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  • Crítica | Caçador de Assassinos

    Crítica | Caçador de Assassinos

    Produzido por Dino de Laurentiis, Caçador de Assassinos foi o primeiro filme baseado na a obra de Thomas Harris. Adaptação do livro  O Dragão Vermelho, primeiro com o personagem de Hannibal Lecter,  o longa de Michael Mann começa misterioso, com uma estranha filmagem caseira, observada pelo detetive do FBI Will Graham (William Petersen), um sujeito discreto e de poucas palavras que tenta equilibrar sua vida familiar comum com o ofício de agente responsável por investigar crimes hediondos.

    William é de Chicago, onde mora com a sua família, mas após o chamado a aventura a trama se muda para Atlanta, no estado da Geórgia, cuja atmosfera envolve paisagens cheias de fumaça e neblina, fato que causa no espectador um certo estranhamento. Por mais que Graham seja discreto, ao analisar uma cena do crime repleta de sangue o sujeito não parece se chocar, não há qualquer incomodo ao ver um quarto redecorado de vermelho. Ao ter acesso a fitas apresentando a vítima tem estranhas reações, uma estranha excitação a perceber a morte diante de seus olhos. Isso é uma mostra do quanto cenário apresentado é de desajustados, pois até o mocinho parece obtuso.

    A grande curiosidade do espectador em relação a esta obra, é como o famoso Hannibal foi retratado. O doutor é interpretado por Brian Cox que, até então, havia feito poucos papéis no cinema. O lugar onde está preso é um cenário todo branco não combina com a mente suja e com seu passado. O sobrenome do personagem é trocado, de Lecter para Lecktor. Hannibal é mostrado como um homem culto, leitor de psicopatologias com alguma formação em psiquiatria. Antes do encontro com Will pouco se sabe a seu respeito. Só que matou algumas pessoas e deixou outras no hospital. Seu quadro não é detalhado. Há bastante melindre em abordar a questão do canibalismo. Ele é tratado tão somente como um psicopata. Possivelmente, em 86, a situação para abordar o tema era ainda mais espinhosa.

    O filme faz do mistério em volta de Hannibal uma grande necessidade. O desempenho de Cox é razoável nesse sentido, mesmo com pouco tempo de tela. Ele consegue parecer adorável e charmoso em sua apresentação, mas também é capaz de causar desconfiança e desconforto exatamente por ter uma aparência de extrema formalidade, pois alguém tão requintado, para estar preso, deve ter feito algo realmente grave, mesmo que isso não seja tão explícito.

    Esse era só o terceiro longa de Mann, antes dos incontestáveis sucessos de Fogo Contra Fogo e Colateral. Sua visão do ideal a um filme policial ainda estava em formação. Por isso, esse produto é bem diferente de suas outras obras no gênero, claramente o diretor ainda estava preso a estética da série que produzia, Miami Vice. A produção  é mais silenciosa, não verborrágica, mostra uma historia que se desenrola lentamente, sem urgência, com uma trilha sonora característica, que quase não interfere na ação em si.

    Se escolhe também mostrar cenas onde a câmera lenta predomina, possivelmente em alusão ao cinema de ação de Sam Peckinpah, que usava isso para maximizar os confrontos no velho oeste de seus filmes. Aqui, isso é empregado para fortalecer a sensação de que algo está errado com o mundo. Que o lugar que Deus criou foi corrompido pelo homem.

    Os momentos finais são eletrizantes, mesmo que a cadência da desventura de Graham seja lenta. Mann apresenta uma historia fria que também tem momentos de melancolia extrema. A história é ainda mais grave por demonstrar que a alma do detetive está perdida, dado que parece ser incapaz de ter sensibilidade graças a condição auto imposta de tentar emular a mente e o coração dos psicopatas que persegue. Por mais que em Caçador de Assassinos não haja uma versão brilhante de Hannibal (até por ser breve sua participação), é de se admirar a mistura narrativa de um estilo intimista com um noir colorido.

  • Review | Hannibal – 3ª Temporada

    Review | Hannibal – 3ª Temporada

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    Em junho deste ano, os fãs de Hannibal foram pegos de surpresa com o cancelamento repentino do programa, três semanas após a estreia da terceira temporada. Mesmo com uma extensa campanha virtual dos fãs para salvá-la, através da hashtag #SaveHannibal, a NBC não voltou atrás, e seu criador, Bryan Fuller, não conseguiu outros canais que pudessem abrigá-la. O gosto amargo da descontinuação desta vez seria o principal tempero na cozinha macabra do canibal.

