, e que não tem qualquer alento ou esperança fora os seus mandamentos inseguros. A certeza de caráter cresce em uma subida íngreme, que se fortifica à medida que o caminho é traçado. No entanto, a ordem dos zelotes ainda perturba Judas, apesar de sua crença no messianismo de Jesus se manifestar cada vez mais frequentemente.

    A mais brilhante faceta da realização de Martin Scorsese é mostrada antes mesmo da obra completar uma hora de duração, quando os Pentecostes pós-Evangelhos se amalgamam com ao batismo do profeta e anunciador da vinda do Salvador, João, o Batista (Andre Gregory), um homem de aparência e vestes grotescas, que comanda um culto onde mulheres nuas batem cabeça como se estivessem possuídas por algo maior, pela mesma manifestação comum aos terreiros de religiões de matiz africana que cristãos fundamentalistas demonizam, mas que visualmente nada diferem das manifestações alegadas à ação do Espírito Santo, que na Bíblia seria o substituto físico do Deus Filho. O batismo aquático seria o carimbo, o primeiro passo da comprovação da missão de resgate aos homens confiado ao corpo do Cristo, a testificação, chamada Rhema (palavra falada e direta), que se insere no interior emocional do iluminado em ascensão.

    As visões a que o personagem título é submetido se confundem com devaneios, fazendo alegoria ao autoengano, algo muito comum em alguns dos que professam uma fé recalcante e excludente, que está mais disposta a acusar do que acolher. A diferença básica é que, como nos escritos sagrados, Jesus repele tais indicações e tentações, não cedendo a qualquer julgamento prévio, pautando seu agir e julgar na verdade, e não em ditos sofistas.

    O imprescindível realismo do script revela um Lázaro (Tomas Arana) ressuscitado não da forma conveniente como os filmes bíblico convencionais, mas sim como um moribundo, um morto andante que guarda semelhanças enormes com as criaturas ressuscitadas nos apocalípticos filmes de George A. Romero, exibindo a contrapartida dos milagres jesuínos, nem sempre maravilhosos, algumas vezes macabros e inconvenientes. A carne putrefata de Lázaro exala um odor forte, e serve basicamente para demonstrar o poder do Cristo encarnado, já que, daquela sub-vida, nada novo surgiria, nada proveitoso seria estabelecido, além da óbvia referência miraculosa que chegaria aos ouvidos dos poderosos romanos.

    O auge do orgulho inflamado de Jesus se dá após um justificado ataque de raiva. Sua ira e violência imperam despejando-se sobre os comerciantes, que fazem do templo sua feira, uma rajada de impropérios, xingamentos que atingem a moral daqueles homens, denunciando todos os maus atos e a banalização do santificado que fazem. Em defesa do povo, há os doutores da lei, que usam o pretexto do câmbio da moeda para exercer a prática lucrativa na casa que deveria ser de deus, usando do poder sacerdotal para enriquecer levianamente. Sempre aos olhos da multidão, que nada faz além de consumir e financiar a vergonha lucrativa.

    É para destituir o sistema corrupto dos romanos, e escancarar a hipocrisia dos fariseus e saduceus, que Jesus permite a Judas se “corromper”, entregando-o ao destino cruel que sofreria, para então fechar a esfera da cruz. O viés pensado para justificara traição é mais plausível, política e verossímil do que os livros de Mateus, Marcos, Lucas e João, além de retratar melhor a contemporaneidade de Jesus e a atualidade.

    A partir da segunda hora de exibição da obra é que mora a principal polêmica do filme, com a saída do crucificado antes do estabelecimento da condição de cadáver. Ele é visitado por um infante querubim de formas humanas, o símbolo da inocência que o livra do fardo desnecessário, como em Abraão e Isaque, no Gênesis. A partir deste ponto, o Messias pode seguir sua vida normativa, sofrendo perdas e ganhos como qualquer reles mortal. A  tratativa de sua rotina é muito mais calcada no “se fazer carne” do que no conteúdo das escrituras sagradas.