    Após o massacre que marcou o final da segunda temporada da série, baseada na obra de Thomas Harris, Hannibal (Madds Mikkelsen) é desmascarado e enfim torna-se um fugitivo da polícia, escondendo-se em Florença, na Itália, ao lado de sua cúmplice Bedelia Du Maurier (Gillian Anderson). Como Dr. Fell, seu disfarce em terras carcamanas, Lecter conquista admiração de todos do Studiolo como curador e tradutor da obra de Dante Allighieri. Ao realizar a arguição necessária para atuar na instituição, o ex-psiquiatra, em um belo recurso de fotografia, surge em um púlpito explicando sua tese enquanto uma ilustração do próprio demônio é projetada sobre sua figura, transformando-os em um só. Como estudo, nada mais irônico que tenha sido escolhida a primeira parte da Divina Comédia de Dante, Inferno, como perícia teológica e o propósito de sua estadia no país de origem do poeta.

    HANNIBAL -- "Dolce" Episode 306 -- Pictured: (l-r) Mads Mikkelsen as Hannibal Lecter, Gillian Anderson as Bedelia Du Maurier -- (Photo by: Ian Watson/NBC)

    A terceira temporada destaca-se das anteriores por não só mostrar um período tão aguardado pelos espectadores, a captura do protagonista, dando andamento à cronologia original, como também por ser o extrato mais fiel dos romances de Harris. À exceção de O Silêncio dos Inocentes, todos os restantes tiveram parte de seu universo explorado: Dragão Vermelho, Hannibal e Hannibal – A Origem do Mal. Fomos apresentados à origem de Lecter na Lituânia; a sua fuga para a Itália; à busca de Mason Verger (Joe Anderson, precedido por Michael Pitt) por seu maior inimigo; à estrutura familiar de Will Graham (Hugh Dancy); ao casamento de Margot Verger (Katharine Isabelle), como sempre desconstruído pela produção, e muitos outros. Cada momento específico é rearranjado pela produção em diferentes espaços temporais, desconstruindo a narrativa original de forma não-linear e dando pistas sobre o real e o imaginário. Uma estrutura enfatizada pelo Palácio das Memórias conceituado por Hannibal para armazenar as lembranças mais vívidas que se tornam indistinguíveis.

    Dividido em três atos, como em uma tragédia clássica, o terceiro ano comprova por que são necessários tempo e equilíbrio para a construção de um argumento. O primeiro ato, que mantém a tradição de cada episódio intitulado com um prato da gastronomia – italiana, já que se passa neste país – mostra-se extremamente demorado, com sete episódios para alcançar um desfecho: a prisão de Lecter. Já o segundo, após um salto cronológico de três anos, é apressado e turbulento, embora com doses cavalares de expectativa, já que estamos falando de um novo momento na série, a composição do primeiro denso antagonista: Francis Dolarhyde, ou o Grande Dragão Vermelho.

    HANNIBAL -- "The Wrath of the Lamb" Episode 313 -- Pictured: Mads Mikkelsen as Hannibal Lecter -- (Photo by: Brooke Palmer/NBC)

    Richard Armitage, cujo maior papel até então fora Thorin na franquia O Hobbit, captou excelentemente o espírito do Dragão e produziu o melhor personagem de toda a franquia. É assustador como o Fada do Dente, como também foi conhecido pela operação de sua captura, se vê como indivíduo para alcançar sua provação. O processo de tornar-se o Dragão Vermelho é o mesmo modus operandi de Lecter como canibal: ambos veem na carne uma transmutação e matam para tornar-se alguém. Tal é a identificação do primeiro pelo segundo que o serial killer procura seu mentor, intentando reconhecimento. Como João Batista batizando o Messias e identificando seu mestre com base em uma paixão mútua: o gosto pela modificação através da morte.

    A proximidade, no entanto, não se expande, mas é definitiva para causar estragos. A cena da invasão à residência de Will, afetado pelo caso e pelo retorno ao convívio da amizade destrutiva de Hannibal, possui a mesma carga dramática envolvendo familiares inocentes que a da adaptação anterior, Dragão Vermelho. A aparência de Dolarhyde também impressiona: o lábio leporino, a dentadura e a grande tatuagem da pintura O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida no Sol, de William Blake destacam-se na caracterização do personagem e formam sua base destrutiva, como um figurino que veste para conquistar a força do Dragão – o design ideal, como diria Graham. Pontuada não só pela aversão à sua própria aparência, mas também pela intimidação devido ao trauma da figura feminina, a esquizofrenia arcaica do vilão, como tipificação e estudo complexo da psicologia da personagem, demonstra por que Thomas Harris é um romancista de grandes virtudes.