    Já na velhice, Jesus recebe a visita de seus seguidores do passado, revelando o infortúnio causado a Israel desde a aposentadoria do Messias, que decidiu não morrer, mostrando que a celeuma e a rendição à mediocridade foram os fatores que primordialmente perverteram os rumos históricos da região, devendo ser consumada sua morte para que o seu povo – e não a humanidade – tivesse qualquer chance de salvação, fazendo dele uma criatura muito mais política do que um baluarte de religiosidade.

    Apesar das muitas acusações de sacrilégio, usando-se de passagens isoladas e fora de contexto para justificar as negativas falas, A Última Tentação de Cristo cumpre um importante papel de reflexão, a despeito da moral encontrada na Bíblia Sagrada, exemplificando de maneira bem didática o viés revolucionário da figura messiânica, afastando de si a possibilidade de ser o incentivo e inspiração para o mote do fundamentalismo religioso em voga no discurso de tantos sacerdotes e líderes ditos religiosos. O Cristo de Scorsese, Kazantzakis e Schrader habitou a humanidade, viveu seus pecados e seus medos, e a humanidade habitou em si, se fazendo carne na figura que devia ser deus, aproximando divindade do humano. Como uma singela e sincera ponte para o Divino.

  • Crítica | O Congresso Futurista

    Crítica | O Congresso Futurista

    A indefinição do futuro é analisada, distorcida e reinventada em demasia. Ultrapassa a barreira de um mero exercício imaginativo, tocando o cerne do homem moderno e sua angústia de não saber ao certo o que lhe espera em um tempo vindouro. Especulações e projeções surgem de diversas áreas e se popularizam por meio da cultura. Recentemente, a visão de um futuro pessimista tem assolado as narrativas ficcionais, de trilogias de sucesso, que repetem sua fórmula de distopia, à retomada de grandes obras que ganham nova atenção pela análise deste momento vago.

    Baseado na obra do polaco Stanisław Lem, O Congresso do Futuro, o filme propõe uma alegórica metaficção sobre os rumos da sociedade e da representação desta por meio da cultura e do entretenimento. Interpretando uma versão de si mesma, Robin Wright é uma consagrada atriz de Hollywood considerada um ponto de resistência em meio aos recursos tecnológicos disponíveis à narrativa cinematográfica, uma das últimas atrizes que ainda não cederam ao contrato de fornecer sua imagem definitiva à captação de movimentos para, depois, se aposentarem da profissão.

    A narrativa contrapõe a tecnologia e a concepção artística, ponderando-as em uma dicotomia existencial. A tecnologia evolui a favor da arte ou a arte necessita da tecnologia como forma de existir? É evidente que, desde a criação do Cinema, especificamente, os avanços caminharam simultaneamente. Porém, diante de uma gama cada vez maior de tecnologia inserida nas produções, até onde o papel do ator será importante na elaboração de uma história?

    A indústria cinematográfica é vista como um gigante inescrupuloso, impossível de ser parado pelo descontentamento de uma atriz. Muito se discute sobre a figura pública por detrás dos atores e seu papel em relação à sociedade. Aprofundando esta análise, a captura integral dos movimentos de um ator e, consequentemente, a composição de seus papéis feita inteiramente por sistemas digitais discute a questão da própria identidade. Se reconhecemos uma pessoa pela sua composição física, como reconhecer os outros sem esta forma de identificação?

    Após uma melancólica cena em que Robin Wright aceita se transformar em um personagem digital, a trama avança dois anos e modifica sua estrutura narrativa e mergulha em um universo colorido, brilhante, composto de animação gráfica. A atriz ainda é uma das estrelas do estúdio, mesmo que não esteja presente de corpo e alma nas interpretações de seus filmes. Ao contrário de uma visão depressiva e obscura de um futuro distópico dominado por máquinas tecnológicas, são os avanços da ciência que permitem a existência deste universo fictício. Uma realidade alternativa composta por uma droga que, quando consumida, libera um universo químico no cérebro de cada um, permitindo que este seja quem ele quiser. Não há mais espaço para adequar-se a um ideal imposto por uma sociedade. Dentro da própria alquimia cerebral, qualquer fantasia é aceita e incorporada. É um mundo vivido na imaginação, no onírico, onde o que é imaginado se torna real, pois, imaginado.