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    Já o terceiro ato encerra o ciclo entre Will e Hannibal, que enfim retomam os laços negados pelo detetive em um abraço, símbolo maior de cumplicidade, afetuosidade e – por que não? – de amor. Amamos nossos inimigos com a mesma potência que amamos nossas pessoas queridas. O reconhecimento no outro além das nossas diferenças é um ato de amor. Se analisarmos a obra como uma desconstrução do universo apresentado nos livros, o final pretendido produz sentido.

    Com tantos núcleos, tramas e subtramas, é uma tarefa difícil avaliar a temporada como um todo, com altos e baixos disputando espaço em 13 episódios que deveriam ser enxutos. Hannibal encerrou-se de forma abrupta para quem esperava, até com um resquício de esperança, uma nova adaptação com Clarice Starling, que ao lado de Hannibal tornou-se icônica. Logo após o cancelamento, houve a vontade explícita de Fuller em produzir um filme com um final para o seriado, mesmo que a ideia contrarie o desfecho e o de seus personagens. Uma pena, já que o final, melodramático e lacrimoso, põe fim a qualquer motivo de espera por novos pratos da alta gastronomia que por ventura pudessem saciar a fome de seus espectadores.

    Texto de autoria de Karina Audi.

  • Crítica | Dragão Vermelho

    Crítica | Dragão Vermelho

    Dragão Vermelho - Poster

    Um ano após o lançamento de Hannibal, a esperada continuação de Silêncio dos Inocentes, foi o tempo suficiente para que uma refilmagem de Dragão Vermelho, primeiro livro sobre o canibal de Thomas Harris, fosse anunciada e, de maneira às avessas, finalizasse a trilogia sobre a personagem.

    A obra já havia sido adaptada para as telas por Michael Mann em lançamento anterior ao filme consagrado. Embora seja uma obra elogiada, Anthony Hopkins não interpretava a enigmática personagem, o que motivou esta nova versão. Inicialmente, o ator seria substituído por um ator mais jovem, mas uma maquiagem rejuvenescedora foi o suficiente para que o ator assumisse novamente Hannibal.

    A narrativa de Dragão Vermelho possui pontos estruturais semelhantes com Silêncio dos Inocentes. O agente do FBI Will Graham pede ajuda ao renomado psiquiatra para resolver um caso de assassinato envolvendo duas famílias. Diferindo-se de Clarice, Graham possui uma relação de trabalho com Hannibal quando suspeita do psiquiatra em uma série de assassinatos e se torna responsável por levá-lo a prisão.

    No papel de Graham, Edward Norton compõe um interessante personagem que, graças à série, Hannibal, ganhou o destaque necessário na interpretação de Hugh Dancy. Até então, Graham nunca havia sido páreo para a popularidade de Clarice Starling de Jodie Foster. Inteligente e destacado por sua aptidão em compreender a mente de criminosos e interpretar com precisão cenas de crimes, o policial sente um medo aparente de Lecter, ainda que tenha sido responsável por sua prisão e, consequentemente, provado sua superioridade intelectual. A caracterização de Norton – exceto pelo estranho cabelo aloirado – é contida, mas suficiente para transmitir a insegurança diante do canibal e destreza na condução da investigação.

    Abordando tanto a investigação quanto o vilão do título, a história tem um interessante equilíbrio entre as frontes conflitantes de bem e mal. O Dragão Vermelho é composto entre o grotesco de suas ações – crimes chocantes que atraem o leitor da narrativa policial em geral – e um escopo psicológico que justifica os atos desse homem que viveu a infância com uma mãe agressiva. Desenvolvem-se tanto a batalha do policial versus assassino como a relação entre Will e Hannibal, um monstro aparente que transita entre os dois polos, ajudando a polícia ao mesmo tempo que se comunica com o vilão, um fã assumido dos feitos de Lecter.

    A direção de Brett Ratner mantém o estilo de Jonathan Demme, uma tentativa de simular a claustrófica ambientação de O Silêncio Dos Inocentes. O ponto mais fraco da trama seja talvez sua personagem de maior nome. Em cena, Anthony Hopkins não mantém uma presença bem composta como na história lançada em 1991. Sua personagem parece afetada demais, com uma prosódia mais exagerada do que a composição anterior e sem o mesmo brilho, como se sentisse desconfortável de alguma maneira além da personagem. A suposta maquiagem rejuvenescedora não funciona e parece limitar o ator, como se evitasse expressões faciais para não marcar sua idade avançada. Talvez, com a tecnologia atual – a qual rejuvenesceu Michael Douglas de maneira impressionante em Homem-Formiga –, fosse possível uma interpretação mais apurada que corrigisse posteriormente eventuais marcas de velhice em seu rosto. Ainda assim, a elegância ambígua de Lecter está intacta em sua interpretação.

    Mesmo esta interpretação estranha não é capaz de destruir o bom equilíbrio da trama e as outras boas atuações que sustentam o suspense, com uma boa versão de um dos grandes vilões do cinema. Uma produção que não se configura como a obra-prima de 1992, mas muito melhor executada do que o terceiro ato dirigido por Ridley Scott.

  • Review | Hannibal – 2ª Temporada

    Review | Hannibal – 2ª Temporada

    hannibal-season-2A morte é um dos elementos primordiais nos trabalhos de Bryan Fuller. Suas séries, se não tiveram sequências e o êxito esperados, ao menos exploraram argumentos interessantes e característicos. Misturando drama e humor negro, Dead Like Me, exibida de 2003 a 2004, tem como plot o cotidiano de Georgia “George” Lass (Ellen Muth), uma garota sem amigos, com problemas com a família, e que, depois da própria morte, tem uma segunda chance de fazer as ações deixadas em aberto. Em 2004, após o cancelamento da série, Fuller criou Wonderfalls, comédia que foca a vida de Jaye Tyler (Caroline Dhavernas), atendente de loja que conversa com os objetos vendidos no estabelecimento. A trama só durou uma temporada. Pushing Daisies – Um Toque de Vida, exibida de 2007 a 2009, é o seu trabalho de maior fôlego, mas foi cancelado após duas temporadas em razão da baixa audiência na época. Lembrando um conto de fadas moderno – novamente utilizando-se de uma referência ao mundo fantástico –, a história tem como foco um confeiteiro (Lee Pace) com o dom de trazer os mortos de volta à vida.

    Sua mais recente produção, a adaptação para a televisão da aclamada franquia literária Hannibal, utiliza-se da morte. Porém, ao contrário dos trabalhos anteriores de Fuller, o tema é abordado de forma grotesca, retratando o famoso psiquiatra canibal, criado por Thomas Harris em sua série de romances, como um bestial caçador de carne humana, muito mais visceral do que o personagem evocado nas adaptações cinematográficas. Longe das grades e da desconfiança pública, Hannibal Lecter – excelentemente interpretado por Mads Mikkelsen – percorre os corredores do escritório policial do FBI e realiza reuniões gastronômicas em sua mansão sem oferecer o menor sinal de suspeita, o que confirma seus poderes de fingimento e influência.

    Exibida de fevereiro até o fim do último mês, a segunda temporada dá sequência aos eventos do gancho apresentado no ano anterior, com Will Graham (Hugh Dancy) preso, acusado de ser o Estripador de Chesapeake, mostrando a luta para provar sua inocência. Longe de Hannibal, Will começa a recordar-se do fatídico episódio em que foi hipnotizado ante a morte de Abigail Hobbs (Kacey Rohl). Pouco a pouco, a imagem do alce negro, que simboliza o torpor de seu estado psicológico, antropomorfiza-se, remetendo à figura de seu maior inimigo.

    Ao longo dos treze episódios – nomeados por pratos culinários japoneses, seguindo a mesma tendência da temporada anterior, que homenageou a gastronomia francesa – Lecter, ainda que tenha escapado da apuração de provas físicas em sua residência, continua sendo o alvo de Will, cuja única aliada, Beverly Katz (Hettienne Park), é a primeira a perder no bizarro jogo de destruição causado pelo monstro. Em seguida, o doutor Frederick Chilton (Raúl Esparza) também é envolvido, tornando-se a nova vítima, não necessariamente fatal. Todos os personagens que se colocam contra o psiquiatra são prejudicados, demonstrando que ele não sente pena ou remorso e age com violência até mesmo quando no tédio.

    Diferentemente da temporada anterior, que trabalhou a disfunção mental de Will promovida pelo assassinato de Garret Jacob Hobbs (Vladimir Jon Cubrt) e aprofundada pelo poder de persuasão de Lecter, esta é centrada na relação de Graham com seu psiquiatra. Os dois personagens entram em um embate psicológico onde um joga contra o outro em busca de proveito próprio, embora não haja sinais claros em tela que comprovem a trapaça envolvida.

    Focando em demasia os dois personagens centrais, não houve espaço para trabalhar os outros núcleos. Não há na história menção à influência de Lecter sobre a doutora Alana Bloom – Caroline Dhavernas, presente, quase dez anos depois, em outro trabalho de Fuller –, evidenciando que o relacionamento dos dois teve mais função de um possível triângulo amoroso em companhia de Will do que caracterizado por um resistente trabalho de manipulação usado pelo psiquiatra. Além disso, Jack Crawford (Laurence Fishburne) revela em seu semblante uma espécie de conformismo que não combina com um chefe de seção do FBI voltada à investigação de serial-killers. Esse fator pode ser explicado pela doença de sua mulher, Bella (Gina Torres), o que pode ter afetado o seu trabalho investigativo, mas não justifica a falta de poder perante todos os movimentos narrativos que o envolvem.