    A reflexão ultrapassa o Cinema e a concepção artística, focalizando o próprio humano – aproximando-se da angústia que o homem sente em relação ao futuro indefinido. Se todos são aquilo que desejam, como é possível reconhecer o próximo, se tudo é um jogo de máscaras? Questiona a personagem de Wright. Dentro deste cenário, a personagem procura seu filho, um garoto que sofre de uma doença degenerativa no ouvido, perdendo assim seu contato auditivo com o mundo. Um paralelo que demonstra que, enquanto uma maioria decide pela alienação em um mundo falso composto pela química, o filho, mesmo desejando manter contato com certa realidade, perde, pouco a pouco, esta comunicação e, contra a própria vontade, se isola. A família de Wright.

    Também neste aspecto, a produção não deixa de ser fabular ao narrar uma história que apresenta em seu interior uma moral reflexiva sobre a conduta humana e o uso da própria ciência e da tecnologia como forma de sobrevivência. Se desde tempos remotos a sociedade progrediu com tais usos, nos tornamos escravos de nossa própria evolução? A animação dirigida por Ari Folman é o meio que representa este falso mundo imagético. São cenas que abusam da qualidade técnica e das cores apuradas a favor de uma poesia visual que se justifica pelo tema abordado na produção, que produz com qualidade uma reflexão sobre a própria arte e a humanidade, fazendo de si própria uma bela peça artística.

  • Crítica | O Grande Hotel Budapeste

    Crítica | O Grande Hotel Budapeste

    o grande hotel budapeste

    O Cinema de Wes Anderson, sendo a arte antes do artista, é claro, é um corredor de pinturas, uma ida ao museu numa tarde chuvosa onde não há mais nada a se fazer senão apreciar a viagem histórica. O cineasta tem a preferência de centralizar seus mundos enquanto expande os significados deles através de uma simbologia única em nível de identificação universal. Mundos onde todos os personagens são totalmente imprescindíveis à história ao mesmo tempo em que são totalmente desnecessários à narrativa em retalhos: substituíveis e relevantes ao mesmo tempo. O Grande Hotel Budapeste é o Cinema de Jacques Tati e Stanley Kubrick feito para todas as idades e mentalidades. Lindo, matemático, extremamente planejado em planos cênicos milimétricos, mas não é superficial em toda a sua estilização, afinal de contas, apenas por denunciar a beleza existencial do mundo a partir dos valores humanos de cada vida vinculada à teia apresentada.

    Até porque Anderson tem olho clínico e confiança de chamar atores do mais alto nível, assim como semi-desconhecidos, para interpretar figuras icônicas que pertencem a mentes de pessoas como Alan Moore, genial escritor inglês e famoso por sua excentricidade. Logo no começo de Budapeste, percebemos os traços marcantes da filmografia do diretor de Moonrise Kingdom, seja na (ótima) direção de arte, seja na atmosfera visual ou na musicalidade inocente e eclética de sempre. Enfim, temos, ao longo de uma hora e meia de projeção, a desconfiança da releitura artística que o filme vem a ser, na real, muito antes do clímax esperado.

    Releitura devido ao ponto alto da carreira que o cineasta já conseguiu alcançar “por acaso” é onde repousa seu belo e extravagante hotel. Um cume no qual não carece mais provar seus talentos e visão pessoal a mais ninguém, vide a falta de pretensão, de autoestima, e de altos e baixos de uma energia linear e constante ou mesmo de alguma dose de seriedade da história de corre-corre e de amizades inesperadas pelos caminhos. Veredas a partir e muito além dos corredores e escadas sinuosas do edifício homônimo.

    A fusão entre realidade e realidade particular pode ser uma das explicações para definir a arte de cada um; o Cinema, inclusive, o qual muitos chamam de “a arte completa” por ser justamente a fusão da maioria delas. Seja como for, e sem mais delongas, Anderson e seu elenco espetacular – Tilda Swinton aparece 5 minutos depois do início do filme, durante 60 segundos apenas, e é tão impressionante sua participação que a projeção poderia terminar com sua saída e tudo seria maravilhoso do mesmo jeito – defendem a teoria que abre este último parágrafo na aurora de uma realidade particular, a que todos nós aprendemos a amar, cada um à sua maneira, e que muito completa a verdadeira realidade das coisas.