    A temporada transcorre bastante irregular ao dar mais destaque aos ganchos e revelações, além do choque pelo choque, do que à coerência do roteiro em si. Reapresentando personagens tidos como mortos, a série peca em não aprofundá-los como deveria, prejudicando recursos que poderiam ser mais bem explorados, caso da volta da trainee Miriam Lass (Anna Chlumsky), quase esquecida pouco tempo depois de ser salva, e o retorno de Abigail no season finale, injustificável por si só. Além disso, a reaberta investigação do real assassino de Chesapeake – ainda não encontrado – e a consequente libertação de Will foram desenvolvidas em sete episódios, uma demora que não se explica senão pela justificativa de criar mais suspense em algo desnecessário.

    A inclusão dos irmãos Margot (Katharine Isabelle) e Mason Verger – interpretado de forma magnânima por Michael Pitt (Os Sonhadores) –, trouxe, porém, maior energia à trama. Mason futuramente será um dos maiores inimigos de Lecter, e a sua participação na série foi muito fiel à cronologia de Hannibal, quarto livro de Harris no qual aparece. Mason é um autêntico psicopata que bebe lágrimas de pessoas que massacra, e não demonstra nenhum tipo de piedade, nem com a irmã, subjugada por ele. Até mesmo a aterradora frase “você deveria ter aceitado o chocolate”, proferida pelo personagem em uma dúbia mas mórbida cena que o envolve junto a Margot, é lembrada, comprovando a mesma força aterrorizante que o personagem manifesta no romance.

    Enquanto falha no roteiro, a série continua primorosa em relação ao caráter técnico. Os tons lavados da fotografia em planos abertos salientam a artificialidade do lugar, distanciando o público daquele universo. Enfatizando as cores em cenas de crime como uma paleta – semelhante a do serial-killer que aparece no início da temporada –, mostra-se a beleza no horrendo. A morte como linguagem da arte.

    Há a impressão de que os roteiristas não querem que a história alcance os eventos de captura do canibal para, assim, focar com mais intensidade a vida do doutor longe das grades. Talvez para mascarar uma história executada de maneira disforme, apelam para toda a sorte de situações, chegando ao incabível. Um plot twist e o aparecimento, no final, da doutora Bedelia Du Maurier (Gillian “Agente Scully” Anderson) como personagem importante à trama não são o bastante para dar credibilidade necessária a um roteiro que carece de maior apuro. Se confirmados os boatos de que a próxima temporada da série contará com a participação de Francis Dollarhyde, o antagonista de Dragão Vermelho, livro que sucede os eventos de prisão do psiquiatra canibal, será preciso haver mais desenvoltura para que a história não pereça em qualidade como sofreu anteriormente.

    Com o risco de ser fechada ao final da primeira temporada e quase agoniando outro possível cancelamento ao final desta, a série de Bryan Fuller ultrapassou a meta de alcançar a realização de um terceiro ano da produção, algo que o produtor nunca teve em mãos. Que a morte, tão presente em suas obras, se mantenha apenas como temática e não se transpareça em seu campo de ideias e argumentos.

    Texto de autoria de Karina Audi.

  • Resenha | O Silêncio dos Inocentes – Thomas Harris

    Resenha | O Silêncio dos Inocentes – Thomas Harris

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    Segundo romance com o Dr. Hannibal Lecter e terceiro de Thomas Harris, O Silêncio dos Inocentes, lançado em 1988, narra a história de Clarice Starling, agente em treinamento na Academia do Bureau Federal de Investigações (FBI) designada na investigação do brutal serial-killer Buffalo Bill. Preso em uma clínica, o psiquiatra é consultado para traçar o perfil psicológico do procurado assassino de cinco mulheres mortas em diferentes regiões dos Estados Unidos.

    Encontrados em pequenos espaços de tempo e em diferentes margens de rios do país, os corpos das vítimas têm o mesmo padrão: mulheres grandes e nuas, em estado avançado de decomposição, com cortes nos seios e nas costas e em cujas gargantas foram colocadas pupas de uma espécie rara de mariposa. Quando se descobre que o psiquiatra canibal possui informações sobre o assassino, Starling conta com sua ajuda na investigação em troca de informações pessoais, uma análise psiquiátrica que relembra os tempos em que ele ainda era um profissional conceituado na área e não tinha sua liberdade cerceada pelas grades de ferro da clínica.

    Embora se trate de uma história policial, naturalmente rápida e seca, como o barulho de um tiro, a narrativa de Thomas Harris consegue se impor através da poeticidade das ações dos personagens, principalmente as de Clarice, humanizando-a. Ela é a personagem novata que cativa pela falta de experiência. Ainda que o romance contenha a complexidade de um dos maiores vilões da prosa contemporânea, a história centra-se nela: a “caipira melhorada com um pouco de bom gosto” – assim chamada por Lecter – escolheu a carreira em razão da morte do pai, também policial. O parentesco impulsionou a agente a desempenhar um cuidado preciso com cenas de crime, ainda que não tenha um passado efetivo de atividade policial.

    Compreendemos Clarice porque nos vemos nela e com ela nos identificamos. Starling não é uma agente genial, como a maioria dos personagens da literatura policial. É uma mulher comum, que se coloca no lugar das vítimas, em seus sofrimentos e até nas suas escolhas pessoais de vida para encontrar o atrativo uno que motivou o assassino no momento da captura. Na busca por Buffalo Bill, a protagonista visita a casa das vítimas, observa roupas e sapatos que usavam quando ainda eram vivas, notando características similares: são todas mulheres grandes, bonitas e donas de cútis bem-cuidadas. Também recolhe declarações de seus familiares e amigos para obter o mínimo sinal suspeito, um procedimento comum nas investigações de décadas anteriores quando a visita de casa em casa era fundamental para encontrar pistas ou depoimentos importantes, longe do conforto de escritórios policiais, delegacias e de casos resolvidos pela investigação forense nos laboratórios.

    Ao se colocar no lugar das mulheres sequestradas e mortas, a personagem difere do método de Will Graham, do romance anterior de Harris, Dragão Vermelho. As tramas possuem protagonistas marcantes, porém opostos. Ambos são policiais destemidos e encorajados pela força da lei, mas enquanto Graham, por ser excêntrico, possivelmente insano e extremamente genial, encontra na mente dos sociopatas padrões indiscutíveis que o levam à solução dos casos, Starling chega ao desenlace a partir dos detalhes dessas mulheres. Isso explica por que ela, acreditando que a vítima primordial de Jame Gumb – nome original de Bill – era o seu principal descuido, chega ao louco covil do maníaco antes das equipes policiais, que nesse mesmo momento estavam a quilômetros de distância.

    Com a ajuda de Hannibal, Clarice descobre a bizarra intenção do assassino. Agindo pela cobiça, não por loucura ou puro desejo de matar, Buffalo Bill, um costureiro experiente, ambiciona a pele das vítimas com a finalidade de costurar uma vestimenta com o seu couro, provando seus desígnios grotescos. O personagem é baseado em outro serial-killer de verdade, Ed Gein, o qual colecionava partes dos corpos de suas presas e que também foi fonte de inspiração para diversas figuras de obras famosas da ficção, como Norman Bates de Psicose; Patrick Bateman, de Psicopata Americano; e, claro, Leatherface, de O Massacre da Serra Elétrica, além de muitos outros personagens menores.

    Jame Gumb cobiça a pele das mulheres porque deseja ser uma. Embora não se enquadre na condição da travestilidade – visto que transexuais na maioria das vezes são passivos e sem traços violentos, até mesmo por causa de sua posição oprimida pela sociedade –, ele se mostra feminilizado e com preocupação exagerada com a própria aparência. Uma figura egocêntrica, assim melhor dizendo, que centra em si seus desejos tornando a realidade fantasiosa. Por isso, o maníaco não pode ser considerado um transgênero legítimo. Isso é demonstrado na dinâmica da conceitualização dos testes psicológicos, quando Hannibal questiona o fato do assassino ter sido avaliado para realizar uma cirurgia de mudança de sexo. Um ponto importante, pois produz coerência com a realidade, já que Gumb foi recusado na triagem pelos médicos justamente por ter agredido um deles, o que denota uma personalidade violenta.

    Tal é a confusão psicológica do antagonista que as mariposas em sua vida interpretam papel fundamental. A mariposa se metamorfoseia em fases distintas, assim como ele sonha se transformar em outro alguém. Na sua mente a ideia de fazer um traje com a pele das vítimas – e vesti-lo – é a maneira de aproximá-lo à natureza exuberante do inseto, um bizarro fetiche explicado pelo comportamento narcisista e, contrariamente, pela sua falta de aceitação como pessoa. Além disso, Gumb age somente à noite, o que também é explicado pelo hábito noturno das mariposas. A escolha em colecioná-las não é um acaso sem explicação lógica, mas sim definidora.

    A procura pelo maníaco propicia também uma percepção maior sobre os personagens principais, os quais agem de maneira distinta na narrativa ao mesmo tempo em que são unidos por uma força maior. Clarice é a figura central do romance e agente que realiza as ações, e Hannibal, a cabeça pensante, ainda que tenha papel secundário. Essa diferença produz uma duplicidade antagônica que se completa e provoca tensão. A falta de contato físico entre eles, em razão da segurança máxima a qual o canibal foi submetido, com celas que não permitem o mínimo toque, é balanceada por uma espécie de contrato mútuo, uma relação estranha que reverbera na alta intimidade e na possível compreensão dos atos de cada um. Starling tem a confiança de Lecter porque se deixa levar por ele, pelo seu talento de adentrar na mente das pessoas e brincar com elas; ao mesmo tempo, o canibal transparece um tipo de confiança na agente federal, por esta ser uma novata esforçada, além da atração física que sente por sua presença. Juntos possuem o que toda dupla necessita em uma investigação: a química.

    A adaptação do livro para os cinemas, lançada em 1991, dirigida por Jonathan Demme e estrelada por Jodie Foster e Anthony Hopkins, além de Ted Levine como Gumb, é soberba ao captar esta química tão bem. Os olhares que Clarice troca com o psiquiatra, amplificados pelas cenas em close, expressam a confiança mútua sem o uso de palavras. A cena em que Starling conta seus sonhos dos quais é acordada pelo barulho de cordeiros – o que leva ao nome do título original – gera a mesma carga dramática do livro, mostrando que suas memórias podem ser tão aterrorizantes quanto a realidade das vítimas de Buffalo Bill. O filme capta todas as nuances do texto escrito, intensificando-as por meio de interpretações primorosas. Não à toa foi o vencedor das cinco principais categorias do Oscar de 1991 (Melhor Atriz, Melhor Ator, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Filme e Melhor Diretor), a terceira e última película da história do cinema a conquistar o feito, depois de Aconteceu Naquela Noite, de 1934 e dirigido por Frank Capra, e Um Estranho no Ninho, de 1976, realizado por Miloš Forman.

    Jodie Foster, Anthony Hopkins e Scott Glenn em foto de divulgação do filme

    O Silêncio dos Inocentes é um dos thrillers psicológicos mais importantes para o gênero. Um exercício narrativo exemplar que conduz com maestria os aspectos da narrativa policial – drama, suspense e investigação –, dosados de maneira ímpar e intensificados pelo horror que projeta nos personagens, mostrando a essência do que há de pior no ser humano. Mais do que buscar o culpado, a narrativa procura entendê-lo. O resultado é uma leitura fluida e intrigante, equilibrando densidade e tensão até as últimas páginas.

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    Texto de autoria de Karina Audi.

  • Resenha | Hannibal: A Origem do Mal – Thomas Harris

    Resenha | Hannibal: A Origem do Mal – Thomas Harris

    Hannibal - A Origem do Mal - Thomas Harris

    Thomas Harris, escritor conhecido por ter criado a série sobre o mais famoso canibal da ficção, o psiquiatra Hannibal Lecter, dedicou grande parte de sua vida ao personagem. Escreveu ao todo cinco livros, sendo Domingo Negro, de 1975, com relativo sucesso nos Estados Unidos, o único sem o personagem mais célebre. No livro um terrorista planeja um atentado no maior evento esportivo americano, o Super Bowl; em 1981, Dragão Vermelho, traduzido para o português no mesmo ano de seu lançamento, é o primeiro em que aparece o personagem; O Silêncio dos Inocentes, de 1988, lançado no país um ano depois, fundamenta a mais famosa adaptação para o cinema, sendo vencedora das cinco principais categorias do Oscar; Hannibal, de 1999, foi importado para cá neste mesmo ano; e Hannibal – A Origem Do Mal, lançado em 2007, é o último livro, mas o primeiro em ordem cronológica sobre a vida do criminoso. Toda a série foi publicada no país pela Editora Record em boas edições.

    Hannibal – A Origem Do Mal procura traçar os meandros da infância do personagem na Lituânia, em plena Segunda Guerra Mundial, e sua juventude na França, em meio a uma busca pela punição dos inimigos que assassinaram as pessoas que amava.

    Na trama Hannibal é um garoto de oito anos que presencia a morte de seus pais e dos empregados do Castelo Lecter em uma incursão de insurgentes russos e soldados alemães que o invadem e o saqueiam. Como reféns em um celeiro, o menino e Mischa, sua irmã, sobrevivem ao inverno europeu, porém logo a menina é morta e usada como alimento pelos malfeitores canibais. Suas lembranças se tornam cada vez mais atrozes à medida que a vingança toma forma no menino. A dor do luto o faz perder a fala, ao mesmo tempo em que é levado de volta a sua antiga morada, agora transformada em um orfanato, onde as demais crianças o destratam. Ao ser encontrado por Robert Lecter, seu tio, e a esposa Lady Murasaki, passa a morar com eles na França. Um lar feliz, se não fosse o dano já causado em sua alma.

    A história extremamente simplista mal parece ter sido escrita por Harris, que fez de Dragão Vermelho e O Silêncio dos Inocentes dois thrillers instigantes de muito sucesso nos anos 80. A narrativa nada mais é que um amontoado de cenas pouco climáticas e de clichês formuláveis que têm normalmente uma situação-limite (a morte dos pais), em que o protagonista perde a sua essência, passa por uma tentativa de adaptação a esse mundo já estranho, e, no final, comete a vingança que o redime. Uma fórmula usada à exaustão e pouco atrativa caso não seja bem trabalhada, ainda mais se utilizarmos como parâmetro o leitor não esporádico de hoje, exigente com os textos que recebe em mãos.

    A trama é rasa por também reduzir Hannibal a um papel determinista, com um futuro o qual não pode fugir. A impressão que se tem ao fazer a leitura deste romance é que o narrador parece tentar explicar a origem do comportamento sociopata e doentio do protagonista, procurando encontrar razões que o levaram à prática do canibalismo. No entanto, falha ao delimitar suas impressões utilizando simbologias dos demais personagens e ações dos inimigos que internalizam em Lecter pensamentos antissociais. A enfermidade mental do garoto, a partir da ideia passada no texto, parece ser explicada por um elemento comportamental, o que por si só não garante que pessoas com histórico familiar e social problemático se tornem assassinas comedoras de gente. Psiquiatras atualmente dividem suas opiniões, que acabam sempre convergindo no fator genético associado à influência do meio, mas ainda sem comprovações científicas suficientes para se afirmar a predominância de um sobre a outra. Se Harris focasse, em qualquer parte do livro, na herança familiar das Casas de Sforza e de Visconti, ascendentes da mãe do personagem e conhecidas por seus atos cruéis na Idade Média, a história teria um pouco mais de concretude, mas esse fato é mal citado no início da história.

    Os demais personagens são também mal construídos. Mischa é uma criança idiotizada e a relação com o irmão é pouco aprofundada, a ponto de nem lembrarmos ao final da história que a menina existiu de fato. Para uma figura muito importante para o destino do protagonista, é imperdoável que ela pereça na memória dos leitores, já que sua morte é o elemento traumático que modifica a personagem central. Lady Murasaki é também muito pouco explorada. Talvez a ideia fosse a de mostrar uma mulher sensual e misteriosa que seduz Hannibal, no entanto essa caracterização é falha e pouco empática. O Inspetor Popil, que também tem uma queda pela mulher, limita-se a ser um tolo investigador que apenas interroga o rapaz, não agindo em momento algum, mesmo que tenha uma arguta intuição sobre as suas ações. Os assassinos e saqueadores russos do Castelo Lecter, especialmente Grutas, são caricatos a ponto de adivinharmos seus destinos. Por fim, o personagem-título não oferece medo. Ainda que o pequeno assassino seja apenas um iniciante na arte dos crimes e não tenha atingido o status de um dos grandes vilões da ficção, os assassinatos, narrados de maneira implícita, perdem a força e se tornam anticlimáticos, quase passando despercebidos numa leitura pouco atenta. Não há horror que se sustente sem essa base.

    Apesar de parecer um desastre completo, podemos encontrar no livro alguns acertos. A cena de sexo entre Hannibal e Lady Murasaki é cheia de simbologias e literariamente bonita e sugestiva. Interessante também é a forma como a narração, em terceira pessoa, passa a externar, em itálico, os pensamentos do futuro antropófago, dando-nos a sensação de adentrar em sua mente perversa. O final alinha-se com o que já vimos nos livros anteriores, nas adaptações para o cinema e, mais recentemente, na ótima série da NBC, com Hannibal já nos Estados Unidos viajando de trem para Nova Iorque, dando a grande dimensão do futuro, e de Will Graham, que o esperam.

    Escrito concomitantemente com o roteiro cinematográfico — de mesmo nome —, também feito por Harris, o romance parece ter sido concebido às pressas, como se o autor não quisesse passar sua criação para outros escritores e preferisse manter seu nome no projeto. A prosa fluida e prazerosa de seus outros romances não é reconhecida neste livro. Um início indigno para um dos maiores vilões da ficção.

    Texto de autoria de Karina Audi.